PSICANÁLISE DA
ILUSÃO ELEITORAL 03:
A ALIENAÇÃO
GENERALIZADA
Nildo Viana
O desejo coisificado[1]
não emerge do nada, ele tem uma fonte social. Nesse sentido, é fundamental
entender as fontes do desejo coisificado, não só para compreendê-lo, mas também
para poder pensar sua superação, o que pressupõe romper com a alienação, o
burocratismo, o imobilismo e o conformismo, condições para uma verdadeira
esperança e utopia concreta.
O desejo coisificado ocorre sob várias formas e uma delas é
o fetichismo eleitoral. Assim como o fetichismo da mercadoria é explicado pela
existência do trabalho alienado, o desejo coisificado (ou fetichismo eleitoral)
é explicado pela generalização da alienação na sociedade capitalista. O
trabalho alienado é aquele no qual o trabalhador não possui controle de sua
atividade e com isso perde o controle do produto do seu trabalho, gerando a
alienação do produto (propriedade privada). A alienação é, assim, uma relação
social na qual alguns controlam a atividade de outros e assim usurpam o produto
da mesma[2].
Esse processo é mais amplo do que parece à primeira vista, pois a sociedade
capitalista realiza um processo de ampliação da divisão social do trabalho,
mercantilização e burocratização das relações sociais. A burocratização das
relações sociais acaba gerando um processo de controle da vida cotidiana dos
indivíduos, através do Estado e seus aparatos (democracia burguesa, aparato
repressivo, aparato educacional, aparato comunicacional, etc.) e as empresas e
instituições privadas, promovendo também a burocratização da sociedade civil em
geral (igrejas, partidos, sindicatos, etc.). Nesse contexto, que desde 1945 já
atinge o conjunto da sociedade, os indivíduos passam a estar submetidos a
diversas instâncias sociais que dirigem sua vida em geral. Os indivíduos são controlados
no trabalho, nos estudos, no lazer, estando submetidos a especialistas e
burocratas em todos os lugares.
A alienação generalizada da sociedade capitalista promove a
mentalidade burocrática, tanto a de caráter dirigista daqueles das classes privilegiadas,
especialmente os burocratas (do estado e governos, empresas, instituições em geral)
quando a sua versão submissa dos dirigidos em sua maioria. O que ambos
concordam é que há a necessidade de dirigentes e os dirigidos aceitam
resignadamente em grande parte e outra parte aceita por ambicionar passar de
dirigido para dirigente, esperando acender ao poder. A mentalidade burocrática
é a do controle total e dirigista, produzidas e reproduzidas por burocratas,
capitalistas e pretendentes. Para aqueles que são das classes exploradas, isso
se revela, em grande parte dos casos, como submissão e se manifesta mais como
mentalidade submissa que justifica e legitima a dominação e direção. A nível da
sociedade, isso reforça a estratégia burguesa de canalizar todas as lutas
sociais para o Estado, via democracia representativa, na qual as pessoas trocam
sua luta direta por escolha de representantes, adesão a partidos e
candidaturas, etc., o que significa, em alguns casos, abrir mão da luta para
que outro supostamente a faça.
Assim, temos relações sociais concretas marcadas pela
alienação e burocratização e mentalidade burocrática e submissa gerada por tais
relações e confirmadas cotidianamente por elas e pela própria mentalidade que
lhe reforça. Nesse contexto, existe uma recusa da alienação, do burocratismo,
do controle e falta de liberdade, mas em grande parte dos casos é inconsciente
ou relegado a mero desejo coisificado. Aqui temos um processo de alienação
generalizada e produção de desejo coisificado.
O processo de superação do desejo coisificado de liberdade e
de eliminação da burocracia e da alienação, elementos inseparáveis, ocorre
através da luta e, especialmente, da práxis.
A luta é necessária e é a primeira forma de liberdade e superação da alienação
e burocratismo, pois nós mesmos agimos em busca da liberdade, já sendo sua
manifestação inicial. Contudo, isso deve ser teleológico (com uma finalidade, a
liberdade real, autoemancipação e autogestão das lutas visando a autogestão
social), consciente e ativo, por isso práxis.
A negação prática é mais rica, profunda e eficaz quando é também negação
consciente e teórica.
Ora, se há uma alienação generalizada na sociedade
capitalista, então devemos lutar também sob forma generalizada contra ela.
Trata-se de uma luta generalizada visando instaurar e generalizar a autogestão
(das lutas para conseguir torná-la autogestão do conjunto das relações sociais,
ou seja, da sociedade como um todo). Esse processo de luta não pode ser, no
entanto, abstraído das relações sociais existentes e por isso não é num esforço
de imaginação que isso se realiza ou de um dia para o outro. Se alguns
indivíduos buscam e tentam efetivar isso, eles encontrarão a oposição da classe
dominante, do Estado, do capital, bem como de suas classes auxiliares e até
mesmo de amplas parcelas das classes exploradas que ainda não terão superado
isso. Inclusive haverá oposição das próprias pessoas que querem a transformação
radical, em sua mentalidade, pois ninguém rompe com a mentalidade dominante e
milhares de outros elementos culturais e sociais de uma hora para outra e em
sua totalidade. Esse é um processo de luta onde milhares estão lutando e por
isso é preciso lutar contra nós mesmos em muitos aspectos, principalmente tendo
em vista que nem tudo que é apresentado como “revolucionário” o é realmente. É preciso
entender que muito do que se coloca como contestador é, no fundo, mera luta por
vantagens competitivas dentro do capitalismo e isso acaba criando divisões e
promovendo influências para os que acreditam em tais discursos. Por isso a
reflexão deve ser mais profunda.
Assim, a luta cultural tem um papel fundamental e a luta em
todos os lugares. O voto nulo e a luta antiparlamentar é uma das formas – que
não é a única e nem a mais importante, pois existem milhares de outras,
inclusive mais profundas e necessárias. A questão é que o voto nulo (ou
abstenção) é uma ação que não é dirigida por ninguém, o que significa que é uma
forma de luta que rompe tanto na prática quando na consciência, com a alienação
e o burocratismo. Nesse sentido, é um dos lugares de luta, que não pode, no
entanto, aparecer como o único ou principal, bem como esse fato não deve servir
de pretexto para omissões oportunistas e convenientes a nível pessoal de
supostos revolucionários, que querem evitar conflitos e problemas e ficar em
sua situação de conforto nas relações sociais com conservadores, oportunistas,
etc.
Obviamente que existem outras consequências do voto nulo
(protesto, deslegitimação da democracia burguesa e estado capitalista, etc.)[3],
principalmente se articulado com outras lutas (tal como a luta cultural mais
geral, a luta pela auto-organização e autoeducação da população em seu
conjunto, o projeto autogestionário, etc.)[4].
Nesse sentido, a luta[5]
pelo voto nulo é um processo de superação do desejo coisificado e elemento da
luta cultural pela autogestão social e contra a alienação generalizada do
capitalismo. A superação do desejo coisificado pode ser conquistada, em alguns
casos individuais, com a luta cultural e pelo voto nulo, mas é com a superação
da alienação generalizada no conjunto das relações sociais que isso pode
ocorrer de forma também generalizada.
[1]
Sobre “desejo coisificado”, cf. http://informecritica.blogspot.com.br/2014/10/psicanalise-da-ilusao-eleitoral-01-o.html
[3]
Um conjunto de textos sobre isso pode ser consultado em: http://www.enfrentamento.net/especiais.html
e http://informecritica.blogspot.com.br/2014/10/artigos-para-compreender-as-eleicoes.html
[5]
Luta e não “campanha”, pois quem faz campanha são os políticos profissionais e
partidos políticos. Embora isso não nos faça, como alguns, condenar aqueles que
usam tal terminologia (“campanha pelo voto nulo”) como se isso fosse
fundamental e motivo para divisionismo, pois apenas sugerimos a mudança e
usamos outra e se houvesse menos “sectarismo” e “dogmatismo”, muitos poderiam
alterar, sendo que poucos fazem isso e outros avançam mas fazem questão de
fazer de conta que não sabem a fonte de tal alerta e criticam os que chamaram
atenção para o fato e inventam críticas infundadas para manter sua luta por
espaço ao invés de buscar a solidariedade revolucionária, compromisso com a
verdade e reconhecimento da luta dos demais.
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