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sexta-feira, 21 de maio de 2021

As Razões do autoritarismo na América Latina - Palestra de Nildo Viana

 


CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO:

AS RAZÕES DO AUTORITARISMO NA AMÉRICA LATINA

 

Nildo Viana - UFG/Universidade Federal de Goiás - Brasil

19 horas/horário de Brasília.



Sobre o evento: O Colóquio Internacional América Latina em Movimento (online) é uma realização do Grupo de Pesquisa Cultura, Política e Movimentos Sociais na América Latina/CPMSAL, que é vinculado ao Programa de Pós-graduação em Sociologia/PGSOCIO da Universidade Federal do Paraná/UFPR, Brasil, e tem como propósito fomentar o debate, a produção, a troca e a difusão de conhecimentos sobre as sociedades latino-americanas, a partir de uma perspectiva teórica crítica. Nesse sentido, promove conferências, palestras, mesas-redondas, cursos de formação, minicursos etc. sobre o modo de produção da vida e suas diversas formas de regularização (políticas, jurídicas, ideológicas, culturais, repressivas etc.) nas sociedades latino-americanas, bem como sobre as diversas formas de contestação social (movimentos sociais, movimentos de classes, coletivos políticos, lutas culturais etc.) que nelas emergem. Em sua primeira edição trará o Neoliberalismo e Autoritarismo como temática central.

 

No dia 19/05/2021, o professor da Universidade Nacional Autônoma/UNAM do México, Dr. Jaime Osorio, abrirá o evento com uma conferência intitulada Neoliberalismo e Subordinação.

 

No segundo dia do Colóquio (20/05/2021) teremos uma mesa-redonda sobre Lutas Culturais e Lutas Políticas Contemporâneas com a presença do professor Dr. Fernando Aiziczon, da Universidade Nacional de Córdoba/UNC, Argentina e do doutorando Gabriel Teles da Universidade de São Paulo/USP.

 

No dia 21/05/2021 o professor Dr. Nildo Viana, da Universidade Federal de Goiás/UFG, ministrará a conferência de encerramento com o tema As Razões do Autoritarismo na América Latina.


domingo, 16 de maio de 2021

JUNG E A INDIVIDUAÇÃO

 


JUNG E A INDIVIDUAÇÃO

 

Nildo Viana*

 

Resumo: O presente artigo apresenta uma análise da concepção junguiana sobre o desenvolvimento da personalidade e uma breve consideração sobre esse processo e a formação social do indivíduo tal como é entendido por outros autores. Assim, após uma síntese da concepção de Carl Gustav Jung, que remete ao problema da individuação, a comparamos com a concepção oriunda da sociologia e outras abordagens que tratam do fenômeno da socialização. Disso resulta uma perspectiva crítica da análise junguiana, sem descartar o conjunto de suas contribuições. O maior problema da análise de Jung é, simultaneamente, o seu grande mérito: a análise da mente como totalidade psíquica. Essa concepção tem como problema a autonomização da psique humana, o que a desliga do social, sendo este o determinante da mente humana. O mérito foi ter focalizado o universo psíquico do ser humano, desde que entendamos não como ele o fez, como autonomização, e sim como foco. Desta forma, compreendendo como foco e não autonomia, podemos usar a concepção junguiana para compreender o fenômeno psíquico.

 

Palavras-chave: Jung, Individuação, Socialização, Mente, Personalidade.

 

A obra de Carl Gustav Jung é uma das mais importantes no interior da psicanálise. A psicanálise, fundada por Freud, teve um desenvolvimento que promoveu algumas cisões internas, sendo que a cisão de Adler foi a primeira que gerou forte impacto e toda uma corrente psicanalítica distinta da freudiana e a de Jung, a segunda que gerou uma nova tendência no interior da psicanálise[1]. Após a colaboração com Freud e o rompimento, Jung desenvolve uma nova concepção psicanalítica que abrange um grande número de teses, termos, temas. No interior da vasta produção intelectual de Jung escolhemos o tema da individuação, não só por considerar que é um tema fundamental para a psicanálise, mas também por ser uma questão central no pensamento junguiano.

No curto espaço que temos para desenvolver a nossa análise da concepção junguiana, teremos que ser sintéticos e nos limitarmos aos aspectos essenciais. O presente artigo é composto por duas partes: uma que visa expor a concepção junguiana e outra que visa refletir sobre ela. Após uma breve síntese da análise junguiana da individuação, trabalhando com sua terminologia e explicação do desenvolvimento da personalidade, passaremos para uma análise crítica da mesma, explicitando elementos para uma psicanálise orientada criticamente e tendo a sociedade como pressuposto, ou seja, abordando o processo de individuação e desenvolvimento da personalidade no interior do conjunto das relações sociais. Esse último procedimento tem como principal aspecto o reencontro entre individuação e socialização, o indivíduo e a sociedade.

Jung e o desenvolvimento da personalidade

A obra de Jung e sua análise da individuação remetem para vários construtos, entre os quais inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, persona, sombra, anima, animus, etc. e que formam uma concepção do desenvolvimento da personalidade. Segundo Jung:

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entenderemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois, traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do si mesmo’ (Selbstwerwirklinchung) (JUNG, 1978, p. 49).

O processo de individuação não é algo simples. É um processo complexo e permeado por fases e dificuldades. Antes da individuação ocorre a alienação. As várias possibilidades de desenvolvimento do indivíduo podem ser denominadas “alienações do si-mesmo” (JUNG, 1978). Essas alienações são “modos de despojar o si-mesmo de sua realidade, em benefício de um papel exterior ou de um significado imaginário”, que, “em ambos os casos, verifica-se uma preponderância do coletivo” (JUNG, 1978, p. 49). No entanto, a individuação é um movimento para a realização, ou melhor, para a autorrealização. “Todo ser tende a realizar o que existe nele em germe, a crescer, a completar-se. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto à psique” (SILVEIRA, 1983).

Assim, podemos dizer que existem duas tendências no interior da psique humana: alienação e individuação. O processo de individuação é um processo conflituoso e por isso não é linear. O indivíduo para se tornar específico e inteiro, precisa passar pelo confronto entre inconsciente e consciência, através do conflito e da colaboração, que gera o amadurecimento através dos diversos componentes da personalidade (SILVEIRA, 1983). Ele significa a tendência instintiva no sentido de realizar sob forma plena as potencialidades humanas inatas[2]. A individuação possui algumas fases, sendo que a primeira é a retirada da máscara, ou do que Jung denomina persona.

A individuação obrigava a abandonar a confortável segurança da identificação do quem-eu-sou com o-que-eu-faço, nossos papeis familiares, pessoais e sociais, a que Jung chamava a persona ou máscara social. Por exemplo, a persona de Jung era ser um médico ou psiquiatra. A dissolução dessa persona era necessária para o desenvolvimento porque ela não passa de um segmento da psique coletiva. Tal máscara apenas estimula nossa individualidade, mas não a exprime. Descobrimos, na análise, que o que pensamos ser individual e exclusivo em nós é, na verdade, coletivo, um falso sistema do Self interiorizado (STAUDE, 1995, p. 106).

Ao superar o papel social que constitui a persona, que cumpre a função de um sistema de defesa, o indivíduo se defronta com o lado obscuro da psique humana: a sombra. Ela faz parte da personalidade total do indivíduo e é aquilo que não aceitamos em nós, o que consideramos repugnante, o que reprimimos e projetamos sobre os outros. Embora a sombra seja um conjunto de componentes diferenciados (fraquezas, imaturidade, complexos reprimidos, forças maléficas) considerados negativos, ela também possui “traços positivos” (JUNG, 1987): qualidades não desenvolvidas por razões externas ao indivíduo ou então falta de energia suficiente para superá-las (SILVEIRA, 1983).

Trazemos em nós o nosso passado, isto é, o homem primitivo e inferior com seus apetites e emoções, e só com um enorme esforço podemos libertar-nos desse peso. Nos casos de neurose, deparamos sempre com uma sombra consideravelmente densa. E para curar-se tal caso, devemos encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a sombra possam conviver (JUNG, 1987, p. 81).

A sombra remete ao inconsciente pessoal[3] e este é uma camada que é de natureza pessoal, sendo “aquisições derivadas da vida individual e em parte por fatores psicológicos” (JUNG, 1978, p. 11). É parte integrante da personalidade e se diferencia do inconsciente coletivo, que possui elementos de ordem impessoal, coletiva, formado por “categorias herdadas” ou “arquétipos” (JUNG, 1978).

Um último elemento que Jung reconhece na formação da personalidade é, no sexo masculino, a confrontação com a anima, e, no sexo feminino, a confrontação com o animus. Em cada homem existe “uma minoria de gens femininos que foram sobrepujados pela maioria de gens masculinos” (SILVEIRA, 1983) e a anima é a representação psíquica dessa minoria de gens femininos, constituindo uma feminilidade inconsciente no homem. Ela também expressa a experiência milenar do homem com a mulher (formando a imagem da mãe, que é transposta para a namorada, esposa ou amante). Da mesma forma, em cada mulher existe “uma minoria de gens masculinos” também sobrepujados por uma maioria de gens femininos e o animus é sua representação no psiquismo feminino. O animus se manifesta como “intelectualidade mal diferenciada e simplista” (SILVEIRA, 1983). O animus também expressa a experiência milenar da mulher com o homem, formada, principalmente, na imagem do pai, transferida depois para o professor, o ator, o esportista ou o líder político. Após essa confrontação, quando há a superação das personificações da anima e do animus, o inconsciente se altera e emerge o self. Esse é o núcleo mais interior da psique e aparece nos sonhos masculinos como o sábio, mestre espiritual, filósofo e nos sonhos femininos como sacerdotisa, deusa mãe ou deusa do amor.

O self (si mesmo) não se revela apenas através de personificações humanas. Sendo uma grandeza que excede de muito a esfera do consciente, sua escala de expressões estende-se de uma parte ao infra-humano e de outra parte super-humano. Assim, seus símbolos podem apresentar-se sob aspectos minerais, vegetais, animais; como super-homens e deuses. Também sob formas abstratas. A denominação de self não cabe unicamente a esse centro profundo, mas também à totalidade da psique. O reconhecimento da própria sombra, a dissolução de complexos, liquidação de projeções, assimilação de aspectos parciais do psiquismo, a descida ao fundo dos abismos, em suma, o confronto entre consciente e inconsciente, produz um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da nova personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com o ego. O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força energética que este irradia englobará todo o sistema psíquico. A consequência será a totalização do ser, sua esferificação (abrundung). O indivíduo não estará mais fragmentado interiormente. Não se reduzirá a um pequeno ego crispado dentro de estreitos limites. Seu mundo agora abraça valores mais vastos, absorvidos do imenso patrimônio que a espécie penosamente acumulou nas suas estruturas fundamentais. Prazeres e sofrimentos serão vivenciados num nível mais alto de consciência. O homem torna-se ele mesmo, um ser completo, composto de consciente e inconsciente incluindo aspectos claros e escuros, masculinos e femininos, ordenado segundo o plano de base que lhe for peculiar (SILVEIRA, 1983, pp. 99-100).

É nesse momento que se conclui o processo de individuação. Caso não ocorra, o estágio anterior fixado gera neuroses e outros processos limitativos do desenvolvimento da personalidade. O encontro com o self, o núcleo da personalidade, possibilita a integração da totalidade da personalidade[4].

Jung, Personalidade e Sociedade

A breve descrição da concepção junguiana do desenvolvimento da personalidade é fundamental para realizarmos um confronto entre sua abordagem e a de outros psicanalistas, focalizando a questão da sociedade. O campo perceptivo de Jung é a mente humana enquanto que a sociologia tem a sociedade como domínio temático, assim como a antropologia se dedica à cultura e outras ciências humanas outros aspectos da sociedade (ciência política, historiografia, economia, etc.).

O que Jung denomina “individuação” é um processo psíquico no qual a sociedade pouco aparece. Erich Fromm também discute o processo de individuação, mas o faz mostrando não apenas o desenvolvimento do universo psíquico individual, pois apresenta também que se trata de um processo social (FROMM, 1981). É esse processo que possibilitou algumas críticas ao pensamento junguiano:

Jung considerava a ‘individuação’ e a ‘coletividade’ como um par de opostos. Críticos de Jung objetaram quanto ao fato de que ele não tinha um senso de sociedade, de que a individuação só é possível quando o indivíduo obtém sua individuação às custas de um trabalho equivalente em benefício do coletivo, da sociedade. Só os que pagaram seu preço à sociedade por iniciativa própria podem atingir os níveis mais elevados da individuação (STAUDE, 1995, p. 107).

Aqui temos a sociedade (ou “coletividade”) aparecendo e um questionamento realizado por alguns ao pensamento de Jung. A sociedade, segundo Staude, é um par oposto ao processo de individuação. Como observamos anteriormente, a individuação é conquistada superando a persona, ou seja, o que alguns sociólogos e psicólogos chamariam de “papeis sociais”. Essa oposição requer uma compreensão crítica da sociedade. Contudo, Jung não demonstra possuir uma análise mais profunda da sociedade[5] e nem do impacto dessa sobre os indivíduos. O impacto do social sobre o individual é um dos principais temas da sociologia e em alguns autores aparece com o nome de socialização. O processo de socialização, abordado por vários sociólogos, é inverso ao de individuação, no sentido junguiano.

No processo de socialização observamos como o indivíduo se torna um ser social. Esse fenômeno pode ser visto sob formas distintas. Ele pode ser percebido através de uma concepção dualista da natureza humana, que seria, por um lado, egoísta, e, por outro, social, e por isso a socialização visa tornar o indivíduo um ser social e adaptá-lo à sociedade (DURKHEIM, 1974). Também pode ser considerado um processo que tem a incumbência de formar o ser social, mas, simultaneamente, para determinado lugar na sociedade (dependendo da classe social, entre outras divisões sociais), para determinada forma histórica de sociedade (a sociedade escravista ou feudal geram indivíduos diferentes adaptados a elas). Assim, a incumbência universal da socialização é formar o ser social, é um processo de humanização. A incumbência histórico-particular é para ele se preparar para viver em determinada sociedade e determinada posição no seu interior (VIANA, 2011).

Aqui nos deparamos com a posição junguiana. A oposição entre indivíduo e sociedade é relativa, depende de cada sociedade histórica particular, e por isso a sua tese universalista é problemática, pois, retirando as diferenças que atribui ao oriente e ocidente, que fica no nível mental (JUNG, 1986), não apresenta uma percepção da evolução histórica da humanidade, as formas de sociedade, as características fundamentais da sociedade moderna. Estas ficam ausentes em sua análise (VIANA, 2002). O único processo social mais relevante que Jung reconhece na sociedade moderna é a especialização e profissionalização, que gera a persona, e a racionalização, que gera o sufocamento do inconsciente (JUNG, 1988)[6].

Assim, a crítica a Jung pelo fato dele desconsiderar a responsabilidade social do indivíduo, é equivocada e Staude está correto nesse aspecto. Contudo, a crítica mais profunda segundo a qual a sociedade e o processo de constituição social do indivíduo estão ausentes, bem como a concreticidade desse processo, não é respondida. Um exemplo pode esclarecer isso. A discussão sobre anima e animus, em Jung, é problemática por universalizar algo que, mesmo tendo um elemento universal, não é totalmente universal. A ideia de existência de gens femininos e que isso explicaria o pendor sentimental do homem e a existência de gens masculinos que explicaria o pendor racional das mulheres é algo que as informações produzidas por antropólogos e sociólogos demonstram ser equivocado. A antropóloga Margareth Mead, mostra, ao analisar três tribos indígenas, três formas de manifestação de temperamento de homens e mulheres, sendo que uma é igual à nossa sociedade (e, portanto, de acordo com o esquema junguiano), outra é o contrário (as características consideradas, em nossa sociedade, femininas são desenvolvidas pelos homens e as masculinas pelas mulheres), e uma terceira na qual ambos os sexos revelam um equilíbrio entre ambas (MEAD, 1988)[7].

Isso significa que existe uma socialização diferencial entre os sexos e dentre os aspectos diferenciais estão o “temperamento” ou os “ethos sexuais”. A constituição de ethos sexuais rígidos é um elemento que pode gerar desequilíbrios psíquicos e Jung está correto em colocar a necessidade de “confrontação” do homem com a anima e da mulher com o animus, pois são potencialidades humanas que a socialização diferencial tolhe em cada um deles, pois ambos possuem capacidades intelectuais e racionais, bem como sentimentais. Esse mesmo processo também existiu em outras sociedades, sob formas diferentes, devido ao processo histórico e se reproduz na sociedade moderna. Logo, nada tem a ver com “gens masculinos” ou “gens femininos”, não é uma questão genética ou orgânica e sim sociocultural, bem como não é algo universal.

O que a análise histórica e social deve levar em conta, e assim contribuir com essa discussão, é o grau em que cada um desses processos (racionalização, no sentido junguiano da palavra, e sentimentalizacão) são introjetados pelos indivíduos e são um obstáculo para o desenvolvimento de sua personalidade (no sentido junguiano, ou seja, sob forma integral). É, nesse sentido, Jung está novamente correto ao observar o excessivo racionalismo da sociedade que ele chama de “ocidental”. O sufocamento dos sentimentos é algo muito intenso na sociedade moderna e as explosões sentimentais são a resposta, muitas vezes violenta, e que explica aspectos da modernidade.

Sem dúvida, uma compreensão mais profunda da sociedade e uma percepção mais ampla da formação social do indivíduo seria fundamental para reconhecer que muitas características humanas consideradas “universais” são, na verdade, produtos sociais e históricos[8]. Elementos universais existem, mas mesmo estes podem ser reprimidos (o que é problemático e fonte de desequilíbrios psíquicos) e assumirem distintas formas dependendo da sociedade e da época. A sombra, que Jung considera parte da psique humana, pode ser concebida não como algo universal e natural, sendo mais histórico e tendo a ver com as relações sociais e a vida individual no interior dessas (VIANA, 2002), sem descartar a ação das “dicotomias existenciais” (FROMM, 1978).

Da mesma forma, os elementos biológicos existem e são atuantes sobre o universo psíquico individual, bem como os sociais, tal como apontados por Freud e Adler, respectivamente. O próprio Jung reconhece[9], embora não seja nosso objeto aqui. Essa ressalva é importante para que não se confunda nossa posição, pois o ser humano é um ser biossociopsíquico, o que constitui sua complexidade. Freud enfatizou alguns aspectos, Adler outros, bem como Rank, Fromm, Horney, entre outros, enfatizaram aspectos diferentes do ser humano, especialmente sua constituição social e cultural.

Nesse contexto, a psicanálise, no seu conjunto, permite a constituição de uma percepção integral do ser humano, a partir da assimilação crítica das principais contribuições psicanalíticas existentes. Uma concepção totalizante de ser humano é fundamental e a contribuição de Jung, que aponta para a percepção de fenômenos psíquicos relativamente autônomos[10], segundo ele, traz importantes reflexões que podem ajudar o projeto de uma reconstituição do ser humano como totalidade.

Considerações Finais

Tendo em vista o que foi colocado no decorrer do presente texto, a psicologia analítica de Jung aparece como um importante capítulo na história da psicanálise. Outras vertentes diferenciadas tentaram adaptar o legado de Freud ao desenvolvimento de novas tendências ideológicas, como o estruturalismo (LACAN, 1992) e o existencialismo (MAY, 1974), além das anteriormente citadas. Esse processo aponta para o reconhecimento de que, entre todas as abordagens psicanalíticas, a de Jung ocupa um lugar fundamental, ao lado de Freud, Adler, Fromm e outros.

Uma das principais contribuições de Jung é o processo de individuação, foco de nossa análise. O processo de individuação é explicitado na perspectiva do indivíduo em seu processo de formação, o que teria, como processo determinante, o processo de socialização, pensado na perspectiva social. Foi por esse motivo que apresentamos a concepção junguiana e depois a comparamos com outras concepções, oriundas da sociologia e outras áreas do saber, para recompor a totalidade que é o desenvolvimento da personalidade.

A nossa conclusão é a de que grande parte das análises de Jung é útil para um desenvolvimento da psicanálise, retirando o seu “invólucro místico”, tal como colocou Marx em relação a Hegel (MARX, 1988). Assim, a contribuição de Jung deve ser reconhecida, mas criticamente. Somente dessa forma é possível haver um discernimento sobre o que contribui com a compreensão do universo psíquico dos seres humanos e o que é descartável. A abordagem crítica é fundamental, mas também o cuidado para não jogar a criança fora da bacia junto com a água suja. O que fizemos aqui foi a retenção da criança e o descarte da água suja.

E uma das grandes contribuições de Jung, a nosso ver, é o seu foco analítico na psique humana e sua dinâmica própria. O problema ocorre em sua autonomização do psiquismo, o que pode ser corrigido com sua inserção numa totalidade mais ampla que é a sociedade. Alguns termos junguianos precisam se integrados ao processo analítico da mente humana, como persona, sombra, entre outros. Para isso se tornar mais sólido é fundamental a releitura de Jung e de seu significado no interior da história da psicanálise. Essa é a nossa conclusão e que promove um amplo programa de pesquisa a ser realizado no futuro.

 

Abstract: This article presents an analysis of the Jungian conception about the development of personality and a brief consideration about this process and the social formation of the individual as understood by other authors. Thus, after a synthesis of the conception of Carl Gustav Jung, which refers to the problem of individuation, we compare it with the conception coming from sociology and other approaches that deal with the phenomenon of socialization. This results in a critical perspective of the Jungian analysis, without discarding the set of its contributions. The major problem of Jung's analysis is, at the same time, his great merit: the analysis of the mind as a psychic totality. This conception has as its problem the autonomization of the human psyche, which disconnects it from the social, which is the determinant of the human mind. The merit was to have focused the psychic universe of the human being, provided we understand not how he did it, as autonomization, but as focus. In this way, understanding as focus and not autonomy, we can use the Jungian conception to understand the psychic phenomenon.

 

Keywords: Jung, Individuation, Socialization, Mind, Personality.



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília) e pós-Doutor pela USP (Universidade de São Paulo).

[1] A psicanálise adleriana, bastante citada por Jung, pois seu rompimento e estruturação de uma interpretação psicanalítica distinta da de Freud, ganhou um espaço que acabou se perdendo com o passar dos anos. Apesar da psicanálise de Adler ter trazido conceitos fundamentais para a psicanálise, como a de “complexo de inferioridade”, a historiografia da psicanálise não lhe faz a devida justiça, pois apesar de aparecer em capítulos de livros sobre história da psicanálise, a profundidade e importância de sua contribuição não é levada em devida conta. Embora Adler e Jung tenham sido os primeiros e mais importantes dissidentes de Freud, esses “desviacionistas de 1912” (THOMPSON, 1976) logo foram seguidos por outros: “nos inícios de 1920, quatro outros discípulos de Freud ou se afastaram ou de qualquer modo discordaram em vários aspectos com o movimento principal, nomeadamente Otto Rank, Wilhelm Stekel, Sandor Ferenczi (que, no entanto, nunca rompeu completamente com Freud) e Wilhelm Reich” (BROWN, 1963, p. 49).

[2] A individuação não é “sinônimo de perfeição” e também não significa individualismo ou egoísmo, tendo mais o sentido de “completar-se”, aceitando o fardo de conviver com tendências opostas oriundas de sua natureza sob forma consciente (SILVEIRA, 1983). “a acusação de individualismo é um insulto banal, quando é dirigida ao desenvolvimento natural da personalidade” (JUNG, 1991, p. 179).

[3] “A sombra coincide com o inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal junguiano” (SILVEIRA, 1983, p. 92).

[4] Apesar de algumas interpretações diferentes, como a de Maroni (1998), é esse o processo que caracteriza o desenvolvimento da personalidade em sua forma ideal, na perspectiva junguiana. Assim, o self pode ser compreendido como núcleo e como totalidade da personalidade: “o self (Selbst) tem dupla definição: a) como totalidade da personalidade; b) como arquétipo do centro da personalidade, arquétipo da orientação e do sentido” (MARONI, 1998, p. 109).

[5] Isso é comum na psicanálise, que é absolutamente compreensível, pois não é o campo perceptivo de análise dos psicanalistas. Por outro lado, isso faz parte do próprio problema identificado por Jung, ou seja, a persona e o apego à profissão, que, enquanto forma de especialização (inclusive intelectual, o que é legitimado pela divisão de “objetos de estudo” das diversas ciências particulares), não só limita o indivíduo no desenvolvimento da sua personalidade, mas também no desenvolvimento de sua consciência. Assim, a psicanálise, por possuir uma compreensão limitada da sociedade, o que pode ser visto em Freud, Adler, Jung e até mesmo na chamada “escola culturalista” (Horney e outros) e “freudomarxista” (Reich, Fromm, etc.), que oferecem uma especial atenção aos problemas sociais e ao contexto social e cultural. Freud, o fundador da psicanálise, nunca desenvolveu estudos mais profundos sobre a sociedade, sendo que quando tratava dessa, suas referências eram psicólogos e não sociólogos e outros pesquisadores que tratam mais diretamente dessa questão, e isso pode ser visto em sua abordagem da origem de determinados fenômenos sociais na qual parte de mitos e lendas ao invés do processo histórico real, tal como sua análise da origem do incesto (FREUD, 1974).

[6] É justamente essa especificidade histórica que permite alguns autores julgar que a individuação (também traduzida como “individualização”) é produto da sociedade capitalista: “O processo de ‘individualização’ tem, pois, as suas raízes nas relações de produção do modo de produção capitalista” (CARDOSO e CUNHA, 1987). No entanto, consideramos que o mais correto é considerar que a individuação assume uma característica específica na sociedade capitalista, que é tanto real (autonomia relativa do indivíduo) quanto meramente discursiva (individualismo).

[7] Não nos referimos aqui à questão da sexualidade, muito mais complexa, e que remeteria a diversas pesquisas, com suas divergências analíticas, e sim ao modo de ser de homens e mulheres, ou “ethos sexuais”, que também é um fenômeno biossociopsíquico.

[8] No interior da psicanálise essa necessidade de abordar a socialização já foi sentida e uma primeira tentativa de abordá-la mais sistematicamente já foi realizada (LORENZER, 2001).

[9] Segundo Jung: “tenho plena consciência dos méritos de Freud, e não tenho intenção alguma de diminuí-los. Sei, inclusive, que o que ele diz se adapta a um grande número de pessoas, e é possível afirmar que tais pessoas têm exatamente o tipo de psicologia que ele descreve. Adler, cujo ponto de vista era completamente diverso, também tem um grande número de seguidores, e estou convencido de que muitos têm uma psicologia adleriana. Também tenho os meus – não são tão numerosos quanto os de Freud – pessoas que, presumivelmente, têm a minha psicologia. Chego a considerar minha contribuição como minha própria confissão subjetiva. É a minha psicologia que está nisso, meu preconceito que me leva a ver os fatos da minha própria maneira. Mas espero que Freud e Adler façam o mesmo, e confessem que suas ideias representam pontos de vista subjetivos. Desde que admitamos nosso preconceito estaremos realmente contribuindo para uma psicologia objetiva” (apud. MARONI, 1998, p. 18-19). No entanto, não é possível concordar com essa autora, pois a afirmação da existência de “psicologias múltiplas” em Jung e que isso estaria em acordo com uma posição nietzschiana de crítica de noção da verdade, entra em contradição com a realidade. As críticas de Jung, especialmente em relação a Freud, deixa isso relativamente claro: “não consigo ver onde Freud consegue ir além de sua própria psicologia e como poderá aliviar o doente de um sofrimento do qual o próprio médico padece” (JUNG, 1989, p. 325). Da mesma forma, a multiplicidade de “psicologias” (que, no caso, quer dizer “tipos psicológicos”) podem gerar diferentes pontos de vista subjetivos, mas somente reconhecendo isso, como a psicologia junguiana, é que se pode chegar a uma psicologia objetiva, como faz Jung. Por conseguinte, a abordagem junguiana está distante do relativismo. Esse é um procedimento psíquico comum nos seres humanos e, tal como Jung, Freud fez o mesmo: “da mesma forma que a investigação de Adler trouxe algo de novo à psicanálise – uma contribuição à psicologia do ego – e cobrou por esse presente um preço demasiado alto jogando fora todas as teorias fundamentais da análise, assim também Jung e seus seguidores prepararam o caminho para a sua luta contra a psicanálise, presenteando-a com uma nova aquisição” (FREUD, 1978, p. 80).

[10] A “autonomia do inconsciente”, ou da psique humana (JUNG, 1987), é uma das teses de Jung e que ele utiliza para entender o fenômeno religioso, sob forma distinta de Freud e daqueles que ele denomina “materialistas”.

 

Referências

 

BROWN, J. A. C., 1963. Freud e os seus Continuadores. Lisboa: Ulisseia.

CARDOSO e CUNHA, T., 1987. Do Mito Coletivo ao Mito Individual. In:: O Mito Individual do Neurótico. 2a ed. Lisboa: Assírio e Alvim.

DURKHEIM, É., 1974. As Regras do Método Sociológico. 6a ed. São Paulo: Nacional.

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FREUD, S., 1978. A História do Movimento Psicanalítico. In:: Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural.

FROMM, E., 1978. Análise do Homem. 10a ed. Rio de Janeiro: Zahar.

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JUNG, C. G., 1978. O Eu e o Inconsciente.. Petrópolis: Vozes.

JUNG, C. G., 1986. Psicologia e Religião Oriental. 3a ed. Petrópolis: Vozes.

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JUNG, C. G., 1988. Presente e Futuro. Petrópolis: Vozes.

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LACAN, J., 1992. Escritos. 2a ed. São Paulo: Perspectiva.

LORENZER, A., 2001. Bases para una Teoria de la Socialización. Buenos Aires: Amorrortu.

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Artigo publicado em:

VIANA, Nildo. Jung e a Individuação. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.

http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/fragmentos/article/view/5706/3408 

 

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