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sábado, 25 de março de 2017

Freud e a Abjuração dos Sentimentos


Freud e a Abjuração dos Sentimentos

Nildo Viana

O presente ensaio busca abordar o pensamento de Freud apresentando o seu elemento fundamental, que denominamos “a paixão do instinto” (tal como Y. Simonis declarou que a abordagem de Lévi-Strauss poderia ser resumida como “a paixão do incesto”), o que provoca, como iremos trabalhar mais adiante, a abdicação do reconhecimento da importância dos sentimentos para a explicação do ser humano. Assim, iremos, inicialmente, analisar a concepção freudiana dos instintos e, posteriormente, apresentar sua abjuração dos sentimentos em obras em que apresenta sua análise da “horda primeva” e “complexo de Édipo”.

Freud e os Instintos

A psicanálise freudiana se fundamenta numa concepção instintual, concedendo um papel determinante para os instintos. Freud, em seu texto Os Instintos e suas Vicissitudes, diz que o instinto surge dentro do próprio organismo e possui um impacto constante e assim “não há como fugir dele” (Freud, 1974a, p. 138)
“Chegamos assim à natureza essencial dos instintos, considerando em primeiro lugar suas principais características – sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu aparecimento como uma força constante – e disso deduzimos uma de suas outras características, a saber, que nenhuma ação de fuga prevalece contra eles” (Freud, 1974a, p. 139-140).
Freud acrescenta que o sistema nervoso tem a finalidade de livrar-se dos estímulos ou reduzí-los ao máximo possível. Ele consegue fazer isto com relativa facilidade quando se trata de “estímulos externos” mas não quando se trata dos instintos, já que originam dentro do organismo e atuam de forma constante.
Freud complementa:
“Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (Freud, 1974a, p. 142).
Freud considerava uma tarefa difícil delimitar quais são os instintos existentes no ser humano. A sua falta de delimitação, no entanto, permitiu que psicólogos e outros passassem a utilizar em suas análises uma enorme variedade de instintos (instinto gregário, instinto de sobrevivência etc.). Freud aponta, como “hipótese de trabalho”, a existência de dois instintos: os instintos autopreservativos (do ego) e os instintos sexuais.
Ele centra sua atenção sobre os instintos sexuais. Para Freud, tais instintos são numerosos e emanam de uma variedade de fontes orgânicas. Eles atuam independentemente um do outro e só posteriormente realizam uma “síntese”.
Os instintos sexuais são, portanto, de origem biológica. Eles funcionam como uma energia propulsora que impulsionam o organismo humano no sentido de sua realização. Freud chama esta energia de libido. Esses instintos são abrangidos pela expressão alemã “lieben” (amor), cujo núcleo consiste no amor sexual, tendo como objetivo a união sexual. Freud acrescenta que não exclui desta definição o amor próprio, amor paterno, amor fraterno, a devoção a objetos concretos e idéias abstratas (Freud, 1976):
“Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido pela palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer caso, tem sua parte no nome ‘amor’ –, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas” (Freud, 1976, p. 116).
Desta forma, Freud busca, simultaneamente, recusar a acusação feita a ele, nos meios intelectuais, de ser um “pansexualista” e se distinguir do sentido popular da palavra “sexual”. É justamente na definição psicanalítica desta expressão que ele irá justificar sua posição como não sendo pansexualista. O sexual, na concepção de Freud, é bem mais abrangente do que a visão popular:
“Em psicanálise o conceito do que é sexual abrange bem mais; ele vai mais baixo e também mais acima do que seu sentido popular. Essa extensão se justifica geneticamente; nós reconhecemos como pertencentes à ‘vida sexual’ todas as atividades dos sentimentos ternos que têm os impulsos sexuais primitivos como fonte, mesmo quando esses impulsos se tornaram inibidos com relação a seu fim sexual original, ou tiveram de trocar esse fim por outro que não é mais sexual. Por essa razão, preferimos falar em psicossexualidade, colocando assim ênfase sobre o ponto de que o fator mental na vida sexual não deve ser desdenhado ou subestimado. Usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben [amar]” (1970, p. 208-209)[1].
Assim, os sentimentos e valores são derivados dos instintos sexuais em sentido estrito. O instinto sexual, em seu sentido estrito, é o núcleo e a fonte dos sentimentos, tal como se vê nas duas citações anteriores. Assim, a sexualidade propriamente dita acaba “sexualizando” as demais esferas da atividade humana. Freud irá, a partir da formação desta tese central, desenvolver a predisposição mental de interpretar todos os fenômenos (individuais e sociais) como sendo sua expressão. No entanto, tal predisposição mental, ao fornecer um guia de interpretação para Freud, abriu-lhe caminhos e, ao mesmo tempo, fechou-lhe o horizonte. É justamente aí que encontramos o fenômeno da abjuração dos sentimentos em sua análise, tal como colocaremos a seguir.

Os Instintos Como Forças Motrizes da Ação Humana

Iremos aqui analisar duas interpretações realizadas por Freud para exemplificar a abjuração dos sentimentos que ele realiza. Trata-se de sua interpretação do surgimento do tabu do incesto expressa em sua análise da “horda primeva” em Totem e Tabu e sua interpretação da tragédia de Rei Édipo contida em sua Interpretação dos Sonhos.
Comecemos com a interpretação freudiana do tabu do incesto. Freud diz que conhecemos o homem pré-histórico através de um conjunto de informações sobre seu modo de vida transmitido pela tradição (lendas, mitos, contos, sobrevivência residual em nossos costumes etc.). Mas, além disso, coloca Freud, ele ainda é nosso “contemporâneo”, se referindo ao “indígena”.
“Se essa suposição for correta, uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia social, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova luz sobre fatos familiares às duas ciências” (1974b, p. 20).
Aqui Freud apresenta a tese da equivalência entre a mentalidade dos primitivos e a dos neuróticos (e, mais à frente, também incluirá a das crianças). Freud afirma que escolheu para tal comparação as “tribos mais atrasadas e miseráveis” descritas pelos antropólogos, os aborígines australianos.
Freud descreve tais tribos, revelando que são sociedades de caçadores e coletores, sem reis e chefes e com escassez de água. A “vida sexual desses canibais pobres e desnudos” não deveria ser restrita por uma moral como a nossa.
“Entretanto, verificamos que eles estabelecem para si próprios, com maior escrúpulo e o mais severo rigor, o propósito de evitar relações sexuais incestuosas. Na verdade, toda a sua organização social parece servir a esse intuito ou estar relacionada com a sua consecução” (Freud, 1974b, p. 21).
Façamos um intervalo nesta descrição da concepção freudiana para colocarmos dois conceitos que orientarão nossa análise, a saber: catexia e predisposição mental. A catexia é um conceito psicanalítico que Freud compreendia como “carga de afeto” ou “soma de excitação” (1986), embora não fosse totalmente clara sua concepção deste termo. Iremos denominar catexia como o conjunto de investimentos afetivos (sentimentais) e valorativos do indivíduo, que é a determinação fundamental dos seus atos de consciência. Tal categoria, portanto, cria nos indivíduos uma predisposição mental que acompanha e direciona as atividades conscientes do indivíduo. Aqui encontramos a catexia de Freud: a paixão do instinto. Esta gera uma predisposição mental que perpassa todo o discurso freudiano. A sua tese de equivalência de mentalidade entre o neurótico, o primitivo e a criança revela tal predisposição e mais ainda sua afirmação de que a organização social primitiva se volta para a proibição do incesto, mas colocaremos isto em evidência mais adiante. Aqui só nos resta acrescentar que uma predisposição mental unilateral tende a cegar o indivíduo e impedi-lo de perceber aquilo que não se enquadra em sua análise unilateral. A isto denominamos processo de abjuração. Trataremos novamente disto mais adiante.
Voltemos a Freud e sua sociedade primitiva. Em tal sociedade, o lugar da religião é ocupado pelo “sistema do totemismo”. As tribos australianas são subdivididas em clãs, sendo que cada um possui uma denominação derivada do seu totem. Um totem é geralmente um animal, embora, em casos mais raros, possa ser um vegetal ou fenômeno natural. Ele é considerado um antepassado do clã e, ao mesmo tempo, o seu espírito guardião. Ele pode ser herdado por linha masculina ou feminina e se apresenta como perigoso para os outros clãs e protetor do seu.
Freud diz que a característica do totemismo que “atraiu os interesses dos psicanalistas” (1974b, p. 23) foi a exogamia, que proíbe relações sexuais entre pessoas do mesmo totem. Freud considera tal proibição “notável” por sua obrigatoriedade e diz que não havia nenhum atributo anteriormente citado que levasse a prevê-la. Aqui novamente se vê a predisposição mental de Freud, pois a exogamia atrai a atenção “dos psicanalistas” (na verdade, atraiu a atenção de Freud...) devido sua relação com a sexualidade.
No entanto, a exogamia parece contradizer as teses psicanalíticas e o longo texto de Freud busca justamente abolir esta contradição. A exogamia impede relações sexuais entre membros do mesmo clã, mas, como os totens são hereditários e não mutáveis pelo casamento, permite o incesto do pai com as filhas (quando a herança ocorre pela linha feminina) ou da mãe com os filhos (quando ocorre pela linha masculina). Podemos notar que isto derruba a tese psicanalítica do complexo de Édipo. No entanto, Freud irá buscar elementos que permitam a superação desta objeção à sua tese fundamental.
Freud diz que os selvagens possuem um horror excepcionalmente intenso ao incesto e junto com isto vem a peculiaridade de “substituir o parentesco consangüíneo real pelo parentesco totêmico” (1974b, p. 25). Contudo, tal substituição é acompanhada por uma proibição ao incesto verdadeiro como um “caso especial”. Freud descreve um outro conjunto de proibições existentes entre os “primitivos” que vai além das restrições totêmicas até chegar as evitações, que são proibições restritivas severas que impedem o incesto verdadeiro (entre pais-filhas; mães-filhos; irmãos-irmãs; genro-sogra; marido-cunhada), impedindo até mesmo o mais simples contato social.
Este “horror ao incesto”, segundo Freud, “se trata fundamentalmente de uma característica infantil”.
“A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha de objetos para amar feita por um menino é incestuosa e que esses são objetos proibidos: a mãe e a irmã. Estudamos também a maneira pela qual, à medida que cresce, ele se liberta dessa atração incestuosa. Um neurótico, por outro lado, apresenta invariavelmente um certo grau de infantilismo psíquico; ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam em sua infância ou a elas retornou; duas possibilidades que podem ser resumidas como inibição e regressão no desenvolvimento”(Freud, 1974b, p. 36-37).
Aqui temos a base da tese da equivalência entre a mentalidade de uma criança, um selvagem e um neurótico: todos possuem um desejo incestuoso, o que confirma a tese freudiana do complexo de Édipo.
Mas o que Freud quer saber é qual é a origem do horror ao incesto que está na base da exogamia. É aqui que ele irá tratar da “horda primitiva”. Ele retoma Darwin para elaborar sua tese. Darwin (1974), se inspirando nos símios superiores, pensava que o homem primitivo vivia em hordas pequenas, nas quais o macho mais velho e mais forte, devido ao seu ciúme, monopolizava as fêmeas:
“Naturalmente, não há lugar para os primórdios do totemismo na horda primeva de Darwin. Tudo o que aí encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem” (Freud, 1974b, p. 169).
Assim, é preciso complementar a tese darwiniana com a interpretação psicanalítica. Freud apresenta casos de crianças que, devido ao complexo de Édipo ou de castração, “confundiam” o pai com um animal tal como no totemismo. Freud diz que “na verdade, os homens primitivos dizem a mesma coisa e, onde o sistema totêmico ainda se acha em vigor atualmente, descrevem o totem como seu ancestral comum e pai primevo” (1974b, p. 159).
Aqui temos novamente a presença da predisposição mental de Freud que termina por comandar sua análise. O totemismo está intimamente ligado ao infantilismo psíquico, devido ao complexo de Édipo. A partir disto temos a criação de mais uma “ficção freudiana”:
“Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força superior). Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoraram a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um dos irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (Freud, 1974b, p. 170).
Ele acrescenta:
“A fim de que estas últimas conseqüências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo – pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo” (1974b, 171-172).
O caráter fictício da descrição freudiana é reconhecido por ele ao começar com “um certo dia” (poderia ser também “era uma vez...”). Mas as “ficções freudianas”, segundo expressão de Octave Mannoni (1983), assumem o mesmo papel de “modelo exemplar” que se encontra nos mitos, segundo Mircea Eliade (1988). Por qual motivo Freud apela para este artifício? Devido à falta de qualquer base concreta para se explicar a origem do tabu do incesto, é preciso utilizar um recurso artificial, seja a especulação pura ou sob a forma de ficção. Freud escolhe a última opção.
Aqui encontramos o problema da transição da animalidade para a humanidade, isto é, o processo de humanização. Na falta de uma base concreta, o que exige um quantum elevado de informações, muitos pensadores (e entre eles Darwin e Freud) complementam a escassez de informações com a especulação ou a ficção. A tese de Freud e Darwin é insustentável. Ambos possuíam uma “predisposição mental” que, apesar das diferenças, apontaram para teses semelhantes. Darwin queria ver no processo de humanização um prolongamento da “luta pela existência” e pela “sobrevivência dos mais aptos”. Tal tese tinha origem na teoria da população de Malthus e na sociedade de sua época, sendo que ele a transpôs para sua concepção sobre a evolução das espécies e assim a “naturalizou”, tornando-a um fenômeno natural e, posteriormente, a reintrojetou na sociedade, agora justificada por ser uma lei natural (Viana, 2001; Viana, 2003).
Freud, por sua vez, tinha a predisposição mental de explicar os atos humanos pelos instintos sexuais. A tese darwinista servia para ele fazer sua construção fictícia. No entanto, tanto Freud quanto Darwin criaram ficções, pois não existe fundamentação concreta para tais teses. Mesmo se pensássemos que a tese da “horda primitiva” pudesse ser verdadeira, teríamos que entender como que tal fenômeno ocorreu não apenas em um clã e sim em todos. A única hipótese alternativa seria a de que um clã realizou tal obra e os outros a repetiram ou copiaram apenas os seus efeitos. Obviamente que isto não tem o menor sentido. A origem da proibição do incesto não pode ser explicada a partir da ficção ou especulação e sua formação concreta é algo que não tem informações suficientes para que se possa constituir uma teoria deste fenômeno, mas tão somente hipóteses, na espera de novas informações que poderiam dar forma a uma teoria. O mais provável é que tenha sido um logo processo histórico e talvez nem tenha tido uma origem relacionada ao processo de humanização ou de instituição da civilização, tal como supõem muitos, pois várias espécies animais não possuem relações incestuosas, o que significa que não é necessário que um dia tenha surgido esta proibição na espécie humana. A diferença fundamental seria, na verdade, a instituição da consciência humana, ou seja, a percepção da existência da possibilidade e inexistência de relações incestuosas, e através dela a sua justificativa intelectual, moral etc. Também não deixa de ser interessante o fato de que Freud escolha como exemplo justamente as “tribos mais atrasadas e miseráveis”, as sociedades de caçadores e coletores, que possuem até “escassez de água”. Freud não verificou a hipótese de que o “horror ao incesto”, observado não só nas “evitações”, mas desenvolvido nas regras de exogamia, poderia ser produto da situação de dependência em relação ao meio ambiente, sendo que a escassez gera a necessidade de controle do aumento populacional (Viana, 2007; Clastres, 1988).Tal hipótese é muito mais realista do que a de Freud e não se enquadra em nenhum modelo instintivista de explicação dos fenômenos sociais.
Mas, independentemente da forma fictícia de especulação criada por Freud, é esta a base de sua explicação da origem da exogamia e do tabu do incesto. Freud acrescenta que a proibição do incesto tem uma poderosa “base prática”. Tal base são os desejos sexuais, que não unem os homens, mas, ao contrário, os dividem. Os irmãos se uniram para derrotar o pai, mas no que se referia às mulheres, eram rivais. Todos desejariam possuir todas as mulheres, o que geraria um novo conflito, agora entre irmãos. Desta forma, para conseguirem viver juntos, tiveram que instituir a lei contra o incesto. Salvaram, assim, a organização social (e Freud ainda imagina que isto pode ter se baseado em “sentimentos e atos homossexuais” derivados do período em que viveram fora da horda).
“A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum; a religião baseava-se no sentimento de culpa e no remorso a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa” (Freud, 1974b, p. 174-175).
Freud complementa sua tese do “complexo de Édipo”. Ele em seu texto Interpretação dos Sonhos realiza uma análise da tragédia grega do Rei Édipo, de Sófocles, extraída da mitologia grega. Totem e Tabu retoma o tema do complexo de Édipo. Assim, a infância da humanidade é repetida na infância do indivíduo, ou seja, aqui Freud retoma a lei biogenética de Haeckel, segundo a qual há a recapitulação da filogênese pela ontogênese (Assoun, 1983).
Iremos aqui retomar a interpretação freudiana da história de Rei Édipo para, posteriormente, demonstrar que sua paixão do instinto não só comanda sua análise e interpretação como também lhe cega de perceber elementos importantes que ele mesmo revela.
Os pais, segundo Freud, desempenham um papel fundamental na vida mental das crianças psiconeuróticas. “Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro” é um dos elementos essenciais dos impulsos psíquicos destas crianças. É neste contexto que Freud irá descrever e interpretar Rei Édipo. Iremos focalizar tão-somente sua interpretação, pois esta tragédia é bem conhecida.
“Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em Die Ahnfrau (de Grillparzer) ou em outras modernas tragédias do destino. E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso – porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai” (Freud, 1987, p. 257-258).
A interpretação freudiana é comandada por sua predisposição mental, centrada no papel fundamental dos instintos sexuais. Eles assumem o papel de forças motrizes da ação humana em seu conflito com a realidade. No entanto, algo foi dito mas não foi devidamente avaliado na exposição de Freud sobre a horda primitiva e a história de Rei Édipo. É disto que trataremos a seguir.

A Abjuração dos Sentimentos

Freud ao enfatizar os instintos realiza uma interpretação obscurante dos sentimentos. Obscurecer significa “tornar obscuro”, “turvar, tornar pouco visível ou compreensível; confundir; toldar; perturbar; encobrir; deslustrar; desonrar; fazer esquecer” ou, “suplantar”, entre outros significados,  tal como podemos ver nos dicionários. Mas ao mesmo tempo em que obscurece os sentimentos, Freud os revela, os expõe. Eles estão presentes na narrativa freudiana, são forças motrizes do comportamento humano, mas não são apresentados assim na explicação freudiana. É a este processo que chamamos abjuração. Queremos extrair deste termo um significado mais preciso, caracterizado por um jogo de luz e sombra, que revela e ao mesmo tempo esconde, encobre. Abjurar significa, para nós, tornar algo simultaneamente presente e ausente, sendo que a presença é pouco visível. A presença significa que algo está lá, mas de forma tal que sua percepção não é clara e sua importância real não é percebida. A abjuração é este jogo de esconder e revelar. É isto que Freud faz com os sentimentos.
Se recordarmos alguns aspectos da interpretação freudiana da horda primitiva e de Rei Édipo, veremos uma ampla gama de sentimentos presentes (ciúme, inveja, remorso etc.) e o seu papel de força motriz da ação humana, que, no entanto, desaparece na explicação freudiana.
Vejamos como isto está presente em sua análise da “horda primitiva”. Freud busca explicar a origem da exogamia e do tabu do incesto a partir de um “ato fundador”: o assassinato do pai. O que motivou este assassinato, tal como no complexo de Édipo, foi o desejo sexual incestuoso. Esta é a explicação fornecida por Freud, o que significa que a força motriz da ação humana presente no assassinato do pai foi o desejo sexual incestuoso. No entanto, existem outros elementos relatados por Freud que ele mesmo não leva em consideração: os sentimentos. Iremos resgatá-los a partir da narrativa freudiana do assassinato do pai.
Em primeiro lugar, o pai era o macho mais velho e mais forte que monopolizava as mulheres devido ao ciúme. Assim, no início de tudo, temos um sentimento. Freud diz que ele expulsou os filhos que, unidos, tiveram coragem de voltar e assassinar o pai. Este fora o temido e invejado modelo de cada um dos irmãos. Eles estavam cheios de sentimentos contraditórios, pois eles odiavam o pai, devido ao anseio de poder e aos desejos sexuais, mas ao mesmo tempo o amavam. Após o assassinato, o amor recalcado fez-se sentir sob a forma de remorso (sentimento de culpa). Tal sentimento produziu a origem da exogamia e o tabu do incesto.
Aqui temos outra versão do surgimento da exogamia e do tabu do incesto. O pai monopolizava as mulheres por causa do ciúme e por isso era temido e invejado pelos filhos, que só tiveram coragem de assassiná-lo quando se uniram. O ódio falou mais forte e, depois do assassinato, o amor recalcado aparece sob a forma de remorso. Este produz as regras da exogamia e o tabu do incesto. Nesta nova versão, baseada no relato de Freud, temos os sentimentos como forças motrizes da ação humana e que foram obscurecidos pela análise freudiana.
Mas é preciso esclarecer algumas questões. Em primeiro lugar, alguém pode nos retrucar dizendo que tão-somente invertemos a ordem estabelecida por Freud colocando os sentimentos no lugar dos instintos e obscurecendo estes últimos. O nosso objetivo era exatamente este, pois assim comprovamos que uma predisposição mental unilateral tende a obscurecer tudo que não gira em torno do seu sol. Também era nosso objetivo demonstrar que, mesmo neste caso, alguns elementos da realidade submersos na análise de um autor, devido sua importância real, acabam emergindo em seu discurso, pois ele é constrangido a falar deles, mesmo que subordinando-os à sua análise.
Obviamente que o desejo sexual está presente e também que é uma das forças motrizes da origem da exogamia e do tabu do incesto. Isto, obviamente, se acreditarmos na ficção freudiana da “horda primeva”. Mas não estamos tratando aqui da origem real da exogamia e do tabu do incesto, o que pressupõe informações concretas e uma análise rigorosa destas, e sim do pensamento freudiano e da importância atribuída por ele aos instintos em detrimento dos sentimentos, apesar dele ter manifestado uma pré-consciência de sua força e relevância.
A sua interpretação de Rei Édipo tem o mesmo caráter. Freud interpretou Rei Édipo a partir de sua predisposição mental. Assim, a relação pai-mãe-filho presente em Rei Édipo confirma a tese freudiana do complexo de Édipo. Esta relação familiar, na concepção freudiana, apresenta a rivalidade entre pai e filho, sendo que este último possui desejos incestuosos em relação à mãe. O filho tem inveja e ciúme do pai, segundo Freud, mas isto é derivado do seu desejo sexual incestuoso. Os sentimentos estão presentes no discurso de Freud mas são novamente obscurecidos. Isto novamente se revela no caso da menina: ela tem inveja do pênis. Ora, inveja não significa desejo sexual, mas Freud não retira todas as conseqüências desta concepção, o que significa que ele revela e ao mesmo tempo obscurece a importância dos sentimentos.
Por qual motivo Freud obscurece o papel dos sentimentos na ação humana? Isto se deve, tal como já colocamos, à sua predisposição mental comandada pela paixão do instinto. No entanto, ainda resta esclarecer por qual motivo Freud elegeu os instintos como forças motrizes da ação humana em detrimento dos sentimentos, dos valores e coloca o conflito entre a consciência e os instintos. Isto é visível em sua colocação de que os afetos (sentimentos) possuem como fonte os instintos sexuais em sentido estrito. Freud afirma que a sexualidade, para a psicanálise, é um conceito amplo, que engloba os sentimentos, mas que tem como fonte a sexualidade genital. Os sentimentos são seus “derivados”. Daí podemos notar em Freud um pansexualismo que ele busca negar com seu conceito amplo de sexualidade, mas que, na prática, acaba reforçando, pois o que ele ampliou foi apenas o que derivou de sua concepção restrita de sexualidade.
A origem da concepção freudiana se encontra no seu postulado do caráter científico-naturalista da psicanálise, cujo materialismo exige um substrato orgânico como motor da ação (Assoun, 1983). Os instintos cumprem este papel perfeitamente. Eles são a fonte orgânica da ação humana:
“Isso é tudo que pode ser dito à guisa de uma caracterização geral dos instintos sexuais. São numerosos, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam em princípio independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou menos completa numa etapa posterior” (Freud, 1987, p. 146)
Neste contexto, Freud não poderia conceder o mesmo papel aos sentimentos, pois estes são “produtos derivados”, instituídos socialmente e não organicamente. O instinto sexual (bem como o de auto-preservação) possui uma origem orgânica, mas o mesmo não se pode dizer do ciúme, do medo, da inveja, do amor fraterno, do remorso, pois estes só podem existir após o reconhecimento do outro, ou seja, num contexto social. A construção freudiana, por conseguinte, não poderia dar o verdadeiro valor aos sentimentos, tal como fizeram outros psicanalistas (Adler, 1939; Jung, 1976), pois ele estava dominado pela paixão do instinto, isto é, sua catexia o cegou.
Freud pensava em termos de energia libidinal. A influência do “energetismo” é evidente, mas a forma como Freud a assimilou acabou se tornando unilateral. Para Freud, a energia libidinal era a força motriz da ação humana e só poderia cumprir tal papel por possuir uma fonte orgânica. O organismo e suas necessidades se tornaram assim os únicos elementos que Freud reconhecia como motor da ação humana[2]. Neste aspecto, Jung acabou avançando mais do que Freud. Jung também partia de uma concepção energética mas superou a unilateralidade da concepção freudiana da libido, ampliando este conceito (Jung, 1989). Para Jung, libido e energia psíquica são sinônimos, o que significa que todos os interesses, necessidades, sentimentos etc. são objetos de manifestação da energia psíquica e, portanto, são forças motrizes da ação humana (Silveira, 1981). A sexualidade, aqui, é uma manifestação dentre uma vasta totalidade de manifestações do ser humano. Isto não quer dizer que a totalidade da concepção de Jung, que acabou se tornando mais metafísica e fictícia do que a de Freud, seja aceitável. Na verdade, a concepção ampliada de libido de Jung foi sua grande contribuição, que, no entanto, foi limitada pela doutrina metafísica que lhe englobou. Aqui destacamos os sentimentos como parte importante desta totalidade, como uma das forças motrizes da ação humana. A abjuração freudiana dos sentimentos obscurece a importância dos sentimentos como força motriz da ação humana. No entanto, podemos resgatar na própria narrativa freudiana esta importância obscurecida. Os sentimentos, assim, não são expressão direta das necessidades orgânicas mas são necessidades humanas e são partes da energia psíquica, sendo, por conseguinte, determinações da ação humana.

Observações Finais

O presente texto buscou analisar a concepção freudiana e o processo de abjuração que ele realizou dos sentimentos. Assim, notamos que os sentimentos estavam presentes na narrativa freudiana, mas devido à predisposição mental de Freud foi relegada a segundo plano. Isto significa que a concepção freudiana possui uma limitação que precisa ser superada para o desenvolvimento da psicanálise e Jung ofereceu uma contribuição neste sentido ao criticar a unilateralidade de Freud e ampliar o conceito de libido. Agora é preciso ir além e incluir os sentimentos como elemento importante para a explicação psicanalítica do indivíduo. Desta forma, apontamos uma problemática e indicamos um caminho a seguir para o desenvolvimento da psicanálise.



Referências Bibliográficas


Adler, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. São Paulo, Nacional, 1939.
Allers, Rudolph. Freud: Estudo Crítico da Psicanálise. Porto, Tavares Martins, 1970.
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[1] “O prazer condicionado pela amizade, pelo esforço científico, pela luta por um sucesso econômico, tudo isto continua a ser aquilo que se afigura à consciência. Apenas se estabelece que todas essas coisas são derivativos da sexualidade, e que a sua capacidade para dar satisfação é baseada no total de descarga que foi, em última análise, posta de reserva, se nos é permitida esta comparação, para crédito do instinto sexual” (Allers, 1970, p. 154).
[2] Na verdade, Freud reconhecia o papel da consciência como outro motor da ação humana, bem como as relações sociais. No entanto, as forças motrizes da ação humana possuem sua fonte primordial no organismo, nos instintos, sendo que a consciência e a sociedade são elementos externos, que criam desvios, mutações, etc., desta energia orgânica, criando um conflito no interior do indivíduo, que introjeta a moral externa produzida pela civilização e com isso produz uma situação de conflitualidade no aparelho psíquico.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Freud e a Abjuração dos Sentimentos. Fragmentos de Cultura. vol. 14, num. 05, 2004.
Republicado em:
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

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