A Concepção Marxista das Classes Sociais
Nildo
Viana
Um dos conceitos fundamentais da teoria marxista é o de
classes sociais. Apesar disso, é um dos menos compreendidos e que recebeu menos
contribuição e desenvolvimento depois de Marx. Isso gera uma dificuldade para a
teoria marxista e abre espaço para deformações, incompreensões e
simplificações. Geralmente, a solução encontrada é complementar a concepção de
Marx com uma breve definição de Lênin (apenas um parágrafo de um panfleto que
demonstra desconhecer a teoria das classes de Marx) e passa-se a tomar esta
última como grande referência e assim nada se compreende do conceito de classes
sociais em seu sentido original e autêntico.
O presente artigo é apenas uma síntese de uma outra obra que
analisou mais extensamente e profundamente o conceito de classes sociais em
Marx, apresentando os aspectos fundamentais. No presente artigo, evitamos
efetivar o processo fundamentar nossos argumentos na obra deste autor – o que
exigiria toda uma discussão conceitual, análise do processo de formação dos
conceitos, citações confirmadoras e esclarecimentos, que seria o espaço de um
livro e não de um artigo. Assim, aqui não nos preocupamos em demonstrar que
trata-se de uma interpretação correta de Marx, mas tão-somente apresentá-la,
pois tal demonstração foi realizada em outro lugar[1].
O conceito de classes sociais em Marx remete a diversos
outros conceitos, característicos do materialismo histórico, entre os quais
modo de produção, relações de produção, divisão social do trabalho, modo de
vida, interesses, luta de classes, entre outros. Sem dúvida, aqui abordamos o
conceito geral de classes sociais, isto é, a abordagem das classes sociais em
todas as sociedades de classes[2].
Em cada sociedade específica, teremos uma forma de exploração específica,
relações de produção específicas, classes sociais específicas, etc.[3]
Nesse sentido, vamos expor os conceitos fundamentais do materialismo histórico
para trabalhar o conceito de classes sociais e depois realizaremos a exposição
dos conceitos específicos para analisar as classes sociais específicas do
capitalismo.
O primeiro e fundamental conceito é o de modo de produção. O modo de produção é o
modo como os seres humanos produzem e reproduzem os meios de sobrevivência
(meios de produção, condições para isso, e meios de consumo). Sem o processo de
produção não há como haver a sobrevivência humana e ela é um momento
fundamental e determinante na vida social. A teoria de Marx aponta justamente
para isso, isto é, a questão da primazia do modo de produção sobre as demais
relações sociais. E entenda-se por “demais relações sociais” não só que existem
tais relações como também que o próprio modo de produção é um conjunto de
relações sociais. O aspecto fundamental e que caracteriza/determina um modo de
produção são as relações de produção.
O modo de produção é constituído por determinadas relações de produção e forças produtivas.
As forças produtivas são tanto os
meios materiais para se realizar o processo de produção (os meios de produção),
quanto a capacidade produtiva da força de trabalho em determinado estágio de
desenvolvimento e características e habilidades necessárias para realizar a
produção no contexto de tais relações e demais condições para a realização do
processo de produção. As relações de
produção são relações sociais entre os seres humanos no processo de
produção, ou seja, como eles se relacionam no processo de trabalho, no processo
de acesso aos meios de produção, no processo de distribuição dos produtos,
etc., formando um conjunto de relações sociais.
Pois bem, nesse nível genérico, não há nenhuma referência a
classes sociais. Isto é correto, no sentido de que todas as sociedades possuem
um modo de produção (sem o qual não seria possível a reprodução humana), mas
nem todas possuem classes sociais. Daí a divisão entre sociedades sem classes e sociedades
de classes. As sociedades que existiram durante a chamada “pré-história”
não eram sociedades de classes. Esta surge num determinado momento histórico.
Não é objetivo aqui discutir a origem das sociedades de classes e nem suas
formas de existência, mas tão-somente deixar claro que as tais sociedades não
existiram sempre, tiveram uma origem histórica, e assumiram várias formas e que
há a tendência e possibilidade de serem superadas por uma nova e mais
desenvolvida sociedade sem classes, o que Marx denominou “comunismo” ou “livre
associação dos produtores”, ou, ainda, “autogoverno dos produtores”.
Uma vez esclarecido isso, temos que demonstrar que as
relações de produção nas sociedades de classes são radicalmente diferentes das
existentes nas demais. Elas se constituem como relações de exploração, relações
de classes sociais. Ocorre, porém, que numa sociedade determinada, podem
existir diversas formas de relações de produção. Em todas elas, no entanto,
existem relações de produção dominantes,
que constituem o modo de produção
dominante[4].
Aqui é que temos a base para compreender a teoria das classes sociais em Marx.
Nas relações de produção dominantes se constituem as duas classes sociais
fundamentais, a classe produtora e a classe exploradora. Sem dúvida, podem
existir outras classes exploradoras e produtoras/exploradas, mas isto depende
de cada caso concreto. As duas classes fundamentais não são as únicas. Elas são
as classes do modo de produção dominante, mas existem as classes dos modos de
produção subordinados e aquelas constituídas nas formas sociais (as formas de
regularização das relações sociais ou “superestrutura”).
Marx não denominou as duas principais classes como
fundamentais, a não ser em breve passagens, bem como não produziu termos para
denominar as demais classes, embora, fez certas referências a casos
específicos, tal como quando usou o termo classes
improdutivas (MARX, 1983)[5], ao tratar do caso de determinadas
classes no capitalismo. Porém, antes de colocar em evidência a questão das
diferentes classes sociais, é necessário analisar o que são as classes sociais.
O conceito de relações de produção
dominantes nos remete para as classes
fundamentais, mas também para a divisão
social do trabalho na sociedade. As relações de produção dominantes
expressam a divisão social do trabalho entre a classe exploradora e explorada,
mas existem, em épocas de transição, relações de produção antigas em
decadência, o que remete a classes sociais em decadência (no caso da transição
do feudalismo para o capitalismo, as classes decadentes foram a nobreza, o
clero e os servos, que deixaram de existir com o passar do tempo e consolidação
do modo de produção capitalista); novas relações de produção subordinadas às
dominantes, o que constitui outras classes sociais (no caso do capitalismo,
camponeses, artesãos, etc.), e as classes sociais que existem para garantir a
reprodução das relações de produção dominantes (Estado e demais instituições, e
aqueles que executam o trabalho de repressão, legitimação ideológica, etc., das
relações de produção dominantes e demais relações sociais), incluindo o
contingente que é marginalizado na divisão social do trabalho, a classe dos
marginais[6].
Essa divisão social do trabalho é constituída pelas relações
de produção dominantes, que é sua determinação fundamental. Aqui temos então os
conceitos fundamentais de relações de
produção dominantes e divisão social
do trabalho que inclui relações de
produção subordinadas e atividades
sociais improdutivas em geral, “superestruturais”, bem como aqueles que
estão fora ou nas margens da divisão social do trabalho. Através desses
conceitos fica mais fácil compreender o conceito de classes sociais. Apesar de
expressar vários conceitos (relações de produção dominantes, relações de
produção subordinadas, divisão social do trabalho, modo de vida, interesses,
oposição e luta), eles estão, na realidade, unificados, pois estão intimamente
relacionados e são determinações uns dos outros. Segundo Marx,
Essa
fixação da atividade social, essa consolidação do nosso próprio produto social
em uma força objetiva que nos domina, escapando ao nosso controle, contrariando
nossas expectativas, reduzindo a nada nossos cálculos, é até hoje um dos
momentos capitais no desenvolvimento histórico (MARX e ENGELS, 1982, p. 29).
As classes sociais são formadas por um conjunto de
indivíduos que possuem em comum atividades fixadas pela divisão social do
trabalho, que geram modos de vida particulares de cada classe. Esse modo de
vida comum, constituído pela posição da classe na divisão social do trabalho,
gera interesses comuns e também oposição/luta comum contra as outras classes.
Assim, temos os seguintes elementos que este conjunto de indivíduos possui em
comum e que caracterizam uma classe: modo
de vida, interesses e oposição a outras classes. Contudo, não se pode
reduzir uma classe social a apenas isto, pois existem outros grupos sociais que
possuem modos de vida comum, interesses comuns e se opõem a outros grupos. É
preciso compreender que tais características comuns dos indivíduos pertencem a
uma classe é determinada pela divisão
social do trabalho e esta, por sua vez, pelo conjunto das relações de
produção, essencialmente pelas relações
de produção dominantes, pelo modo de
produção dominante. É por isso que podemos distinguir as classes pela sua
posição na divisão social do trabalho, sendo que nas relações de produção
dominantes se constituem as duas classes fundamentais e nas demais relações de
produção outras classes e nas formas sociais (a chamada “superestrutura”)
outras classes, e, ainda, aqueles que estão marginalizados na divisão social do
trabalho.
Assim, partimos da determinação fundamental (relações de
produção dominantes, que constituem as duas classes fundamentais) para a
divisão social do trabalho que constitui as demais classes. Essas classes
não-fundamentais, ao serem constituídas, possuem modos de vida, interesses e
oposição comuns a outras classes (o que gera costumes e representações também
comuns). Esses aspectos caracterizam as classes sociais: modo de vida comum,
interesses comuns, luta comum, derivada da posição na divisão social do
trabalho, que, por sua vez, é determinada pelo modo de produção dominante.
No entanto, as classes sociais são determinadas por tais
relações e só podem agir e fazer valer os seus interesses de classe quando
criam uma forma de associação e desta forma agem e lutam coletivamente. Este é
o caso das classes dominantes que se desenvolveram na história. Elas, para
fazer valer seus interesses de classe, constituíram a sua principal forma
organizacional: O Estado. A gênese do Estado, por sua vez, significa ampliação
da divisão social do trabalho e, por conseguinte, espaço para emergência de
novas classes sociais. Porém, especialmente no caso das classes exploradas, há
uma grande dificuldade para criar uma associação e por isso elas ficam,
geralmente, na situação de uma classe em-si
e não atingem a situação de uma classe
para-si[7].
Contudo, aqui ainda estamos num nível genérico, ou seja,
válido para todas as sociedades classistas. Desta forma conseguimos identificar
um conjunto de classes sociais existentes. As classes sociais fundamentais que são constituídas no modo de
produção dominante, e as classes sociais
subsidiárias, que engloba todas as demais classes de uma sociedade
concreta. Entre as classes sociais subsidiárias, podemos colocar as classes
constituídas nos modos de produção subordinados, que podemos chamar de classes sociais proprietárias subordinadas
(que giram em torno do modo de produção dominante), as classes sociais de transição, que são aquelas oriundas de modo de
produção anteriores e ainda sobrevivem, por algum tempo, no modo de produção
ascendente, as classes sociais marginais,
que ficam nas margens da divisão social do trabalho, as classes sociais improdutivas, que são aquelas que existem na instância das formas sociais (“superestrutura”
ou formas de regularização das relações sociais).
Assim, as classes fundamentais são constituídas no modo de
produção dominante e as classes subordinadas nos modos de produção
subordinados. As classes transitórias que são restos de modos de produção
anteriores e são constituídas por eles. Além destas, existem as classes
derivadas das relações de produção dominantes, as classes improdutivas que são
constituídas pelas formas sociais e as classes marginais, que são
marginalizadas por causa de sua expulsão das relações de produção e relações de
reprodução de um modo de produção dominante e não estão ligados a outros modos
de produção.
A existência e reprodução das classes sociais, o que
significa a produção e reprodução da classe dominante, da exploração, torna
necessário um conjunto de atividades e formas de trabalho não produtivo que
permitem a reprodução das relações de produção. A burocracia estatal, o
exército, a igreja, os partidos, etc., são locais de exercício de trabalho
improdutivo e possuem o papel de reproduzir as relações de produção dominantes.
Nesse sentido, as classes improdutivas são aquelas que exercem atividades
ligadas à reprodução das relações de produção. Marx não aprofundou na análise
dessas classes e deixou apontamentos sobre sua existência sem, no entanto,
elencar quais e quantas seriam. Ao lado dessas classes improdutivas também se
pode falar das classes marginais, que são classes daqueles que são
marginalizados na divisão social do trabalho, como os plebeus na Roma antiga.
Assim, as classes existentes em nível mais geral são as
classes dominantes, as classes exploradas, as classes subordinadas, as classes transitórias,
as classes improdutivas e as classes marginais. Estas classes são formadas por
indivíduos que possuem modos de vida e atividade comuns, de onde deriva
determinados interesses comuns e oposição às demais classes, o que significa
que elas se caracterizam por sua unidade interna e pela luta contra as outras
classes, que é parte de sua unidade. Todas essas classes lutam entre si e
participam do confronto das duas classes fundamentais, de uma forma ou de
outra.
A luta de classes produz novos elementos comuns e reforçam a
unificação de cada classe. O resultado das lutas de classes é a transformação
social, ou seja, instituição de uma nova forma de sociedade em substituição à
antiga. É por isso que a história das
sociedades tem sido a história das lutas de classes. Marx atribui especial
importância para o processo de unificação e associação de uma classe social.
Ele explicitou isso com a ideia da passagem de classe em si a classe para si. A
classe dominante se torna classe em si com o processo de luta contra a classe
dominante anterior e se unifica através do Estado, que é utilizado para
defender os seus interesses gerais. As classes exploradas possuem dificuldade
de passar para classe para si e a passagem é realizada através da luta. Porém,
a efetivação disso vai depender das lutas e pode ser que, em alguns casos, não
ocorra. No caso do campesinato, por exemplo, Marx via dificuldades devido ao
modo de produção se basear na pequena produção. No caso do proletariado, ele
via como um processo tendencial derivado das lutas de classes e de sua posição
nas relações de produção capitalistas.
Na história das sociedades humanas, o processo de luta de
classes leva à transformação social. Nesse contexto, as classes em luta buscam
ou conservar determinada sociedade e modo de produção dominante ou buscam
transformá-lo, instituindo novo modo de produção dominante e nova sociedade.
Toda classe que aspira ser classe dominante, apresenta seus interesses particulares como interesses universais,
e, uma vez chegando ao poder, torna-se conservadora e busca, sob todos os
meios, reproduzir as novas relações de produção dominantes, as relações de
dominação e exploração. Esse processo só se encerra com o surgimento de uma sociedade que gera uma classe social que significa
a abolição de todas as classes sociais, criando assim uma identidade entre interesse particular de classe e interesse
universal da humanidade e isto só ocorre no capitalismo. Daí a importância
fundamental da análise das classes sociais no capitalismo.
As Classes Sociais no Capitalismo
A abordagem anterior foi no sentido de mostrar a concepção
geral das classes em Marx, o que remete para todas as sociedades de classes. Sem
dúvida, Marx fez referências à divisão de classes em sociedades classistas
pré-capitalistas, mas não produziu nenhuma análise estruturada e profunda sobre
nenhuma dessas sociedades especificamente. Marx analisou mais amplamente as
classes sociais no capitalismo, devido à possibilidade aberta da luta de
classes nessa sociedade gerar uma sociedade sem classes. Assim, se torna
fundamental analisar a concepção de classes sociais no capitalismo elaborada
por Marx. Ele analisou o modo de produção capitalista de forma mais aprofundada
e daí identificou diversas classes sociais e sua dinâmica de existência e luta.
O que podemos fazer aqui é apenas uma síntese do imenso trabalho analítico de
Marx, o que desenvolvemos com maior detalhe e profundidade em outra obra, já
citada (VIANA, 2012).
Marx deixou incompleto o seu capítulo sobre as classes
sociais em O Capital, apesar de que
em outros capítulos já tenha apresentado vários elementos que são
esclarecedores diante de sua concepção de classe social. Da mesma forma, em
várias passagens, ele faz referências a diversas classes, embora seu foco,
nessa obra, seja as duas classes sociais
fundamentais, aquelas que constituem e são constituídas pelas relações de
produção capitalistas: burguesia e
proletariado. Isso é explicado pelo fato de que o fenômeno que Marx analisa
em O Capital não é a sociedade
capitalista como uma totalidade, mas apenas uma parte dela, o modo de produção
capitalista. O modo de produção
capitalista constitui as duas classes sociais fundamentais através da produção
de mais-valor. No volume 01 de O
Capital, Marx (1988) trata justamente da produção de mais-valor e depois
desenvolve elementos desse processo em outros capítulos, tanto aspectos
históricos quanto suas consequências, incluindo a existência das demais classes
sociais.
As relações de produção capitalistas se caracterizam pela produção de mais-valor, ou seja, a
produção especificamente capitalista de mercadorias. O proletariado aparece com
a classe produtora de mais-valor e a
burguesia como a classe apropriadora
desse mais-valor. Trata-se de uma relação de exploração, uma relação de
classes, e, por conseguinte, luta de classes. No entanto, ao contrário que
não-leitores e mal-leitores de Marx pensam, ele não concebia apenas estas duas
classes no capitalismo. A classe produtora de mais-valor, o proletariado, se
confunde com outras classes sociais, especialmente as assalariadas. Alguns
definem equivocadamente o proletariado pelo trabalho assalariado. No entanto,
Marx apresenta uma distinção entre trabalho
produtivo e improdutivo, sendo que o proletariado seria composto pelos
trabalhadores assalariados produtivos. O caráter produtivo do trabalho dos
proletários se encontra justamente na produção de mais-valor[8].
Os comerciários, por exemplo, são constituídos nas relações de distribuição de
mercadorias e não de produção de mais-valor, sendo, portanto, trabalhadores
improdutivos.
O modo de produção capitalista gera, para se reproduzir, um
conjunto de classes sociais que possuem determinada função na divisão social do trabalho. Essas
classes envolvidas nas relações de reprodução do capitalismo são as classes sociais improdutivas. Esse é o
caso da “burocracia”, tanto a estatal quanto a das empresas privadas[9].
Além da burocracia, Marx (1988) identificou o que denominou, em O Capital, a “classe dos serviçais”
(mordomos, trabalhadores domésticos em geral). Assim, as classes envolvidas nas
relações de distribuição capitalistas e nas formas sociais burguesas (“superestrutura”)
constituem as classes sociais improdutivas, que são aquelas que não produzem
mais-valor[10].
Além das classes sociais fundamentais e das improdutivas,
existem as classes sociais transitórias,
que existem apenas durante o processo de formação do capitalismo e subsistem
por determinado tempo posterior. Esse é o caso da nobreza. Com o
desenvolvimento capitalista, as classes sociais vinculadas aos modos de
produção anteriores são abolidas completamente. No processo de formação do
capitalismo também surgem determinados modos
de produção subordinados a ele que são classes
subordinadas ao capital. Esse é o caso dos camponeses e artesãos, que
constituem modos de produção subordinados ao capitalismo. Como são classes
proprietárias subordinadas ao capital, elas entram em confronto com este, mas,
ao mesmo tempo, com o proletariado, por este representar a abolição da
propriedade privada em geral. Outras classes sociais proprietárias também
existem e se assemelham à classe burguesa, como latifundiários, rentistas,
pequenos proprietários, etc.
Além dessas classes existe o “exército industrial de reserva”,
ou seja, um conjunto de indivíduos que não conseguem vender sua força de
trabalho como os proletários ou o faz temporariamente ou na forma de
subemprego. Marx não foi preciso nesse aspecto e em algumas passagens denominou
esse conjunto como lumpemproletariado,
embora em outras passagens tenha usado tal termo para se referir apenas aos
mais empobrecidos do exército industrial de reserva[11].
Consideramos mais adequado considerar o lumpemproletariado como o conjunto do
exército industrial de reserva, ou seja, incluindo todos os desempregados,
subempregados e marginalizados na divisão social do trabalho.
Desta forma podemos colocar que, na sociedade capitalista,
existem as classes fundamentais (burguesia e proletariado), as classes sociais
improdutivas (burocracia, subalternos, etc.), as classes transitórias (nobreza,
clero, etc.) e as classes proprietárias não-capitalistas e semicapitalistas
(campesinato, latifundiários, artesãos, pequenos proprietários, etc.), e a
classe marginal (lumpemproletariado).
Esse conjunto de classes sociais só existe no interior da
totalidade da sociedade capitalista e através da relação estabelecida entre
elas. A concepção marxista de classes sociais nada tem a ver com as ideologias
da estratificação social, principalmente as que distinguem as classes sociais
por nível de renda. As classes sociais transitórias vão desaparecendo com o
desenvolvimento capitalista, se integrando e metamorfoseando e se transformando
em outras classes sociais. As classes não-capitalistas e semicapitalistas são
subordinadas ao capital e ao aparato estatal. O modo de produção camponês, por
exemplo, se subordina às relações de distribuição capitalistas, bem como ao
Estado capitalista, submetida aos “métodos secundários de exploração
capitalista”. As classes sociais improdutivas sobrevivem graças ao processo de
repartição do mais-valor global no conjunto da sociedade. O Estado, por
exemplo, drena parte do mais-valor global e o repassa para seus trabalhadores
assalariados improdutivos (burocracia, subalternos, intelectualidade). Os
rentistas também drenam parte do mais-valor global através da apropriação de
mais-dinheiro (VIANA, 2016).
Assim, as classes sociais estão relacionadas pela divisão social do trabalho e sua função
nas mesmas, bem como pelo processo de repartição
de mais-valor realizada através das relações
de distribuição capitalistas. Isso gera distintos modos de vida, interesses
e luta entre as classes. Esse processo é complexo, pois as classes
privilegiadas (burguesia, burocracia, intelectualidade, latifundiários) possuem
uma proximidade e interesses comuns, apesar de suas disputas e conflitos
internos, e as classes desprivilegiadas (proletariado, lumpemproletariado,
campesinato, subalternos, etc.) também possuem proximidade e interesses comuns,
mas também entram em confronto por razões secundárias e por causa da hegemonia
burguesa.
Essa situação se torna ainda mais complexa se recordarmos
que a divisão social do trabalho gera um conjunto de subdivisões e as classes
sociais possuem divisões internas, que Marx denominou “frações de classes”. A burguesia, por exemplo, tem várias frações:
industrial, agrícola, comercial, financeira, etc. O proletariado também:
industrial, agrícola, da construção civil, etc. A burocracia, por sua vez, pode
ser dividida em estatal, universitária, partidária, sindical, etc. Essas
frações de classes compartilham semelhanças essenciais e diferenças
existenciais, mantendo os interesses comuns de classe social.
Assim, todas as classes sociais no capitalismo entram em
confronto, direto ou indireto. Elas, no entanto, tendem a girar em torno da luta
entre as duas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. No entanto,
essa luta de classes ocorre sob forma espontânea e sem maior consciência por
parte dos indivíduos pertencentes às classes sociais. As classes sociais tendem
a criar organizações e formas de consciência, mais ou menos desenvolvidas, que
expressam sua perspectiva e seus interesses. Marx explicita o processo de
passagem de classe em-si a classe para-si (MARX, 1989), ou, como
preferimos, classes determinadas para classes autodeterminadas, através da
associação (MARX e ENGELS, 1982; VIANA, 2012).
Porém, é necessário abrir um parêntesis para explicitar o
que significa a passagem de classe em si
a para si. Os termos são retirados de
Hegel e recebem um tratamento, neste filósofo, como o desenvolvimento de uma
potencialidade já contida no ser, tal como no exemplo da semente, que tem
contida em si a planta. A passagem da potência
ao ato é o que expressa a passagem da classe em si a para si. E o para-si
das classes significa desenvolver sua potencialidade de expressar seus próprios
interesses, ou seja, a mutação de classe
determinada para classe autodeterminada.
Isto é muito mais amplo do que a concepção kautskista-leninista que se tornou
dominante e que remete apenas ao problema da consciência. Em todas as
referências de Marx a esse processo, tratando das classes dominantes e do
Estado, bem como tratando do campesinato ou do proletariado, ele nunca reduziu
a autodeterminação apenas à instância da consciência[12].
Obviamente que a consciência é parte da autodeterminação, pois ninguém,
indivíduo ou grupo, pode se autodeterminar sem ter consciência de seus
interesses. Porém, nenhum indivíduo ou classe pode se autodeterminar através
dos outros, isso não seria autodeterminação e sim dominação e reprodução do
estágio da classe em si, determinada por outros. Para que isso fique claro,
basta citarmos a passagem mais famosa de Marx sobre isso:
As
condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em
trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta
massa, pois, é já, face ao capital, uma
classe, mas ainda não o é para si
mesma. Na luta, de que
assinalamos algumas fases, esta massa se reúne,
se constitui em classe para si mesma
(MARX, 1989, p. 159).
Assim, a reunião, a unificação, através da associação, é o que expressa essa
passagem de classe determinada para autodeterminada, que significa,
simultaneamente, desenvolvimento da consciência e da organização de classe. No
caso da classe operária, ela é uma classe
determinada, produzida e reproduzida pela classe dominante, mas quando,
através da luta, se une, se organiza, defende conscientemente seus interesses,
torna-se classe autodeterminada, de
acordo com o seu ser-de-classe, realizando sua potencialidade revolucionária.
A burguesia possui uma associação que representa os seus
interesses: o Estado capitalista.
Além do estado capitalista, ela cria outras organizações com o mesmo objetivo,
formando o que denominamos bloco
dominante. As classes auxiliares da burguesia também criam suas
organizações e formas de consciência, mas com a ambiguidade de sua posição de
classe (seus setores mais radicais dizem representar o proletariado e busca se
autonomizar e conquistar o poder estatal burguês e seus setores mais moderados
se aliam ao bloco dominante e não entram em confronto com o capital), reforçada
por alguns setores das classes desprivilegiadas, formam o bloco progressista, semiburguês. Esse bloco quer substituir o bloco
dominante, mas não tem força para tal, a não ser em raros casos históricos
(como o caso do bolchevismo na Revolução Russa). O bloco dominante e o bloco
progressista geralmente entram em conflito, devido sua oposição, especialmente
na disputa pelo poder estatal[13].
Um terceiro bloco se constitui em antagonismo a estes dois.
Trata-se do bloco revolucionário, que
expressa os interesses de classe do proletariado, e aglutina geralmente setores
das classes desprivilegiadas, da juventude (de várias classes), da intelectualidade.
Esse bloco é geralmente marginal na sociedade capitalista. Ele só se fortalece
quando realiza a fusão com o proletariado, o que ocorre em momentos
revolucionários, que é quando este radicaliza, desenvolve sua consciência e
formas de auto-organização (como os conselhos operários) e se unifica a partir
dos seus interesses fundamentais de classe.
Os blocos sociais são as formas
organizativas e conscientes das classes sociais, mas em momentos de
estabilidade social, financeira, política, não são dominantes e nem sempre
conseguem grande espaço nos conjunto das classes sociais. É nos momentos de
crise que os interesses de classes se tornam mais claros e a radicalização da
luta de classes tende a fortalecer os blocos sociais, aglutinando mais e com
mais firmeza setores no seu interior. A fusão entre os blocos sociais e as classes
sociais que representam tende a ocorrer apenas nos momentos
revolucionários.
Considerações finais
O objetivo do presente texto foi resgatar a concepção
marxista de classes sociais, tomando Marx como a principal referência. Sem
dúvida, Marx não pode desenvolver e estruturar uma teoria das classes sociais,
mas forneceu os elementos fundamentais para isso. Nesse sentido, é necessário
avançar na estruturação de uma teoria marxista das classes sociais, bem como
atualizá-la ao tratar do caso específico do capitalismo, pois suas mutações
promoveram alteração na composição das classes e na dinâmica das lutas de
classes. Algumas obras já foram produzidas tentando contribuir com o desenvolvimento
de tal teoria e sua compreensão é ponto de partida para qualquer avanço
posterior. Aqui focalizamos a concepção de Marx e em alguns momentos apontamos
alguns elementos novos (intelectualidade como classe social, blocos sociais,
etc.). Novas contribuições são necessárias para atualizar e desenvolver tal
teoria, bem como resolver os problemas presentes na mesma e ainda não
solucionados. Essa breve síntese apenas visa oferecer uma introdução aos que
ainda não tiveram acesso a uma análise mais profunda da teoria marxista das
classes sociais e nesse sentido cumpre com seu objetivo.
Referências
BRAGA,
Lisandro. Classe em Farrapos.
Acumulação Integral e Expansão do Lumpemproletariado. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2013.
KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona: Ariel, 1983.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas,
1982.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política.
2a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.
MARX,
Karl. Los Alquimistas de la Revolución. In: RUBEL, Maximilien (org.). Páginas
Escogidas de Marx para una Ética Socialista. Vol. 2. Buenos Aires, Amorrurtu, 1974.
MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 3ª edição, São Paulo:
Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais.
Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Rio de Janeiro: Ar
Editora, 2016.
VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx.
Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, Nildo.
Blocos Sociais e Luta de Classes. Revista
Enfrentamento, ano 10, N. 17, jan/jun. 2015. Disponível em: http://enfrentamento.net/enf17.pdf Acessado em: 30/06/2015b.
VIANA, Nildo. Karl Korsch e a Concepção Materialista da História. São Paulo:
Scortecci, 2014.
VIANA, Nildo. Marx e a Burocracia. Revista Plurais. Vol. 05, num. 02,
2015a.
[1]
Trata-se do meu livro A Teoria das Classes
Sociais em Karl Marx (VIANA, 2012).
[2] A
interpretação ideológica de Marx, segundo a qual para esse só existiriam
classes no capitalismo, é refutada na obra mais ampla que dedicamos a esse tema
(VIANA, 2012).
[3] É
um princípio do materialismo histórico, desenvolvido por Marx em várias obras
(MARX, 1989) e denominado por Korsch como “princípio da especificidade
histórica” (KORSCH, 1983; VIANA, 2014), e esquecido pela maior parte dos
pseudomarxistas.
[4]
Muitos relacionam a discussão entre modo de produção dominante e modos de
produção subordinados com a concepção pseudomarxista-estruturalista (Althusser
e seus colaboradores), o que é um equívoco e só revela, mais uma vez, o tanto
que Marx não é lido ou pouco lido, ou, ainda, mal lido. Ele expôs essa concepção
em alguns momentos e faz parte de sua teoria. No entanto, os conceitos em Marx
são reificados pelos pseudomarxistas e outros, que não entendem a concepção
dialética do conceito, cuja origem está em Hegel, e assim colocam uma rigidez
enorme nos conceitos (classes sociais, modo de produção, etc.) que não se
encontra no autor que os elaborou e que só tem equívoco semelhante naqueles que
diluem os conceitos de tanto “flexibilizá-los”, o que mostra o mesmo problema
de origem: a incompreensão do vínculo entre conceito e realidade.
[5] As
classes improdutivas remetem ao conceito de trabalho produtivo e improdutivo. O
trabalho produtivo é aquele que se manifesta no modo de produção dominante como
produtor de riquezas. Em outras palavras, é o trabalho que produz bens
materiais no modo de produção que constitui e caracteriza determinada
sociedade. O trabalho improdutivo é toda forma de trabalho realizado na
“superestrutura”, nas formas de regularização das relações sociais. Os
indivíduos ligados aos modos de produção subordinados não realizam nenhum nem
outro, realizam trabalho que contribui para a produção de bens materiais e a
reprodução geral da sociedade, mas é exterior ao processo de trabalho do modo
de produção dominante.
[6] Os
marginais são aqueles que estão nas margens da divisão social do trabalho, tal
como os plebeus na Roma Antiga ou o lumpemproletariado, no capitalismo.
[7]
Marx usa as expressões hegelianas “classe em si” e “classe para si”. Julgamos
mais esclarecedor outra terminologia, também de origem hegeliana, de classe determinada e classe autodeterminada, pois assim fica
mais claro o significado e mostra a inseparabilidade entre ambos. Ou seja,
alguns pseudomarxistas quiseram transformar a distinção de classe em si e
classe para si em coisas radicalmente distintas e separadas, seja sob a forma
idealista (supervaloração da consciência em detrimento do ser), seja sob a
forma teleológica (o “para si” seria o fim e a própria constituição da classe,
ou seja, só se tornaria realmente uma classe quando assume essa situação, tal
como a “consciência revolucionária”). Isso demonstra apenas desconhecimento das
origens hegelianas de algumas expressões usadas por Marx e do caráter que ele
atribuiu aos termos em questão. A classe operária, que é o grande foco dessa discussão,
é uma classe determinada pelo capital, ou “em si”, mas só quando cria sua
associação, sua forma de auto-organização coletiva que possui consciência de
seus interesses fundamentais de classe, é que se torna autodeterminada, ou
seja, para si. Ela só pode se tornar autodeterminada por ser determinada e sua
autodeterminação não significa sua afirmação, mas sua negação. O proletariado
como classe determinada pelo capital não é revolucionário, logo, “não é nada”
(MARX, 1974). O proletariado só se torna revolucionário quando passa a ser
classe autodeterminada, num processo de busca e concretização da superação do
capital e de si mesmo, pois ele só existe na relação com este. Assim, a
distinção entre classe determinada e autodeterminada significa a passagem da potência ao ato, a potencialidade revolucionária gera a ação revolucionária.
[8] Em
Marx existe uma certa ambiguidade em torno da discussão sobre trabalho
produtivo, pois era um problema que ainda estava resolvendo. Porém, isso ocorre
levando em consideração vários escritos dele, inclusive manuscritos não
publicados. Na única obra publicada em sua vida, o volume 01 de O Capital, a sua concepção, que é a
acima apresentada, está mais clara, embora ainda assim contenha certas
dificuldades analíticas.
[9]
Para Marx, a burocracia é uma classe social e ele abordou a burocracia estatal
e empresarial, que ele denominou como “gerentes” (VIANA, 2012; VIANA, 2015a). É
a concepção leninista que, obviamente, como expressão ideológica da classe
burocrática que fala em nome do proletariado, recusa o caráter de classe da
burocracia (e da intelectualidade). A crítica ao caráter ideológico da
concepção leninista mostra simultaneamente o seu caráter de classe e ideológico
(VIANA, 2012).
[10]
Após Marx, é possível identificar outras classes que se consolidaram
posteriormente, como a intelectualidade (VIANA, 2012).
[11]
Cf. Braga (2013), Viana (2012).
[12]
Assim como outros reduzem apenas à instância da organização. São duas formas de
reducionismo que são distantes da concepção marxista e do método dialético,
pois esfacelam a totalidade arbitrariamente de acordo com suas ilusões,
ideologias, interesses ou por incompreensão da realidade por estarem submetidos
ao modo de pensar burguês.
[13] A
respeito dos blocos sociais, cf. Viana (2015b).
________________________________________________________________
Publicado originalmente em:
A CONCEPÇÃO MARXISTA DAS CLASSES SOCIAIS
RESUMO
Um dos conceitos fundamentais da teoria marxista é o de classes sociais. Apesar disso, é um dos menos compreendidos e que recebeu menos contribuição e desenvolvimento depois de Marx. Isso gera uma dificuldade para a teoria marxista e abre espaço para deformações, incompreensões e simplificações. Geralmente, a solução encontrada é complementar a concepção de Marx com uma breve definição de Lênin e passa-se a tomar esta última como grande referência e assim nada se compreende do conceito de classes sociais em seu sentido original e autêntico. O presente artigo é apenas uma síntese de uma outra obra que analisou mais extensamente e profundamente o conceito de classes sociais em Marx, apresentando os aspectos fundamentais e sem fazer o processo de fundamentar na obra deste autor – o que exigiria toda uma discussão conceitual, análise do processo de formação dos conceitos, citações confirmadoras e esclarecimentos, que seria o espaço de um livro e não de um artigo. Assim, aqui não nos preocupamos em demonstrar que trata-se de uma interpretação correta de Marx, mas tão-somente apresentá-la, pois tal demonstração foi realizada em outro lugar[1].
[1] Trata-se do meu livro A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx (VIANA, 2012).
Leia Mais:
Marx e a Burocracia
Intelectuais Venais e Axiologia
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