TIO PATINHAS: A SAGA DE UM CAPITALISTA
Nildo
Viana*
Resumo:
O presente artigo apresenta uma análise do Tio
Patinhas, personagem Disney. O objetivo é analisar as características do
personagem, sua formação histórica e enredo, visando explicar o caráter do
personagem e seu vínculo com o processo de legitimação do capitalismo, sua
forma de reprodução dos valores dominantes e ideologemas, bem como a forma como
isso é realizado.
Palavras-Chave: Capitalista, Dinheiro, histórias em
quadrinhos.
Abstract:
This paper presents an analysis of Uncle Scrooge,
Disney character. The goal is to analyze the character's traits, their historical
background and plot, aiming to explain the character of the character and his
relationship with the capitalist process of legitimation, its reproduction of
the dominant values and ideologemes, as well as how this is accomplished.
Key-words: Capitalist, money, comics.
Tio Patinhas é um dos mais famosos personagens Disney. Ao
mesmo tempo, em certos círculos, é o mais rejeitado. Essa rejeição é derivada
do fato de Tio Patinhas ser um capitalista e seu enredamento girar em torno
disso. Inúmeros outros personagens são capitalistas e não geram tal rejeição,
pois o seu enredamento não gira em torno de seu pertencimento de classe. Basta
citar Batman (Bruce Wayne) e o Homem de Ferro (Tony Stark), para observar essa
diferença, pois ambos são capitalistas mas o enredamento é distinto, não sendo
extensão do seu pertencimento de classe.
Análise das histórias em quadrinhos podem se dirigir para
diversos temas e um deles é o personagem, que é a escolha aqui realizada. A
análise do Tio Patinhas pressupõe entender a especificidade do foco em um
personagem. Outros focos analíticos são possíveis, como, por exemplo, uma
determinada história, um determinado período histórico, um conteúdo específico
do personagem, etc. A análise do personagem permite uma percepção global do
mesmo, que pode ou não ser complementada por análises de determinadas histórias
específicas, dependendo de outras decisões do pesquisador, incluindo os seus
objetivos. A opção aqui tomada é a de analisar o personagem e utilizamos
algumas referências à histórias apenas para fundamentar a análise.
Nesse sentido, o processo analítico contará com uma análise
das características do personagem, sua formação histórica e a estrutura do seu
enredamento[1].
O objetivo é explicar as características essenciais do Tio Patinhas e seu
vínculo com o processo de legitimação do capitalismo (através de valores e
ideologemas), geralmente de forma inintencional e algumas vezes de forma
intencional, bem como elementos que reforçam esse processo, como o que
denominamos modus operandi da comicidade
e fórmula aventurosa.
Tio Patinhas: Um Capitalista Selvagem
Um indivíduo capitalista é mal visto por certos setores da
sociedade simplesmente por seu pertencimento de classe, por ser um burguês, o
que significa ser explorador dos trabalhadores através da extração de
mais-valor ou, no imaginário popular, ser rico. No entanto, certos indivíduos
capitalistas são mais rejeitados ainda, seja por sua voracidade em busca da
ampliação de sua riqueza e/ou por sua avareza. Esse até mesmo no plano da
aparência perde a civilidade, se aproximando da selvageria. O protótipo é a
figura do capitalista selvagem, devorador das riquezas do mundo para satisfazer
sua ganância. O Tio Patinhas é um típico capitalista selvagem e não é preciso
demonstrar isso para quem conhece o seu universo ficcional[2]. A
mera constatação disso, no entanto, não é suficiente. É preciso entender suas
características mais profundas além da sua busca incessante por mais riqueza
(expressão figurativa simples de um processo real complexo: a reprodução
ampliada do capital, tal como teorizada por Marx)[3] e
avareza do personagem.
Um capitalista selvagem é aquele que o dinheiro se torna o
seu valor fundamental. Os valores fundamentais são aqueles que não só estão
acima na escala de valores dos indivíduos, mas também são critérios para
escolhas dos demais valores (VIANA, 2007). Os desvalores também se manifestam
constantemente. Aquilo que não leva ao dinheiro é desvalorado. O seu interesse
é apenas no que pode gerar lucro e tudo que não serve para esse propósito é desvalor,
algo sem interesse. O dinheiro como valor fundamental significa que ele está
acima dos seres humanos, dos sentimentos, de outros valores, etc. Isso
significa a coisificação e desumanização de um ser humano.
A vida de Tio Patinhas gira em torno do dinheiro, da
conquista de mais dinheiro e da proteção do que já possui e vencer os
concorrentes num processo competitivo incessante. Aqui temos os elementos
definidores da estrutura do universo ficcional do Tio Patinhas, tanto de seu
enredo quanto de seu enredamento.
Esses valores dominantes são complementados por um conjunto
de concepções e representações que ajudam a caracterizar o personagem. O
raciocínio do Tio Patinhas é uma réplica do cálculo mercantil, no qual os
gastos (despesa) não devem superar os ganhos (renda). No caso do Tio Patinhas, devido o efeito
humorístico esperado, os gastos muitas vezes superam os ganhos. Em A Sopa de Pedra, na qual o Primo
Nadinhas, o protótipo do primo pobre, aparece com a velha história de uma sopa
feita de pedra e, tal como no folclore, vai solicitando ingredientes e acaba fazendo
uma sopa normal.
Tio
Patinhas e Primo Nadinhas, “A Sopa de Pedra”.
No entanto, o cálculo mercantil é sempre relacionado com a
distribuição e nunca com a produção. O Tio Patinhas é um “quaquilionário” que se
enriquece apenas com dinheiro e ouro, ou seja, no âmbito das relações de
distribuição e raramente nas relações de produção. Este é um dos motivos para
que os operários fiquem geralmente ausentes em suas histórias[4]. Dorfman
e Mattelart afirmam que os operários estão presentes nas histórias em
quadrinhos do Tio Patinhas:
O proletariado foi [...] omitido: na cidade é
criminoso, no campo é o selvagem-bonzinho. Como a visão de Disney é emascular a
violência e os conflitos sociais, inclusive malandros são enfocados como
crianças travessas (na América Latina, Irmãos Metralha são “chicos malos”);
como o antimodelo que sempre perdem, recebem surras, celebram suas estúpidas
ideias dando-se as mãos e dançando em rodas. Sua monada dispersa sintomatiza o
desejo da burguesia de substituir o aglutinamento de quatro gatos loucos pelas
organizações da classe operária. (Assim, quando Donald aparece como um possível
bandido, a reação de Tio Patinhas: “meu sobrinho, um assaltante? Diante de meus
próprios olhos? Terei que chamar a polícia e o hospício. Deve ter
enlouquecido”, é similar à redução de toda subversão política a uma enfermidade
psicopática, para apagar a solidariedade de classe que explica o fenômeno).
Convertem os defeitos do proletariado, produto da exploração burguesa, em
taras, em objeto de riso e em argúcias para não perturbar essa exploração. Não
lhes permite sequer ser originais em suas aspirações: a burguesia coloniza em
última análise esses ladroes, impedindo-lhes as mesmas aspirações. Eles desejam
o dinheiro para serem burgueses, para se converterem nos exploradores, e não
para abolir a propriedade. A caricatura do proletariado, torcendo cada
característica que poderia fazê-lo temível e digno e, portanto, identificá-lo
como classe social, serve para oferecê-lo em público como um espetáculo de
burla e escárnio. E, paradoxalmente, na era da tecnologia do mundo que os
burgueses chamam moderno, a cultura massificada recorre e propala cotidianamente
os mitos renovados da era da máquina (DORFMAN e MATTELART, 1980, p. 83).
Essa interpretação, no entanto, é arbitrária. Não há nenhum
indício, nem ficcional nem extraficcional, de que o proletariado apareça
travestido como um bando de criminosos. Isso só seria possível numa versão
simplista e pseudomarxista das classes sociais, pensando na existência de
apenas duas classes (burguesia e proletariado, o que levaria à conclusão
lógica, apesar de absurda, de que quem não é burguês só pode ser proletário).
Os criminosos se encaixariam, na terminologia marxista, no lumpemproletariado.
Nesse sentido, é visível a ausência do proletariado, o que expressa a ausência
da produção de mais-valor, a forma moderna de exploração. A produção ausente é
substituída pela distribuição e o enriquecimento é apenas a aquisição de
dinheiro e vantagens nas trocas comerciais criando um mundo ilusório e
fetichista. Aí se encaixa a análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria
(MARX, 1988). O universo ficcional do Tio Patinhas é totalmente fetichista. O
pensamento econômico que expressa essa concepção fetichista, embora noutro
contexto histórico, onde isso tinha maior racionalidade, seria a concepção
mercantilista.
O Tio Patinhas é principalmente um capitalista comercial e
bancário, não um capitalista industrial, o que justifica a relativa ausência do
proletariado[5].
Assim, o mordomo Batista e outros funcionários (burocratas, intelectuais e
subalternos) existem, mas o proletariado não. Raramente aparece a figura de um
proletário. Curiosamente, a fonte mítica de toda riqueza do pato avarento tem
origem em um operário:
Tio Patinhas, como muitos homens que se tornaram
multimilionários ou ilustres, nasceu de uma família pobre. Assim, ainda menino,
o pequeno Patinhas resolveu, por conta própria, trabalhar para ganhar algum
dinheiro e aliviar a carga do pai. Como não tivesse capital nem tarimba para
negócios maiores, foi ser engraxate. Arranjou algumas tábuas velhas e um
caixote e construiu uma cadeira. Finalmente, instalou-se numa esquina, à sobra
de uma árvore, à espera ansiosa do primeiro freguês. A cada homem que passava
perguntava: - Vai graxa, moço? Até que, pouco depois, um velho operário parou e
pediu para ser atendido. Os sapatos do homem, além de estar “pedindo
aposentadoria” como o dono, estavam cobertos de lama ressecada. O pequeno
Patinhas levou meia hora só para remover os cascões de terra. Depois, com muito
entusiasmo, engraxou os sapatos, que ficaram limpos. O homem gostou do jeito do
menino trabalhar e deu-lhe uma moedinha. O menino, emocionado, guardou aquele
níquel com muito carinho. De engraxate passou a vendedor de lenha, e foi
melhorando de negócio em negócio. Mas aquela primeira moeda ele a conservou
sempre consigo como um amuleto da sorte (MANUAL DO TIO PATINHAS, 1988, p. 94)[6].
Assim, a origem da famosa moedinha número 01 remete a um
“velho operário”. Isso poderia simbolizar a exploração capitalista, mas não há
mais nada nas histórias do pato avarento que aponte para qualquer criticidade
nesse sentido. No entanto, uma característica do Tio Patinhas é fundamental e
revela a reação ambígua do público em sua relação. Diante do público mais
intelectualizado ou rebelde sua popularidade é mais baixa, bem como diante dos
trabalhadores[7].
As representações cotidianas apontam para duas interpretações do famoso pato
burguês: a figura do capitalista, para alguns, uma minoria, seria objeto de
crítica e, para outros, a imensa maioria, seria objeto de apologia, nas
histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. Essas representações cotidianas também
recebem abordagens mais complexas defendendo uma ou outra posição.
As duas interpretações são mais atribuições de significado
do que expressão real do significado original dos criadores das histórias em
quadrinhos do Tio Patinhas. A figura do Tio Patinhas não é recusada e nem
objeto de humor, crítica, rejeição, por ser um capitalista. No desenvolvimento
histórico das suas histórias em quadrinhos não se vê nada nesse sentido. Muito
pelo contrário, ele é o protagonista de suas próprias histórias, depois de um
certo tempo como coadjuvante do Pato Donald, e a tendência dos leitores é a
identificação com ele, momentânea ou permanente, dependendo do caso[8].
No caso da população em geral, a sua recusa é mais por causa
de sua avareza e excessos. Ou seja, a rejeição do Tio Patinhas ocorre por ser
um “capitalista selvagem”, tal como descrito anteriormente, e não por ser um
capitalista. A sua avareza, amor pelo dinheiro, suas atitudes diante da
riqueza, entre outras características exageradas do pato capitalista, são
produtos dos seus criadores e é o que lhe permite o efeito humorístico, o seu modus operandi de comicidade. O seu
banho matinal em dinheiro é um exemplo, embora sua graça seja limitada por sua
repetição ao longo das histórias em quadrinhos. O rocambolesco é uma das formas
mais comuns de despertar humor e o seu uso faz parte da estrutura das histórias
em quadrinhos de humor. Os momentos mais criativos e com mais humor da Turma da
Mônica, por exemplo, é quando Cebolinha encontra o personagem O Louco, pois é quando as ações mais
rocambolescas acontecem. O seu uso pode ser recursivo ou criativo, ou ambos
simultaneamente. O uso recursivo acaba diminuindo seu efeito humorístico (é o
caso dos banhos em dinheiro do Tio Patinhas) enquanto que o uso criativo acaba
surpreendendo e conseguindo tal efeito com sucesso[9].
Há casos em que o uso recursivo é simultaneamente criativo, pois apesar da
repetição, de acordo com o contexto ou dependendo do que é repetido, acaba
gerando o efeito humorístico[10].
No caso das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas, coexistem usos recursivos
e criativos.
As mudanças de criadores das histórias em quadrinhos de Tio
Patinhas, como toda produção do capital editorial em alta escala e durante um
período prolongado de tempo, expressa a permanência das características
essenciais do personagem, mas ganhando diferenciação de acordo com quem são os
criadores, o país, o contexto social e histórico, etc.[11]
No entanto, a análise do Tio Patinhas pode conservar o essencial do personagem
e a sua rejeição é esperada, bem como sua motivação é a mesma que provoca o
efeito humorístico. No plano dos valores, não há contestação dos valores
burgueses, mas tão-somente de sua subordinação absoluta dos demais valores, e
por isso ser rico e capitalista não é problema e sim transformar isso em
sentido da vida e passar por cima de tudo o mais. No plano das representações, se
apresenta um ideologema[12],
segundo o qual o problema não é ser capitalista e sim ser “selvagem” e por
detrás dessa concepção há uma outra: a ficção do “bom burguês”, como se o
problema fosse a bondade ou maldade pessoal do indivíduo capitalista, ao invés
das relações de produção capitalistas e do constrangimento que ela cria para
este no sentido de ter que garantir a produção de mais-valor e reprodução
ampliada do capital.
Isso é perceptível na origem do Tio Patinhas. A fonte de
inspiração para sua criação foi o avarento Ebenezer Scrooge[13],
personagem de Um Conto de Natal, de
Charles Dickens, que rendeu diversas adaptações, inclusive várias
cinematográficas. O conto de Dickens mostra um avarento (scrooge é uma palavra inglesa que, em sua tradução para português, significa
sovina e outras com mesmo significado), um rico de origem humilde e que se
caracterizada pela poupança e acumulação sem gasto pessoal. A sua ganância e
avareza acabam criando uma situação na qual três fantasmas o assombram quando
está a beira da morte para transformá-lo.
A aparência física é a de um típico capitalista do século 19
e que permanece até início do século 20. As ilustrações de Ebenezer Scrooge
também inspiraram a aparência física do Tio Patinhas.
Desde que foi publicada, em dezembro de 1843, a novela
A Christmas Carol, de Charles Dickens (1812–1870), vem sendo constantemente
transposta para outros suportes artísticos, que lidam com o som e com a imagem.
Primeiro para as ilustrações e para o teatro, depois para as leituras públicas
feitas pelo próprio autor e, posteriormente, para o cinema, a televisão, o
rádio e os desenhos animados. A história de Ebenezer Scrooge, o velho avarento
que é assombrado na véspera de Natal pelos espíritos dos Natais passado,
presente e futuro, é a mais conhecida das obras de Dickens (ALMEIDA, 2012, p. 01).
A imagem clássica de Ebenezer Scrooge é a fonte de
inspiração do Tio Patinhas, embora semelhante com a figura do indivíduo
capitalista da época e trazendo as marcas do simbolismo associado aos
burgueses. O filme A Christmas Carol
(1910), bem como ilustrações do livro de Dickens mostram isso:
Scrooge no cinema (2010) Ilustração
do livro de Dickens.
No fundo, Ebenezer Scrooge tem sua aparência inspirada nos
capitalistas do século 19 e Tio Patinhas em ambos, mas especialmente em Scrooge
e nas formas como ele era retratado. O próprio nome do Tio Patinhas em inglês é
Uncle Scrooge McDuck. A fonte de inspiração revela a fonte da ideia.
Tio Patinhas: A aparência de um típico
capitalista do século 19, recorrente até início do século 20.
A antipatia em relação a Ebenezer Scrooge não é devido ao
fato dele ser um capitalista e sim de ser um avarento, um capitalista selvagem, que tão logo se torna um “bom
burguês”, através do arrependimento, é perdoado e perde o seu caráter
antipático. Os valores dominantes, burgueses, não podem se manifestar com
crueldade, isso retira a humanidade do capitalista. O seu “lado humano” deve
ser recuperado (e até mesmo Hitler já teve tal lado “recuperado” por
determinada produção cinematográfica). Assim, se oculta o significado real de
um capitalista ou da classe burguesa, o caráter de classe social e o que lhe
caracteriza como tal, e em seu lugar temos os “bons” e os “maus”. Isso promove
uma humanização e aceitação do “bom burguês”. Um capitalista civilizado e
bondoso é bom. O que é inaceitável é um capitalista selvagem, que passa por
cima dos demais valores culturais e coloca o vil metal como o sentido da vida.
A Fórmula Aventurosa do Tio Patinhas
Essa caracterização do Tio Patinhas não se esgota nisso.
Existe um outro elemento que permite entender o personagem. Os enredos das
histórias em quadrinhos do Tio Patinhas possuem uma fórmula aventurosa[14].
A fórmula aventurosa do Tio Patinhas tem três variantes. A primeira variante é
a da conservação da riqueza; a segunda variante é a da conquista de mais riqueza;
a terceira variante é a competição social com outros capitalistas (geralmente
envolvendo a riqueza). Em termos populares, poderíamos denominá-los “defesa da
propriedade contra os criminosos”, “busca do ouro” e “concorrência
capitalista”.
A fórmula aventurosa do Tio Patinhas tem como eixo central o
dinheiro. Esse é o sol em torno do qual gira Tio Patinhas e seus coadjuvantes.
É em torno do dinheiro que a aventura se desenvolve: manter o dinheiro que já
tem ou conseguir mais, ou ter mais que os outros. Aqui temos a revelação do
valor fundamental por detrás da fórmula aventurosa: o dinheiro, a posse, a
propriedade. O sentido da aventura é a busca do ouro, é isso que faz os
personagens agirem. O objetivo é sempre o mesmo, até quando parece não o ser.
Isso se revela desde o início da história e quando não ocorre, aparece no seu
decorrer. Tio Patinhas vive para o dinheiro. Aqui retomamos o tema do
fetichismo. O dinheiro é o motor da ação do Tio Patinhas. Este vive em sua
função, ao invés de ser o contrário. A descrição abaixo, desde que se entenda
que não é uma característica intencional fornecida por seus criadores, destaca
isso:
É que a criatividade de Patinhas se torna impessoal na
medida em que ele se submete ao querer objetivo representado pela “moeda n0
1”. Nesse processo, submetido ao reinado das coisas, ele se torna agente e não
sujeito da reprodução das coisas e do universo coisificado. Patinhas não é o
senhor do dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem “diz” ao dinheiro o
que deve ser feito, mas é o dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de
todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a sua lei natural que é a
reprodução crescente, incessante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem
atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois está irremediavelmente e
totalmente identificado com ele (MARTINS, 1978, p. 11).
Essa característica do Tio Patinhas se deve à própria
estrutura dos enredos do personagem derivados de sua personalidade e da vida
dos indivíduos reais nos quais ele se inspira. A personalidade do Tio Patinhas
é a do capitalista selvagem, do avarento, como Scrooge de Dickens, no qual o
dinheiro se tornou o objetivo e sentido da vida. Logo, os enredos vão girar em
torno disso. Enredos fora disso seria humanizar demais o personagem e
despersonalizá-lo, descaracterizá-lo. E a vida de um capitalista, retirando os
exageros, gira em torno disso.
Assim, a fórmula aventurosa do Tio Patinhas pode ser
resumida em “tudo por dinheiro”. Seria até possível dizer que o dinheiro é mais
protagonista do que o Tio Patinhas, mas isso seria exagero. No fundo, nós temos
o agente das histórias, Tio Patinhas, e o elemento passivo, o dinheiro. O
agente gira em torno da coisa, mas é ele que dá vida as histórias em
quadrinhos. O indivíduo (Tio Patinhas) é o agente e a coisa (dinheiro) é a
motivação. Um exerce e o outro motiva a ação. Ele demonstra o que, no âmbito
teórico, poderia ser chamado de irracionalidade do capital (como relação
social) gerando a irracionalidade dos capitalistas[15].
A fórmula aventurosa da conservação da riqueza se manifesta
quando Tio Patinhas tem seu caixa-forte, sua moedinha número 01, seu dinheiro,
etc., ameaçados por criminosos. É nesse momento que surge seus principais
inimigos e envolvidos em suas aventuras. Os eternos perdedores (pois “o crime
não compensa”, como diria Batman, outro capitalista) Irmãos Metralhas são os
principais e mais constantes inimigos do velho muquirana. A segunda grande
ameaça para Tio Patinhas é a Maga Patolójica, uma bruxa que almeja roubar a sua
moedinha número 01. O enredo apresenta sempre a mesma fórmula: os bandidos
(Irmãos Metralha, Maga Patalójica, etc.) inventam alguma artimanha para roubar
o Tio Patinhas, algumas vezes conseguindo, e ele se defende e geralmente com
apoio de coadjuvantes (Pato Donald, sobrinhos do Donald, Peninha, Prof. Pardal,
polícia, etc.), acaba derrotando seus inimigos e preservando (ou recuperando)
sua riqueza (seja dinheiro ou a moedinha número 01). A fórmula é utilizada, às
vezes, de forma criativa, tal como em Eu
Quero Plutônio (TIO PATINHAS, 2013), quando o Tio Patinhas engana os Irmãos
Metralha para fazerem o trabalho de estivadores em greve.
Nesse contexto, a primeira variante da fórmula aventurosa
aponta para a defesa da propriedade privada. Tio Patinhas é o proprietário e
está dentro da lei, tendo ao seu lado o aparato policial. Os Irmãos Metralhas e
outros bandidos são criminosos que desrespeitam a propriedade privada, através
do roubo e outros atos ilegais. O dinheiro aparece como a principal propriedade
privada. Isso é muito semelhante ao autor das primeiras histórias do Tio
Patinhas, Carl Barks. A mentalidade burguesa de Barks é evidente, inclusive por
suas próprias afirmações apresentadas em entrevistas: “em entrevista concedida
a Donald Aut, Barks afirma que gasta tempo aperfeiçoando as histórias motivado
apenas pelo dinheiro. ‘Meu objetivo era esticar meus ganhos por muitos anos
fazendo o trabalho mais vendável que eu podia’” (apud. SANTOS e CARDOSO, 2014,
p. 44).
A segunda variante da fórmula aventurosa é da conquista da
riqueza. Centenas de histórias poderiam ser citadas que manifestam a aventura
baseada na “busca do ouro”, embora esse último também possa ser dinheiro,
minério, petróleo, etc. A primeira aparição de Tio Patinhas, como coadjuvante
do Pato Donald, em A Christmas Carol,
de 1947, já revela o caráter do personagem e na aparição seguinte, em 1950,
aparece numa caça ao tesouro. Nessa variante, ele se confunde com aspectos da
história dos Estados Unidos:
As aventuras do Tio Patinhas encaixam-se perfeitamente
na trajetória recente dos Estados Unidos e no arquétipo de sua gente, com
situações que perpassam a obra do cartunista criador do personagem. Carl Barks,
a qual ainda hoje influencia os quadrinhos Disney. Temos as atitudes do self made man, com princípios de egoísmo
e individualidade – o que justifica a vida de classe média do Donald e dos
patinhos trigêmeos, que não se beneficiam dos louros das vitórias do tio
muquirana. Há aqui a presença do Mito da Fronteira, que contempla a história da
conquista do Oeste. A fronteira (frontier)
é uma linha imaginária que separa o mundo civilizado do selvagem (wilderness) – lugar onde a lei não
existe e a natureza domina o espaço de inúmeras trasmas de ficção. Isso é tão
forte no imaginário dos americanos que eles costumam chamar as fronteiras
físicas de outro nome: borders em vez
de frontiers (PEGORARO, 2013b, p. 7).
Assim, as aventuras se desenvolvem na Asia, África, América
Latina, Lua, etc. Onde há riqueza (sob qualquer forma), Tio Patinhas aparece. O
título das histórias demonstram isso: A
Conquista de Patópolis, O Caubói das Terras Malditas, O Senhor do Mississipi, O
Rei da Colina de Cobre, O Tesouro de Montezuma, etc. Assim, temos o agente
(“Senhor”, “Rei”, “Caubói”, etc.), alguém “superior”, o “herói” na busca da
fortuna, e o objetivo: cobre, tesouro, riqueza, etc., que deve ser
“conquistada”, a ação do agente. A conquista do ouro se revela na biografia do
Tio Patinhas e é uma variante de sua fórmula aventurosa, se misturando com a
“vocação” norte-americana, tanto interna (a conquista do “velho oeste”) quanto
externa (o imperialismo). Certamente, foi este elemento que permitiu o vínculo
imediato entre Tio Patinhas e Imperialismo (CIRNE, 1981; DORFMAN E MATTELART, 1980).
Muitas vezes, em Disney, o discurso político (a
serviço da direita americana) será direto. Um exemplo já clássico: a historieta
O Tesouro de Marco Polo (in Edição Especial de O Pato Donald, num. 780, Abril,
outubro de 1966). Como se dá o seu enredo? Antes de mais nada, sendo construído
sobre o personagem Soja Pão, camponês estereotipado do Vietbang (!) que foge em
direção a Patópolis para não ser convocado pelo exército de Ming Mao (!). E
quem é este “famigerado” Ming Mao? Vejam bem: um “guerrilheiro rebelde que está
querendo ser o ditador do Vietbang”. Os bandidões da estória são exatamente o
general Ming Mao e o capitão Ching, ridicularizados através de um visual
grotesco. No fim da aventura, os próprios guerrilheiros chegam “à conclusão de
que seria ótimo para o Vietbang ter um rei de novo – como nos velhos bons tempos!”
(os grifos são nossos [de Moaci Cirne]). Vã esperança! (CIRNE, 1982, p. 44).
Mao Tse-Tung retratado por
Carl Barks, O Tesouro de Marco Polo,
1966.
O que Cirne revela aqui é que a propaganda ideologêmica (o
que significa intencionalmente) via histórias em quadrinhos acontece
efetivamente (“discurso político direto”). A imagem de Ming Mao, no fundo uma
referência a Mao Tse-Tung, apoiador dos rebeldes vietnamitas (Vietnam, que
aparece como “Vietbang”) misturado com referências a cidade de Maoming (o nome
fica invertido) e à dinastia Ming, na versão portuguesa. Isso apenas mostra a
versão mais nítida de uma presença existente nas histórias em quadrinhos de Tio
Patinhas, pelo menos na época que era produção de Carl Barks[16].
Esse quadrinista que às vezes fazia “discurso direto”, ou melhor, propaganda
ideologêmica, apenas manifestava seus valores e concepções de forma nítida e
intencional. A sua concepção conservadora[17]
se manifestou em outras histórias:
A visão conservadora do artista pode ser percebida em
várias narrativas que realizou com os personagens Disney. Um exemplo é a
história O elemento mais raro do mundo,
criada em 1956: depois de comprar em um leilão uma substância desconhecida, Tio
Patinhas precisa impedir que ela caia nas mãos dos agentes de Brutópia (uma
alusão à União Soviética, rival dos Estados Unidos durante a Guerra Fria), que
têm a aparência do líder russo Leonid Brejnev. Os espiões de Brutópia voltariam
em outras aventuras dos patos, como Quando
a dancite atacou Patópolis, de 1953, e A
caixinha preta, de 1964 (SANTOS e CARDOSO, 2014, p. 44).
Assim, a fórmula aventurosa em sua variante de conquista da
riqueza apresenta não apenas a “marcha para o oeste” americano, a conquista
colonial, mas também a dominação imperialista nas regiões caracterizadas pelo
capitalismo de Estado (vulgo “socialismo real”).
A terceira variante da fórmula aventurosa é a da competição
intercapitalista, na qual Tio Patinhas estabelece concorrência com outros
capitalistas, especialmente Pão Duro Mac-Mônei e Patacôncio (cujo nome original
era Rockducker, paródia de John Rockfeller). Tal como nos demais casos, o
protagonista sempre sai vitorioso e Patacôncio, o rival sempre derrotado, come
sua cartola, tal como sua promessa. A
Terra da Lua, entre milhares de exemplos, mostra esse processo. Nessa
história, o noticiário anuncia que a terra existente na lua permite um
desenvolvimento extraordinário das plantas, numa época de elevação exorbitante de
preços das frutas e verduras. Tio Patinhas resolve ir para a lua para pegar
terra e usar em suas plantações, pois os adubos estão caros demais. Para isso
planeja construir um foguete e o Prof. Pardal o faria. No entanto, Patacôncio
sequestra o cientista e Tio Patinhas tem que construir com Donald e seus
sobrinhos, o próprio foguete. Ele chega tarde e Patacôncio consegue
pioneiramente a terra da lua. O que ocorre depois é que Pardal, já libertado,
descobre que tal terra capta e aumenta a luz do sol. Patacôncio acaba jogando a
terra em suas plantações e perde tudo, tendo a proposta do Tio Patinhas de
comprar sua terra. Após vender e achar que estava ganhando, Patacôncio descobre
o uso que Tio Patinhas deu para a terra adquirida: espalhou por suas praias
para atrair turistas durante todas as estações.
Aqui temos novamente uma estratégia de legitimar o
capitalismo, pois o concorrente desleal sempre é derrotado. A terceira variante
da fórmula aventurosa do Tio Patinhas complementa as demais, legitimando a
acumulação de riquezas e jogando o problema do capitalismo para indivíduos e
para a moral. Às vezes, duas ou três variaentes, podem aparecer em uma mesma
história. Esse é o caso de uma história recente, A Batalha das Redes Sociais, na qual Tio Patinhas enfrenta os
Irmãos Metralha e seu rival, Patacôncio, ou seja, através do uso da variante 01
e 03 da fórmula aventurosa. A história apresenta a competição entre Tio
Patinhas e Patacôncio por maior popularidade no faceduck (paródia do facebook),
sendo que o segundo sai na frente, já que o primeiro considerava as redes
sociais inúteis, até descobrir seu potencial financeiro. A competição se
desenrola entre ambos, até que os Irmãos Metralha atraem Tio Patinhas para uma
negociação com Richard Money, mas era uma armadilha, ficando os dois
empresários sob domínio dos criminosos. Patacôncio seguia Tio Patinhas e usando
a internet avisa a polícia que os salva e prendem os Irmãos Metralha. Nesse
momento, Richard Money e Tio Patinhas descobrem a afinidade de não gostar das
redes sociais e do primeiro não querer negociar com Patacôncio, o mais popular
no faceduck. Novamente Patacôncio perde e volta a comer sua cartola. Assim, a
fórmula é novamente usada, apesar do tema contemporâneo das redes sociais. Outros
exemplos poderiam ser citados, mas é suficiente para mostrar a fórmula
aventurosa e suas variantes.
Tio Patinhas: Tema contemporâneo,
fórmula antiga.
Considerações Finais
A síntese de nossa discussão aponta para a percepção de que
Tio Patinhas é um personagem que reproduz a mentalidade dominante, os valores
burgueses. É um personagem axiológico, ou seja, que materializa uma determinada
configuração dos valores dominantes. O dinheiro é o valor fundamental por
detrás das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. Além disso, a rejeição do
personagem não expressa uma politização ou recusa do capitalismo e sim dos seus
excessos, do capitalismo “selvagem”. O capitalismo selvagem, no entanto, apenas
revela, pelo exagero, o que é comum no capitalismo em geral na sua essência. A
fórmula aventurosa, em suas três variantes, reforça esse processo de
legitimação do capitalismo.
Nesse sentido, as análises de Dorfman e Mattelart (1980),
Martins (1978) e Cirne (1982) estão corretas, retirando o caráter intencional e
maquiavélico que encontram no processo criativo de tais histórias em quadrinhos.
Em alguns momentos esse caráter realmente existe e se manifesta, mas nem
sempre. Na maioria dos casos, é apenas um desenvolvimento espontâneo do
personagem, provocado pela reprodução espontânea dos criadores de seus valores
e concepções, bem como pelo modus operandi de comicidade e fórmula aventurosa,
que exercem uma função reprodutiva devido ao espaço social no qual se
desenvolve, servindo, às vezes inintencionalmente, às vezes intencionalmente,
para a legitimação do capitalismo.
Referências
ALENCAR, Marcelo. O Melhor da Disney – as Obras Completas de Carl Barks. Vol. 23, São
Paulo: Abril Cultural, 2006.
ALMEIDA, Wilson
F. R. O Cinema em Dickens: A Christmas Carol e as considerações de Sergei
Eisenstein. Darandina Revisteletrônica
– Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFJF, vol. 5, num. 02, 2012.
CIRNE,
Moacy. Uma Introdução Política aos
Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
DORFMAN,
Ariel e MATTELART, Armand. Para Ler o
Pato Donald. Comunicacao de Massa e Colonialismo. 2ª edição, Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980.
FROMM, Erich. Ter ou Ser? 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.
MARTINS, José de
Souza. Tio Patinhas no Centro do Universo. In: Sobre o Modo Capitalista de Pensar. São Paulo: Hucitec, 1978.
MARX,
Karl. O Capital. 3ª edição, 5 vols.
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
PEGORARO, Celbi
Vagner. Grandes Emprendimentos. In: Tio
Patinhas 50 anos da Revista. Vol. 2. São Paulo: Abril Cultural, 2013b.
SANTOS, Roberto
Elisio e CARDOSO, João Batista Freitas. Experimentação e autoralidade nos
quadrinhos comerciais: uma análise semiótica da obra artística de Carl Barks. Comunicação & Inovação, São Caetano
do Sul, v. 15, n. 28:(41-49) jan-jun 2014.
VIANA,
Nildo. A Predominância Valorativa em O Racista, de Mortadelo e Salaminho. In:
VIANA, Nildo (org.). Os Valores nas
Histórias em Quadrinhos. Brasília: Kíron, 2015.
VIANA,
Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna.
Brasília: Thesaurus, 2007.
VIANA,
Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O
Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
Revistas
MANUAL
DO TIO PATINHAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
OS
GRANDES NEGÓCIOS DO TIO PATINHAS. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
TIO
PATINHAS. 40 Anos da Revista. Vol. 01, São Paulo: Abril Cultural, 2003.
TIO
PATINHAS. 40 Anos da Revista. Vol. 02, São Paulo: Abril Cultural, 2003.
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PATINHAS. 50 Anos da Revista. Vol. 01, São Paulo: Abril Cultural, 2013a.
TIO
PATINHAS. 50 Anos da Revista. Vol. 02, São Paulo: Abril Cultural, 2013b.
TIO PATINHAS.
Num. 578, São Paulo: Abril Cultural, 2013.
TIO
PATINHAS. Num. 15, São Paulo: Abril Cultural, 1966.
*
Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
[1] O
enredo é a forma narrativa que desenvolve um universo ficcional (VIANA, 2013) e
o enredamento é a forma como um elemento do universo ficcional se insere no
enredo. O enredamento de um personagem mostra como é a dinâmica de sua ação e,
por conseguinte, o seu significado no universo ficcional.
[2]
Dorfman e Mattelart (1980, p. 16) citam um jornal que faz a seguinte descrição:
“Tio Patinhas é um avaro milionário de qualquer país do mundo que entesoura
dinheiro e tem um infarte cada vez que alguém tenta tomar-lhe um centavo; mas
aquele que, apesar de tudo, costuma mostrar rasgos de humanidade que o redimem
diante de seus sobrinhos-netos”.
[3] Em
O Capital, Marx (1988) foi o autor
que mais desenvolveu a teoria da acumulação de capital, como elemento essencial
do modo de produção capitalista, o que muitos desconsideram por ler apenas o
volume 01 de sua obra. A extração de mais-valor (trabalhada exaustivamente no
volume 01) gera a apropriação capitalista sob a forma de renda (para o consumo
dos capitalistas) e capital (cujo destino é o reinvestimento na produção) e
este último elemento é o que é o fundamental. A renda dos capitalistas em
contraste com os salários dos operários e a pobreza de outros setores da
população pode gerar indignação, mas o fundamental é que o capital é elemento
de sua reprodução permanente, pois significa reinvestimento, aumento de capital
fixo e variável, que, uma vez concretizado, gera mais lucro e mais capital, e
assim sucessivamente, numa eterna reprodução cada vez mais ampliada. Isso gera,
no decorrer histórico, a centralização e concentração do capital, os
oligopólios, inicialmente nacionais e depois transnacionais. Nesse sentido, a
ampliação do capital é uma característica essencial do capitalismo e aspecto
fundamental de sua dinâmica de reprodução.
[4]
Dorfman e Mattelart afirmam que os operários estão presentes nas histórias em
quadrinhos do Tio Patinhas: “O imaginário infantil é a utopia política de uma
classe. nas histórias em quadrinhos de Disney jamais se poderá encontrar um
trabalhador ou um proletário, jamais alguém produz industrialmente algo. Mas
isto não significa que esteja ausente a classe proletária. Ao contrário: está
presente sob as máscaras, como selvagem-bonzinho e como lumpencriminoso. Ambos
os personagens destroem o proletariado como classe, mas resgatam desta classe
certos mitos que a burguesia tem construído desde o princípio de sua aparição e
até seu acesso ao poder, para ocultar e domestricar seu inimigo, para evitar
sua solidariedade e fazê-lo funcionar fluidamente dentro do sistema,
participando de sua própria escravização ideológica” (1980, p. 69). A
interpretação dos autores parece remeter para a ideia de que a criação do
universo ficcional Disney foi um plano intencional e maquiavélico dos seus
produtores para servir à dominação burguesa. Interpretação simplista e pouco
realista. No fundo, o que os criadores do universo ficcional Disney fazem é,
inintencionalmente, reproduzir a sociedade capitalista, seus valores, suas
representações, sem criticidade por não se opor a ela e compartilhando a sua mentalidade
dominante, algo espontâneo e não intencional e maquiavélico. Esse é o caso de
Martins (1978), que também apresenta uma concepção segundo a qual o universo
ficcional do Tio Patinhas seria uma manifestação coerente e intencional do
mundo burguês, sendo que sua análise é mais atribuição de significado do que
interpretação rigorosa do mesmo.
[5]
Segundo Miranda, teve uma época em que foi também um industrial, mas superada e
substituída pelo magnata “operando no mundo financeiro” (MIRANDA, 1978, p.
148). Em algumas histórias aparecem proletários, geralmente com significado
secundário. Esse é o caso da história Administração
Científica (TIO PATINHAS, 1989), na qual se narra a queda de produtividade
de uma empresa e Tio Patinhas contrata um especialista em administração de
empresas (Peninha...) para resolver o problema. Apesar das inovações
efetivadas, não há aumento de produtividade e Peninha e Donald precisam entrar
na linha de montagem para descobrir o que está ocorrendo e descobrem que se
trata de uma armação dos Irmãos Metralha para roubar o Tio Patinhas. Os
operários, na história, aparecem como os desmotivados que se tornam motivados
por inovações formais (a fábrica se torna colorida e com desenhos nas paredes,
etc.), ou seja, uma representação dos operários como idiotas, para o leitor
crítico, ou uma representação da felicidade através da aparência das coisas,
para o leitor acrítico.
[6]
“Eis aqui o mito básico da mobilidade social no sistema capitalista. É o
self-made man. Igualdade de oportunidades, democracia absoluta, cada criança
parte do zero e acumula o que merece. Donald malogra nestas escaladas do êxito
a cada instante. Todos nascem com a mesma possibilidade de subida vertical, por
meio da competência e do trabalho (sofrimento e aventura, e a única parte
ativa, a genialidade). Tio Patinhas não leva nenhuma vantagem ao leitor a
respeito do dinheiro, porque esse dinheiro não serve e é bem mais um
impedimento, como um filho cego e aleijado” (DORFMAN e MATTELART, 1980, p.
102). Existem outras versões da origem de sua fortuna, mas a da origem da
moedinha número 01 ganha força simbólica devido seu papel nas histórias em
quadrinhos do Tio Patinhas.
[7]
Essa é a tendência, tal como se pode observar através da pesquisa realizada por
Miranda (1978).
[8] A
identificação momentânea é um processo que ocorre com qualquer personagem de
universo ficcional, pois é através do protagonista que se desenvolve a história
e por isso é por suas lentes que o leitor (de quadrinhos e literatura),
assistente (de filme), etc. desenvolve sua relação com o mesmo. A identificação
permanente é extraficcional, o que remete para os processos psíquicos de
identificação, no qual o personagem aparece como modelo/objetivo ou semelhante.
Existem casos em que ambos os processos ocorrem simultaneamente, mas também em
que há contradição entre ambos, o que significa que tão logo termine o acesso
ao universo ficcional, a identificação seja superada.
[9]
Obviamente que isso depende do tipo de elemento rocambolesco usado, bem como de
qual é o público (diferenças culturais podem tornar incompreensível certos
acontecimentos ou falas, por exemplo).
[10]
Esse é o caso de histórias em quadrinhos como Mortadelo e Salaminho, Lucky
Luke, Asterix. O uso recursivo do rocambolesco em Mortadelo e Salaminho, por
exemplo, pode ser notado nos disfarces de Salaminho, pela forma como aparece.
Da mesma forma, a violência é usada repetidamente, mas continua a manter sua
graça por aparecer sob forma criativa derivada do contexto e expressões dos
personagens. Afirmações inesperadas, como contar piada racista para um negro, é
outro exemplo e retirado do contexto e modus
operandi de comicidade, pode parecer expressão de racismo, o que é um
equívoco interpretativo (cf. VIANA, 2015).
[11]
“Uma demonstração da independência das centrais de produção foi dada pela
Itália, onde os conflitos da família Pato, andaram assumindo contornos de uma
violência aparentemente incompatível com os ‘ideais disneyanos’. Afinal, após
uma cena em que Patinhas metralhava o Pato Donald, o estúdio californiano resolveu
protestar. Mas a editora Mondadori, responsável pela criação italiana,
respondeu simplesmente que seu público preferia dessa maneira. E episódio
encerrado. Há também notícia (embora não tenhamos conseguido localizar as
estórias dessa série) de que na Alemanha realizou-se a politização dos Irmãos
Metralha que aderiram ao marxismo, sem que Burbank pudesse fazer mais do que
lamentar a orientação dos produtores germânicos” (MIRANDA, 1978, p. 131-132).
[12]
O conceito de ideologema e sua manifestação nos quadrinhos pode ser visto em
Viana (2013).
[13]
Segundo Carl Banks, o criador do personagem, o escritório da Western
Publishing, responsável pela produção das histórias em quadrinhos de Walt
Disney, queria ele produzisse uma história de natal e ele afirma que: “à
procura de um elenco, comecei a pensar no grande conto natalino de [Charles]
Dickens a respeito de Scrooge. Então, fui ladrão o bastante para surrupiar
algumas daquelas ideias e, assim, dei um tio rico ao Donald” (apud. ALENCAR,
2013, p. 11).
[14]
Apresentamos a ideia de fórmula anteriormente para explicitar a crítica social
apresentada por Al Capp em sua criação ficcional de Ferdinando (VIANA, 2013).
Uma fórmula, no caso das histórias em quadrinhos, é uma forma convencional (e
por isso repetitiva) de exprimir um determinado enredo. A fórmula de Al Capp é
crítica, graças ao seu objetivo de apresentar crítica social. No caso do Tio
Patinhas, a fórmula é aventurosa, ou seja, uma forma convencional de exprimir
um enredo que narra determinadas aventuras. Isso é mais adequado para uma
produção coletiva e massiva (tendo diversos criadores em vários países), pois
gera um esqueleto que os roteiristas e desenhistas colocam a “carne” e lhe dá
vida, mas sempre com base nessa anatomia da fórmula. O exemplo clássico (e mais
pobre) de uso de fórmula, no caso de séries de TV, é o dos seriados japoneses
ou de inspiração nos mesmos: Jaspion, Changeman, Power Rangers, etc. A fórmula
é a vida cotidiana dos protagonistas sendo abalada por ameaça dos inimigos
(“monstros”), o que reúne o grupo ou faz o herói agir, derrotando o monstro (e
seus aliados coadjuvantes), que se torna gigante, assim como os heróis, sendo
derrotado novamente. Quem assistiu um, assistiu todos, pois só muda a forma
(aparência do monstro, conversas, etc.). A história tem um enredo repetitivo
que revela sua fórmula, que é o esqueleto da mesma, sendo que o resto é
“recheio”, o que se diferencia mas não tem grande importância.
[15]
No plano da mentalidade, isso gera o predomínio do ter sobre o ser, já
tematizado por Fromm (1987).
[16]
Sobre o caso de O Tesouro de Marco Polo,
ele mesmo afirma: “Eu estava
furioso como todo mundo com as idiotices que as pessoas aprontavam em
diferentes partes do mundo, mas o que podia fazer a respeito? Eu não tinha como
contratar um exército para ir lá e dar uma lição nelas. Só podia ver TV e
esperar notícias melhores. Eu achava que a pessoas eram contra o conflito no
Vietnã e que precisávamos deter os comunistas ou eles tomariam conta de tudo.
Então tentei fazer graça com a guerra. Em O Tesouro de Marco Polo, procurei
trazer as coisas de volta ao seu estágio anterior, fazendo as pessoas pensarem
nos bons tempos que antecederam todo o ódio e os combates em tempo integral. A
história foi escrita numa época em que eu andava sem ideias e precisava me
esforçar um bocado para desenvolver roteiros sobre assuntos que não conhecia a
fundo”. É claro que o Homem dos Patos se saiu bem, embora a aventura tenha um
tom diferente das demais de Tio Patinhas. Mas uma guerra não é um tema fácil de
se explorar. O desenho no alto da página reproduz o esboço de Barks rejeitado
pelos editores. A chuva de balas e o fuzil na mão do vietcongue justificam a
recusa. Já a capa aprovada (ao lado) apela para o humor. O Tesouro de Marco
Polo é uma trama polêmica mesmo nos dias de hoje. Ela sofreu uma atenuante em
republicações recentes nos Estados Unidos: a passagem em que o guerrilheiro
cita a má qualidade dos relógios fabricados no Paraíso dos Trabalhadores – uma
óbvia alusão à extinta União Soviética – dá lugar a uma piada sobre as
Indústrias Patinhas. Neste volume, a tradução respeita o texto original do
quadrinista (ALENCAR, 2006, p. 129).
[17]
De nossa perspectiva, que fique claro, o seu conservadorismo não se revela na
crítica dos regimes ditatoriais do “socialismo real” (capitalismo de Estado) e
sim na defesa da propriedade privada, do dinheiro como valor fundamental, do
imperialismo norte-americano, etc.
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Artigo publicado origialmente na Revista Nona Arte:
http://www2.eca.usp.br/nonaarte/ojs/index.php/nonaarte/article/view/155/147
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Artigo publicado origialmente na Revista Nona Arte:
http://www2.eca.usp.br/nonaarte/ojs/index.php/nonaarte/article/view/155/147
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