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quarta-feira, 31 de julho de 2019

MEMÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS



MEMÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS

Nildo Viana

Resumo:
Os movimentos sociais ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O desenvolvimento da compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido de desbravar novos aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre memória social e movimentos sociais. A memória social é um tema sociológica também antigo, embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e que remete ao problema dos grupos e classes sociais e seus discursos, produzidos socialmente, sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua vez, são perpassados por lutas. Os movimentos sociais, com toda sua complexidade, divisões, mutações, também precisam resgatar sua memória e há uma luta nesse processo de recordação das suas ações. O nosso tema é, por conseguinte, a relação entre memória social e movimentos sociais. O objetivo é analisar o significado da memória social para os movimentos sociais e suas lutas. Para efetivar tal análise, utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da categoria de totalidade, essa relação. Utilizaremos, como ilustração, o caso da rebelião estudantil de maio de 1968, para mostrar a luta em torno da memória. Os resultados da análise apontam para a percepção da luta em torno da memória e do caráter seletivo das recordações a partir de distintas perspectivas de classe. O caso do maio de 1968 em Paris mostra como esse momento de radicalização do movimento estudantil é recordado sob diversas formas, dependendo de que o interpreta.

O tema que abordaremos é a relação entre memória social e movimentos sociais. O objetivo é analisar o significado da memória social para os movimentos sociais e suas lutas. Os movimentos sociais ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O desenvolvimento da compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido de desbravar novos aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre memória social e movimentos sociais. A memória social é um tema sociológico também antigo, embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e que remete ao problema dos grupos e classes sociais e seus discursos, produzidos socialmente, sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua vez, são perpassados por lutas.
Para efetivar tal análise, utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da categoria de totalidade, essa relação. O método dialético foi desenvolvido por Marx (1983; 1988) e retomado por outros autores (KORSCH, 1977; LUKÁCS, 1989). O método dialético é uma ferramenta intelectual para reconstituir o real no pensamento (VIANA, 2007), buscando superar o ponto de partida natural (a “intuição”, a consciência imediata dos fenômenos) através do processo de abstração, visando descobrir as determinações dos fenômenos pesquisados, que aparece no final da pesquisa como concreto-determinado (MARX, 1983). Nesse sentido, é preciso destacar que o fenômeno é sempre uma totalidade, inserida numa outra totalidade. As ideias, por exemplo, fazem parte da totalidade que é a sociedade e, por isso, não são meros epifenômenos, são também determinações do processo histórico (KORSCH, 1977). Assim, os fenômenos devem ser analisados como totalidades e envolvidas em totalidades mais amplas. Isso significa que, para o método dialético, os fenômenos não podem ser isolados, separados da totalidade. O uso do método dialético para analisar a relação entre memória social e movimentos sociais aponta para compreender estes dois fenômenos como totalidades inseridas na totalidade da sociedade capitalista e, por conseguinte, sendo afetados por ela.
Assim, é preciso entender os conceitos de memória social e movimentos sociais para poder avançar no processo analítico da relação entre esses dois elementos. A questão da memória é discutida em diversas ciências, recebendo destaque especial na psicologia e na filosofia, e acabou se inserindo nas análises sociológicas através da ideia de uma “memória coletiva” ou “memória social”, bem como na historiografia. Assim, os estudos pioneiros de Bergson (1999), Blondel (1960) e outros, abriram espaço para as posteriores discussões sociológicas sobre memória coletiva ou social (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1995; SANTOS, 2003; FENTRESS; WICKHAM, 1994; VIANA, 2006).
Para avançar nessa discussão, julgamos necessário realizar a distinção entre memória individual, memória social e memória coletiva (VIANA, 2019a). A memória individual, em nossa concepção, é uma consciência latente, ou seja, uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade, que é ativada pela consciência, que realiza uma evocação de lembranças. Em outras palavras, é o conjunto de lembranças gravadas na mente humana e que são recordadas de acordo com as necessidades e mecanismos de seleção gerado por ela. A memória social é o conjunto de lembranças (relativas, obviamente, ao passado) existentes na sociedade, e expressas na cultura, ou seja, no conjunto de produções intelectuais de uma determinada época, bem como nos bens materiais (construções, objetos, etc.), indivíduos (quando exteriorizam sua memória individual ou quando estão vivos e são portadores de memória), meio ambiente em sua relação com a sociedade, etc. A memória coletiva, por sua vez, já aponta para a memória de classes e grupos sociais. Ela se refere ao conjunto de lembranças que são dessas classes e grupos[1]. O nosso foco aqui será a memória social, ou seja, ao processo mais amplo a nível global de uma sociedade.
Outro conceito importante para nossos objetivos é o de movimentos sociais. Eles são compreendidos aqui como sendo “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2014; VIANA, 2016). Existem diversas outras definições de movimentos sociais (ALONSO, 2009; GOHN, 2002; VIANA, 2016), mas não poderemos apresentá-los por questão de espaço. Essa concepção de movimentos sociais aponta, também, para a diferenciação entre grupos sociais e movimentos sociais. Os grupos sociais geram movimentos sociais, mas nem todos os indivíduos de um grupo social participam do movimento social gerado por ele. O movimento negro é um movimento social do grupo social composto pelos indivíduos negros, mas apenas os seus ativistas da causa negra fazem parte do movimento. Outro elemento importante é distinguir o movimento social de suas ramificações. O movimento negro gera um conjunto de organizações, tendências, etc., tais como a Frente Negra, o Movimento Negro Unificado, o Movimento Negro Socialista, entre diversas outras organizações. Essas organizações não são, cada uma, um movimento negro e sim ramificações dele.
Os movimentos sociais são, portanto, complexos, marcados por divisões internas, subdivisões, distintas tendências, concepções (ideologias, doutrinas, representações, etc.). A questão da memória assume um significado importante para os movimentos sociais. A memória faz parte do processo de resgate das lutas, conquistas, experiências, por parte do movimento social, gerando um conjunto de elementos que reforçam a luta. Assim, a figura de Zumbi dos Palmares, no caso do movimento negro, assume importância, bem como os Quilombos (e surgiu, baseado na evocação de lembranças dessa forma de resistência ao escravismo colonial, a proposta do “quilombismo”).
A memória coletiva nos movimentos sociais não só resgata a história de um grupo social e suas lutas, mas é um elemento de aglutinação e reforço da luta deste grupo, entre outros significados que adquirem no processo de lutas sociais. Porém, a complexidade dos movimentos sociais se manifesta em suas divisões e tendências. O movimento feminino, por exemplo, pode resgatar personagens do passado, mulheres que se destacaram política ou intelectualmente, ações ou organizações, mas cada resgate é uma opção e uma posição que reforça determinada tendência. Uma coisa é resgatar Sylvia Pankhurst, outra coisa é resgatar o sufragismo. O resgate do sufragismo por um setor do movimento feminino significa uma posição política de crença na democracia representativa, tática de uso do processo eleitoral e um conjunto de valores e concepções. O resgate de Sylvia Pankhurst (filha e irmã de duas das mais destacadas representantes do sufragismo, com as quais rompeu política e pessoalmente) já aponta para a inseparabilidade entre lutas femininas e lutas proletárias e recusa do parlamentarismo. Isso quer dizer que há, no interior dos movimentos sociais, uma luta em torno da memória e que cada recordação ou cada esquecimento, é uma seleção que tem um significado político. Esse significado político, por sua vez, se insere no conjunto da sociedade, estando envolvido nas lutas de classes, concepções políticas e ideológicas, entre outros processos que permitem sua explicação.
A memória social é, por conseguinte, palco de lutas. Nesse contexto, podemos colocar a questão das formas de acessar a memória social. A primeira forma é a institucionalizada, que é realizada, na sociedade capitalista, pelo aparato estatal. Este, através de instituições (como as voltadas para preservação do patrimônio histórico, museus, etc.) e datas comemorativas, entre outras formas, realiza uma rememoração do passado de acordo com seus interesses, tanto os gerais (reprodução do capitalismo) quanto mais concretos (governos, etc.). O capital comunicacional (grandes redes de TV, Rádio, grandes jornais, etc.) é outro determinante na rememoração hegemônica na nossa sociedade. Por outro lado, os intelectuais, com destaque para os historiadores, também são responsáveis pela versão do passado que é interiorizada nas memórias individuais[2]. Desta forma, temos uma versão da história que é, geralmente, a história dos vencedores (BENJAMIN, 1994).
A luta em torno da memória ocorre via rememoração. Rememorar é o ato de lembrar o passado. A rememoração é um processo seletivo, no qual se resgata/recupera da memória social (o conjunto de lembranças existentes numa determinada sociedade e época) aquilo que é de interesse de quem rememora. Isso ocorre através da interiorização que os indivíduos fazem da memória social, ou seja, através de sua consciência (determinada por sua personalidade) ele resgata/recupera acontecimentos, ideias, etc., e o reforça sua reprodução social. Esse indivíduo, estando em determinadas instituições, tende a fazê-lo de acordo com os interesses desta, realizando a sua recuperação. A rememoração também ocorre quando o indivíduo exterioriza sua memória individual, ou seja, torna público suas recordações pessoais[3]. Nesse momento, tais recordações tornam-se parte da memória social.
A rememoração gera versões da história ou sua reconstituição. A reconstituição da história é uma rememoração que se mantém, em sua essência e totalidade, fiel aos acontecimentos. As versões da história, por sua vez, são invenções memoriais, intencionais ou não. Assim, percebemos que a rememoração pode assumir várias formas. Ele pode ser um resgate da história, quando extrai da memória social aquilo que é verdadeiro, ou pode ser uma recuperação, ou seja, readquirir a posse da memória, que foi perdida[4]. Uma outra forma é a apropriação, na qual um acontecimento, indivíduo, etc. é apropriado por uma concepção, ideologia, etc. A apropriação da memória é um processo que muitas vezes é realizado sob forma inintencional, mas também pode ser intencional. Ela é, independente da forma, uma deformação, uma falsificação da história, mais ou menos intensa, dependendo de quem o faz, quais objetivos e base apropriadora.
Assim, a luta pela memória se manifesta através da rememoração como resgate e como recuperação, ou seja, a partir da perspectiva burguesa (ou burocrática) e da perspectiva proletária, respectivamente. A perspectiva de classe determina se o que ocorre é resgate ou recuperação, ou, ainda, apropriação. No entanto, é possível desvios, seja pelo motivo de que a tentativa de resgate foi realizado por um revolucionário ambíguo ou num contexto desfavorável (acesso a poucas informações, influência de interpretações deformadoras, etc.), seja por que o agente da recuperação tenha contradições e uma honestidade intelectual que faz retomar os acontecimentos e outras lembranças de forma mais fidedigna.
Esse foi o caso da Comuna de Paris, a primeira experiência histórica de revolução proletária. Artistas como Zola e outros execraram esse acontecimento extraordinária, bem como caluniaram os operários parisienses (VIANA, 2011; LIDSKY, 1971; VALLÉS, 1992), bem como historiadores (PINHEIRO CHAGAS, 1872). Essa não é uma recuperação crítica, na qual se coloca o acontecimento revolucionário como sanguinário e desumano. O domínio do acontecimento foi perdido concretamente, mas idealmente ele é recuperado ao ser execrado. Aqui estamos no reino da mentalidade burguesa manifesta de forma mais cristalina. A forma clássica de recuperação foi realizada por Lênin (1987; VIANA, 2011), na perspectiva burocrática. A Comuna de Paris é elogiada, mas, ao mesmo tempo, criticada. A crítica aponta para a falta de liderança, de decisão, a falta da tomada do poder estatal. Essa ladainha será repetida pelos trotskistas, com seu eterno discurso da falta de “direção revolucionária” (LUQUET, 1968). Por outro lado, a perspectiva proletária se manifestou através de Marx, que não fez apenas apologia, mas mostrou o seu significado revolucionário (VIANA, 2011; MARX, 2011)[5], “a forma política finalmente encontrada de emancipação proletária” (MARX, 2011).
A relação entre memória e movimentos sociais é semelhante. Cada grupo social gera lembranças coletivas, que se conservam ou se perdem com o passar do tempo. Porém, os movimentos sociais são apenas o “grupo em fusão”, o setor ativista dos grupos sociais. Assim, nos grupos sociais temos a exteriorização da memória individual que gera uma memória social que pode ser posteriormente resgatada ou recuperada, bem como outras formas de transmissão memorial, como obras, bens materiais, etc. Alguns ativistas dos movimentos sociais realizam o mesmo processo. Porém, uma grande parte realiza o processo inverso, de buscar interiorizar a memória social a respeito do grupo e do movimento social. No entanto, ano apenas eles fazem isso, pois o aparato estatal, os meios oligopolistas de comunicação, entre outros, também realizam esse processo e geram uma memória social que, posteriormente, pode ser interiorizada pelos grupos ou movimentos sociais. Nesse sentido, a luta pela memória é constante nos movimentos sociais, bem como nos grupos e classes sociais e na sociedade em geral.
A memória de grupos sociais foi pouco pesquisada e pouco rememorada. Além dos estudos de Halbwachs, pouco se tratou disso, tal como Fentress e Wickham, que abordam num item de um capítulo do livro sobre Memória Social, a “memória das mulheres”. A memória dos movimentos sociais já foi um pouco mais trabalhada, seja pelos ativistas, seja pelos pesquisadores. Sader (1995), por exemplo, traz elementos de memória de ativistas dos movimentos sociais, tal como o “Clube das Mães”, uma ramificação do movimento feminino.
O primeiro elemento é entender que memória coletiva de classe se distingue de memória coletiva de grupo. As classes sociais existem a partir da sua posição na divisão social do trabalho e os grupos existem a partir de uma unidade que emerge a partir de diferentes processos, como os corporais, situacionais, culturais. Uma classe social tem uma unidade de interesses diante de outra classe social (MARX; ENGELS, 1982), enquanto que os grupos sociais possuem divisões de interesses, inclusive pela maioria deles ser policlassista[6]. O foco aqui são os movimentos sociais, e por isso vamos abordar mais este caso.
Os movimentos sociais realizam o mesmo processo que o aparato estatal em relação à memória. Eu recordo que, uma vez, conservando com uma amiga militante do movimento negro, a quem solicitei um texto para um jornal de curso de graduação que eu coordenava, sobre a questão da mulher e ela disse: “sim, posso fazer, posso começar com Rosa Luxemburgo”. A lembrança de Rosa Luxemburgo era interessante, mas o motivo de expor minha recordação é que o texto solicitado foi sobre a questão da mulher ou o movimento feminino e não sobre indivíduos e logo emerge uma figura feminina de destaque. Isso revela um procedimento comum que é a criação do memorável.
Os ativistas dos movimentos sociais tendem a querer criar o memorável: indivíduos, acontecimentos, lutas, etc. A criação do memorável é, muitas vezes, acompanhada pela comemoração. Assim como o movimento operário, os movimentos sociais querem rememorar os grandes momentos de sua história, gerando datas comemorativas. O movimento negro brasileiro, por exemplo, recorda Zumbi dos Palmares, produz o “Dia da Consciência Negra” (que é dia 20 de novembro ao invés da data oficial, 13 de maio, “Dia da Abolição da Escravidão”).
A rememoração por parte dos ativistas assume, muitas vezes, a forma de adaptação memorial[7]. Essa adaptação memorial é muitas vezes apologética ou projetiva. A forma apologética se constitui a partir da supervaloração de indivíduos, acontecimentos, ideias, etc. Isso, às vezes, está mais ou menos de acordo com o significado político de determinado indivíduo, mas na maioria das vezes é exagerado. O caso de Che Guevara, santificado por uns e demonizado por outros (MOREIRA, 2019), é um exemplo desse processo, no qual a realidade concreta e os seres humanos reais e históricos, são substituídos por imagens apologéticas. A forma projetiva é aquela na qual os ativistas de hoje, ou com suas concepções atuais, reinterpreta os acontecimentos e ideias a partir da projeção de seus desejos, suas ideias ou teses, etc. Essa adaptação memorial geralmente é, com exceção quando assume a forma projetiva, uma recuperação, mesmo quando feita por ativistas ex-ativistas.
A rememoração das lutas de classes, dos movimentos sociais, entre outros processos, também é realizada pelo aparato estatal, pelas instituições, pelos intelectuais, etc. O intercâmbio entre memória coletiva e memória social é constante. A memória oficial visa recuperar a memória coletiva e inseri-la em sua versão da história. A memória coletiva, muitas vezes, se constitui a partir do resgate de elementos da memória social, realizando sua interiorização ou reinterpretação. Em certos casos, quando ultrapassa os mecanismos recuperadores e as versões deformadoras, é resgate. Isso faz parte da luta pela memória. Vamos abordar os mecanismos recuperadores da memória a seguir, tratando do caso concreto do Maio de 1968.
Após essa breve reflexão sobre a memória coletiva e os movimentos sociais, passamos para a análise de um caso concreto. Utilizaremos, como ilustração o caso da rebelião estudantil de maio de 1968, para mostrar como ocorre concretamente a luta em torno da memória. Quem recorda o maio de 1968 hoje? Por quais motivos e com quais objetivos? E de que forma? Existem análises que focalizam a questão da relação entre movimento estudantil e movimento operário, seja para afirmar que se tratou de uma verdadeira revolução (WOODS, 2016), seja para dizer que a autogestão nas fábricas não passa de um “mito” (PORHEL, 2000). Assim, esse acontecimento histórico pode ser apresentado com uma luta juvenil cuja questão básica era a sexualidade (HOBSBAWN, 1999), como coisa de “estudantes esquerdistas” (NIETO, 1971), ou, ainda, como uma luta reivindicativa que se torna revolucionária (BRINTON, 2018), entre diversas outras formas de rememoração. Assim, as “vidas posteriores” do Maio de 1968 (ROSS, 2008) mostram uma recuperação do movimento por seus adversários no sentido de lhe retirar sua radicalidade e, por outro, aqueles que recordam essa luta para justamente inspirar lutas radicalizadas no presente e para isso realizam o seu resgate.
Essa rememoração do movimento de maio de 1968 via análises sociológicas (TOURAINE, 1970) ou marxistas (VIANA, 2019b), ou através do trabalho historiográfico (HOBSBAWN, 1999), autobiográfico (THIOLLENT, 1998) ou narrativo (BRINTON, 2018) efetivam processos seletivos e possuem impacto na memória social do movimento estudantil atual e das lutas sociais em geral. A sua variedade se reproduz no interior dele, bem como distintos usos. A memória social do Maio de 1968 dos intelectuais expressam distintas perspectivas e por isso apresentam distintas seleções, interpretações, etc. Isso ajuda a recompor a memória social dos ativistas do movimento estudantil atual, pois estes possuem sua memória desse evento histórico a partir das informações e leituras, pois eles não viveram naquela época e não participaram dele. É uma memória fundamentada não na experiência e sim na herança cultural deste acontecimento histórico. Isso significa que os ativistas do movimento estudantil atual, bem como outros (militantes de grupos políticos, ativistas de outros movimentos sociais, etc.), vão selecionar qual dessas rememorações é legítima, verdadeira e isso não será algo homogêneo, pois distintas perspectivas de classe estão na base dessas escolhas.
Assim, observamos que há uma luta em torno da memória do Maio de 1968 e esta é marcada pela seletividade das rememorações a partir de distintas perspectivas de classe, tanto na análise dos intelectuais quanto na recepção de ativistas do movimento estudantil. O caso do maio de 1968 em Paris mostra como um momento de radicalização do movimento estudantil é rememorado sob diversas formas, dependendo de quem o interpreta. Isso ocorre também no caso de outros eventos históricos que possuem importância para outros movimentos sociais. O caso do Maio de 1968, no entanto, se destaca pela importância histórica que teve.
Tão logo se encerra o Maio de 1968, que segundo setores da versão oficial se encerra, “oficialmente”, no dia 30 de maio, e, para outros, somente em fins de junho, enquanto que outros já apontam para uma duração muito mais longa, começa a se apresentar testemunhos e depoimentos[8]. As análises se iniciam durante o próprio acontecimento, como ocorre quase sempre. Elas, posteriormente, tornam-se alvos de análises e interpretações. O encerramento do evento rememorado pode ser acompanhado pela amnésia social, para utilizar linguagem de Jacoby (1977), ou por sua rememoração, que pode assumir, como já colocamos, várias formas. No caso do Maio de 1968, houve um processo ininterrupto de rememoração. Ele se tornou memorável e motivo de comemoração. A cada dez anos, se comemora o maio de 1968. E o curioso é que ele é comemorado por amigos e inimigos, pela memória oficial e por memórias coletivas diversas. É isso que permitiu a denúncia das vidas posteriores do Maio de 1968 (ROSS, 2008).
A limitação de “Maio” ao mês de maio tem diversas repercussões. O recorte temporal reforça uma redução geográfica da esfera da atividade a Paris, mais concretamente ao Bairro Latino [Quartier Latin – NV], e, ao mesmo tempo, se baseia nesta limitação. De novo, desaparecem da cena os operários em greve de fora de paris e o resto da França e se evaporam os exitosos experimentos de solidariedade entre operários, estudantes e camponeses das províncias. Segundo algumas versões, nas províncias se produziram manifestações mais violentas e sólidas que em Paris em maio e junho, porém isto não se apresenta na versão oficial. Se ignora desta forma o que se viveu nas fábricas de Nantes, e longe de Paris, assim como toda uma constelação de práticas e ideias sobre a igualdade que não podem ser assimiladas pelo atual paradigma liberal/libertário que muitos atores de maio adotaram (ROSS, 2008, p. 36).
A obra de Ross é um marco para quem quer discutir a relação entre Maio de 1968 e suas “vidas posteriores”, ou seja, as suas rememorações. A autora aponta para algo importante, a luta pela memória, e mostra algumas das formas de rememoração desse acontecimento histórico que foi um divisor de águas na sociedade moderna (VIANA, 2009). Porém, ela ainda o faz, apesar de sua radicalidade e criticidade, sem superar totalmente as ideias de sua época, e, por conseguinte, a sua própria rememoração do Maio de 1968 acaba sendo uma adaptação memorial projetiva, embora trazendo o resgate de elementos importantes desse acontecimento[9].
Ross apresenta o conjunto de rememorações do Maio de 1968, o peso da televisão e suas comemorações a cada dez anos, bem como daqueles que ela chama de “ex-esquerdistas”, ou seja, os militantes radicais da época ou intelectuais engajados que abandonaram a adesão ao movimento contestador, as publicações posteriores (e círculos intelectuais oriundos desse evento, tal como a revista Revoltas Lógicas), os intelectuais conservadores e suas críticas e sua condenação. A tentativa do sociólogo Raymond Aron de exorcizar o Maio de 1968, bem como outros, é apresentado e mostra uma das formas de rememoração. Ross (2008) não esquece as exceções e aqueles que tentavam resgatar o Maio de 1968 da recuperação.
Como não é possível analisar o conjunto das rememorações desse acontecimento histórico, então teremos que apenas apontar e analisar algumas delas. Uma das versões mais comuns do Maio de 1968 é atribuir este evento a um problema da juventude, conflito de gerações, entre outros processos (ROSS, 2008). Outra versão bem conhecida é a que a busca a reduzir a uma questão de mudança cultural e nos costumes, especialmente a questão da sexualidade (ROSS, 2008). Essas duas interpretações são formas de recuperação do Maio de 1968. Por esse motivo vamos tomar essas duas rememorações como base para a nossa crítica dessa recuperação, no sentido de que, ao criticar a deformação, contribuímos com o resgate da memória social e da história real.
Jean-Franklin Narot observou que a rememoração do Maio de 1968 pela memória oficial tem semelhança com o modo de relatar da atividade de sonhar, apesar de considerar que faz isso com prudência, pois desconfia do uso de conceitos para além da sua esfera de atividade. Mas, a partir dos termos psicanalíticos para explicar os sonhos, ele aponta a forma como se realiza a deformação do Maio de 1968. Segundo Narot, os sonhos usam quatro mecanismos de deformação:
1) A condensação (um nome, uma “personalidade”, contém, representa, reabsorve uma multidão de atores, seus atos e seu pensamento); 2) o deslocamento (substituição das questões levantadas no Maio de 1968 por problemáticas secundárias ou heterogêneas; confecção de pseudorresponsabilidades dos movimento escolhidos preferencialmente entre que combatiam, eram periféricos ao mesmo ou simplesmente anódinos); 3) A figurabilidade (preponderância de imagens na conceituação e análise, mas também recodificação de 68 através de toda uma bateria de referências imaginárias contemporâneas recorrentes: o “retro”, o “idealismo-generoso-porém-ingênuo”, a “violência”, a “moda”, o “individualismo”, a “comunicação”, etc.; e, por último, 4) a elaboração secundária (reescrita linear de “acontecimentos”, imputações causais realizadas com demasiada naturalidade, redução a finalidade reivindicativas, uma clara consciência postulada dos atos e das apostas de então, positivações múltiplas, coerência fática, integração na ordem da política, inteligibilidade globalmente dominada) (NAROT, 1988, p. 181).
Podemos observar que as análises que rememoram o Maio de 1968 a partir do “conflito de gerações” ou “problema juvenil”, bem como aqueles que o reduzem a uma questão cultural e de sexualidade, utilizam todos alguns destes elementos apontados por Narot (1988). Não que a juventude não tenha tido nenhuma relação com o processo. Sem dúvida, os jovens e a condição juvenil, especialmente na sociedade capitalista francesa após 1960, teve um significado político importante. Contudo, tanto a condição juvenil quanto a estudantil estão relacionadas com o Maio de 1968, mas não foram essa situação de grupo social que fez emergir o Maio de 1968 e, muito menos, lhe deu sentido. A gênese do Maio de 1968 remete ao problema da acumulação de capital e projeto de reforma da universidade, um elemento derivado, que atingiu diretamente os estudante e promoveu manifestações, que, depois se radicalizaram e se transformaram numa rebelião. A questão dos costumes teve um peso muito mais restrito, bem como a sexualidade. Sem dúvida, havia elementos, mas nem são como muitos depois quiseram fazer crer, nem ganhou um destaque no conjunto das lutas e das mudanças.
As rememorações do Maio de 1968 como questão juvenil ou de conflito de gerações, ou cultura e sexual, só não efetiva o que Narot denominou “condensação”. Sem dúvida, grande parte das rememorações realizam a condensação, ao destacar e tornar Daniel Cohn-Bendit ou Alain Geismar os “líderes” do movimento, bem como outros que apontam para o significado de De Gaulle, o que remete para a rememoração que conta a história dos vencedores. Porém, nessas versões da história ocorre o deslocamento da luta estudantil e operária e suas exigências radicais para questão meramente juvenil, estudantil, cultural, sexual. A figurabilidade aparece com a criação imaginária contemporânea que supervalorar a sexualidade e outros processos. A elaboração secundária aparece com a transformação dessas questões em questão fundamental, gerando uma imputação causal inexistente.
Em síntese, o que ocorreu nesse caso foi uma adaptação memorial que realiza um conjunto de processo que exorciza a radicalidade do movimento, as suas exigências mais profundas de transformação, ou mesmo, em seus setores mais moderadas, as reivindicações concretas, substituindo-as por coisas imaginárias, inexistentes na época ou muito marginais, ou, ainda, que tiveram espaço antes da eclosão da rebelião. Essa adaptação memorial serve ao propósito de promover uma enfatização excessiva em certos elementos e assim desviar da determinação fundamental e processos políticos mais amplos e importantes.
Desta forma, é possível perceber que a luta pela memória em relação ao Maio de 1968 é apenas um capítulo de uma obra histórica muito mais vasta que se tem como palco a história da humanidade e, mais recentemente, a história da modernidade. A rememoração fica entre o resgate e a recuperação e isso atinge todos os movimentos sociais, bem como os movimentos políticos e de classe. Nesse contexto geral, a luta pela memória faz parte da luta mais ampla pela conservação ou pela transformação radical e total das relações sociais. Isso revela, por sua vez, a importância da discussão sobre memória e movimentos sociais, bem como o resgate das lutas sociais do passado. O “enquadramento da memória” gera o amnésia social e essa pode não só permitir o retorno da barbárie (ADORNO, 1995), como é mais um obstáculo para a superação da selvageria atual.


Referências

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[1] A relação entre memória e grupos sociais foi realizada, pioneiramente, na sociologia, por Halbwachs (1990) e depois recebeu vários tratamentos. Fentress e Wickham (1994) usam o termo “memória social” e aborda classes sociais (camponeses, proletários) e grupos sociais (mulheres). Assim, alguns preferem utilizar “memória coletiva” e outros “memória social”. A nossa opção foi utilizar os dois termos (como alguns fazem, mas sem realizar distinção) sob forma distinta: a memória social é a do conjunto da sociedade e a coletiva de classes, grupos, etc., no seu interior, pois existem diferenças entre ambos na realidade concreta e por isso deve ser expressa conceitualmente (VIANA, 2019a).
[2] “O indivíduo não pode “recordar” o que não viveu. O que ele pode fazer é rememorar, ou seja, trazer elementos da memória social de volta, através da interiorização” (VIANA, 2019a, p. 37).
[3] Isso pode ser feito através de autobiografia, publicação (ou não, mas que pode se tornar público após a morte) de diário, crônicas divulgadas em meios de comunicação, depoimentos para entrevistadores, agentes policiais, jornalistas, etc.
[4] Sem dúvida, aqui tratamos de recuperação memorial. A recuperação memorial é aquela na qual quem detinha o seu domínio a perdeu e a retoma novamente. Nesse sentido, é a classe dominante que possui a posse da memória social e se acontecimentos e exteriorizações memoriais antagônicas surgem em determinado momento, após a derrota da experiencia revolucionária ou lutas radicalizadas, ela a retoma, a recupera. No sentido mais geral (indo além da memória), o termo “recuperação” ganhou sentido semelhante através da chamada Internacional Situacionista (KHAYATI, 2019). No sentido comum, a palavra resgate tem vários significados, tal como pagar dívida, libertar do cativeiro, etc. Aqui assume o significado de libertar lembranças que estavam esquecidas pelo domínio da memória social pelos detentores do poder, sendo apenas resgate memorial. O resgate memorial tem um sentido positivo, significar trazer de volta lembranças verdadeiras e a recuperação memorial é algo negativo, significa o contrário, ou seja, sufocar lembranças verdadeiras transformando-as em falsas.
[5] Um exemplo de desvio seria o caso de Karl Korsch (2011a; 2011b), que, por desânimo com as derrotas proletárias e aproximação temporária com o anarcossindicalismo, acabou ambiguamente aceitando a interpretação leninista de Marx a respeito da Comuna de Paris (VIANA, 2011).
[6] Os negros, as mulheres e os estudantes, entre inúmeros outros grupos sociais, são policlassistas, pois os indivíduos que os compõem pertencem a várias classes sociais. Os grupos sociais monoclassistas são geralmente os conservadores, em alguns casos, e os das classes inferiores, tal como os sem-teto tendem a ser todos do lumpemproletariado, no significado mais amplo do termo (BRAGA, 2013; VIANA, 2018). Sobre a diferença entre movimentos sociais e movimentos de classe, cf. Viana (2016a; 2016B).
[7] “O termo adaptação significa, nas representações cotidianas, um processo de modificação visando que algo se ajuste a uma nova situação, contexto, padrão, etc. A adaptação memorial é o processo no qual a memória, o conjunto de lembranças do indivíduo, se adapta a uma nova situação social, condição mental, etc.” (VIANA, 2019a, p. 38).
[8]  b
[9] O apelo à subjetividade e outros elementos mostra que sua análise mantinha certa influência do que Jacoby (1977) denominou “política da subjetividade”.
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Apresentado em: 19º Congresso Brasileiro de Sociologia -9 a 12 de julho de 2019 - UFSC - Florianópolis, SC


domingo, 16 de junho de 2019

MEMÓRIA E SOCIEDADE: Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social



MEMÓRIA E SOCIEDADE
Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social


Nildo Viana*


O presente artigo visa repensar o problema da memória em sua relação com a sociedade. Esta questão, no campo sociológico, foi abordada a partir do estudo clássico de Maurice Halbwachs (1990) e foi desenvolvida por alguns outros autores. A psicologia, por sua vez, desenvolveu vários estudos sobre memória, mas em poucos casos enfatizando suas relações com a sociedade. Alguns filósofos, onde se destaca Bergson (apud. Bosi, 1995), também abordaram o problema da memória. Não pretendemos, aqui, fazer uma apresentação das várias concepções de memória mas tão-somente apresentar nossa visão deste fenômeno, o que nos levará, inevitavelmente, a discutir aspectos, utilizar elementos ou criticar outras abordagens.
A motivação deste trabalho reside na necessidade de rever a questão da memória a partir de uma perspectiva dialética, pois grande parte da produção teórica se fundamenta em postulados teórico-metodológicos positivistas. A necessidade de repensar a relação entre memória social e classes sociais também se faz presente, principalmente quando se busca produzir pesquisas que trabalham com a memória social e não se encontra uma referencial teórico que desenvolva, num sentido dialético, esta questão. A pesquisa sobre a realidade concreta necessita da teoria e esta, por sua vez, se enriquece com aquela. No presente artigo estaremos enfatizando um esclarecimento conceitual e uma discussão teórica sobre a memória social, o que contribui com o desenvolvimento de futuras pesquisas sobre casos concretos.
O Que é a Memória?
O primeiro problema na discussão da temática da memória é sua definição. O conceito de memória ainda não adquiriu uma sistematicidade, nem mesmo na esfera da psicologia, a ciência que mais se dedica a esta temática. Em primeiro lugar, caberia delimitar o campo fenomenal que consiste o que chamamos memória. A contribuição já clássica de Henri Bergson, ao descartar a memória-hábito do conceito é o primeiro elemento que devemos utilizar para realizar tal delimitação (Bosi, 1995; Halbwachs, 1990;  Filloux; 1966). A memória-hábito é uma não memória, pois quando alguém aprende a andar de bicicleta, dirigir carro, digitar no computador, ele está realizando uma repetição mecânica que não o faz apelar para as lembranças e para a mente, nem para a reflexão. Filloux coloca que o hábito é todo comportamento adquirido por aprendizado, sendo movimentos que não requerem a participação da atenção (Filloux, 1966). No entanto, consideramos uma imprecisão de Bergson a expressão memória-hábito, pois trata-se, no caso, de tão-somente hábito. Também o psicólogo Vigotski distingue esta forma de memória, que ele chama de “natural”, da memória que ele denomina “mediada” ou “indireta” (Vigotski, 1994), caindo na mesma imprecisão que Bergson, com a desvantagem de não questionar a atribuição de caráter de memória ao hábito. Filloux reconhece uma certa “colaboração” entre hábito e memória, que é a que ocorre quando se decora texto, a linguagem, etc., o que ele denomina “memória mecânica” (Filloux, 1966).
A idéia de que a memória é um “sistema vivo”, um sistema funcional geral que comanda o conjunto de atividades perceptivas, motoras e intelectuais do indivíduo”, tal como coloca Piaget, segundo Ehrlich (1979, p. 233), também é questionável. Esta concepção apresenta uma visão fetichista da memória, com um “sistema vivo” e “regulador”, o que significa transformar as lembranças e o seu processo de evocação em algo auto-suficiente, dando vida ao que pode ser considerado uma categoria, um instrumento mental, muito mais do que uma realidade concreta. No entanto, até aqui colocamos o que não é memória. Mas qual é o campo fenomenal do que chamamos memória? Segundo Filloux,
“Nosso primeiro trabalho consistirá, pois, em indicar os limites do domínio próprio da memória, que definiremos caracteristicamente por sua propriedade de unir em si o atual e o inatual e, por conseguinte, de realizar um modo ‘intemporal’ de consciência (ellenberger), uma experiência ‘em contratempo’ (Gusdorf). Poder que possui a consciência de se abstrair do presente para voltar-se para o passado, de fazer-se consciência do passado num movimento que transcende o tempo. Procuraremos tipos de lembrança que nos parecem verdadeiramente relacionados com a memória” (Filloux, 1966, p. 14).
Outra definição de memória é fornecida por Halbwachs: a memória é um conhecimento atual do passado (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976). Isto significa que é, ao mesmo tempo, um saber e uma lembrança. No entanto, tanto esta quanto as demais definições são problemáticas. A memória não pode ser vista como uma cópia cronológica da história. Assim, a afirmação de Halbwachs, derivada de sua concepção de memória, se revela equivocada: “o passado não se conserva; é, sim, reconstruído a partir do presente” (apud. Filloux, 1966, p. 129). Sem dúvida, o passado não se conserva, pois já passou. É preciso distinguir entre a realidade passada e a consciência presente da realidade passada. Assim, não é o passado que é reconstruído a partir do presente e sim a consciência do passado. A memória deve ser redefinida e compreendida como consciência virtual, isto é, é uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade existente. A memória, consciência virtual, é recuperada, restituída e interpretada pela consciência ativa, real, concreta. Desta forma, podemos dizer que na mente humana só existe o presente, só que em estado virtual ou manifesto, inativo ou ativo. A realidade passada é uma coisa, a consciência presente da realidade passada é outra coisa.
Logo, a concepção de Filloux também é problemática. Na memória não se une o atual e o inatual, mas tão-somente o atual. A consciência do passado é uma consciência atual, que recupera e trabalha a consciência virtual. O inatual existe concretamente no processo histórico mas não na mente humana, pois a consciência virtual é tão atual quanto a consciência concreta ativa. Assim, a concepção de H. Bergson também é equivocada:
“O mal da psicologia clássica, racionalista, segundo Bergson, é o de não reconhecer a existência de tudo o que está fora da consciência presente, imediata e ativa. No entanto, o papel da consciência, quando solicitada, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz. Logo, a própria ação da consciência supõe o ‘outro’, ou seja, a existência de fenômenos e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. É precisamente nesse reino das sombras que se deposita o tesouro da memória” (Bosi, 1995, p. 52)
Bergson confunde os fenômenos psíquicos com os fenômenos reais. O que a consciência faz não é escolher em um depósito que seria o passado o que quer e sim uma recuperação de algo presente na mente humana. A categoria “inatual” se aplica ao passado da realidade concreta mas não à mente humana. Até mesmo a categoria “atual” é problemática e seria mais adequado utilizar a expressão “ativa” em seu lugar.
A memória sendo uma consciência virtual possui como conteúdo as lembranças e a ativação dela significa evocação de lembranças. Na mente humana existe um conjunto de lembranças guardadas na consciência virtual e somente através de sua ativação é que se tornam recordações, o que significa que muitas delas não emergem e que o processo de recordação é seletivo. Neste sentido, se torna inteligível a idéia de que a memória é seletiva (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976) desde que se perceba que é o processo de recordação ou evocação de lembranças é que é seletivo e não a memória em si. No entanto, quais são os mecanismos de ativação da memória? Quais são as determinações desta seleção?
A Evocação Social das Lembranças
Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos indivíduos, bem como na pressão social e na associação de idéias. Os valores dos indivíduos são constituídos socialmente, e são o que eles consideram importante, relevante, significativo (Viana, 2002). A importância do caráter significativo foi ressaltada por Halbwachs (1990) e por Stoetzel (1976). Os valores não são atributos das coisas e sim atribuições que fornecemos a elas. Assim, nada é, intrinsecamente, feio ou belo, importante ou inútil, pois são os valores dos indivíduos ou grupos que fornecem estas atribuições. Os valores não são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo histórico de vida, desde de sua socialização, que ele vai produzindo os seus valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode, inclusive, ser contraditória.
Os sentimentos também são fundamentais para a ativação da memória. O amor, o ódio, o ciúme, a inveja, a solidão, entre outros sentimentos, são elementos que constrangem os indivíduos a realizarem recordações. Os sentimentos são potencialidades que também possuem uma formação social. Eles não podem ser confundidos com emoções, pois os sentimentos não são reações momentâneas, mas sim formações mentais duradouras que caracterizam a relação afetiva do indivíduo com outros indivíduos ou coisas. Sendo uma relação, a sua fonte só pode ser social, pois só se pode amar ou odiar, para citar dois exemplos, através da relação. Com aqueles que não relacionamos, ou simplesmente desconhecemos e ignoramos ou então desprezamos. A psicanálise, embora muitas vezes de forma inintencional, apresenta a importância dos sentimentos no processo de constituição da ação humana (Viana, 2004a) e, podemos acrescentar, da ativação da memória.
Mas a memória também pode ser ativada por pressão social (necessidades profissionais, entrevistas, etc.) quando a motivação é externa ao indivíduo. Existem alguns exemplos de pressão social que são bastante comuns. Blondel coloca, por exemplo, a importância que as datas de acontecimentos históricos e políticos para as datas de ordem pessoal.
“Essas datas, que dependem da história, nos servem todas de pontos-de-referência mais ou menos seguros para situar os pormenores de nosso passado, mas algumas dentre elas, pela profundidade da repercussão que tiveram sobre nossas vidas, fazem um corte tão claro entre o que fomos antes e o que passamos a ser, que, ao primeiro lance de vista, verificamos se um acontecimento de nosso passado lhe foi ou não anterior: por exemplo, o 2 de outubro de 1914 e o 11 de novembro de 1918. No que diz respeito aos incidentes e acontecimentos de nossa própria vida, como sempre sabemos em que dia estamos, datam-se eles maquinalmente à medida que são vividos, mas a maior parte perde sua data logo em seguida ou, ao menos, muito rapidamente: guardamos raramente por mais de uma semana a lembrança da data precisa de nosso último jantar na cidade. Somente, ou quase, escapa a esse esquecimento a data dos acontecimentos que significação e valor sociais (Blondel, 1960, p. 177).
Blondel também ressalta que as datas pessoais são recordadas pela sua importância social, tal como ocorre com o aniversário, o casamento, etc. É justamente a pressão social, manifestada seja pelas exigências profissionais, civis, políticas, ou qualquer outra, ou pela importância socialmente atribuída aos fatos políticos, históricos ou acontecimentos na história de vida do indivíduo, que produz a lembrança de datas, que se tornam referências para outras lembranças. Isto revela o mecanismo da pressão social, tal como no caso do nascimento, lembrado por todos, mas apenas no que se refere a data e não ao acontecimento em si. As pessoas não lembram do seu nascimento, mas lembram da data de nascimento. A razão disso é social:
“Sabemos estas datas, nem tanto porque vivemos esses acontecimentos ou fomos deles contemporâneos, mas porque a importância a eles consagrada por nosso meio exigiu que as fixássemos definitivamente. Nada mais característico a esse propósito que a data de nosso nascimento, que é talvez, dentre todas de nossa biografia, a que conhecemos melhor, embora seja de toda evidência que não temos de nosso nascimento, absolutamente nenhuma lembrança, e, a encarar exatamente as coisas, bem seria essa data, antes que a de um acontecimento pessoal, a de um acontecimento histórico. Afinal de contas, e aqui é essencial, a maneira pela qual sabemos a data de nosso casamento, a do armistício, a de nosso nascimento e a de Waterloo, faz com que se identifiquem praticamente, para nós, e o que determina a escolha destas datas dentre todas, a quaisquer acontecimentos que se refiram, é, sempre, a importância que a coletividade lhes empresta e nos sugere ou obriga a lhes emprestar com ela” (Blondel, 1960, p. 177-178).
Também a associação de idéias acaba levando o indivíduo de uma lembrança a outra, já que a busca de reconstituição de algo acontecimento acaba gerando a recordação de outros, assim como necessidades práticas também cumprem este papel de evocação de lembranças. Neste sentido, podemos concordar com Bosi: “lembrança puxa lembrança” (Bosi, 1995, p. 39).
No entanto, abordar a memória leva, naturalmente, a discutir o problema do esquecimento. Quando a consciência ativa busca na consciência virtual algo que não consegue encontrar (um nome, uma idéia, um acontecimento) nós temos o esquecimento. A questão do esquecimento foi desenvolvida por Freud (1978), que a relacionou com a repressão. O esquecimento, em sua abordagem, seria produto da repressão. Podemos, a partir daí, pensar que o recalcamento, enquanto processo mental, produza esquecimento, isto é, dificulte a evocação de lembranças. O recalcamento é produto da repressão social, introjetada pelo indivíduo. Em casos psíquicos mais extremos, tal como em um trauma, o esquecimento pode ser um mecanismo de defesa, uma forma de evitar a lembrança do trauma. Embora Freud tenha utilizado e depois abandonado a idéia de mecanismo de defesa, substituindo-o por repressão, voltou a utilizá-lo e passou a considerar a repressão (recalcamento) como um entre vários mecanismos de defesa. A definição freudiana dos mecanismos de defesa é a luta do ego contra afetos e idéias consideradas “dolorosas” (Freud, 1982).
Sendo assim, temos aqui uma determinada relação entre memória e sociedade. A memória individual é constituída socialmente, pois os mecanismos de evocação de lembranças são de origem social. A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social, e isto significa que a memória individual é social. Além disso, o material que dá vida à memória também é de caráter social, tal como os signos – o que foi ressaltado por Vigotski (Vigotski, 1994; Braga, 2000) e com a mentalidade ou “formas sociais de padronização da cognição”, segundo expressão de Bartlett (apud. Santos, 2003).
A Memória Social
No entanto, este é apenas um aspecto da relação entre memória e sociedade. O outro aspecto se encontra na discussão apresentada pioneiramente por Maurice Halbwachs a respeito da memória coletiva. O caráter social da memória deixa entrever que a memória é coletiva. No entanto, a memória individual é uma manifestação singular do coletivo. É preciso perceber a singularidade da memória individual, mesmo que sua constituição tenha origem social. A memória coletiva pode se referir tanto à memória de todos os membros de uma determinada sociedade quanto à grupos sociais no seu interior. No primeiro caso, temos uma abordagem que ultrapassa a visão de Halbwachs (1990), pois ele focaliza os grupos sociais. No entanto, as lembranças coletivas, quando são evocadas, possuem os mecanismos de seleção que são de caráter social: valores, sentimentos, pressão social, etc. e, por conseguinte, sua constituição é social, tal como ocorre com o indivíduo, e possuem elementos que são constitutivos de toda uma sociedade. Assim, podemos falar de uma memória social, compreendendo por este termo a consciência social virtual em uma determinada sociedade. Assim, a evocação da origem do mundo nos mitos das sociedades simples revela esta memória social.
Porém, nas sociedades divididas em classes sociais, a memória social acaba se manifestando de forma muito mais reduzida. As classes sociais, entre outros grupos sociais, acabam criando o seu processo seletivo derivado de sua constituição própria de valores, sentimentos, etc. Assim, quando grupos oprimidos recordam Spartacus, o gladiador que liberou a rebelião escrava na Idade Antiga, isto se deve aos valores destes grupos sociais. Outros grupos sociais também acabam manifestando lembranças coletivas, expressão de sua memória social. Os grupos religiosos zelam pelo seu passado através de um conjunto de lembranças, e o mesmo ocorre com os artistas e inúmeros outros grupos sociais. Segundo Halbwachs:
“No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social” (Halbwachs, 1990, p. 51).
Assim, Halbwachs desenvolve alguns pontos interessantes que nos ajudam a pensar a memória social. A memória individual é uma memória constituída socialmente e a memória social é a manifestação coletiva da memória de uma sociedade ou um grupo. Mas isto não deve nos fazer perder de vista que existem uma multiplicidade de memórias, e não apenas uma “memória oficial” e uma “memória comunitária”, pois existem mais grupos sociais e um mesmo grupo social pode manifestar lembranças diferenciadas. Portelli acaba se referindo a este processo e demonstra que a memória não-oficial, no caso o da resistência ao nazismo, pode, em outro momento, se tornar oficial (Portelli, 1998). Além disso, é preciso evitar cair no romantismo, pensando que a memória dos grupos oprimidos é uma memória “não-oficial”, pois ela é perpassada pelas idéias dominantes, pela pressão social, pela contradição (Viana, 2004b)
Um dos grandes problemas da concepção de Halbwachs se encontra no peso exagerado que ele fornece para a questão do lugar e do solo em sua análise da memória coletiva. Segundo Stoetzel, “a demarcação das lembranças no solo é, seguramente, elemento capital da memória coletiva” (1976, p. 137). Muito mais importante do que o solo, são os valores, os vínculos tradicionais e sentimentais, a pressão social.
Outro problema da abordagem de Halbwachs está em sua concepção de memória como conhecimento e lembranças. A memória pode ser considerada uma parte, virtual, da consciência que é constituída por lembranças, mas não da forma como concebe Halbwachs, enquanto “o conhecimento atual do passado, isto é, enquanto consiste ao mesmo tempo num saber e em lembrança” (Stoetzel, 1976, p. 133). A memória é uma consciência virtual do passado, mas não pode ser compreendida como “conhecimento”, isto é, como saber objetivo, pois ela é sempre a consciência de um determinado indivíduo ou grupo social concreto. Neste sentido, cabe recordar Marx, para quem a “consciência não é nada mais do que o ser consciente” (Marx e Engels, 2002). A divisão social do trabalho produz classes e grupos sociais distintos que possuem sua consciência derivada das relações sociais em que são constituídos e de tudo que deriva de tais relações (valores, sentimentos, concepções, ideais, etc.). Assim, o que é “selecionado” pela memória é, predominantemente, o que é determinado pelos interesses da classe dominante e suas classes auxiliares, já que ela possui a hegemonia cultural na sociedade civil. As recordações de atos heróicos do passado são retomadas em momentos de lutas e combates, relembrando figuras heróicas, indivíduos, símbolos, etc. e utilizando-os a partir dos interesses atuais (Marx, 1986).
Outro elemento problemático da concepção de Halbwachs se encontra na suas “leis de regulação da memória coletiva”, o que revela suas raízes deitadas no solo do positivismo clássico. Estas leis são, segundo a abordagem de Halbwachs, a “lei de concentração” (na qual se localiza em um mesmo lugar acontecimentos que não possuem relação necessária); as leis de desmembramento (processo inverso ao anterior, fragmentação de lembranças por diversos lugares) e as leis de dualidade (no qual apresenta duas localizações para o mesmo fato) (Stoetzel, 1976, p. 137). Esta concepção apresenta enquanto problema a idéia de lei, o que acaba provocando uma concepção naturalizante do processo social. Mas, além disso, as leis apresentadas por Halbwachs remetem, sempre, à questão da localização, como se a memória social fosse necessariamente vinculada a um lugar. Esta vinculação existe e ocorre em muitos casos, mas não em todos e existem manifestações da memória social que não remetem a nenhuma localização, tal como uma data de nascimento (o foco é a data e é esta que é lembrada, e não o local onde o nascimento ocorreu, a não ser em casos especiais) e muitas vezes a localização é apresentada mas não possui grande importância. Por conseguinte, as leis da memória coletiva de Halbwachs são invenções científicas e não realidades concretas.
A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos. Porém, como as classes e grupos são diferentes, os seus valores, sentimentos, etc., também são diferentes. Por conseguinte, as lembranças são diferentes. O grau de diferenciação depende de vários aspectos, mas ela existe, seja maior ou menor. A diferenciação mais ampla ocorre na esfera da divisão social de classes. As classes sociais só existem em relação uma com a outra e o antagonismo se encontra nesta relação. Por conseguinte, esta diferença assume uma diferenciação que é perpassada por interesses e por lutas. No entanto, nesta luta, a classe dominante, devido sua posição social e hegemonia cultural, vence normalmente e consegue impor as lembranças coletivas que são do seu interesse. Mas existe a resistência, que pode se manifestar de forma individual ou esporádica e que assume grandes proporções em épocas de acirramento de conflitos sociais. Este aspecto está ausente da análise de Halbwachs, simplesmente por causa de sua concepção de classes sociais. Para Halbwachs:
“As classes sociais são agrupamentos hierarquizados por excelência, que possuem uma consciência coletiva específica, apresentam graus distintos de participação no ideal comum da sociedade em que estão integradas e nas atividades que lhes correspondem, são diferenciadas pelo nível das suas necessidades, e portanto pelo gênero de vida que lhes é próprio, assim como pela matéria em que incide o seu trabalho, a sua atividade econômica, e bem assim pela intensidade da sua memória histórica tradicional” (Gurvitch, 1982, p. 149).
Assim, a concepção de classes sociais de Halbwachs é, ao contrário da marxista, não-relacional e ao abolir a relação entre as classes sociais, se apaga também a exploração, a dominação, os conflitos, os interesses antagônicos, etc., criando em lugar do antagonismo a diferença. Sem dúvida, outras críticas podem ser endereçadas à concepção de classes sociais em Halbwachs, tais como as apresentadas por Gurvitch (1982), mas devido a questão de espaço iremos nos limitar a este elemento fundamental e que esclarece a visão de memória coletiva de Halbwachs e suas limitações.
Desta forma, para concluir nosso trabalho, devemos ressaltar que existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes intelectuais. Tanto na esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução (Adorno, 1982), ou seja, ele defende a recordação do holocausto enquanto forma de evitar sua repetição. As diversas abordagens do passado (tanto das representações cotidianas quanto do pensamento complexo, principalmente a historiografia) estão envolvidas neste processo. Mas esta luta não termina aí e ocorre também em torno da definição de memória e suas determinações. A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática.


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* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB – Universidade de Brasília. 
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Publicado originalmente em:
Espaço Plural — Ano VI - Nº 14 - 1º Semestre de 2006 — Versão eletrônica disponível na internet: www.unioeste.br/saber

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