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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Os campos mentais de uma episteme - 1a parte

 OS CAMPOS MENTAIS DE UMA EPISTEME (1a PARTE).



O texto abaixo é um trecho do livro "O Modo de Pensar Burguês - Episteme Marxista e Episteme Burguesa" (Curitiba: CRV, 2018). A compreensão mais adequada e profunda do texto pressupõe a leitura da obra em sua totalidade. O trecho abaixo tem a introdução da parte sobre os "campos mentais" e a discussão sobre um dos campos mentais, que é o axiomático. Para compreender melhor o texto, é aconselhável, a leitura da parte anterior, que pode ser acessada clicando aqui.


Os Campos Mentais

Antes de continuar, é preciso esclarecer o significado de um termo que será bastante utilizado aqui, que é o conceito de campo. Iniciaremos explicitando o significado da categoria campo e depois passaremos para o conceito de campo[1]. Um campo é um conjunto coerente que possui uma estrutura, formada por seus elementos básicos e determinantes, e elementos derivados, formando uma totalidade, que pode ser fechada ou aberta, dependendo das características próprias de cada campo. Isso significa dizer que o campo é uma forma de expressar os fenômenos, mostrar suas características, estrutura e fronteiras. Um campo não existe isolado no universo e por isso possui mecanismos de inclusão e exclusão em relação a outros campos e a tudo que é externo[2].

O termo campo aqui é utilizado como um conceito. Trata-se de campos mentais ou campos constitutivos do pensamento. A realidade concreta que abordamos com o conceito de campo é o pensamento e suas partes constitutivas. Os campos constitutivos do pensamento em seu conjunto formam a episteme[3]. Uma episteme, para existir, constitui alguns campos específicos, como o linguístico (que inclui o campo lexical e semântico), o analítico, o axiomático, o perceptivo. A episteme constitui um modo de pensar através de diversos campos que se organizam coerentemente (com possíveis incoerências em suas manifestações concretas), bem como o seu entendimento permite explicar esse processo.

O campo linguístico é a estrutura formal de uma episteme composto pelo campo lexical e pelo campo semântico. A expressão campo lexical significa um conjunto coerente de signos que possuem uma estrutura e constitui uma totalidade que tem características próprias e fronteiras delimitadas. O campo semântico é o conjunto coerente de significados que possuem uma estrutura e constitui uma totalidade com características próprias e fronteiras delimitadas. O campo analítico é o que estabelece relações e processo de formação do pensamento. O campo axiomático é o conjunto de valores que constitui a base valorativa de determinado pensamento. O campo perceptivo é o conjunto dos fenômenos que, a partir dos demais campos mentais, podem ser percebidos e, por conseguinte, podem ser analisados, captados ou gerados.

A episteme é um modo de pensar específico e, portanto, cada episteme gera formas distintas de pensamento. É fundamental entender como a episteme exerce uma determinação formal sobre as formas de consciência. Os mecanismos epistêmicos que realizam esse processo de determinação são o axiomático, o linguístico, o analítico e o perceptual. Esses quatro campos mentais são os elementos constitutivos de uma episteme. Vamos, a partir de agora, abordar cada um destes campos mentais.

O Campo Axiomático

O mecanismo epistêmico mais poderoso é o axiomático. O campo axiomático é uma parte da episteme (e também dos paradigmas, ideologias, etc., como mostraremos adiante) que expressa os seus valores, o que significa que também expressa os seus desvalores, explicitando, assim, os seus interesses. É necessário compreender que “o valor é algo significativo, importante, para um indivíduo ou grupo social. Os valores, por conseguinte, são o conjunto de ‘seres’ (objetos, ações, ideias, pessoas, etc.) que possuem importância para os indivíduos ou grupos sociais” (VIANA, 2007a, p. 13)[4].

Os valores podem ser autênticos e universais, correspondentes à natureza humana, que assumem a forma de axionomia, ou podem ser históricos, transitórios, particularistas, expressando os interesses de determinadas classes sociais em determinadas formas de sociedade e assumindo a forma de axiologia (VIANA, 2007a). Por conseguinte, um campo axiomático com base axiológica é um obstáculo para o desenvolvimento da consciência e um outro com base axionômica é um incentivo para a ampliação do saber.

Os valores estão intimamente ligados aos interesses. Eles são a forma de manifestação dos interesses. Se alguém valora a música, por exemplo, isso está ligado aos seus interesses, seja de alguém que é um criador musical (e, no caso do capitalismo, isso significa que pode ser não apenas um processo de prazer criativo, mas também um meio de sobrevivência e/ou enriquecimento financeiro) ou apenas de alguém que gosta de ouvir músicas. Qual é o interesse no segundo caso? Nesse caso, o prazer em ouvir música. Pode existir um prazer na produção, bem como pode haver um prazer na audição. Os valores se manifestam, nesse caso, através do gosto pela música e de sua avaliação de músicas, gerando o gosto musical. Quando um indivíduo produz uma música para realizar sua criatividade ou ouve por sentir prazer nessa atividade, então o valor é derivado de necessidades autênticas e isso, ao mesmo tempo, é um interesse do indivíduo. Os valores explicitam os interesses e ambos são produtos das necessidades e desejos dos indivíduos[5].

Os valores e os interesses são os mais fortes mobilizadores dos indivíduos e são derivados da condição social destes. No entanto, esse não é apenas uma questão individual. As classes sociais geram, devido ao seu modo de vida comum, interesses comuns, de acordo com sua posição na divisão social do trabalho e diante das relações de produção dominantes[6]. Esses interesses comuns geram, em muitos casos, valores[7]. Cada classe social vai gerar, tendo por base esses interesses comuns, um conjunto de valores. Assim, esses valores são a base do desenvolvimento do campo axiomático dos intelectuais e ideólogos em geral. Eles formam o campo axiomático da episteme em geral e dos paradigmas e ideologias derivadas, sendo que no primeiro caso são os interesses comuns da classe e nas produções intelectuais derivadas existem variações derivadas das subdivisões das classes sociais (desde as frações de classes até as idiossincrasias). O campo axiomático é mais definido no caso das classes sociais fundamentais, pois os interesses comuns dessas classes são antagônicos e permite um delineamento mais sólido. Porém, as classes exploradas durante a sucessão de sociedades de classes muitas vezes desenvolve, em certos setores, determinada consciência de seus interesses, mas somente no capitalismo foi possível uma consolidação desse processo, bem como a criação de um campo axiomático como base para o desenvolvimento de uma episteme, através do proletariado e seus representantes intelectuais.

Os seus valores assumem a forma de princípios e axiomas, o que gera um processo de censura, autocensura e proscrição. A censura é composta pelos desvalores, aquilo que deve ser condenado. Esse é o caso do que a teologia considera blasfêmia, pois atenta contra seu campo axiomático. A blasfêmia é condenada, censurada, e o nome é apenas a forma de se dizer que a ideia é condenável. Da mesma forma, a autocensura significa o ocultamento de atos (no caso, intelectuais) que não podem ser percebidos pelos outros, por ferirem o campo axiomático no qual se insere[8]. Um teólogo não pode, por exemplo, admitir dúvida sobre a existência de Deus, mesmo que isso ocorra em seu íntimo e fique implícito em determinados momentos em seus escritos e falas. A proscrição é o ato de banir determinadas ideias, afirmações, valores, o que pode gerar o banimento dos indivíduos que materializam essas ideias, afirmações, valores. Novamente a teologia é exemplar: as ideias de Giordano Bruno foram não só censuradas, como também proscritas e ele mesmo foi proscrito, por não ter se autocensurado e/ou retratado[9]. É através da análise do campo axiomático que se torna mais perceptível os vínculos sociais, interesses e valores por detrás de um campo analítico.

Os exemplos acima podem gerar alguns questionamentos. Um deles é o caso de Giordano Bruno. A razão de sua proscrição pode ser apenas uma divergência intelectual. Contudo, a divergência intelectual revela divergências valorativas e, nesse caso, ia além da questão referente ao universo (sua infinitude, etc.), pois remetia também às demais crenças de Bruno, que entravam em confronto com as da Igreja. Contudo, o que é revelador, para nossos propósitos, é que o campo axiomático dissidente de Bruno gera um campo analítico igualmente divergente e que sem o primeiro não haveria o segundo (embora este também possa interferir naquele)[10]. Da mesma forma, a unidade epistêmica, no caso entre campo analítico e axiomático (e também lexical, tal como se pode observar na própria palavra “infinito”, que ganha um significado novo e que gera um impacto na percepção do universo), se revela, pois um não existiria sem o outro.

Os interesses, expressos através dos valores, constituem a determinação fundamental do campo axiomático. Por exemplo, a verdade é um interesse das classes exploradas no decorrer da história e por isso a verdade aparece como um valor quando estas conseguem constituir uma episteme. No entanto, no caso das classes dominantes na história da humanidade, a verdade como totalidade não é de seu interesse. O interesse das classes dominantes é em verdades parciais e por isso produzem ideologias que possuem momentos de verdade, mas que são marcadas por uma essência e totalidade marcada por ilusões. O que é útil, necessário, benéfico, para a classe dominante, será, para esta, um valor. E isso remete à manutenção, reprodução e ampliação da exploração, dominação e tudo que é necessário para que isso ocorra. A verdade em sua totalidade não é interesse da classe dominante, mas ela também não pode dizer isso e por isso deve gerar uma concepção de verdade que expresse a parcialidade. Por detrás dos valores encontramos os interesses.

Se os interesses estão na gênese do campo axiomático, as relações entre as classes sociais, especialmente as classes fundamentais, é o que explica as suas formas de manifestação. Numa relação de dominação direta, a forma de manifestação do campo axiomático pode ser mais transparente. Em situações nas quais as relações entre as classes são mais conflituosas ou a correlação de forças é mais equilibrada, então a forma de manifestação tende a ser intransparente. Essas formas de manifestação estão intimamente ligadas às formas de autolegitimação. O campo axiomático busca autolegitimar os seus valores e, simultaneamente, deslegitimar os demais valores, tornando-os desvalores, ou procura pelo menos secundarizá-los. E para isso pode lançar mão da universalização (gerando o discurso segundo o qual os seus valores são universais) ou relativização (através do discurso da relatividade de todos os valores) ou, ainda, hierarquização (colocando os seus valores como superiores) e absolutização (tornando seus valores absolutos). Numa sociedade concreta, dependendo das suas divisões internas, pode haver mais de uma forma de legitimação ou mescla entre elas.

O sustentáculo da autolegitimação varia de acordo com a episteme e é um processo racional e que, portanto, remete ao campo analítico e linguístico. O sustentáculo pode ser tanto a superioridade de classe, a vontade divina, a natureza humana, a razão, a raça, a religião, etc. O sustentáculo da autolegitimação, no caso das classes dominantes, visa sublimar (tornar sublime) os seus valores, apagando os seus interesses, que ficam ocultos por detrás deles. Para tanto, criam-se diversas ideologias que buscam enfeitar a prisão das classes exploradas com belas flores.

O campo axiomático é o terreno onde brotam os saberes. Um campo axiomático pouco fértil, como é o das classes dominantes, gera limites intransponíveis[11]. Um campo axiomático muito fértil, incentiva ultrapassar os limites[12]. O saber que brota do campo axiomático das classes dominantes é extremamente limitado devido aos valores e interesses que são seu terreno e o saber que brota do campo axiomático que lhe é antagônico é ilimitado por causa dos valores e interesses que são sua fonte. Desta forma, podemos dizer que determinados campos axiomáticos limitam as condições de possibilidade do saber e o acesso à verdade e outros incentivam sua expansão ultrapassando todos os limites. Essa limitação do campo axiomático fundado na axiologia (determinada configuração dos valores dominantes) é um dos principais obstáculos para o desenvolvimento da consciência correta da realidade. Por outro lado, o campo axiomático fundado na axionomia aponta para um desenvolvimento ilimitado da consciência correta da realidade. Contudo, o campo axiomático não gera automaticamente determinada forma de consciência, pois isso depende de outras determinações, desde as relações sociais concretas até a hegemonia e contra-hegemonia existentes.



[1] A categoria, não custa lembrar, é uma ferramenta intelectual, utilizada para analisar a realidade, não sendo algo existente na realidade concreta, apenas no plano do pensamento como um instrumento de seu trabalho (VIANA, 2007b). O conceito, ao contrário, é expressão da realidade, ou seja, manifesta o que existe efetivamente. As categorias do pensamento são as mais variadas, como espaço, direita, esquerda, lugar, relação, etc. Uma categoria unida a um conceito pode torná-la concreta, como, por exemplo, espaço urbano (VIANA, 2002), no qual o espaço deixa de ser categoria para se tornar conceito ao ganhar concreticidade, ou seja, se tornar urbano e expressão de algo social realmente existente.

[2] É preciso ter em mente que não utilizamos o termo campo no sentido comum e nem no sentido especializado, tal como desenvolvido pela biologia e física, para citar dois exemplos. Aqui o termo “campo” aparece no interior de um determinado campo linguístico (termo que será explicitado adiante), e isso lhe traz um significado específico e distinto dos demais.

[3] E todas as formas de consciência existentes, mas não trataremos disso por não ser nosso foco teórico.

[4] Não é possível aqui abordar a questão dos valores em sua totalidade e complexidade e por isso remetemos a outra obra na qual efetivamos tal abordagem (VIANA, 2007a).

[5] As necessidades podem ou não ser satisfeitas. As necessidades não satisfeitas são potencialidades. As necessidades radicais dos seres humanos são produtos da natureza humana e são diferentes dos desejos, que são produtos sociais e históricos, ligados a processos mais particulares. Se eles forem coerentes com as necessidades radicais, então assumem um caráter positivo, mas se forem incoerentes ou contraditórios, assumem uma forma negativa. O desejo de enriquecimento financeiro é um produto da sociedade capitalista e quando se torna valor fundamental ou principal interesse, ou seja, prioridade para determinado indivíduo, assume a forma negativa. O desejo de produzir uma poesia, em qualquer circunstância, assume a forma positiva (o conteúdo da poesia remete para outra discussão), pois expressa a necessidade humana de criatividade.

[6] Para uma discussão sobre a teoria das classes sociais que serve de base para nossa análise, sugerimos a leitura da obra A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx (VIANA, 2018a)

[7] Determinados interesses, no entanto, precisam ficar ocultos e aparecer metamorfoseados em valores nobres, interesses universais, etc. Assim, na ideologia liberal, o individualismo do proprietário aparece como expressão da necessidade universal dos indivíduos, para citar apenas um exemplo.

[8] E, nesse caso, de forma contraditória. As razões da contradição são variadas, desde idiossincrasias até processos sociais mais complexos que atingem determinados indivíduos.

[9] Optamos pelo exemplo do saber teológico por sua comodidade e fácil compreensão e para não ser repetitivo quando tratarmos da episteme burguesa e seus procedimentos, bem como para mostrar que o procedimento teológico que escandaliza as mentes “racionais”, “esclarecidas” e “científicas” de hoje é o mesmo que elas fazem atualmente, sob outra forma e com outros nomes.

[10] No caso de um indivíduo concreto, o desenvolvimento da consciência (ou adoção de uma ideologia, que é seu emperramento em termos substanciais) pode gerar mudança de valores e determinadas descobertas intelectuais podem mudar o indivíduo, bem como em outros indivíduos ocorrem o processo contrário. Determinadas ideias podem incentivar determinados valores e vice-versa (VIANA, 2007a), mas eles estão unificados, mesmo existindo algumas contradições.

[11] Marx percebeu os limites intransponíveis da consciência burguesa (ou “ciência burguesa”) ao analisar o desenvolvimento da economia política: “a ciência burguesa da economia havia, porém, chegado aos seus limites intransponíveis” (MARX, 1988b, p. 135). Quais eram esses “limites intransponíveis”? Era o que poderia ser admitido da perspectiva burguesa, ou seja, a partir dos interesses dessa classe.

[12] Isso pode ocorrer tanto sob formas mais simples quanto mais complexas. As formas mais simples acabam desenvolvendo algumas ideias básicas verdadeiras, mas sua simplicidade (e muitas vezes esquematização exagerada) causa obstáculos e limites. A forma mais complexa não é apenas mais “complicada” e “difícil”, embora também o seja. Ela é mais ampla e profunda, já que é um desenvolvimento mais totalizante, profundo e coerente do saber e por isso também é mais complicada e difícil. O campo axiomático é fundamental, mas não suficiente, no plano do desenvolvimento da consciência, pois é necessário também o desenvolvimento do campo analítico e linguístico coerente com ele e permitindo sua realização mais ampla e total. O campo axiomático se desenvolve de forma limitada se não ocorrer simultaneamente um desenvolvimento do campo analítico, perceptual e linguístico.


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