Rádio Germinal

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terça-feira, 16 de março de 2021

PANDEMIA E ENTROPIA CAPITALISTA

 


PANDEMIA E ENTROPIA CAPITALISTA

 

Nildo Viana

 

A pandemia do coronavírus já dura aproximadamente um ano. Desde o seu suposto surgimento na China e sua posterior disseminação mundial, a esperança de seu controle e fim definitivo é sempre postergada. Por qual motivo, numa sociedade com alto desenvolvimento tecnológico, grande capacidade de deslocamento de recursos, meios de comunicação e transporte altamente desenvolvidos, uma pandemia consegue se tornar descontrolada?

Sem dúvida, a explicação desse processo remete ao processo de compreensão da sociedade capitalista. Marx já havia apontado a existência da “anarquia capitalista”[1], o que contradizia a concepção apologética de Adam Smith sobre a “mão invisível” do mercado[2]. Segundo Marx, a produção capitalista é “anárquica”, no sentido de que a competição e o objetivo do lucro promoviam uma desordem nos mercados, na produção, o que, obviamente, geraria dificuldades na reprodução do capitalismo e facilitaria o desenvolvimento de crises. Sem dúvida, Marx abordava o modo de produção capitalista e sua dinâmica. E isso é fundamental para entendermos o que ocorre hoje em relação à pandemia.

Ao invés de “anarquia”, consideramos que entropia é um termo mais adequado para explicar essa característica do modo de produção capitalista. A ideia de entropia capitalista aponta que o modo de produção capitalista é composto por inúmeros capitais que buscam o lucro e através da competição de uns com os outros, visam aumentar seus lucros, ganhar espaços, conquistar mercado consumidor, etc. Esse processo gera não uma “mão invisível”, mas uma entropia, ou seja, um alto de grau de desordem e aleatoriedade, derivada do movimento dos capitais individuais, da contradição de interesses da diversidade de capitais individuais, da competição e dispersão dos mesmos, defasagem entre oferta e procura, ampliação e retração do mercado consumidor, etc.

Sem dúvida, é uma entropia relativa e por isso a ideia de mão invisível consegue obter a aparência de veracidade, já que possui um momento de verdade. A relação entre oferta e demanda, em que pese se for isolada promove equívocos, e mais ainda se se tornar o determinante das relações sociais envolvidas no processo de produção e distribuição, aponta para certa “correção” nessas relações, mas é marcada muito mais por desordem e aleatoriedade. Nesse sentido, se poderia perguntar então como o modo de produção capitalista sobrevive. Ora, o aparato estatal cumpre a função geral de regularizar as relações de produção capitalistas e o conjunto das relações sociais e assim diminui os efeitos da entropia capitalista. A expressão de Engels, denominando o Estado como “capitalista coletivo ideal”[3] explicita esse processo no qual esta instituição, representando os interesses gerais da classe capitalista, atua para evitar as crises, diminuir a entropia, etc. É preciso deixar claro que o aparato estatal não é benéfico para o proletariado ou para o conjunto da população e sim para a classe capitalista e o que ele efetiva é a reprodução do modo de produção capitalista, o que significa reprodução da exploração, da dominação, e de todos os processos derivados do capitalismo (crises, mercantilização das relações sociais, pobreza, destruição ambiental, etc.).

O que tem tudo isso a ver com a pandemia? Esse processo explica, parcialmente, a força da pandemia do coronavírus. A entropia capitalista dificulta uma ação mais coerente, organizada e eficaz para conter a pandemia. E o Estado capitalista deveria ser o grande adversário da pandemia, tanto em seus efeitos econômicos quanto sanitários. Um Estado capitalista mais intervencionista, como foi o integracionista (keynesiano), permitiria uma maior capacidade de controle estatal tanto na economia quando no conjunto da sociedade e, por conseguinte, maior eficácia no combate ao coronavírus. Porém, obviamente que isso é relativo e não abole a entropia. Contudo, a passagem do regime de acumulação conjugado (1945-1980) para o regime de acumulação integral (1980) gerou uma menor capacidade de intervenção estatal com a ascensão do neoliberalismo[4]. As privatizações, desregulamentação, responsabilização da sociedade civil, entre outros processos que caracterizam o neoliberalismo, promoveram uma intensificação da entropia. Claro que quando essa entropia atua e gera crises, o Estado neoliberal abandona seus pressupostos e realiza a intervenção econômica, como ocorreu na crise financeira de 2008 nos Estados Unidos (e que se espalhou para outros países) e assim diminui o impacto da crise, especialmente para o capital (no caso, o bancário).

Assim, o Estado neoliberal permite uma maior presença da entropia capitalista. Porém, as mudanças do capitalismo geraram outros elementos que reforçam a entropia capitalista. Um deles é o novo paradigma hegemônico, o subjetivismo. O paradigma subjetivista é um processo mental subjacente que passa a enfatizar o sujeito e a subjetividade[5]. Seja o indivíduo de escolha “racional” do neoliberalismo, seja o indivíduo como “máquina desejante” do pós-estruturalismo, ou, ainda, os grupos sociais e suas identidades, tal como se vê no discurso identitário, o sujeito se tornou “soberano” no mundo ideológico comandado pelo paradigma subjetivista. Assim, o hedonismo, o narcisismo, a incapacidade de aceitar contrariedade ou disciplina, a “hipersensibilidade”, o neoindividualismo, o consumismo, se aliam e reforçam a competição social num processo de mercantilização e burocratização crescentes[6]. Esse processo, que visa fornecer uma ilusão de liberdade para os indivíduos e grupos sociais (as classes sociais são expulsas do discurso ou aparecem como equivalentes a grupos sociais ou algo secundário, irrelevante) ou a ideia culturalista de tudo é uma “construção cultural” (sendo suficiente a ocorrência de mudanças culturais para realizar sua suposta “desconstrução”), gera uma política que reforça a indisciplina, o sentimentalismo, etc. E isso é reforçado pelo populismo que, sob pretexto de combater a “meritocracia”, acaba gerando uma indiscriminação generalizada ou uma “discriminação positiva” para beneficiar determinados grupos (esse é o discurso, mas, no fundo, se beneficia indivíduos em situação superior nesses grupos ou então ascendentes que são cooptados, na maioria dos casos), o que funciona parcialmente e para setores minoritários[7].

Assim, as políticas neoliberais de responsabilização da sociedade civil e inclusão, entre outras, bem como o paradigma subjetivista, que lhe serve como uma luva, geram um processo que enfraquece o humanismo (no máximo se tem um “humanismo seletivo”, que só forçando a barra poderia ser assim chamado, através da “empatia”, ou seja, novamente uma responsabilização e iniciativa do “sujeito”, especialmente os indivíduos), a capacidade de disciplina e sacrifício, etc., e reforça o individualismo, narcisismo, hedonismo, que, por sua vez, gera um reforço do egoísmo, indisciplina, etc. Isso gera, por conseguinte, um efeito na sociedade civil, que é uma maior entropia no conjunto das relações sociais e uma menor capacidade de organização, autocontrole, cooperação.

O paradigma subjetivista, por sua vez, permite, já que o sujeito é o centro (e a internet e as redes sociais virtuais reforçam isso) e o “soberano”, e a “objetividade” (bem como a ciência, razão, teoria, etc.) é desvalorada e desacreditada, a proliferação de ideologias, doutrinas, discursos, totalmente desvinculados de senso de realidade e maior fundamentação, o que se espalha pela sociedade. Isso reforça conflitos discursivos, animosidades e outros efeitos divisionistas na sociedade. As polarizações políticas e morais também tornam o nível de racionalidade ainda menor e reforçam essa entropia social.

Esse processo, por sua vez, diminui ainda mais a capacidade de combater a pandemia no capitalismo contemporâneo. Se o combate à pandemia, no capitalismo, é algo difícil por sua entropia, num regime de acumulação no qual a entropia se torna muito mais ampla, então a possibilidade de superação de pandemias se vê extremamente reduzida. A “irracionalidade” (entropia) do capitalismo se ampliou e se espalhou para a sociedade civil e cultura, o que diminui a capacidade estatal de intervenção, bem como gera uma sociedade civil fragmentada, pulverizada, desorganizada, irracional, o que torna a situação propícia para a expansão da pandemia.

No caso brasileiro, a entropia é muito mais ampla do que em outros países e isso explica a atual situação caótica e catastrófica do nosso país. A entropia no caso brasileiro é mais ampla devido as políticas neoliberais, que emergem com o governo Collor e se aprofunda com os governos Itamar Franco, FHC, Lula, Dilma, Temer, até chegar ao atual governo Bolsonaro. As políticas educacionais neoliberais e reprodutoras do paradigma subjetivista pioraram o quadro e tornaram a população ainda mais frágil, despolitizada, despreparada. Porém, além de neoliberalismo, domesticado pelo conservantismo[8], numa aliança com objetivos eleitorais, se soma o “reino da incompetência destreinada”. Um governo liberal-conservantista marcado pela incompetência e influenciado por doutrinas exóticas, diminui ainda mais a capacidade estatal de controle da pandemia, bem como a pressão de apoiadores o torna presa ainda mais fácil de políticas equivocadas. E isso é reforçado pelas ações da sociedade civil, já dominadas pelas ideologias, doutrinas, discursos e representações cotidianas correspondentes ao paradigma subjetivista, que gera desde os hedonistas irresponsáveis que não conseguem conter seus “desejos” (é uma “máquina desejante” incontrolável e fora do controle até se deparar com o coronavírus, pois aí o controle “externo” do organismo se impõe), pessoas que acreditam que não existe pandemia, indivíduos sem autocontrole ou com baixa racionalidade, entre diversos elementos, o que se amplia em certos momentos (com as festas de fim de ano e outras festas que são em parte responsáveis pela expansão ampliada no início de 2021), o que se soma ao processo de ansiedade e vontade normal de volta à situação normal que atinge a população em geral.

Um governo incapaz e incompetente e uma população despolitizada e igualmente incapaz de se organizar são uma mistura explosiva em uma situação de pandemia. E, para piorar a situação, a pandemia reforça a entropia. A crise sanitária acaba se manifestando numa ampliação de infectados pelo vírus e numa capacidade hospitalar limitada – que sofreu uma ampliação, tal como nos hospitais de campanha, que alguns governadores providenciaram, mas muito aquém do que se tornou necessário –, o que gera um aumento drástico do número de mortos e pessoas sem atendimento médico-hospitalar. Essa desproporção entre oferta e demanda é gerada pela pandemia, mas esta não gera entropia apenas neste caso, como também na produção de certas mercadorias[9], no aumento do desemprego, etc. O aparato estatal, com o auxílio emergencial, diminuiu um pouco os efeitos sobre certos setores da população e gerou uma certa capacidade aquisitiva para um setor do mercado consumidor em pior situação, mas isso não resolveu, e nem poderia resolver, a questão. A pandemia reforça a entropia, e a entropia tende a reforçar a pandemia. Quanto mais pessoas infectadas fora dos hospitais ou sem saber que está contaminado (falta de testes), ou, ainda, desconsiderando os riscos (os irresponsáveis) ou constrangidas a correr riscos para garantir a sobrevivência (os trabalhadores manuais, desempregados, etc., ou seja, setores do proletariado, do campesinato e o lumpemproletariado), maior é a força da pandemia. A existência de mutações do vírus e sua possível maior transmissibilidade e letalidade tornam o quadro ainda pior.

Mas o pior de tudo é que, num contexto de pandemia, não é possível uma ação da sociedade civil visando mudar os rumos. Protestos de rua, manifestações, e outras formas de pressão e ação estão inviabilizadas no atual contexto, pois poderia contribuir com a disseminação do vírus. A pressão virtual poderia compensar parcialmente, mas com o subjetivismo reinante ao lado do oportunismo político-partidário e eleitoralismo, bem como a dificuldade de articulação e desenvolvimento da consciência num contexto de divisionismo, fragmentação, grupismo, entre outros problemas, a torna ainda menos capaz de exercer alguma pressão eficaz. Os detentores do poder estão imóveis e se mostram incapazes de maior ação. O grande capital e as instituições mais influentes mostram sua incapacidade de iniciativa no atual contexto. O governo, por sua vez, se mostra imprestável e incapaz de mudar de rumo por conta própria. Assim, a atual situação da pandemia na sociedade brasileira é dramática e esse drama parece que não terá fim tão rápido e mesmo quando essa novela acabar, as sequelas, não apenas do coronavírus, mas psíquicas, econômicas e culturais, serão enormes.

O regime de acumulação integral se encontrava em um processo de desestabilização antes da pandemia e esta apontava para gerar uma crise desse regime de acumulação. Contudo, a classe capitalista conseguiu manter o processo de exploração e conter uma situação mais dramática, com o apoio estatal maior ou menor dependendo do país, à custa dos trabalhadores, constrangidos ao trabalho, ao transporte público, etc. A tendência continua, mas sua ocorrência não se efetivou, apesar do PIB de vários países ter caído, o desemprego aumentado, etc. Tudo indica que os Estados nacionais, instituições e empresas capitalistas estão conseguindo conter uma situação mais explosiva, e a pandemia está dificultando uma reação popular mais ampla e sendo responsabilizada pelos problemas sociais existentes a partir de sua emergência. Porém, essa contenção pode ou não se manter, e o fim da pandemia, que devido a entropia capitalista é difícil prever[10], tende a gerar novos conflitos sociais no pós-pandemia. A desestabilização poderá, por conseguinte, se transformar em uma crise do regime de acumulação integral. E ela, uma vez iniciada, pode desencadear uma crise do capitalismo[11], com a reemergência do proletariado na cena política, o que, por sua vez, reforça a tendência de uma transformação social no sentido de uma sociedade autogerida, abolindo a entropia e possibilitando o controle e resolução mais rápida dos surtos de doenças contagiosas.

A questão inicial colocada a respeito de como uma sociedade altamente desenvolvida tecnologicamente não consegue controlar uma pandemia tem sua resposta na entropia capitalista, que é reforçada na atual fase do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação integral. A solução, evidentemente, só pode ser a transformação total e radical das relações sociais, superando a sociedade entrópica por uma sociedade autogerida. O que se pode fazer, nesse contexto, é uma dupla ação, uma visando combater a pandemia e reduzir seus danos, por um lado, e outra efetivando uma luta pela transformação social com todos os meios possíveis no contexto atual, tais como os culturais, virtuais, etc. O futuro será decidido a partir das ações presentes e por isso é preciso agir. E agir reforçando a tendência que queremos que se realize, o que pressupõe senso crítico e reflexão.

 



[1] Cf. MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

[2] Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1984.

[3] ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Global, 1978.

[4] Cf. VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009; ALMEIDA, Felipe Mateus de (org.). O Regime de Acumulação Integral. Retratos do Capitalismo Contemporâneo. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

[5] Cf. VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.

[6] Esse é um processo contraditório, pois há um aumento do controle burocrático (e com uso de tecnologia) e um discurso ilusório de maior liberdade, mas isso é desviado para a questão da liberação individual, sexual, etc. em detrimento da liberdade organizacional, política, etc.

[9] A produção de vacinas é o principal exemplo, mas a produção de mercadorias mais baratas e de eficácia menor, como no caso de máscaras, é algo corriqueiro no capitalismo e que gera consequências desastrosas no contexto de uma pandemia.

[10] O fim da pandemia depende da ação estatal, comportamento da população, produção e eficácia real de vacinas, etc., sendo diversas determinações que, numa sociedade entrópica, é difícil prever o que ocorrerá.

[11] A tendência para a crise do regime de acumulação integral é reforçada com a pandemia e, uma vez ocorrendo, pode gerar uma crise do capitalismo. São duas crises diferentes. A primeira é uma crise no capitalismo, no qual determinado regime de acumulação encontra dificuldades de reprodução; a segunda é uma crise do capitalismo, ou seja, uma crise na qual o proletariado e outros setores da sociedade colocam em questão as relações de produção capitalistas. Toda crise de um regime de acumulação tende a se transformar numa crise do capitalismo, mas isso depende de múltiplas determinações e da luta de classes. Aqui tratamos de tendências e não de fatalismo, pois existem um conjunto de determinações e as tendências caminham junto com contratendências. Logo, a análise aqui não aponta para nenhum fatalismo, como alguns intérpretes simplistas insistem em atribuir, seja por falta de entendimento, seja por má fé. A ignorância ou a má fé faz trocar tendência por fatalidade, crise de regime de acumulação por crise do capitalismo, após a pandemia por durante a pandemia, entre outras peripécias interpretativas.

domingo, 14 de março de 2021

DIA 18 DE MARÇO, 150 ANOS DEPOIS: Mesa redonda: A COMUNA DE PARIS HOJE



 https://www.youtube.com/watch?v=P8TiLnTNa8E

DIA 18 DE MARÇO, 150 ANOS DEPOIS:
Mesa redonda:
A COMUNA DE PARIS HOJE
Palestrantes:
Dr. José Santana da Silva/UEG
Dr. Lisandro Braga/UFPR
Dr. Nildo Viana/UFG

Dia 18 de Março, 08:00 - 12:00
Via Youtube

No dia 18 de Março de 1871 foi proclamada a Comuna de Paris. No dia 18 de março de 2021, 150 anos depois, o GPDS/UFG; NPM/UEG e Edições Enfrentamento estarão promovendo a Mesa Redonda "A Comuna de Paris Hoje".
Esse ano comemoramos 150 anos da Comuna de Paris. Em 1871, os proletários parisienses buscaram efetivar a primeira revolução proletária da história. No calor da luta, muitas interpretações e projetos se apresentaram, e logo após a derrota, muitas interpretações surgiram, desde as clássicas, como a de Marx, até as de outros pensadores, correntes, etc. Posteriormente, os historiadores também passaram a tratar dessa experiência revolucionária, e, em menor grau, cientistas políticos e sociólogos. Para os marxistas autogestionários, para várias outras tendências políticas, a Comuna de Paris é um marco histórico e político de grande valor. Sob formas diferentes, diversas correntes políticas saudaram e continuam saudando a luta do proletariado parisiense. No âmbito acadêmico, vários estudos e textos são produzidos sobre esse evento histórico. Assim, a importância política, social, acadêmica da Comuna de Paris é evidente.
A Mesa Redonda "A Comuna de Paris Hoje" está conectada ao curso de extensão "Comuna de Paris: 150 anos". ​
Promoção:
GPDS: Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade/FCS/UFG.
NPM: Núcleo de Pesquisa Marxista/UEG.
Edições Enfrentamento



domingo, 7 de março de 2021

A Comuna de Paris: A Autogestão dos Trabalhadores

 


A Comuna de Paris: A Autogestão dos Trabalhadores

 

Nildo Viana


 

A Comuna de Paris foi um acontecimento histórico de grande importância como a primeira tentativa de revolução e autogestão dos trabalhadores. Ela foi recebida com entusiasmo pelos mais famosos teóricos do comunismo e do anarquismo, desde Marx e Bakunin, passando por Kropotkin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Lênin, Trotsky, Korsch, Lefebvre, até chegar aos contemporâneos. Muitos historiadores e sociólogos também se dedicaram ao estudo desse acontecimento extraordinário. Ela terminou com um banho de sangue, com 20 mil operários fuzilados. Apesar de sua derrota e fim trágico, se tornou uma das mais persistentes fontes de inspiração de movimentos contestadores. Entender a Comuna de Paris significa, portanto, entender um capítulo dos mais importantes da história da modernidade, do movimento operário e do movimento comunista.

A Comuna de Paris ocorreu graças a dois processos interligados. Por um lado, o desenvolvimento industrial emergente na França, especialmente em Paris, apontava para uma classe operária em formação, convivendo com vários outros trabalhadores do campo e da cidade, como camponeses, artesãos, comerciários, entre outros. Uma enorme máquina burocrática se formou com a constituição do estado bonapartista. As péssimas condições de trabalho, a intensa exploração, as condições precárias de vida, eram razão para uma enorme insatisfação. Nessa época, o movimento socialista tinha uma grande presença nos meios operários. A cultura socialista que reunia a insatisfação dos operários com a proposta de transformação social provocava o temor dos poderosos e gerava até mesmo estudos como os do psicólogo Gustave Le Bon e do Sociólogo Gabriel Tarde a respeito das “multidões”, “revoluções”, opiniões e crenças.

O outro processo foi a guerra franco-alemã. Uma disputa antiga entre os dois grandes impérios, o francês e o prussiano, acabou estourando e gerando uma guerra que bateu às portas de Paris. A força superior dos alemães e sua vitória eminente marcaram a capitulação do governo francês e a resistência da população parisiense através de sua guarda nacional e outros setores que receberam armas para enfrentar o exército inimigo. Esse processo ficou conhecido, através da pena de Karl Marx (1813-1883), teórico do comunismo, como o “povo em armas”. A partir desse momento, os trabalhadores não apenas organizaram milícias operárias, mas também começaram a gigantesca tarefa de reorganização da sociedade por conta própria, sem um aparato burocrático comandado por dirigentes estatais. Era o processo de abolição do Estado, como órgão central burocrático, e de autogestão da cidade de Paris.

A Comuna de Paris foi decretada no dia 18 de março de 1871 e teve uma curta duração de dois meses. Apesar de sua curta duração, iniciou um conjunto de mudanças que esboçavam uma sociedade comunista. Algumas foram apenas anunciadas, outras iniciadas e algumas foram desenvolvidas. Entre essas iniciativas estavam a abolição do exército permanente e sua substituição pela auto-organização armada da própria população, a substituição do aparato estatal burocrático pelo autogoverno dos produtores, a desapropriação de casas vazias e sua ocupação por trabalhadores sem residência própria, entre outras. Outras mudanças foram iniciadas, como a alteração nas relações entre homens e mulheres, pais e filhos, antes dominadas por autoritarismo, sendo substituídas por relações igualitárias. Uma nova forma de educação, fundada em princípios autogestionários, começou a ser efetivada em substituição da antiga forma tradicional e autoritária. A autogestão foi concretizada também nas fábricas abandonadas pelos capitalistas.

Algumas medidas não superaram os limites do capitalismo por causa do curto tempo de dois meses desta experiência. Esse foi o caso de medidas como a adoção de salários iguais a de operários para todos os trabalhadores sem nenhuma distinção. O projeto comunista, desde Marx, apontava para a abolição do trabalho assalariado, o que não seria possível concretizar no período de dois meses numa cidade sitiada por um poderoso inimigo militar.

O grande feito da Comuna, no entanto, foi a autogestão territorial, não apenas das milícias populares, mas da gestão da cidade como um todo. A Comuna se organizou através de assembleias que efetivam as decisões coletivas e de delegados comunais, numa cidade que na época tinha mais de um milhão de habitantes e recursos tecnológicos e de transporte muito limitados, comparando-se com os dias de hoje. Era uma época em que os principais meios de comunicação eram o telégrafo e as correspondências sob forma de carta. O telefone, rádio e televisão seriam coisas do futuro. Os carros eram de uso apenas da elite e o trem era o principal meio de transporte coletivo e o transporte urbano era o ônibus puxado por cavalos, o bonde elétrico começaria ser usado em 1875, quatro anos depois.

É nesse contexto que a Comuna se organizou de forma autogerida. Os delegados comunais eram substituíveis, removíveis, eleitos e responsáveis. Os delegados eram eleitos, mas não tinham mandato fixo, sendo que eram substituíveis e removíveis a qualquer momento, desde que a coletividade assim o desejasse. O elemento mais importante, no entanto, é o fato de serem responsáveis. A responsabilidade significa que os delegados não podiam se autonomizar, criar ou defender interesses próprios. O seu papel era executar as decisões coletivas da Comuna sem autonomia para decidir por conta própria.

A Comuna de Paris se tornou grande referência para todas as tendências revolucionárias por ter sido a primeira tentativa de revolução proletária. Além disso, para certos setores, ela representava um modelo a ser seguido e que se diferenciava dos regimes burocráticos do “socialismo real”. Hoje é ainda o desejo e modelo de muitos. Outros questionam as falhas e limites dessa experiência. E nesse debate entre as diversas posições diante da Comuna, uma questão é sempre recolocada: é possível uma sociedade fundada na autogestão generalizada?

 

Box 01:

 

A Comuna de Paris foi saudada por todas as tendências políticas de sua época. O anarquista Bakunin e o comunista Marx fizeram a sua defesa sob forma semelhante. Uma polêmica entre marxistas e anarquistas foi desencadeada a partir do escrito de Marx. Os anarquistas passaram a dizer que o texto de Marx era contrário a tudo que ele havia escrito e defendido anteriormente, pois ele seria “estatista” e “autoritário”. Porém, os anarquistas confundiam Marx com os marxistas, ou seja, os social-democratas alemães do final do século 19 e os bolcheviques russos do início do século 20. Marx já havia escrito sobre a necessidade de abolição da máquina burocrática do Estado em seu livro O Dezoito do Brumário, escrito antes desse evento histórico. Após a Comuna, ele afirma que a classe operária havia finalmente descoberto a forma política como isso se realiza: o autogoverno dos produtores. E por isso as medidas que havia proposto no Manifesto Comunista sobre estatização são abandonadas e explicitadas nos prefácios das edições posteriores desse livro.


Nildo Viana

Universidade Federal de Goiás

Autor do livro: Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

Saiba mais:

MARX, Karl. A Guerra Civil na França. Rio de Janeiro: Global, 1986.

LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. 2ª edição, São Paulo: Ensaio, 1995.

GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris. Os Assaltantes do Céu. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1982.

https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n6p60/20270


Publicado originalmente com o título "A Cidade contra o Estado", em:

Revista de História da Biblioteca Nacional ano 11, nº 122, 2015.


https://informecritica.blogspot.com/2015/11/a-cidade-sem-estado-revista-de-historia.html

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