A
Comuna de Paris: A Autogestão dos Trabalhadores
Nildo Viana
A Comuna de Paris foi um acontecimento histórico de grande
importância como a primeira tentativa de revolução e autogestão dos
trabalhadores. Ela foi recebida com entusiasmo pelos mais famosos teóricos do
comunismo e do anarquismo, desde Marx e Bakunin, passando por Kropotkin, Rosa
Luxemburgo, Kautsky, Lênin, Trotsky, Korsch, Lefebvre, até chegar aos contemporâneos.
Muitos historiadores e sociólogos também se dedicaram ao estudo desse
acontecimento extraordinário. Ela terminou com um banho de sangue, com 20 mil
operários fuzilados. Apesar de sua derrota e fim trágico, se tornou uma das
mais persistentes fontes de inspiração de movimentos contestadores. Entender a
Comuna de Paris significa, portanto, entender um capítulo dos mais importantes
da história da modernidade, do movimento operário e do movimento comunista.
A Comuna de Paris ocorreu graças a dois processos
interligados. Por um lado, o desenvolvimento industrial emergente na França,
especialmente em Paris, apontava para uma classe operária em formação,
convivendo com vários outros trabalhadores do campo e da cidade, como
camponeses, artesãos, comerciários, entre outros. Uma enorme máquina
burocrática se formou com a constituição do estado bonapartista. As péssimas
condições de trabalho, a intensa exploração, as condições precárias de vida,
eram razão para uma enorme insatisfação. Nessa época, o movimento socialista
tinha uma grande presença nos meios operários. A cultura socialista que reunia
a insatisfação dos operários com a proposta de transformação social provocava o
temor dos poderosos e gerava até mesmo estudos como os do psicólogo Gustave Le
Bon e do Sociólogo Gabriel Tarde a respeito das “multidões”, “revoluções”,
opiniões e crenças.
O outro processo foi a guerra franco-alemã. Uma disputa
antiga entre os dois grandes impérios, o francês e o prussiano, acabou
estourando e gerando uma guerra que bateu às portas de Paris. A força superior
dos alemães e sua vitória eminente marcaram a capitulação do governo francês e
a resistência da população parisiense através de sua guarda nacional e outros
setores que receberam armas para enfrentar o exército inimigo. Esse processo
ficou conhecido, através da pena de Karl Marx (1813-1883), teórico do
comunismo, como o “povo em armas”. A partir desse momento, os trabalhadores não
apenas organizaram milícias operárias, mas também começaram a gigantesca tarefa
de reorganização da sociedade por conta própria, sem um aparato burocrático
comandado por dirigentes estatais. Era o processo de abolição do Estado, como
órgão central burocrático, e de autogestão da cidade de Paris.
A Comuna de Paris foi decretada no dia 18 de março de 1871 e
teve uma curta duração de dois meses. Apesar de sua curta duração, iniciou um
conjunto de mudanças que esboçavam uma sociedade comunista. Algumas foram apenas
anunciadas, outras iniciadas e algumas foram desenvolvidas. Entre essas
iniciativas estavam a abolição do exército permanente e sua substituição pela
auto-organização armada da própria população, a substituição do aparato estatal
burocrático pelo autogoverno dos produtores, a desapropriação de casas vazias e
sua ocupação por trabalhadores sem residência própria, entre outras. Outras
mudanças foram iniciadas, como a alteração nas relações entre homens e
mulheres, pais e filhos, antes dominadas por autoritarismo, sendo substituídas
por relações igualitárias. Uma nova forma de educação, fundada em princípios
autogestionários, começou a ser efetivada em substituição da antiga forma
tradicional e autoritária. A autogestão foi concretizada também nas fábricas
abandonadas pelos capitalistas.
Algumas medidas não superaram os limites do capitalismo por
causa do curto tempo de dois meses desta experiência. Esse foi o caso de
medidas como a adoção de salários iguais a de operários para todos os
trabalhadores sem nenhuma distinção. O projeto comunista, desde Marx, apontava
para a abolição do trabalho assalariado, o que não seria possível concretizar no
período de dois meses numa cidade sitiada por um poderoso inimigo militar.
O grande feito da Comuna, no entanto, foi a autogestão
territorial, não apenas das milícias populares, mas da gestão da cidade como um
todo. A Comuna se organizou através de assembleias que efetivam as decisões
coletivas e de delegados comunais, numa cidade que na época tinha mais de um
milhão de habitantes e recursos tecnológicos e de transporte muito limitados,
comparando-se com os dias de hoje. Era uma época em que os principais meios de
comunicação eram o telégrafo e as correspondências sob forma de carta. O
telefone, rádio e televisão seriam coisas do futuro. Os carros eram de uso
apenas da elite e o trem era o principal meio de transporte coletivo e o
transporte urbano era o ônibus puxado por cavalos, o bonde elétrico começaria
ser usado em 1875, quatro anos depois.
É nesse contexto que a Comuna se organizou de forma
autogerida. Os delegados comunais eram substituíveis, removíveis, eleitos e
responsáveis. Os delegados eram eleitos, mas não tinham mandato fixo, sendo que
eram substituíveis e removíveis a qualquer momento, desde que a coletividade
assim o desejasse. O elemento mais importante, no entanto, é o fato de serem
responsáveis. A responsabilidade significa que os delegados não podiam se
autonomizar, criar ou defender interesses próprios. O seu papel era executar as
decisões coletivas da Comuna sem autonomia para decidir por conta própria.
A Comuna de Paris se tornou grande referência para todas as
tendências revolucionárias por ter sido a primeira tentativa de revolução
proletária. Além disso, para certos setores, ela representava um modelo a ser
seguido e que se diferenciava dos regimes burocráticos do “socialismo real”.
Hoje é ainda o desejo e modelo de muitos. Outros questionam as falhas e limites
dessa experiência. E nesse debate entre as diversas posições diante da Comuna, uma
questão é sempre recolocada: é possível uma sociedade fundada na autogestão
generalizada?
Box 01:
A Comuna de Paris foi
saudada por todas as tendências políticas de sua época. O anarquista Bakunin e
o comunista Marx fizeram a sua defesa sob forma semelhante. Uma polêmica entre
marxistas e anarquistas foi desencadeada a partir do escrito de Marx. Os anarquistas
passaram a dizer que o texto de Marx era contrário a tudo que ele havia escrito
e defendido anteriormente, pois ele seria “estatista” e “autoritário”. Porém,
os anarquistas confundiam Marx com os marxistas, ou seja, os social-democratas
alemães do final do século 19 e os bolcheviques russos do início do século 20.
Marx já havia escrito sobre a necessidade de abolição da máquina burocrática do
Estado em seu livro O Dezoito do Brumário,
escrito antes desse evento histórico. Após a Comuna, ele afirma que a classe
operária havia finalmente descoberto a forma política como isso se realiza: o
autogoverno dos produtores. E por isso as medidas que havia proposto no Manifesto Comunista sobre estatização
são abandonadas e explicitadas nos prefácios das edições posteriores desse
livro.
Nildo Viana
Universidade Federal de Goiás
Autor do livro: Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
Saiba mais:
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. Rio de Janeiro: Global, 1986.
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. 2ª edição, São Paulo: Ensaio, 1995.
GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris. Os Assaltantes do Céu. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1982.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n6p60/20270
Publicado originalmente com o título "A Cidade contra o Estado", em:
Revista de História da Biblioteca Nacional ano 11, nº 122, 2015.
https://informecritica.blogspot.com/2015/11/a-cidade-sem-estado-revista-de-historia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário