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domingo, 7 de março de 2021

A Comuna de Paris: A Autogestão dos Trabalhadores

 


A Comuna de Paris: A Autogestão dos Trabalhadores

 

Nildo Viana


 

A Comuna de Paris foi um acontecimento histórico de grande importância como a primeira tentativa de revolução e autogestão dos trabalhadores. Ela foi recebida com entusiasmo pelos mais famosos teóricos do comunismo e do anarquismo, desde Marx e Bakunin, passando por Kropotkin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Lênin, Trotsky, Korsch, Lefebvre, até chegar aos contemporâneos. Muitos historiadores e sociólogos também se dedicaram ao estudo desse acontecimento extraordinário. Ela terminou com um banho de sangue, com 20 mil operários fuzilados. Apesar de sua derrota e fim trágico, se tornou uma das mais persistentes fontes de inspiração de movimentos contestadores. Entender a Comuna de Paris significa, portanto, entender um capítulo dos mais importantes da história da modernidade, do movimento operário e do movimento comunista.

A Comuna de Paris ocorreu graças a dois processos interligados. Por um lado, o desenvolvimento industrial emergente na França, especialmente em Paris, apontava para uma classe operária em formação, convivendo com vários outros trabalhadores do campo e da cidade, como camponeses, artesãos, comerciários, entre outros. Uma enorme máquina burocrática se formou com a constituição do estado bonapartista. As péssimas condições de trabalho, a intensa exploração, as condições precárias de vida, eram razão para uma enorme insatisfação. Nessa época, o movimento socialista tinha uma grande presença nos meios operários. A cultura socialista que reunia a insatisfação dos operários com a proposta de transformação social provocava o temor dos poderosos e gerava até mesmo estudos como os do psicólogo Gustave Le Bon e do Sociólogo Gabriel Tarde a respeito das “multidões”, “revoluções”, opiniões e crenças.

O outro processo foi a guerra franco-alemã. Uma disputa antiga entre os dois grandes impérios, o francês e o prussiano, acabou estourando e gerando uma guerra que bateu às portas de Paris. A força superior dos alemães e sua vitória eminente marcaram a capitulação do governo francês e a resistência da população parisiense através de sua guarda nacional e outros setores que receberam armas para enfrentar o exército inimigo. Esse processo ficou conhecido, através da pena de Karl Marx (1813-1883), teórico do comunismo, como o “povo em armas”. A partir desse momento, os trabalhadores não apenas organizaram milícias operárias, mas também começaram a gigantesca tarefa de reorganização da sociedade por conta própria, sem um aparato burocrático comandado por dirigentes estatais. Era o processo de abolição do Estado, como órgão central burocrático, e de autogestão da cidade de Paris.

A Comuna de Paris foi decretada no dia 18 de março de 1871 e teve uma curta duração de dois meses. Apesar de sua curta duração, iniciou um conjunto de mudanças que esboçavam uma sociedade comunista. Algumas foram apenas anunciadas, outras iniciadas e algumas foram desenvolvidas. Entre essas iniciativas estavam a abolição do exército permanente e sua substituição pela auto-organização armada da própria população, a substituição do aparato estatal burocrático pelo autogoverno dos produtores, a desapropriação de casas vazias e sua ocupação por trabalhadores sem residência própria, entre outras. Outras mudanças foram iniciadas, como a alteração nas relações entre homens e mulheres, pais e filhos, antes dominadas por autoritarismo, sendo substituídas por relações igualitárias. Uma nova forma de educação, fundada em princípios autogestionários, começou a ser efetivada em substituição da antiga forma tradicional e autoritária. A autogestão foi concretizada também nas fábricas abandonadas pelos capitalistas.

Algumas medidas não superaram os limites do capitalismo por causa do curto tempo de dois meses desta experiência. Esse foi o caso de medidas como a adoção de salários iguais a de operários para todos os trabalhadores sem nenhuma distinção. O projeto comunista, desde Marx, apontava para a abolição do trabalho assalariado, o que não seria possível concretizar no período de dois meses numa cidade sitiada por um poderoso inimigo militar.

O grande feito da Comuna, no entanto, foi a autogestão territorial, não apenas das milícias populares, mas da gestão da cidade como um todo. A Comuna se organizou através de assembleias que efetivam as decisões coletivas e de delegados comunais, numa cidade que na época tinha mais de um milhão de habitantes e recursos tecnológicos e de transporte muito limitados, comparando-se com os dias de hoje. Era uma época em que os principais meios de comunicação eram o telégrafo e as correspondências sob forma de carta. O telefone, rádio e televisão seriam coisas do futuro. Os carros eram de uso apenas da elite e o trem era o principal meio de transporte coletivo e o transporte urbano era o ônibus puxado por cavalos, o bonde elétrico começaria ser usado em 1875, quatro anos depois.

É nesse contexto que a Comuna se organizou de forma autogerida. Os delegados comunais eram substituíveis, removíveis, eleitos e responsáveis. Os delegados eram eleitos, mas não tinham mandato fixo, sendo que eram substituíveis e removíveis a qualquer momento, desde que a coletividade assim o desejasse. O elemento mais importante, no entanto, é o fato de serem responsáveis. A responsabilidade significa que os delegados não podiam se autonomizar, criar ou defender interesses próprios. O seu papel era executar as decisões coletivas da Comuna sem autonomia para decidir por conta própria.

A Comuna de Paris se tornou grande referência para todas as tendências revolucionárias por ter sido a primeira tentativa de revolução proletária. Além disso, para certos setores, ela representava um modelo a ser seguido e que se diferenciava dos regimes burocráticos do “socialismo real”. Hoje é ainda o desejo e modelo de muitos. Outros questionam as falhas e limites dessa experiência. E nesse debate entre as diversas posições diante da Comuna, uma questão é sempre recolocada: é possível uma sociedade fundada na autogestão generalizada?

 

Box 01:

 

A Comuna de Paris foi saudada por todas as tendências políticas de sua época. O anarquista Bakunin e o comunista Marx fizeram a sua defesa sob forma semelhante. Uma polêmica entre marxistas e anarquistas foi desencadeada a partir do escrito de Marx. Os anarquistas passaram a dizer que o texto de Marx era contrário a tudo que ele havia escrito e defendido anteriormente, pois ele seria “estatista” e “autoritário”. Porém, os anarquistas confundiam Marx com os marxistas, ou seja, os social-democratas alemães do final do século 19 e os bolcheviques russos do início do século 20. Marx já havia escrito sobre a necessidade de abolição da máquina burocrática do Estado em seu livro O Dezoito do Brumário, escrito antes desse evento histórico. Após a Comuna, ele afirma que a classe operária havia finalmente descoberto a forma política como isso se realiza: o autogoverno dos produtores. E por isso as medidas que havia proposto no Manifesto Comunista sobre estatização são abandonadas e explicitadas nos prefácios das edições posteriores desse livro.


Nildo Viana

Universidade Federal de Goiás

Autor do livro: Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

Saiba mais:

MARX, Karl. A Guerra Civil na França. Rio de Janeiro: Global, 1986.

LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. 2ª edição, São Paulo: Ensaio, 1995.

GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris. Os Assaltantes do Céu. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1982.

https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n6p60/20270


Publicado originalmente com o título "A Cidade contra o Estado", em:

Revista de História da Biblioteca Nacional ano 11, nº 122, 2015.


https://informecritica.blogspot.com/2015/11/a-cidade-sem-estado-revista-de-historia.html

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