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quarta-feira, 31 de julho de 2019

MEMÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS



MEMÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS

Nildo Viana

Resumo:
Os movimentos sociais ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O desenvolvimento da compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido de desbravar novos aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre memória social e movimentos sociais. A memória social é um tema sociológica também antigo, embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e que remete ao problema dos grupos e classes sociais e seus discursos, produzidos socialmente, sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua vez, são perpassados por lutas. Os movimentos sociais, com toda sua complexidade, divisões, mutações, também precisam resgatar sua memória e há uma luta nesse processo de recordação das suas ações. O nosso tema é, por conseguinte, a relação entre memória social e movimentos sociais. O objetivo é analisar o significado da memória social para os movimentos sociais e suas lutas. Para efetivar tal análise, utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da categoria de totalidade, essa relação. Utilizaremos, como ilustração, o caso da rebelião estudantil de maio de 1968, para mostrar a luta em torno da memória. Os resultados da análise apontam para a percepção da luta em torno da memória e do caráter seletivo das recordações a partir de distintas perspectivas de classe. O caso do maio de 1968 em Paris mostra como esse momento de radicalização do movimento estudantil é recordado sob diversas formas, dependendo de que o interpreta.

O tema que abordaremos é a relação entre memória social e movimentos sociais. O objetivo é analisar o significado da memória social para os movimentos sociais e suas lutas. Os movimentos sociais ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O desenvolvimento da compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido de desbravar novos aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre memória social e movimentos sociais. A memória social é um tema sociológico também antigo, embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e que remete ao problema dos grupos e classes sociais e seus discursos, produzidos socialmente, sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua vez, são perpassados por lutas.
Para efetivar tal análise, utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da categoria de totalidade, essa relação. O método dialético foi desenvolvido por Marx (1983; 1988) e retomado por outros autores (KORSCH, 1977; LUKÁCS, 1989). O método dialético é uma ferramenta intelectual para reconstituir o real no pensamento (VIANA, 2007), buscando superar o ponto de partida natural (a “intuição”, a consciência imediata dos fenômenos) através do processo de abstração, visando descobrir as determinações dos fenômenos pesquisados, que aparece no final da pesquisa como concreto-determinado (MARX, 1983). Nesse sentido, é preciso destacar que o fenômeno é sempre uma totalidade, inserida numa outra totalidade. As ideias, por exemplo, fazem parte da totalidade que é a sociedade e, por isso, não são meros epifenômenos, são também determinações do processo histórico (KORSCH, 1977). Assim, os fenômenos devem ser analisados como totalidades e envolvidas em totalidades mais amplas. Isso significa que, para o método dialético, os fenômenos não podem ser isolados, separados da totalidade. O uso do método dialético para analisar a relação entre memória social e movimentos sociais aponta para compreender estes dois fenômenos como totalidades inseridas na totalidade da sociedade capitalista e, por conseguinte, sendo afetados por ela.
Assim, é preciso entender os conceitos de memória social e movimentos sociais para poder avançar no processo analítico da relação entre esses dois elementos. A questão da memória é discutida em diversas ciências, recebendo destaque especial na psicologia e na filosofia, e acabou se inserindo nas análises sociológicas através da ideia de uma “memória coletiva” ou “memória social”, bem como na historiografia. Assim, os estudos pioneiros de Bergson (1999), Blondel (1960) e outros, abriram espaço para as posteriores discussões sociológicas sobre memória coletiva ou social (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1995; SANTOS, 2003; FENTRESS; WICKHAM, 1994; VIANA, 2006).
Para avançar nessa discussão, julgamos necessário realizar a distinção entre memória individual, memória social e memória coletiva (VIANA, 2019a). A memória individual, em nossa concepção, é uma consciência latente, ou seja, uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade, que é ativada pela consciência, que realiza uma evocação de lembranças. Em outras palavras, é o conjunto de lembranças gravadas na mente humana e que são recordadas de acordo com as necessidades e mecanismos de seleção gerado por ela. A memória social é o conjunto de lembranças (relativas, obviamente, ao passado) existentes na sociedade, e expressas na cultura, ou seja, no conjunto de produções intelectuais de uma determinada época, bem como nos bens materiais (construções, objetos, etc.), indivíduos (quando exteriorizam sua memória individual ou quando estão vivos e são portadores de memória), meio ambiente em sua relação com a sociedade, etc. A memória coletiva, por sua vez, já aponta para a memória de classes e grupos sociais. Ela se refere ao conjunto de lembranças que são dessas classes e grupos[1]. O nosso foco aqui será a memória social, ou seja, ao processo mais amplo a nível global de uma sociedade.
Outro conceito importante para nossos objetivos é o de movimentos sociais. Eles são compreendidos aqui como sendo “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2014; VIANA, 2016). Existem diversas outras definições de movimentos sociais (ALONSO, 2009; GOHN, 2002; VIANA, 2016), mas não poderemos apresentá-los por questão de espaço. Essa concepção de movimentos sociais aponta, também, para a diferenciação entre grupos sociais e movimentos sociais. Os grupos sociais geram movimentos sociais, mas nem todos os indivíduos de um grupo social participam do movimento social gerado por ele. O movimento negro é um movimento social do grupo social composto pelos indivíduos negros, mas apenas os seus ativistas da causa negra fazem parte do movimento. Outro elemento importante é distinguir o movimento social de suas ramificações. O movimento negro gera um conjunto de organizações, tendências, etc., tais como a Frente Negra, o Movimento Negro Unificado, o Movimento Negro Socialista, entre diversas outras organizações. Essas organizações não são, cada uma, um movimento negro e sim ramificações dele.
Os movimentos sociais são, portanto, complexos, marcados por divisões internas, subdivisões, distintas tendências, concepções (ideologias, doutrinas, representações, etc.). A questão da memória assume um significado importante para os movimentos sociais. A memória faz parte do processo de resgate das lutas, conquistas, experiências, por parte do movimento social, gerando um conjunto de elementos que reforçam a luta. Assim, a figura de Zumbi dos Palmares, no caso do movimento negro, assume importância, bem como os Quilombos (e surgiu, baseado na evocação de lembranças dessa forma de resistência ao escravismo colonial, a proposta do “quilombismo”).
A memória coletiva nos movimentos sociais não só resgata a história de um grupo social e suas lutas, mas é um elemento de aglutinação e reforço da luta deste grupo, entre outros significados que adquirem no processo de lutas sociais. Porém, a complexidade dos movimentos sociais se manifesta em suas divisões e tendências. O movimento feminino, por exemplo, pode resgatar personagens do passado, mulheres que se destacaram política ou intelectualmente, ações ou organizações, mas cada resgate é uma opção e uma posição que reforça determinada tendência. Uma coisa é resgatar Sylvia Pankhurst, outra coisa é resgatar o sufragismo. O resgate do sufragismo por um setor do movimento feminino significa uma posição política de crença na democracia representativa, tática de uso do processo eleitoral e um conjunto de valores e concepções. O resgate de Sylvia Pankhurst (filha e irmã de duas das mais destacadas representantes do sufragismo, com as quais rompeu política e pessoalmente) já aponta para a inseparabilidade entre lutas femininas e lutas proletárias e recusa do parlamentarismo. Isso quer dizer que há, no interior dos movimentos sociais, uma luta em torno da memória e que cada recordação ou cada esquecimento, é uma seleção que tem um significado político. Esse significado político, por sua vez, se insere no conjunto da sociedade, estando envolvido nas lutas de classes, concepções políticas e ideológicas, entre outros processos que permitem sua explicação.
A memória social é, por conseguinte, palco de lutas. Nesse contexto, podemos colocar a questão das formas de acessar a memória social. A primeira forma é a institucionalizada, que é realizada, na sociedade capitalista, pelo aparato estatal. Este, através de instituições (como as voltadas para preservação do patrimônio histórico, museus, etc.) e datas comemorativas, entre outras formas, realiza uma rememoração do passado de acordo com seus interesses, tanto os gerais (reprodução do capitalismo) quanto mais concretos (governos, etc.). O capital comunicacional (grandes redes de TV, Rádio, grandes jornais, etc.) é outro determinante na rememoração hegemônica na nossa sociedade. Por outro lado, os intelectuais, com destaque para os historiadores, também são responsáveis pela versão do passado que é interiorizada nas memórias individuais[2]. Desta forma, temos uma versão da história que é, geralmente, a história dos vencedores (BENJAMIN, 1994).
A luta em torno da memória ocorre via rememoração. Rememorar é o ato de lembrar o passado. A rememoração é um processo seletivo, no qual se resgata/recupera da memória social (o conjunto de lembranças existentes numa determinada sociedade e época) aquilo que é de interesse de quem rememora. Isso ocorre através da interiorização que os indivíduos fazem da memória social, ou seja, através de sua consciência (determinada por sua personalidade) ele resgata/recupera acontecimentos, ideias, etc., e o reforça sua reprodução social. Esse indivíduo, estando em determinadas instituições, tende a fazê-lo de acordo com os interesses desta, realizando a sua recuperação. A rememoração também ocorre quando o indivíduo exterioriza sua memória individual, ou seja, torna público suas recordações pessoais[3]. Nesse momento, tais recordações tornam-se parte da memória social.
A rememoração gera versões da história ou sua reconstituição. A reconstituição da história é uma rememoração que se mantém, em sua essência e totalidade, fiel aos acontecimentos. As versões da história, por sua vez, são invenções memoriais, intencionais ou não. Assim, percebemos que a rememoração pode assumir várias formas. Ele pode ser um resgate da história, quando extrai da memória social aquilo que é verdadeiro, ou pode ser uma recuperação, ou seja, readquirir a posse da memória, que foi perdida[4]. Uma outra forma é a apropriação, na qual um acontecimento, indivíduo, etc. é apropriado por uma concepção, ideologia, etc. A apropriação da memória é um processo que muitas vezes é realizado sob forma inintencional, mas também pode ser intencional. Ela é, independente da forma, uma deformação, uma falsificação da história, mais ou menos intensa, dependendo de quem o faz, quais objetivos e base apropriadora.
Assim, a luta pela memória se manifesta através da rememoração como resgate e como recuperação, ou seja, a partir da perspectiva burguesa (ou burocrática) e da perspectiva proletária, respectivamente. A perspectiva de classe determina se o que ocorre é resgate ou recuperação, ou, ainda, apropriação. No entanto, é possível desvios, seja pelo motivo de que a tentativa de resgate foi realizado por um revolucionário ambíguo ou num contexto desfavorável (acesso a poucas informações, influência de interpretações deformadoras, etc.), seja por que o agente da recuperação tenha contradições e uma honestidade intelectual que faz retomar os acontecimentos e outras lembranças de forma mais fidedigna.
Esse foi o caso da Comuna de Paris, a primeira experiência histórica de revolução proletária. Artistas como Zola e outros execraram esse acontecimento extraordinária, bem como caluniaram os operários parisienses (VIANA, 2011; LIDSKY, 1971; VALLÉS, 1992), bem como historiadores (PINHEIRO CHAGAS, 1872). Essa não é uma recuperação crítica, na qual se coloca o acontecimento revolucionário como sanguinário e desumano. O domínio do acontecimento foi perdido concretamente, mas idealmente ele é recuperado ao ser execrado. Aqui estamos no reino da mentalidade burguesa manifesta de forma mais cristalina. A forma clássica de recuperação foi realizada por Lênin (1987; VIANA, 2011), na perspectiva burocrática. A Comuna de Paris é elogiada, mas, ao mesmo tempo, criticada. A crítica aponta para a falta de liderança, de decisão, a falta da tomada do poder estatal. Essa ladainha será repetida pelos trotskistas, com seu eterno discurso da falta de “direção revolucionária” (LUQUET, 1968). Por outro lado, a perspectiva proletária se manifestou através de Marx, que não fez apenas apologia, mas mostrou o seu significado revolucionário (VIANA, 2011; MARX, 2011)[5], “a forma política finalmente encontrada de emancipação proletária” (MARX, 2011).
A relação entre memória e movimentos sociais é semelhante. Cada grupo social gera lembranças coletivas, que se conservam ou se perdem com o passar do tempo. Porém, os movimentos sociais são apenas o “grupo em fusão”, o setor ativista dos grupos sociais. Assim, nos grupos sociais temos a exteriorização da memória individual que gera uma memória social que pode ser posteriormente resgatada ou recuperada, bem como outras formas de transmissão memorial, como obras, bens materiais, etc. Alguns ativistas dos movimentos sociais realizam o mesmo processo. Porém, uma grande parte realiza o processo inverso, de buscar interiorizar a memória social a respeito do grupo e do movimento social. No entanto, ano apenas eles fazem isso, pois o aparato estatal, os meios oligopolistas de comunicação, entre outros, também realizam esse processo e geram uma memória social que, posteriormente, pode ser interiorizada pelos grupos ou movimentos sociais. Nesse sentido, a luta pela memória é constante nos movimentos sociais, bem como nos grupos e classes sociais e na sociedade em geral.
A memória de grupos sociais foi pouco pesquisada e pouco rememorada. Além dos estudos de Halbwachs, pouco se tratou disso, tal como Fentress e Wickham, que abordam num item de um capítulo do livro sobre Memória Social, a “memória das mulheres”. A memória dos movimentos sociais já foi um pouco mais trabalhada, seja pelos ativistas, seja pelos pesquisadores. Sader (1995), por exemplo, traz elementos de memória de ativistas dos movimentos sociais, tal como o “Clube das Mães”, uma ramificação do movimento feminino.
O primeiro elemento é entender que memória coletiva de classe se distingue de memória coletiva de grupo. As classes sociais existem a partir da sua posição na divisão social do trabalho e os grupos existem a partir de uma unidade que emerge a partir de diferentes processos, como os corporais, situacionais, culturais. Uma classe social tem uma unidade de interesses diante de outra classe social (MARX; ENGELS, 1982), enquanto que os grupos sociais possuem divisões de interesses, inclusive pela maioria deles ser policlassista[6]. O foco aqui são os movimentos sociais, e por isso vamos abordar mais este caso.
Os movimentos sociais realizam o mesmo processo que o aparato estatal em relação à memória. Eu recordo que, uma vez, conservando com uma amiga militante do movimento negro, a quem solicitei um texto para um jornal de curso de graduação que eu coordenava, sobre a questão da mulher e ela disse: “sim, posso fazer, posso começar com Rosa Luxemburgo”. A lembrança de Rosa Luxemburgo era interessante, mas o motivo de expor minha recordação é que o texto solicitado foi sobre a questão da mulher ou o movimento feminino e não sobre indivíduos e logo emerge uma figura feminina de destaque. Isso revela um procedimento comum que é a criação do memorável.
Os ativistas dos movimentos sociais tendem a querer criar o memorável: indivíduos, acontecimentos, lutas, etc. A criação do memorável é, muitas vezes, acompanhada pela comemoração. Assim como o movimento operário, os movimentos sociais querem rememorar os grandes momentos de sua história, gerando datas comemorativas. O movimento negro brasileiro, por exemplo, recorda Zumbi dos Palmares, produz o “Dia da Consciência Negra” (que é dia 20 de novembro ao invés da data oficial, 13 de maio, “Dia da Abolição da Escravidão”).
A rememoração por parte dos ativistas assume, muitas vezes, a forma de adaptação memorial[7]. Essa adaptação memorial é muitas vezes apologética ou projetiva. A forma apologética se constitui a partir da supervaloração de indivíduos, acontecimentos, ideias, etc. Isso, às vezes, está mais ou menos de acordo com o significado político de determinado indivíduo, mas na maioria das vezes é exagerado. O caso de Che Guevara, santificado por uns e demonizado por outros (MOREIRA, 2019), é um exemplo desse processo, no qual a realidade concreta e os seres humanos reais e históricos, são substituídos por imagens apologéticas. A forma projetiva é aquela na qual os ativistas de hoje, ou com suas concepções atuais, reinterpreta os acontecimentos e ideias a partir da projeção de seus desejos, suas ideias ou teses, etc. Essa adaptação memorial geralmente é, com exceção quando assume a forma projetiva, uma recuperação, mesmo quando feita por ativistas ex-ativistas.
A rememoração das lutas de classes, dos movimentos sociais, entre outros processos, também é realizada pelo aparato estatal, pelas instituições, pelos intelectuais, etc. O intercâmbio entre memória coletiva e memória social é constante. A memória oficial visa recuperar a memória coletiva e inseri-la em sua versão da história. A memória coletiva, muitas vezes, se constitui a partir do resgate de elementos da memória social, realizando sua interiorização ou reinterpretação. Em certos casos, quando ultrapassa os mecanismos recuperadores e as versões deformadoras, é resgate. Isso faz parte da luta pela memória. Vamos abordar os mecanismos recuperadores da memória a seguir, tratando do caso concreto do Maio de 1968.
Após essa breve reflexão sobre a memória coletiva e os movimentos sociais, passamos para a análise de um caso concreto. Utilizaremos, como ilustração o caso da rebelião estudantil de maio de 1968, para mostrar como ocorre concretamente a luta em torno da memória. Quem recorda o maio de 1968 hoje? Por quais motivos e com quais objetivos? E de que forma? Existem análises que focalizam a questão da relação entre movimento estudantil e movimento operário, seja para afirmar que se tratou de uma verdadeira revolução (WOODS, 2016), seja para dizer que a autogestão nas fábricas não passa de um “mito” (PORHEL, 2000). Assim, esse acontecimento histórico pode ser apresentado com uma luta juvenil cuja questão básica era a sexualidade (HOBSBAWN, 1999), como coisa de “estudantes esquerdistas” (NIETO, 1971), ou, ainda, como uma luta reivindicativa que se torna revolucionária (BRINTON, 2018), entre diversas outras formas de rememoração. Assim, as “vidas posteriores” do Maio de 1968 (ROSS, 2008) mostram uma recuperação do movimento por seus adversários no sentido de lhe retirar sua radicalidade e, por outro, aqueles que recordam essa luta para justamente inspirar lutas radicalizadas no presente e para isso realizam o seu resgate.
Essa rememoração do movimento de maio de 1968 via análises sociológicas (TOURAINE, 1970) ou marxistas (VIANA, 2019b), ou através do trabalho historiográfico (HOBSBAWN, 1999), autobiográfico (THIOLLENT, 1998) ou narrativo (BRINTON, 2018) efetivam processos seletivos e possuem impacto na memória social do movimento estudantil atual e das lutas sociais em geral. A sua variedade se reproduz no interior dele, bem como distintos usos. A memória social do Maio de 1968 dos intelectuais expressam distintas perspectivas e por isso apresentam distintas seleções, interpretações, etc. Isso ajuda a recompor a memória social dos ativistas do movimento estudantil atual, pois estes possuem sua memória desse evento histórico a partir das informações e leituras, pois eles não viveram naquela época e não participaram dele. É uma memória fundamentada não na experiência e sim na herança cultural deste acontecimento histórico. Isso significa que os ativistas do movimento estudantil atual, bem como outros (militantes de grupos políticos, ativistas de outros movimentos sociais, etc.), vão selecionar qual dessas rememorações é legítima, verdadeira e isso não será algo homogêneo, pois distintas perspectivas de classe estão na base dessas escolhas.
Assim, observamos que há uma luta em torno da memória do Maio de 1968 e esta é marcada pela seletividade das rememorações a partir de distintas perspectivas de classe, tanto na análise dos intelectuais quanto na recepção de ativistas do movimento estudantil. O caso do maio de 1968 em Paris mostra como um momento de radicalização do movimento estudantil é rememorado sob diversas formas, dependendo de quem o interpreta. Isso ocorre também no caso de outros eventos históricos que possuem importância para outros movimentos sociais. O caso do Maio de 1968, no entanto, se destaca pela importância histórica que teve.
Tão logo se encerra o Maio de 1968, que segundo setores da versão oficial se encerra, “oficialmente”, no dia 30 de maio, e, para outros, somente em fins de junho, enquanto que outros já apontam para uma duração muito mais longa, começa a se apresentar testemunhos e depoimentos[8]. As análises se iniciam durante o próprio acontecimento, como ocorre quase sempre. Elas, posteriormente, tornam-se alvos de análises e interpretações. O encerramento do evento rememorado pode ser acompanhado pela amnésia social, para utilizar linguagem de Jacoby (1977), ou por sua rememoração, que pode assumir, como já colocamos, várias formas. No caso do Maio de 1968, houve um processo ininterrupto de rememoração. Ele se tornou memorável e motivo de comemoração. A cada dez anos, se comemora o maio de 1968. E o curioso é que ele é comemorado por amigos e inimigos, pela memória oficial e por memórias coletivas diversas. É isso que permitiu a denúncia das vidas posteriores do Maio de 1968 (ROSS, 2008).
A limitação de “Maio” ao mês de maio tem diversas repercussões. O recorte temporal reforça uma redução geográfica da esfera da atividade a Paris, mais concretamente ao Bairro Latino [Quartier Latin – NV], e, ao mesmo tempo, se baseia nesta limitação. De novo, desaparecem da cena os operários em greve de fora de paris e o resto da França e se evaporam os exitosos experimentos de solidariedade entre operários, estudantes e camponeses das províncias. Segundo algumas versões, nas províncias se produziram manifestações mais violentas e sólidas que em Paris em maio e junho, porém isto não se apresenta na versão oficial. Se ignora desta forma o que se viveu nas fábricas de Nantes, e longe de Paris, assim como toda uma constelação de práticas e ideias sobre a igualdade que não podem ser assimiladas pelo atual paradigma liberal/libertário que muitos atores de maio adotaram (ROSS, 2008, p. 36).
A obra de Ross é um marco para quem quer discutir a relação entre Maio de 1968 e suas “vidas posteriores”, ou seja, as suas rememorações. A autora aponta para algo importante, a luta pela memória, e mostra algumas das formas de rememoração desse acontecimento histórico que foi um divisor de águas na sociedade moderna (VIANA, 2009). Porém, ela ainda o faz, apesar de sua radicalidade e criticidade, sem superar totalmente as ideias de sua época, e, por conseguinte, a sua própria rememoração do Maio de 1968 acaba sendo uma adaptação memorial projetiva, embora trazendo o resgate de elementos importantes desse acontecimento[9].
Ross apresenta o conjunto de rememorações do Maio de 1968, o peso da televisão e suas comemorações a cada dez anos, bem como daqueles que ela chama de “ex-esquerdistas”, ou seja, os militantes radicais da época ou intelectuais engajados que abandonaram a adesão ao movimento contestador, as publicações posteriores (e círculos intelectuais oriundos desse evento, tal como a revista Revoltas Lógicas), os intelectuais conservadores e suas críticas e sua condenação. A tentativa do sociólogo Raymond Aron de exorcizar o Maio de 1968, bem como outros, é apresentado e mostra uma das formas de rememoração. Ross (2008) não esquece as exceções e aqueles que tentavam resgatar o Maio de 1968 da recuperação.
Como não é possível analisar o conjunto das rememorações desse acontecimento histórico, então teremos que apenas apontar e analisar algumas delas. Uma das versões mais comuns do Maio de 1968 é atribuir este evento a um problema da juventude, conflito de gerações, entre outros processos (ROSS, 2008). Outra versão bem conhecida é a que a busca a reduzir a uma questão de mudança cultural e nos costumes, especialmente a questão da sexualidade (ROSS, 2008). Essas duas interpretações são formas de recuperação do Maio de 1968. Por esse motivo vamos tomar essas duas rememorações como base para a nossa crítica dessa recuperação, no sentido de que, ao criticar a deformação, contribuímos com o resgate da memória social e da história real.
Jean-Franklin Narot observou que a rememoração do Maio de 1968 pela memória oficial tem semelhança com o modo de relatar da atividade de sonhar, apesar de considerar que faz isso com prudência, pois desconfia do uso de conceitos para além da sua esfera de atividade. Mas, a partir dos termos psicanalíticos para explicar os sonhos, ele aponta a forma como se realiza a deformação do Maio de 1968. Segundo Narot, os sonhos usam quatro mecanismos de deformação:
1) A condensação (um nome, uma “personalidade”, contém, representa, reabsorve uma multidão de atores, seus atos e seu pensamento); 2) o deslocamento (substituição das questões levantadas no Maio de 1968 por problemáticas secundárias ou heterogêneas; confecção de pseudorresponsabilidades dos movimento escolhidos preferencialmente entre que combatiam, eram periféricos ao mesmo ou simplesmente anódinos); 3) A figurabilidade (preponderância de imagens na conceituação e análise, mas também recodificação de 68 através de toda uma bateria de referências imaginárias contemporâneas recorrentes: o “retro”, o “idealismo-generoso-porém-ingênuo”, a “violência”, a “moda”, o “individualismo”, a “comunicação”, etc.; e, por último, 4) a elaboração secundária (reescrita linear de “acontecimentos”, imputações causais realizadas com demasiada naturalidade, redução a finalidade reivindicativas, uma clara consciência postulada dos atos e das apostas de então, positivações múltiplas, coerência fática, integração na ordem da política, inteligibilidade globalmente dominada) (NAROT, 1988, p. 181).
Podemos observar que as análises que rememoram o Maio de 1968 a partir do “conflito de gerações” ou “problema juvenil”, bem como aqueles que o reduzem a uma questão cultural e de sexualidade, utilizam todos alguns destes elementos apontados por Narot (1988). Não que a juventude não tenha tido nenhuma relação com o processo. Sem dúvida, os jovens e a condição juvenil, especialmente na sociedade capitalista francesa após 1960, teve um significado político importante. Contudo, tanto a condição juvenil quanto a estudantil estão relacionadas com o Maio de 1968, mas não foram essa situação de grupo social que fez emergir o Maio de 1968 e, muito menos, lhe deu sentido. A gênese do Maio de 1968 remete ao problema da acumulação de capital e projeto de reforma da universidade, um elemento derivado, que atingiu diretamente os estudante e promoveu manifestações, que, depois se radicalizaram e se transformaram numa rebelião. A questão dos costumes teve um peso muito mais restrito, bem como a sexualidade. Sem dúvida, havia elementos, mas nem são como muitos depois quiseram fazer crer, nem ganhou um destaque no conjunto das lutas e das mudanças.
As rememorações do Maio de 1968 como questão juvenil ou de conflito de gerações, ou cultura e sexual, só não efetiva o que Narot denominou “condensação”. Sem dúvida, grande parte das rememorações realizam a condensação, ao destacar e tornar Daniel Cohn-Bendit ou Alain Geismar os “líderes” do movimento, bem como outros que apontam para o significado de De Gaulle, o que remete para a rememoração que conta a história dos vencedores. Porém, nessas versões da história ocorre o deslocamento da luta estudantil e operária e suas exigências radicais para questão meramente juvenil, estudantil, cultural, sexual. A figurabilidade aparece com a criação imaginária contemporânea que supervalorar a sexualidade e outros processos. A elaboração secundária aparece com a transformação dessas questões em questão fundamental, gerando uma imputação causal inexistente.
Em síntese, o que ocorreu nesse caso foi uma adaptação memorial que realiza um conjunto de processo que exorciza a radicalidade do movimento, as suas exigências mais profundas de transformação, ou mesmo, em seus setores mais moderadas, as reivindicações concretas, substituindo-as por coisas imaginárias, inexistentes na época ou muito marginais, ou, ainda, que tiveram espaço antes da eclosão da rebelião. Essa adaptação memorial serve ao propósito de promover uma enfatização excessiva em certos elementos e assim desviar da determinação fundamental e processos políticos mais amplos e importantes.
Desta forma, é possível perceber que a luta pela memória em relação ao Maio de 1968 é apenas um capítulo de uma obra histórica muito mais vasta que se tem como palco a história da humanidade e, mais recentemente, a história da modernidade. A rememoração fica entre o resgate e a recuperação e isso atinge todos os movimentos sociais, bem como os movimentos políticos e de classe. Nesse contexto geral, a luta pela memória faz parte da luta mais ampla pela conservação ou pela transformação radical e total das relações sociais. Isso revela, por sua vez, a importância da discussão sobre memória e movimentos sociais, bem como o resgate das lutas sociais do passado. O “enquadramento da memória” gera o amnésia social e essa pode não só permitir o retorno da barbárie (ADORNO, 1995), como é mais um obstáculo para a superação da selvageria atual.


Referências

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[1] A relação entre memória e grupos sociais foi realizada, pioneiramente, na sociologia, por Halbwachs (1990) e depois recebeu vários tratamentos. Fentress e Wickham (1994) usam o termo “memória social” e aborda classes sociais (camponeses, proletários) e grupos sociais (mulheres). Assim, alguns preferem utilizar “memória coletiva” e outros “memória social”. A nossa opção foi utilizar os dois termos (como alguns fazem, mas sem realizar distinção) sob forma distinta: a memória social é a do conjunto da sociedade e a coletiva de classes, grupos, etc., no seu interior, pois existem diferenças entre ambos na realidade concreta e por isso deve ser expressa conceitualmente (VIANA, 2019a).
[2] “O indivíduo não pode “recordar” o que não viveu. O que ele pode fazer é rememorar, ou seja, trazer elementos da memória social de volta, através da interiorização” (VIANA, 2019a, p. 37).
[3] Isso pode ser feito através de autobiografia, publicação (ou não, mas que pode se tornar público após a morte) de diário, crônicas divulgadas em meios de comunicação, depoimentos para entrevistadores, agentes policiais, jornalistas, etc.
[4] Sem dúvida, aqui tratamos de recuperação memorial. A recuperação memorial é aquela na qual quem detinha o seu domínio a perdeu e a retoma novamente. Nesse sentido, é a classe dominante que possui a posse da memória social e se acontecimentos e exteriorizações memoriais antagônicas surgem em determinado momento, após a derrota da experiencia revolucionária ou lutas radicalizadas, ela a retoma, a recupera. No sentido mais geral (indo além da memória), o termo “recuperação” ganhou sentido semelhante através da chamada Internacional Situacionista (KHAYATI, 2019). No sentido comum, a palavra resgate tem vários significados, tal como pagar dívida, libertar do cativeiro, etc. Aqui assume o significado de libertar lembranças que estavam esquecidas pelo domínio da memória social pelos detentores do poder, sendo apenas resgate memorial. O resgate memorial tem um sentido positivo, significar trazer de volta lembranças verdadeiras e a recuperação memorial é algo negativo, significa o contrário, ou seja, sufocar lembranças verdadeiras transformando-as em falsas.
[5] Um exemplo de desvio seria o caso de Karl Korsch (2011a; 2011b), que, por desânimo com as derrotas proletárias e aproximação temporária com o anarcossindicalismo, acabou ambiguamente aceitando a interpretação leninista de Marx a respeito da Comuna de Paris (VIANA, 2011).
[6] Os negros, as mulheres e os estudantes, entre inúmeros outros grupos sociais, são policlassistas, pois os indivíduos que os compõem pertencem a várias classes sociais. Os grupos sociais monoclassistas são geralmente os conservadores, em alguns casos, e os das classes inferiores, tal como os sem-teto tendem a ser todos do lumpemproletariado, no significado mais amplo do termo (BRAGA, 2013; VIANA, 2018). Sobre a diferença entre movimentos sociais e movimentos de classe, cf. Viana (2016a; 2016B).
[7] “O termo adaptação significa, nas representações cotidianas, um processo de modificação visando que algo se ajuste a uma nova situação, contexto, padrão, etc. A adaptação memorial é o processo no qual a memória, o conjunto de lembranças do indivíduo, se adapta a uma nova situação social, condição mental, etc.” (VIANA, 2019a, p. 38).
[8]  b
[9] O apelo à subjetividade e outros elementos mostra que sua análise mantinha certa influência do que Jacoby (1977) denominou “política da subjetividade”.
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Apresentado em: 19º Congresso Brasileiro de Sociologia -9 a 12 de julho de 2019 - UFSC - Florianópolis, SC


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