Nildo
Viana
O
seu nome era Jacinto. Todo mundo dizia que ele era um homem correto. E, sem
dúvida, ele era. Sua máxima preferida era: “correção, correção e correção”. Ele
tomava tudo ao pé da letra, ou seja, era um daqueles leitores que sacrificava o
conteúdo pela forma, isto é, abandonava a interpretação em favor da gramática e
da ortografia. Quando escrevia, era daqueles escritores que passam horas
preocupados com a correção gramatical e com o refinamento ortográfico e
geralmente se esquecia da mensagem que pretendia transmitir, isto é, como ele
mesmo dizia: “uma norma vale mais do que quinhentos improvisos” ou então
segundo a sua versão de quando estava bem humorado: “mais vale uma norma na mão
do que quinhentos improvisos voando”.
Este
homem correto está morto. Jacinto morreu. Mas o mundo está cheio de homens
corretos, que vivem querendo nos colocar a todos no caminho da correção. E não
só de homens, mas de mulheres também. Algumas são até mesmo hiper-corretas,
para utilizar expressão de feministas intelectuais, também hiper-corretas. Jacinto
não representa apenas um indivíduo. Ele significa muito mais que isso:
dependendo de quem fala, ele poderia ser taxado de representante de uma raça,
uma espécie, um estilo de vida, um caráter social, uma mentalidade, um grupo
social, um período histórico determinado, etc.
Por
isto, recordar Jacinto é importante. Sua figura logo chamava a atenção. Ninguém
resistia à sua presença. Num ônibus, por exemplo, se durante uma viagem alguém
começava a fumar, ele delicadamente se dirigia ao fumante ou ao motorista e lhe
lembrava a lei número tal que diz: “é proibido fumar” e exigia o seu
cumprimento, afinal “as leis foram feitas para serem cumpridas”. O troco do
ônibus tinha que ser correto, pois se faltasse qualquer coisa, mesmo se fosse
um mísero centavo, ele ficava esperando e nunca perdoava a falta de troco,
mesmo que tivesse que descer três quadras após o ponto que ele deveria descer.
Ele dizia: “se as relações mercantis existem e são calculadas matematicamente,
então devemos respeitar os cálculos”.
Ele
era extremamente correto. Respeitava como ninguém as regras gramaticais, as
leis do trânsito, as receitas culinárias, as regras da ABNT, as indicações
médicas de dieta e tudo o mais. Ele dizia coisas interessantes, do tipo: “se
existem regras, é para serem cumpridas, não é?”.
Lembro-me
de uma vez em que ele deu uma lição de respeito às leis do trânsito. Era umas
quatro horas da madrugada e a rua estava deserta. A mãe dele tinha tido um
ataque do coração e ele tinha que levá-la ao hospital com a máxima urgência. Mas,
como bom homem correto que era, usava o cinto de segurança e não ultrapassava a
velocidade máxima permitida e, apesar das ruas estarem desertas, sempre parava
quando os sinais estavam fechados. Isto, sem dúvida, atrasou bastante sua
chegada ao hospital, tanto que a mãe dele veio a falecer antes dele chegar lá,
mas ela devia estar orgulhosa do filho, pois ela tinha criado, embora não o
tenha feito sozinha, um homem correto.
Quando
estava na situação de pedestre, nunca atravessava a rua fora da faixa de pedestre
(mesmo antes de existir a lei que obriga a atravessar nela) e com o sinal
fechado, mesmo com a rua deserta e com o horizonte não deixando ver nenhum ser
vivo. Tive a impressão, inclusive, de que, se o mundo acabasse e ele fosse o
único sobrevivente, ainda só atravessaria a rua na faixa do pedestre e, numa
louca viagem imaginária, acho que ele atravessaria o sinaleiro se lamentando
desta forma: “como sou infeliz! Não tem nenhuma alma humana viva para fazer o
sinal funcionar e me dizer quando eu posso ou não caminhar e por isso eu
caminho em qualquer momento, já que o sinaleiro não funciona”.
Ele
fazia uma dieta balanceada, seguindo rigorosamente tudo o que seu médico dizia
que ele deveria ou não comer. Também levava em consideração o que via na televisão
a respeito disso. Ele entendia tudo de nutrientes, calorias, colesterol, etc.,
e mais um monte de palavras que nem sei o que significa.
Ele
era professor. E também na profissão ele seguia passo a passo o ritual de sua
crença na correção. Os alunos deveriam chegar na hora certa (bem como sair),
deveriam, impreterivelmente, fazer as leituras, deveriam escrever o nome do
professor de forma correta, bem como da instituição, da disciplina, etc., no
cabeçalho e tudo o mais, deveriam respeitar o professor e cumprir suas
obrigações (assistir as aulas, fazer os trabalhos, e reproduzir tudo exatamente
como ele havia ensinado com sua sabedoria e autoridade de professor, deveriam
acreditar piamente que ele lhes ensinava alguma coisa e que ele era a
autoridade competente para dizer o que é certo e o que é errado). As leis da
sala de aula deviam ser cumpridas, sob pena de diminuição de nota ou reprovação
por falta. Tal como ele era correto, os seus alunos deveriam ser. Ele era o
exemplo a ser seguido. Obviamente, como era de se esperar, o mais importante
para ele era a correção, a disciplina, o respeito às regras. A correção parecia
ser uma verdadeira visão de mundo para ele e como todo doutrinador ele queria
insuflar o espírito de seus discípulos com tal riqueza espiritual. O conteúdo,
neste contexto, era coisa secundária, o que para ele era bastante oportuno, já
que sua ênfase na correção justificava seu desleixo com o conteúdo, pois
existem regras para serem seguidas e o resto é supérfluo.
Alguns
criticavam o Jacinto pelo que eles chamavam de “excesso de correção”. Alguns
indivíduos são corretos em alguns aspectos da vida mas não em todos. Jacinto
era um caso raro: ele era correto em todos os aspectos. Até nos seus momentos
mais íntimos ou nos aspectos mais triviais de sua vida cotidiana ele mantinha
sua inabalável correção. Respeitava todas as regras de etiqueta e exigia isto
dos seus filhos e da sua esposa. Os seus filhos tinham horário determinado para
tudo: dormir das 21:00 até às 07:00, tomar café da manhã das 07:00 até às
07:30, brincar das 07:30 até as 09:30, assistir televisão das 09:30 até as
11:00, almoçar das 11:00 até às 11:30, ir à aula às 12:50 e voltar às 18:00,
tomar banho das 18:00 até as 18:15, fazer as tarefas e estudar das 18:15 até as
20:00, jantar das 20:00 até as 20:30, assistir televisão das 20:30 até as 21:00
e depois dormir e assim todos os dias, com exceção de sábados, domingos e
feriados, cujo a organização temporal era diferente, mas tão rígida quanto
esta. Mas ele mudou todo este plano diário de atividades de seus filhos depois
que um amigo disse que não era correto menores de 18 anos assistir televisão
depois das oito horas da noite...
Quando
ia ter relações íntimas com sua esposa ele sempre carregava três manuais: um de
receitas de como ter mais prazer, outro sobre os riscos e perigos do
relacionamento sexual para a saúde do indivíduo e um terceiro sobre o que dizer
e em que momento dizer quando se está a sós com a esposa. Infelizmente, muitas
vezes a leitura levava ao sono e o casal acabava dormindo e ficavam, como se
costuma dizer, “apenas na teoria”. Mas isto não podia acontecer todos os dias,
pois segundo as autoridades competentes, pelo menos três vezes por semana se
deve ir “da teoria à prática” e por isso eles iam dormir às 04:00 horas da
manhã três vezes por semana, pois isto é que é o correto.
Assim,
essa pessoa tão correta, tinha o direito de pensar, tal como pensava, que era a
expressão máxima da perfeição humana. Ele não era um homem que perdia o tempo
discutindo as regras. Ele dizia “as regras foram feitas para serem seguidas e
não discutidas”. É por isso que ele era o indivíduo que mais consultava o
suporte de ajuda do seu computador e seguia todas as instruções que este lhe
transmitia.
Mas aconteceu o dia fatídico de sua
morte. Os seus inimigos dizem que ele morreu devido ao seu principal defeito:
excesso de correção. Ele estava andando de moto. Estava com um amigo. Ele tinha
a preferência na pista onde estava mas vinha um carro e o amigo falou para ele
sair da pista. Ele não quis fazer isto argumentando que estava na preferencial.
Porém, foi atropelado e morreu. Seguiu as regras até o último momento e o
problema que ele nunca percebeu é que sempre existe um “último momento”. Mas um
problema maior ele não percebeu: ele era correto mas nem todos são. As árvores,
a natureza, os indivíduos, etc., tudo que o cerca, não é necessariamente
correto. Sendo assim, sua correção pode colidir com a falta de correção alheia.
O que significa ser correto? Sem dúvida, não significa a mesma coisa que ser
perfeito ou qualquer coisa parecida. Segundo o próprio Jacinto, “ser correto é
ser corrigido (isto é, ser reprimido, castigado, repreendido) e correção é o
ato de corrigir ou a qualidade de quem é correto, tal como diz corretamente o
dicionário”. Ser correto é ser reprimido, domesticado pelas regras. O correto é
o reprimido, ou seja, não no outro sentido da palavra, que correto seria
correspondente, equivalente, pois foi assim que nos ensinou Jacinto. Mas ele
morreu. Um homem correto a menos no mundo. Jacinto se foi. Já sinto que existem
outros Jacintos e o mundo que criou Jacinto não criou só um indivíduo e sim uma
legião.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. O
Doutor e Outros Contos Incorretos. Rio de Janeiro: Booklink, 2007.
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