Rádio Germinal

RÁDIO GERMINAL, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. Para iniciar clique em seta e para pausar clique em quadrado. Para acessar a Rádio Germinal, clique aqui.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Amadeo Bordiga e a Democracia Burguesa


AMADEO BORDIGA E A DEMOCRACIA BURGUESA

Nildo Viana

O parlamentarismo é a forma típica da luta mediada por dirigentes, em que as massas desempenham um papel secundário. Sua prática consiste no fato de que deputados, personalidades particulares, travam a luta essencial. Eles devem, em conseqüência, despertar nas massas a ilusão de que os outros podem travar a luta por elas.
Anton Pannekoek.

Amadeo Bordiga foi um dos líderes do PSI (Partido Socialista Italiano) e, posteriormente, do PCI (Partido Comunista Italiano), onde se tornou bastante influente e sua corrente predominava sobre a corrente de Gramsci, que, pouco depois, conquistaria a “hegemonia” no partido. Bordiga também foi o principal teórico da chamada “esquerda comunista italiana” e foi, por isso, alvo das críticas mal fundamentadas de Lênin em O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo juntamente com os esquerdistas da Inglaterra, Alemanha e Holanda. A principal contribuição de Bordiga ao marxismo se encontra na sua análise do modo de produção capitalista e, em segundo plano, suas críticas à União Soviética (definida por ele como capitalismo de estado), ao stalinismo e à democracia burguesa. Trataremos, em particular, deste último aspecto do bordiguismo.
É interessante notar que Bordiga já havia respondido na década de 20 as formulações do euro-”comunismo” e das “esquerdas” brasileiras na defesa da tese da “democracia (burguesa) como valor universal”. Esta tese apresenta três pontos fundamentais que a sustentam: a) a democracia (burguesa) foi uma conquista dos trabalhadores; b) ela é condição necessária para a implantação do socialismo; e c) a democracia (burguesa, representativa) será mantida no regime socialista. Vejamos como Bordiga trata dessas questões na sua crítica à democracia burguesa.
Para Bordiga, a democracia burguesa não foi uma conquista da classe trabalhadora mas sim uma criação da burguesia para combater a nobreza feudal e manter o seu domínio sobre o proletariado. Segundo ele: “a crítica socialista demonstra claramente que toda a bagagem da filosofia liberal é uma ideologia própria da burguesia capitalista, que dela se serve para justificar sua luta contra os grilhões do regime medieval e, principalmente, a instauração do seu domínio social sobre as massas trabalhadoras exploradas”[1].
Quanto a tese de que a democracia burguesa é uma condição para a implantação do comunismo, Bordiga já havia deixado claro que “a soberania popular realizada com o voto, a liberdade e a igualdade política, é uma mera ficção, quando subsistem a divisão da sociedade em classes e a desigualdade econômica. As câmaras eletivas, o estado, permanecem constantemente nas mãos de uma minoria dominante e servem exclusivamente aos interesses dela”[2]. Para ele, a burguesia só cede o direito de voto às massas porque sabe que elas, devido às suas condições de vida desfavoráveis, não saberiam escolher seus representantes. Poderíamos dizer que Bordiga esquece dois pontos fundamentais que dificultam a escolha dos representantes mais adequados pelas massas: a intensa manipulação do sistema eleitoral pela burguesia e a integração das “esquerdas” no sistema partidário e parlamentar, fenômeno, aliás, observado pelo próprio Bordiga. Além disso, resta questionar a própria existência de “representantes mais adequados”, pois, na verdade, estes nem sequer existem, com raras exceções, do ponto de vista dos interesses do proletariado. O direito de representatividade das minorias, segundo Bordiga, serve apenas para justificar a representatividade da classe burguesa que utiliza seu poder econômico para conquistar a maioria no parlamento.
Além da falsidade das liberdades democrático-burguesas e das dificuldades que as massas encontram para escolher os melhores representantes, existe, para Bordiga, um outro elemento negativo na democracia burguesa, que é a corrupção que esta cria no movimento revolucionário: “apesar do crescimento desse perigoso núcleo revolucionário, pronto para estourar e fazer em frangalhos a velha casca, o regime burguês nada sofria; muito pelo contrário, reforça-se. Os fervorosos revolucionários, no ambiente burguês parlamentar, se aplacavam, se domesticavam; em pouco tempo, este se tornava reformista, aquele reacionário, aquele outro ministro, e assim por diante”[3]. Por isso, “o proletariado não deve ser iludido e entorpecido com a luta eleitoral; deve convencer-se da ineficácia revolucionária da conquista das cadeiras no parlamento e deve conhecer qual é o caminho a seguir e em que sentido seu esforço pode tornar-se útil”[4]. Bordiga, a partir disto, chega a conclusão oposta à dos ideólogos da “democracia como valor universal” que afirmam ser a democracia representativa uma condição necessária para a implantação do socialismo: “não é pelo desenvolvimento e pela intensificação das formas democráticas que o socialismo espera atingir sua própria realização, mas pela luta social entre a s classes e pela vitória revolucionário do proletariado”[5]. Definitivamente, a luta de classes não ocorre no parlamento (...).
Amadeo Bordiga não nega que a participação no parlamento possa influenciar nos acontecimentos mas nega que esta influência possa se revolucionária: “penso que nossa atual missão histórica nos deu uma tática nova e bem definida, isto é, a recusa à participação parlamentar, por não ser mais um meio de influir sobre os acontecimentos no sentido revolucionário”[6].
Para Bordiga, ao contrário do que pensam os reformistas contemporâneos, socialismo e democracia representativa são incompatíveis: “é absolutamente paradoxal a concepção de que as atuais formas políticas, que foram criadas pela burguesia para a própria dominação de classe, possam elas próprias, tornarem-se os órgãos de uma função absolutamente contrária”[7]. Segundo Bordiga, foi justamente a participação na democracia burguesa e a aliança com os setores “democráticos” da burguesia que ofuscou a visão da verdadeira relação entre socialismo e democracia: “a nefasta política de conciliação, que tanto prejuízo e confusão causou por meio da colaboração entre os socialistas e os democratas burgueses, fez perder de vista esta antítese programática, fundamental, entre socialismo e democracia”[8]. Para Bordiga, que identifica democracia burguesa com democracia em geral, o socialismo não cria uma “democracia socialista” ou uma “democracia operária” mas abole todo e qualquer tipo de democracia, pis este é um conceito burguês que expressa uma relação social burguesa: a forma política assumida pela dominação burguesa. É impossível, portanto, reunir conceitos como o de democracia ao de socialismo, seria puro contra-senso.
Mas o que substituirá o regime democrático-burguês? Bordiga responde: “para regulamentar, organizar, disciplinar as novas relações sociais, fundadas não mais no direito da propriedade privada, mas na associação dos trabalhadores, deverão necessariamente surgir novos institutos, adaptados para estas funções, profundamente diversas das que constituem as bases do estado burguês”[9]. Esse novos institutos são os “sovietes” (conselhos operários) que seriam as bases do “estado operário”[10]. Neste sentido, Amadeo Bordiga se aproxima da teoria autogestionária de Marx expressa na fórmula “livre associação dos produtores”. Isto significaria a extensão da democracia real à todos os membros da sociedade e não apenas de uma classe e com isso a contradição entre a etimologia do termo democracia (governo do povo, autogoverno) e a realidade deixaria de existir.
Pode-se contra-argumentar que os reformistas contemporâneos estão com a razão, pois as teses de Bordiga foram elaboradas no início do século. A democracia avançou muito de lá para cá. Realmente, a democracia burguesa avançou muito e por isso se transformou num instrumento de dominação de classe muito mais eficiente. As “esquerdas” também avançaram muito, só que rumo ao reformismo e a integração na sociedade capitalista. Além disso, a tese social-democrata de que “a democracia é um valor universal” é uma criação do início do século e foi elaborada pela primeira vez, no movimento socialista, por Karl Kautski. Ele apenas deu “coloração” ideológica ao entusiasmo eleitoral dos militantes social-democratas da época (e é daí que surgiu a crítica bordiguista) e retomava sob o disfarce de “marxismo” a velha ideologia burguesa da “liberdade, igualdade e fraternidade” e de todas as outras conquistas da revolução burguesa como sendo uma conquista de toda a sociedade, adquirindo assim, o caráter de valor universal. Vivemos num mundo maravilhoso de liberdade, igualdade e fraternidade e também, nunca podemos esquecer, de democracia. Sartre dizia, sabiamente, que toda tentativa de “revisão do marxismo” se revelava uma volta às idéias pré-marxistas. A tese da “democracia como valor universal” e a da democracia burguesa surgiram com a revolução burguesa e com a constituição da burguesia e do proletariado e cada uma expressando o ponto de vista de uma ou outra classe. O que define a veracidade de uma teoria não é a “moda” e nem o número de seus “crentes”  e sim sua identificação com a realidade. A tese social-democrata da “democracia como valor universal” é uma reprodução da tese burguesa criada à séculos atrás.
Se o aprofundamento da democracia representativa levasse ao socialismo, tal como alguns dizem, então nos países onde ela está mais desenvolvida o socialismo devia estar mais próximo. A democracia está muito mais consolidada e as liberdades democráticas estão muito mais ampliadas no capitalismo superdesenvolvido da Europa Ocidental. Mesmo assim, o autonomista Lúcio Magri na Itália e o bordiguista Jean Barrot na França defendem a superação da democracia burguesa. Quais as causas disto? Encontramos a resposta disso em Hebert Marcuse: “na sociedade repressiva, destarte, até mesmo os movimentos progressistas ameaçam a transformar-se em seus opostos na medida em que aceitam as regras do jogo. Ou, para citar um caso mais controvertido: o exercício dos direitos políticos (tais como votar, escrever cartas aos jornais, aos senadores, etc., demonstrações de protesto como renúncia a priori da contraviolência) na sociedade de administração serve para fortalecê-la, pois reconhece a existência de liberdades democráticas que, na realidade, mudaram o conteúdo e perderam a eficácia. Em tais casos, a liberdade (de opinião, de assembléia, de expressão) transforma-se em instrumento de servidão absolvedora”[11].
Os ideólogos da “democracia como valor universal” na Europa Ocidental, além de Magri, Barrot e Marcuse, encontraram como opositor o Luxemburguista italiano Lélio Basso: “mas, se a via democrática ao socialismo deve significar uma mistura de esperança do socialismo futuro e aceitação atual das estruturas políticas hoje existentes, temo que a via ao socialismo não se abra nunca, porque não creio que se possa chegar a uma transformação radical das relações sociais capitalistas utilizando somente os instrumentos que estas relações determinaram, muito mais para a sua conservação do que para a sua superação”[12]. Para Lélio Basso, o socialismo supera as liberdades formais e meramente políticas, submetidas ao poder econômico, e constrói uma democracia que se manifesta na prática cotidiana de todos e de cada um, ou seja, em todos os domínios da vida social. Portanto, segundo Lélio Basso, a “democracia” implantada pelo socialismo é direta ou, utilizando outra palavra, é autogestão.
Portanto, as teses de Amadeo Bordiga sobre o caráter elitista e burguês da democracia representativa foi confirmado e aprofundado por outros teóricos que se debruçaram sobre as modernas formas de dominação burguesa na “sociedade repressiva”. Por isso, para nós é muito mais útil ler Bordiga do que os vulgarizadores das ideologias burguesas de séculos passados ou das idéias reformistas do início do século 20.
Artigo publicado originalmente em: Revista Ruptura. Publicação do MSL – Movimento Socialista Libertário. Ano 04, n. 5, Fevereiro de 1997.




[1]Bordiga, Amadeo. A Constituinte? In: Tragtenberg, M. (Org.). O Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 179.
[2]Bordiga, A. A Constituinte? ob. cit. p. 178.
[3]Bordiga, A. A Ilusão Eleitoral. In: ob. cit. P. 181-182.
[4]Bordiga, A. A Ilusão Eleitoral. In: ob. cit. P. 183.
[5]Bordiga, A. A Constituinte? ob. cit. p. 179.
[6]Bordiga, A. Réplica a Lênin Sobre o Problema do Abstencionismo. In: ob. cit. p. 198.
[7]Bordiga, A. A Ilusão Eleitoral. In: ob. cit. p. 182.
[8]Bordiga, A. A Constituinte? ob. cit. p. 179.
[9]Bordiga, A. A Ilusão Eleitoral. In: ob. cit. p. 182.
[10]Bordiga aqui não observa o contra-senso que existe em negar a expressão democracia, por ser uma forma de dominação burguesa, e utilizar a expressão “estado”, que é a forma que se reveste a dominação da classe dominante, não só da burguesia mas de todas as classes dominantes em todas as sociedades de classes, para manter e reproduzir as relações de produção e o conjunto das demais relações sociais. Por conseguinte, também não se poderia falar de um “estado operário”.
[11]Marcuse, Hebert. Tolerância Repressiva. In: Wolf, Robert Paul; Moore Jr., Barrington; Marcuse, Herbert. Crítica da Tolerância Pura. RJ, Zahar, 1970. p. 89.
[12]Basso, Lélio. Democracia e Socialismo na Europa Ocidental. In:  Revista Encontros com a Civilização Brasileira. No 24, junho de 1980, p. 107.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Acompanham este blog: