AMADEO BORDIGA E A DEMOCRACIA BURGUESA
Nildo Viana
O parlamentarismo é a forma típica da luta mediada
por dirigentes, em que as massas desempenham um papel secundário. Sua prática
consiste no fato de que deputados, personalidades particulares, travam a luta
essencial. Eles devem, em conseqüência, despertar nas massas a ilusão de que os
outros podem travar a luta por elas.
Anton
Pannekoek.
Amadeo Bordiga foi um dos líderes do PSI (Partido
Socialista Italiano) e, posteriormente, do PCI (Partido Comunista Italiano),
onde se tornou bastante influente e sua corrente predominava sobre a corrente
de Gramsci, que, pouco depois, conquistaria a “hegemonia” no partido. Bordiga
também foi o principal teórico da chamada “esquerda comunista italiana” e foi,
por isso, alvo das críticas mal fundamentadas de Lênin em O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo juntamente com os
esquerdistas da Inglaterra, Alemanha e Holanda. A principal contribuição de
Bordiga ao marxismo se encontra na sua análise do modo de produção capitalista
e, em segundo plano, suas críticas à União Soviética (definida por ele como
capitalismo de estado), ao stalinismo e à democracia burguesa. Trataremos, em
particular, deste último aspecto do bordiguismo.
É interessante notar que Bordiga já havia respondido
na década de 20 as formulações do euro-”comunismo” e das “esquerdas”
brasileiras na defesa da tese da “democracia (burguesa) como valor universal”.
Esta tese apresenta três pontos fundamentais que a sustentam: a) a democracia
(burguesa) foi uma conquista dos trabalhadores; b) ela é condição necessária
para a implantação do socialismo; e c) a democracia (burguesa, representativa)
será mantida no regime socialista. Vejamos como Bordiga trata dessas questões
na sua crítica à democracia burguesa.
Para Bordiga, a democracia burguesa não foi uma
conquista da classe trabalhadora mas sim uma criação da burguesia para combater
a nobreza feudal e manter o seu domínio sobre o proletariado. Segundo ele: “a
crítica socialista demonstra claramente que toda a bagagem da filosofia liberal
é uma ideologia própria da burguesia capitalista, que dela se serve para
justificar sua luta contra os grilhões do regime medieval e, principalmente, a
instauração do seu domínio social sobre as massas trabalhadoras exploradas”[1].
Quanto a tese de que a democracia burguesa é uma
condição para a implantação do comunismo, Bordiga já havia deixado claro que “a
soberania popular realizada com o voto, a liberdade e a igualdade política, é
uma mera ficção, quando subsistem a divisão da sociedade em classes e a
desigualdade econômica. As câmaras eletivas, o estado, permanecem
constantemente nas mãos de uma minoria dominante e servem exclusivamente aos
interesses dela”[2].
Para ele, a burguesia só cede o direito de voto às massas porque sabe que elas,
devido às suas condições de vida desfavoráveis, não saberiam escolher seus
representantes. Poderíamos dizer que Bordiga esquece dois pontos fundamentais
que dificultam a escolha dos representantes mais adequados pelas massas: a
intensa manipulação do sistema eleitoral pela burguesia e a integração das
“esquerdas” no sistema partidário e parlamentar, fenômeno, aliás, observado
pelo próprio Bordiga. Além disso, resta questionar a própria existência de
“representantes mais adequados”, pois, na verdade, estes nem sequer existem,
com raras exceções, do ponto de vista dos interesses do proletariado. O direito
de representatividade das minorias, segundo Bordiga, serve apenas para
justificar a representatividade da classe burguesa que utiliza seu poder econômico
para conquistar a maioria no parlamento.
Além da falsidade das liberdades democrático-burguesas
e das dificuldades que as massas encontram para escolher os melhores
representantes, existe, para Bordiga, um outro elemento negativo na democracia
burguesa, que é a corrupção que esta cria no movimento revolucionário: “apesar
do crescimento desse perigoso núcleo revolucionário, pronto para estourar e
fazer em frangalhos a velha casca, o regime burguês nada sofria; muito pelo
contrário, reforça-se. Os fervorosos revolucionários, no ambiente burguês
parlamentar, se aplacavam, se domesticavam; em pouco tempo, este se tornava
reformista, aquele reacionário, aquele outro ministro, e assim por diante”[3].
Por isso, “o proletariado não deve ser iludido e entorpecido com a luta
eleitoral; deve convencer-se da ineficácia revolucionária da conquista das
cadeiras no parlamento e deve conhecer qual é o caminho a seguir e em que
sentido seu esforço pode tornar-se útil”[4].
Bordiga, a partir disto, chega a conclusão oposta à dos ideólogos da
“democracia como valor universal” que afirmam ser a democracia representativa
uma condição necessária para a implantação do socialismo: “não é pelo
desenvolvimento e pela intensificação das formas democráticas que o socialismo
espera atingir sua própria realização, mas pela luta social entre a s classes e
pela vitória revolucionário do proletariado”[5].
Definitivamente, a luta de classes não ocorre no parlamento (...).
Amadeo Bordiga não nega que a participação no
parlamento possa influenciar nos acontecimentos mas nega que esta influência
possa se revolucionária: “penso que nossa atual missão histórica nos deu uma
tática nova e bem definida, isto é, a recusa à participação parlamentar, por
não ser mais um meio de influir sobre os acontecimentos no sentido
revolucionário”[6].
Para Bordiga, ao contrário do que pensam os
reformistas contemporâneos, socialismo e democracia representativa são
incompatíveis: “é absolutamente paradoxal a concepção de que as atuais formas
políticas, que foram criadas pela burguesia para a própria dominação de classe,
possam elas próprias, tornarem-se os órgãos de uma função absolutamente
contrária”[7].
Segundo Bordiga, foi justamente a participação na democracia burguesa e a
aliança com os setores “democráticos” da burguesia que ofuscou a visão da
verdadeira relação entre socialismo e democracia: “a nefasta política de
conciliação, que tanto prejuízo e confusão causou por meio da colaboração entre
os socialistas e os democratas burgueses, fez perder de vista esta antítese programática,
fundamental, entre socialismo e democracia”[8].
Para Bordiga, que identifica democracia burguesa com democracia em geral, o
socialismo não cria uma “democracia socialista” ou uma “democracia operária”
mas abole todo e qualquer tipo de democracia, pis este é um conceito burguês
que expressa uma relação social burguesa: a forma política assumida pela
dominação burguesa. É impossível, portanto, reunir conceitos como o de
democracia ao de socialismo, seria puro contra-senso.
Mas o que substituirá o regime democrático-burguês?
Bordiga responde: “para regulamentar, organizar, disciplinar as novas relações
sociais, fundadas não mais no direito da propriedade privada, mas na associação
dos trabalhadores, deverão necessariamente surgir novos institutos, adaptados
para estas funções, profundamente diversas das que constituem as bases do
estado burguês”[9].
Esse novos institutos são os “sovietes” (conselhos operários) que seriam as
bases do “estado operário”[10].
Neste sentido, Amadeo Bordiga se aproxima da teoria autogestionária de Marx
expressa na fórmula “livre associação dos produtores”. Isto significaria a
extensão da democracia real à todos os membros da sociedade e não apenas de uma
classe e com isso a contradição entre a etimologia do termo democracia (governo
do povo, autogoverno) e a realidade deixaria de existir.
Pode-se contra-argumentar que os reformistas
contemporâneos estão com a razão, pois as teses de Bordiga foram elaboradas no
início do século. A democracia avançou muito de lá para cá. Realmente, a
democracia burguesa avançou muito e
por isso se transformou num instrumento de dominação de classe muito mais
eficiente. As “esquerdas” também avançaram muito, só que rumo ao reformismo e a
integração na sociedade capitalista. Além disso, a tese social-democrata de que
“a democracia é um valor universal” é uma criação do início do século e foi
elaborada pela primeira vez, no movimento socialista, por Karl Kautski. Ele
apenas deu “coloração” ideológica ao entusiasmo eleitoral dos militantes
social-democratas da época (e é daí que surgiu a crítica bordiguista) e
retomava sob o disfarce de “marxismo” a velha ideologia burguesa da “liberdade,
igualdade e fraternidade” e de todas as outras conquistas da revolução burguesa
como sendo uma conquista de toda a sociedade, adquirindo assim, o caráter de
valor universal. Vivemos num mundo maravilhoso de liberdade, igualdade e
fraternidade e também, nunca podemos esquecer, de democracia. Sartre dizia,
sabiamente, que toda tentativa de “revisão do marxismo” se revelava uma volta
às idéias pré-marxistas. A tese da “democracia como valor universal” e a da
democracia burguesa surgiram com a revolução burguesa e com a constituição da
burguesia e do proletariado e cada uma expressando o ponto de vista de uma ou
outra classe. O que define a veracidade de uma teoria não é a “moda” e nem o
número de seus “crentes” e sim sua
identificação com a realidade. A tese social-democrata da “democracia como
valor universal” é uma reprodução da tese burguesa criada à séculos atrás.
Se o aprofundamento da democracia representativa
levasse ao socialismo, tal como alguns dizem, então nos países onde ela está
mais desenvolvida o socialismo devia estar mais próximo. A democracia está
muito mais consolidada e as liberdades democráticas estão muito mais ampliadas
no capitalismo superdesenvolvido da Europa Ocidental. Mesmo assim, o
autonomista Lúcio Magri na Itália e o bordiguista Jean Barrot na França
defendem a superação da democracia burguesa. Quais as causas disto? Encontramos
a resposta disso em Hebert Marcuse: “na sociedade repressiva, destarte, até
mesmo os movimentos progressistas ameaçam a transformar-se em seus opostos na
medida em que aceitam as regras do jogo. Ou, para citar um caso mais
controvertido: o exercício dos direitos políticos (tais como votar, escrever
cartas aos jornais, aos senadores, etc., demonstrações de protesto como
renúncia a priori da contraviolência)
na sociedade de administração serve para fortalecê-la, pois reconhece a
existência de liberdades democráticas que, na realidade, mudaram o conteúdo e
perderam a eficácia. Em tais casos, a liberdade (de opinião, de assembléia, de
expressão) transforma-se em instrumento de servidão absolvedora”[11].
Os ideólogos da “democracia como valor universal” na
Europa Ocidental, além de Magri, Barrot e Marcuse, encontraram como opositor o
Luxemburguista italiano Lélio Basso: “mas, se a via democrática ao socialismo
deve significar uma mistura de esperança do socialismo futuro e aceitação atual
das estruturas políticas hoje existentes, temo que a via ao socialismo não se
abra nunca, porque não creio que se possa chegar a uma transformação radical
das relações sociais capitalistas utilizando somente os instrumentos que estas
relações determinaram, muito mais para a sua conservação do que para a sua
superação”[12].
Para Lélio Basso, o socialismo supera as liberdades formais e meramente
políticas, submetidas ao poder econômico, e constrói uma democracia que se
manifesta na prática cotidiana de todos e de cada um, ou seja, em todos os
domínios da vida social. Portanto, segundo Lélio Basso, a “democracia”
implantada pelo socialismo é direta ou, utilizando outra palavra, é autogestão.
Portanto, as teses de Amadeo Bordiga sobre o caráter
elitista e burguês da democracia representativa foi confirmado e aprofundado
por outros teóricos que se debruçaram sobre as modernas formas de dominação
burguesa na “sociedade repressiva”. Por isso, para nós é muito mais útil ler
Bordiga do que os vulgarizadores das ideologias burguesas de séculos passados
ou das idéias reformistas do início do século 20.
Artigo publicado
originalmente em: Revista Ruptura. Publicação do MSL – Movimento Socialista
Libertário. Ano 04, n. 5, Fevereiro de 1997.
[1]Bordiga, Amadeo. A Constituinte? In: Tragtenberg, M. (Org.). O Marxismo Heterodoxo. São Paulo,
Brasiliense, 1981, p. 179.
[10]Bordiga aqui não observa o
contra-senso que existe em negar a expressão democracia, por ser uma forma de
dominação burguesa, e utilizar a expressão “estado”, que é a forma que se
reveste a dominação da classe dominante, não só da burguesia mas de todas as
classes dominantes em todas as sociedades de classes, para manter e reproduzir
as relações de produção e o conjunto das demais relações sociais. Por
conseguinte, também não se poderia falar de um “estado operário”.
[11]Marcuse, Hebert. Tolerância Repressiva. In: Wolf, Robert Paul; Moore Jr.,
Barrington; Marcuse, Herbert. Crítica da Tolerância Pura. RJ, Zahar, 1970. p. 89.
[12]Basso, Lélio. Democracia e Socialismo na Europa Ocidental. In: Revista Encontros com a Civilização
Brasileira. No 24, junho de 1980, p. 107.
Nenhum comentário:
Postar um comentário