Nildo Viana
A questão
democrática é um tema que vem sendo muito discutido no Brasil. A crise do Leste
Europeu coloca em discussão a relação entre socialismo e democracia. Neste
debate surge a tese que diz que a democracia é um valor universal. O Brasil
importou esta tese da Europa Ocidental, onde desde Kautsky aos
euro-“comunistas” é defendida, e colocou-a em evidencia no debate sobre a
democracia. Mas não se deve estranhar que o “universal” não seja nativo e sim
estrangeiro. Nesse caso nós apenas assimilamos algo estranho a nós como se
fosse “nosso”. Isto é normal a povos subjugados pelo imperialismo. Mas onde
existe submissão existe rebelião. Então, é hora de começar a nos rebelar.
A democracia
representativa vem sendo apresentada principalmente como: a) uma conquista da
classe trabalhadora; b) condição para implantação do socialismo; e c) um valor
estratégico permanente que será conservado no comunismo. Para os que defendem
tal tese, a democracia representativa surgiu das lutas dos trabalhadores e por
isso é uma conquista da classe operária. Esta concepção considera que a classe
operária molda as instituições e a sociedade de acordo com sua vontade
arbitrária. As demais classes sociais não participam da história. Mas
abandonando esta concepção positivista e substituindo-a por uma concepção
dialética, afirmamos que a democracia representativa é um resultado da luta de
classes.
A classe
operária ao lutar com a burguesia queria ir além da democracia representativa e
a burguesia não queria chegar até ela. Este resultado da luta de classes
significou a vitória da burguesia, pois se ela recuou foi para manter sua
dominação e o avanço do proletariado levou-a apenas a mudar a forma de
dominação burguesa. Nessa luta o proletariado não atingiu o seu objetivo (o
comunismo) e a burguesia atingiu o seu (a conservação do capitalismo). Pode-se
dizer que essa derrota do proletariado trouxe-lhe algumas vantagens para a sua
luta posterior contra a burguesia, mas não se deve esquecer que elas foram
muito limitadas e que trouxeram simultaneamente várias desvantagens e que parte
das vantagens conquistadas se perderam com o desenvolvimento histórico devido
ao fato da burguesia integrar esse sistema (democracia representativa) com cada
vez mais eficiência na sua lógica de dominação.
Os ideólogos da
“democracia como valor universal” nos dizem que ela é condição necessária para
a implantação do socialismo. Esta tese se sustenta com a argumentação de que as
liberdades políticas beneficiam a luta dos trabalhadores e se complementa na
sociedade comunista que conservará certos “institutos democráticos”,
necessários para a existência de uma vida democrática.
Vê-se
claramente o caráter evolucionista de tal concepção. Segundo um autor
brasileiro: “do mesmo modo como as forças produtivas materiais necessárias à
criação da nova formação econômico-social já começam a se desenvolver no seio
da velha sociedade capitalista, assim também esses elementos da nova democracia (da democracia de massa) já se esboçam – em
oposição aos interesses burgueses e aos pressupostos teóricos do liberalismo
clássico – no seio dos regimes políticos democráticos ainda dominados pela
burguesia. No primeiro caso, trata-se de suprimir as relações de produção
capitalistas para que as forças produtivas materiais possam se desenvolver
plenamente, de modo adequado à emancipação humana; no segundo caso, trata-se de
eliminar o domínio burguês sobre o Estado a fim de permitir que esses
institutos políticos democráticos possam alcançar pleno florescimento e, desse
modo, servir integralmente à libertação da humanidade trabalhadora”[1].
Assim afirma-se
que a democracia burguesa é uma condição para a democracia “socialista” e que a
“evolução” das forças produtivas e a “evolução” da democracia política levam ao
socialismo. Este evolucionismo unilinear que considera as forças produtivas e o
estado como instrumentos que se aperfeiçoam na história é, como notou Rosa
Luxemburgo, o caminho do reformismo: “a teoria da realização progressiva do socialismo
por intermédio de reformas sociais implica – e é aí que se encontra o seu
fundamento – um certo desenvolvimento objetivo tanto na propriedade privada
como do estado”[2].
Acrescente-se a isso a visão instrumentalista das forças produtivas e do estado
que mudariam “automaticamente”, eliminando-se as relações de produção e o
domínio burguês[3].
Esquece-se o que é o estado e, pior ainda, adota-se uma visão simplista e
mecânica a respeito das forças produtivas.
Pelo visto este
autor dá um grande valor à questão do método. Apesar disto não só fez as
afirmações acima citadas como também esta: “a relação da democracia socialista
com a democracia liberal é uma relação de superação (aufhebung): a primeira elimina,
conserva e eleva a nível superior
as conquistas da segunda”[4].
Como se vê, a ênfase é colocada na “conservação” e na “elevação” ao invés de
ser na eliminação (que superação mais conservadora!). Marx, comentando Hegel,
disse que para este “a negação da negação não é a confirmação do verdadeiro ser
pela negação do ser ilusório” mas “é a confirmação do ser ilusório”[5].
O mesmo se aplica à tese acima exposta: a negação da negação não é a
confirmação da verdadeira democracia pela negação da democracia ilusória mas é
a confirmação da democracia ilusória.
Outro equívoco
desta abordagem está em não tomar as sociedades contemporâneas como uma
totalidade concreta e onde o modo de produção
é a determinação fundamental. A ênfase na “democracia política” e na
“teoria ampliada do estado” significa desconhecer a essência e se iludir com a
aparência. O modo de produção é apagado e substituído pela formação social
criando-se uma “totalidade abstrata”. É o que o filósofo Karel Kosik chama de o
“mundo da pseudoconcreticidade”[6].
Partindo desses
pressupostos chega-se a conclusão evidente de que se deve formar uma aliança de
classes, incluindo até “setores da burguesia”, e aprofundar a democracia de
massas. Vê-se que tal posição defende a reforma legal para aprofundar a
democracia e chegar ao socialismo. Mas desde Rosa Luxemburgo sabemos que “a
reforma legal e a revolução não são métodos diferentes do progresso histórico
que se possam escolher a vontade como se se escolhessem salsichas ou carnes
frias para almoçar, mas fatores diferentes da evolução da sociedade classista,
que se condicionam e se completam reciprocamente, excluindo-se, como, por
exemplo, o pólo norte e o pólo sul, a burguesia e o proletariado”[7].
Adere-se a política da burguesia e apesar das citações de Marx, Engels, Lênin e
Gramsci, os defensores destas teses, são, na realidade, herdeiros de Kautsky e
Bernstein.
Mas será que
eles não têm razão? As liberdades políticas não beneficiam a luta dos
trabalhadores? A resposta é a seguinte: em uma democracia representativa há
liberdade de organização, de reunião, de manifestação e principalmente há
espaço para uma “guerra de posição” que possibilita a classe operária dominar
certos institutos democráticos e utilizá-los para implantar a sua “hegemonia”.
Mas vejamos tudo isto mais de perto. Comecemos pela liberdade de organização:
para se organizar em partido político é necessário atender a certas exigências
do sistema político nacional, que só é possível tendo uma sólida estrutura
financeira e burocrática, pois é preciso contratar funcionários, ter local para
os diretórios, de uma gráfica (ou recursos para as despesas de publicação),
etc. Isto cria uma dificuldade enorme para a classe trabalhadora devido ao seu
baixo nível de renda. Isto também se reflete na possibilidade de existência e
eficiência de todas as outras organizações operárias, exceto os sindicatos,
devido à contribuição sindical obrigatória, mas ela se torna isolada das massas
já que o seu campo de ação é a categoria profissional, onde geralmente uma
minoria é sindicalizada, e também é um lugar propício à burocratização e à
subordinação a outras organizações mais amplas (partidos, estado).
A liberdade de
reunião, por sua vez, só é possível havendo locais para realizá-las e as
classes exploradas não possuem estes locais e nem os recursos para
consegui-los. Finalmente, a liberdade de manifestação é uma ficção. Além das
dificuldades de organização e reunião que influenciam as possibilidades de
“livre manifestação”, ela é limitada pelas leis e pelo fato dos trabalhadores
não terem tempo, acesso a informações e condições financeiras para sistematizar
suas idéias e manifestá-las.
É claro que
tudo isso só é aplicável à classe trabalhadora. Para a burguesia é o contrário
que vale, como demonstra, para ficar em apenas um exemplo, o seu monopólio
sobre os meios de comunicação de massas. As chamadas “liberdades políticas” na
sociedade burguesa consistem no “direito à liberdade” que na verdade contradiz
a liberdade real, pois tal direito é uma impossibilidade prática (exceto para a
burguesia). A desigualdade financeira faz da “liberdade” burguesa uma ficção.
Resta-nos
analisar o campo que a “democracia” nos reserva para a “guerra de posição”.
Todos sabem que para conquistar a famosa “hegemonia” é necessário forjar os
meios materiais que a tornem possível. Esses meios materiais, segundo alguns
teóricos, são conquistados pelas forças populares na disputa com as forças
reacionárias e são os que se pode chamar “institutos democráticos”. Estes se
encontram na sociedade civil e na sociedade política. Mas quem deve
conquistá-los? As massas populares e os partidos democráticos. Podemos dizer
que as “massas populares” acabam submetendo os “institutos democráticos” que
conquistaram a organizações burocráticas (partidos, estados, etc.). As causas
disto são as seguintes: a) as classes exploradas, no capitalismo, devido suas
condições de vida (condições financeiras, falta de tempo, cansaço, etc.) e a
corrupção generalizada da sociedade burguesa não participam nestes “institutos
democráticos”, sendo coisa de minorias; b) entre essas minorias participantes,
surgidas das massas, grande parte persegue seus interesses pessoais (por
exemplo, utilizar um cargo na associação de bairro como trampolim para se
candidatar a vereador); c) outra parte dessas minorias participantes, que
poderíamos denominar de “esquerda” utilizam estes institutos como correias de
transmissão dos seus partidos; e d) essas minorias, a carreirista e a de
“esquerda”, acabam seguindo a dinâmica do estado capitalista e da “conjuntura
política”. Mas não se deve esquecer que existem exceções entre estas
“minorias”. De tudo que foi visto, o que se nota é que a política continua
sendo definida de “cima para baixo” e não como quer os ideólogos da democracia
como valor universal, de “baixo para cima”. A idéia contrária só é possível
quando não se compreende a relação entre estado/sociedade e de ambos com os
partidos políticos.
Segundo a
ideologia da democracia como valor universal, as forças populares precisam
manter uma unidade na sua luta que é realizada no(s) partido(s) democrático(s) de massa,
principalmente os da classe operária. O partido é a síntese das forças
populares e busca pressionar/conquistar a sociedade política. Esta tese revela
mais uma vez a visão instrumentalista: o partido é um instrumento das forças
populares. Na verdade, os partidos políticos não são instrumentos e não
representam as classes exploradas (“massas”, “forças populares”).
Contudo, não há
espaço aqui para colocar a questão do partido de forma aprofundada e por isto
faremos apenas alguns apontamentos[8].
O partido político para disputar o espaço da sociedade política tem que atender
as exigências do sistema político que inclui sua adaptação ao sistema
partidário e eleitoral. Para se adaptar ao sistema partidário é preciso cumprir
as exigências legais como possuir diretórios em diversas cidades para ser
registrado e não fazer propaganda política contrária ao “regime democrático”.
Isto coloca, conseqüentemente, dois tipos de exigência: de um lado estrutura financeira e burocrática;
de outro lado, limites à divulgação de sua concepção política.
Mas além disso,
o sistema partidário cumpre um papel ideológico junto às classes exploradas: “é
o sistema partidário que permite
indivíduos com pontos de vista ideológicos opostos a manter lealdade ao Estado: livre pensamento implica
em pontos de vista divergentes assim como preferências, e indivíduos com
preferências partidárias diferentes podem sempre aspirar a que seu partido
possa subir ao poder através de eleições livres, e se isto termina por não se
concretizar, pelo menos isto sucedeu no jogo eleitoral justo (oferecido pelo
estado através do sistema eleitoral)”[9].
A adaptação ao
sistema eleitoral coloca como exigências: a existência de diretórios ou
executivas provisórias, o registro de candidaturas, etc. Mas isto é seu aspecto
puramente formal. O sistema eleitoral é muito mais complexo do que deixa
transparecer as exigências legais de participação. Ele revela seu “lado oculto”
quando notamos que o objetivo dos partidos e candidatos é ganhar as eleições.
Aliás, os próprios sistemas partidário e eleitoral forçam os partidos a isto
sob pena de marginalização (por exemplo, nos meios de comunicação). Para
conquistar a vitória eleitoral é necessário deter enormes somas de recursos
financeiros. É isto que possibilita a propaganda de massas (panfletos,
outdoors, comitês, automóveis, aparelham de som, distribuição de brindes, etc.)
e sem ela é muito difícil um bom desempenho nas eleições.
A propaganda de
massas é outro elemento necessário nos grandes centros urbanos com sua
população densa. Ela consiste, essencialmente, em divulgar para a maior camada
possível da população o nome dos candidatos. Nós sabemos que outdoors,
adesivos, etc., não apresentam nenhuma mensagem política e que os panfletos,
geralmente com o nome, o número e a foto e a biografia do candidato (alguns
melhor elaborados contém mensagens políticas genéricas ou demagógicas), também
não trazem nenhum conteúdo político criterioso e por isso não é difícil
perceber o caráter despolitizante da propaganda de massas, mesmo quando feita
pelas “esquerdas”.
Outro fator
importante que serve para amortecer a reprodução da luta de classes na disputa
eleitoral é o condicionamento do discurso pelo sistema eleitoral,
principalmente quando o objetivo é a vitória eleitoral. Os partidos de
“esquerda” tendem a considerar a classe trabalhadora “despolitizada” e como
realmente o voto desta vai para diversos partidos (de direita e de “esquerda”),
ele se torna fragmentário e a conquista dos votos das classes auxiliares da
burguesia passa a ser necessário. Entretanto, a classe trabalhadora e as
classes auxiliares da burguesia possuem interesses diferentes e por isso o
discurso político se torna moderado e voltado para atender os mais variados
interesses. Os partidos burgueses também tentam conquistar os votos de todas as
classes sociais. O discurso eleitoral é, por sua natureza, um discurso
policlassista e, portanto, despolitizante.
De nada adianta
os partidos de “esquerda” lamentarem que os trabalhadores votem nos
conservadores, pois são eles que reproduzem a política da burguesia. Daí o voto
nulo, que em muitos casos representa a negação do sistema eleitoral, ser mais
politizado do que pode parecer à primeira vista. Mas o rompimento com a
política da burguesia significa, ao mesmo tempo, um rompimento com a
social-democracia que raivosa se volta contra os trabalhadores, por serem
“despolitizados”. Do ponto de vista da social-democracia, os trabalhadores são
despolitizados e do ponto de vista do proletariado a social-democracia é
despolitizada e despolitizante. Isto é possível porque se entende coisas
diferentes por “política” e a política da burguesia é diferente da política dos
trabalhadores.
A concepção
burguesa da política, reproduzida pela social-democracia, afirma que a luta
política deve convergir para o estado, que é a “síntese” da sociedade civil. O
estado burguês assume a aparência universal e esse processo de universalização
cria o “interesse nacional” e a “cidadania”. Esta é uma das formas de se apagar
as lutas de classes na sociedade, pois todos são “cidadãos” que defendem o
“interesse nacional”. A cidadania retira as diferenças de classe e o interesse
nacional as diferenças dos interesses de classe[10].
Marx dizia que
o direito é a aplicação de uma regra única a seres humanos que são diferentes
e, sendo assim, pode-se dizer que o “direito ao voto” ou o “direito a
candidatar-se” não passa de uma farsa, pois os eleitores e aqueles que querem
ser candidatos são pessoas com inúmeras diferenças (financeiras, políticas,
culturais, etc.), ou seja, o direito igual é aplicado a pessoas de diferentes
classes sociais e por isso significa a desigualdade e a injustiça. Trata-se de
uma armadilha ideológica, pois ao invés do operário, burocrata, camponês,
burguês, etc., aparece “o cidadão”. Os cidadãos possuem os mesmos direitos e
portanto são, nessa inversão da realidade, iguais. Por isso, “a emancipação
política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a
indivíduo egoísta independente e, de
outro, a cidadão do estado, a pessoa
moral”. Porém, “somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão
abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações
individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces
propes [próprias forças] como forças sociais
e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação
humana”[11].
A partir disto
se coloca a opção: os partidos de “esquerda” fazem uma política de classe e se
arriscam a perder as eleições mas contribuem na organização e mobilização dos
trabalhadores ou fazem a política da burguesia e podem até ganhar as eleições
mas neste caso já estarão desfigurados e isto seria contrário aos interesses da
classe trabalhadora.
A luta das
esquerdas deve ser contra o capitalismo e sua democracia. Isto não quer dizer
que se deve abandonar definitivamente qualquer tipo de participação em tal
“democracia”. Mas esta participação deve estar subordinada aos interesses de
classe do proletariado e que por isso tem como objetivo principal acirrar as
contradições do capitalismo e colocar em evidência o programa comunista. Contudo,
deve-se deixar claro que a participação ou não-participação, assim como suas
formas, dependem fundamentalmente do momento histórico e da especificidade e
situação concreta de cada país. A incompreensão da situação particular de cada país leva geralmente
ao não-entendimento de certos fenômenos e por isso se desenvolve uma prática
política equivocada. Um exemplo disso foi a incompreensão de Trotsky sobre o
papel do anarquismo e do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) na
guerra civil espanhola, o que lhe valeu a ruptura com Victor Serge e outros
militantes.
As esquerdas em
vez de se iludirem com a democracia burguesa e com as reformas legais
procurando, sobre hegemonia das classes auxiliares da burguesia, forma um
“bloco histórico reformista”, deveriam assumir uma política de classe
procurando, sob hegemonia do proletariado, formar um “bloco revolucionário”.
Este contaria com o proletariado e com classes e frações de classes que podem
historicamente cumprir um papel revolucionário, como, por exemplo, o
campesinato e o lumpemproletariado. As organizações revolucionárias e os
movimentos sociais, como o ecológico, o negro, o das mulheres, entre outros,
também devem compor este bloco juntamente com os indivíduos revolucionários
provenientes de outras classes sociais.
Além da
composição social diferenciada, o bloco revolucionário difere do bloco
reformista pelo projeto político. O programa de reformas caracterizado por ser
antimonopolista, antilatifundiário e antiimperialista do bloco reformista não
toca questões essenciais e caracterizadores do programa comunista, como a
abolição do mais-valor, do estado e a autogestão social. O bloco reformista
propõe reformar o capitalismo ao invés de superá-lo. O bloco revolucionário,
pos sua vez, propõe a destruição do capitalismo e a instauração do comunismo, o
que significa colocar a ênfase na transformação das relações de produção e não
em questões superficiais.
Mas se a opção
dos partidos de “esquerda” for ganhar as eleições, a situação se altera. Uma
vez ganhando as eleições, os “representantes dos trabalhadores” não podem fazer
muita coisa no parlamento por vários motivos: desde os limites constitucionais
e regimentais até a composição majoritariamente conservadora que caracteriza o
parlamento, sem falar na pressão do poder executivo e dos lobbies
extraparlamentares.
Caso conquiste
o poder executivo, o que ocorrerá é que os “representantes dos trabalhadores”
vão administrar o capitalismo para a burguesia. Existe uma contradição entre a
classe operária e o poder político burguês e cabe a quem entra na luta política
escolher o lado que vai ficar. A estrutura burocrática e hierárquica do poder
burguês e o seu funcionamento condicionado pelo modo de produção capitalista
fazem com que, independentemente de quem está no poder, o movimento operário
acabe sendo reprimido por ele. Não é preciso apresentar os exemplos disso no
mundo, inclusive no Brasil. As regras da democracia burguesa são
contra-revolucionárias e por isso não há sentido em dizer que ela é condição
para instauração do socialismo. A instauração do socialismo só é possível com a
sua destruição.
Os ideólogos da
democracia burguesa também dizem que a democracia é um valor estratégico
permanente que deve ser preservado no socialismo (comunismo) convivendo com a “democracia
direta”. Então vejamos se há compatibilidade entre democracia representativa e
socialismo. O socialismo como projeto político ainda não foi realizado
historicamente, embora tenha se concretizado em breves momentos e
posteriormente tenha sido derrotado pela contra-revolução, significa
fundamentalmente a socialização dos meios de produção. Isto quer dizer que os
meios de produção se tornam propriedade coletiva. Mas a propriedade só é
verdadeiramente coletiva se a coletividade possuir a sua direção. Portanto, o
socialismo pressupõe a autogestão. O socialismo significa o fim da divisão
social do trabalho. Ora, a democracia representativa se baseia na divisão entre
representantes e representados, o que leva fatalmente a divisão entre
dirigentes e dirigidos e entre não-produtores e produtores: o representante não
vai dispor de tempo para executar suas funções se for também um produtor.
Assim, o produtor perde o poder de decisão em favor do não-produtor. Mantém-se
a divisão social do trabalho e realiza-se a “perversão” da representação que se
transforma em nova forma de dominação e exploração.
O que pode
parecer “perversão” da representação é, na verdade, sua própria natureza. Na
sociedade capitalista as diversas classes sociais deveriam elaborar um projeto
político que expressasse suas necessidades, interesses, aspirações e escolher
alguém para apresentá-lo. Entretanto, são as cúpulas que já detém o poder
político e financeiro que preparam diversos programas políticos e os apresentam
a população. Esta é obrigada a escolher um destes ou não escolher nenhum,
abstendo-se. Deve-se acrescentar que nem todos os candidatos são eleitos e com
isso apenas parte da população é “representada”, que é a parte dos eleitores
que votaram nos candidatos vencedores. A representação significa a
transferência de poder do representado para o representante.
Aqueles que
compreendem que no “socialismo” deve haver uma união entre democracia
representativa e direta pensam que numa sociedade socialista será diferente.
Isto não é verdade, pois, “numa sociedade socialista, um poder político
organizado sob formas de democracia representativa (eleição a cada tantos anos
e sobre a base de programa genéricos, o indivíduo isolado como sujeito
político, concentração formal do poder num corpo representativo) está condenado
a ser mais mistificado e mistificante do
que numa sociedade capitalista. Todas as decisões reais, e antes de mais nada a
determinação do plano econômico, escaparão ao controle do eleitor e do
parlamento: um e outro serão impotentes e não estarão preparados para exercer
este controle. O poder real será então assumido por uma estrutura centralizada,
por uma minoria iluminada: o partido (ou os partidos) dominante e a
tecnocracia. E por trás do véu da soberania popular, das eleições, do
parlamento, todos os coletivos sociais ficarão reduzidos à categoria de
instrumentos consultivos ou de correias de transmissão da vontade de uma
minoria”[12].
Resta lembrar que isto, entretanto, não será socialismo.
A democracia
representativa não é um valor universal e sim um valor burguês (específico de
uma classe). É também uma forma de dominação burguesa que pode se transformar
em uma forma de dominação burocrática. Marx já dizia que uma classe que
pretende se tornar uma nova classe dominante apresenta seus interesses
particulares como os interesses gerais da sociedade[13].
Uma vez no poder esta classe se apresenta como portadora e representante de
toda a sociedade. A nova dominação de classe e a nova sociedade classista
passam a ser consideradas “naturais” e “universais”, invertendo a realidade na
esfera da consciência. É assim que a democracia “burguesa” se torna um valor
“universal”.
A solução deste
dilema só pode surgir quando aparecer uma classe que não pode se libertar sem,
ao mesmo tempo, abolir todas as classes e, conseqüentemente, a dominação de
classe em geral. Esta classe é o proletariado, pois ele ao se libertar
concretiza a libertação de toda a sociedade. Assim, o interesse particular do
proletariado é, ao mesmo tempo, o interesse geral da sociedade. A unidade do
interesse particular de classe e o interesse geral da sociedade se materializa
no proletariado.
Mas pode
surgir, no capitalismo, uma outra classe social querendo se tornar uma nova
classe dominante e que, por isso, deve apresentar seus interesses particulares
como universais. Como é na classe operária que se dá a fusão do particular com
o geral, esta classe precisa se auto-intitular representante ou vanguarda do
proletariado. Kautsky afirmou que o movimento operário é incapaz de emancipar o
proletariado estando desprovido de teoria, que é acessível aos meios burgueses[14].
Segundo Massimo
Salvadori, Kautsky pretendia “desenvolver o marxismo” com a intenção de retirar
os aspectos “utopistas” do pensamento de Marx e engels. Mas acabou fazendo “uma
revisão do próprio marxismo”. Qual o caráter desse revisionismo? Salvadori diz
que “esse revisionismo refere-se aos seguintes pontos fundamentais: a teoria da
crise ‘final’ do capitalismo, a ‘ruptura’ da máquina estatal, o autogoverno, o
fim da divisão do trabalho e a ‘extinção’ do Estado”[15].
Acrescente-se a isso a sua tese de que são necessários os “métodos científicos”
para se alcançar a consciência socialista e vemos claramente o seu caráter
burocrático.
A burguesia e a
burocracia são as classes que têm o interesse em afirmar que a democracia é um
valor universal e Kautsky foi o primeiro grande ideólogo da burocracia.
Certamente o foi de forma não consciente. Trocando a ordem da frase de Marx,
pode-se dizer que assim como não se julga uma época de transformação pela
consciência que ela tem de si mesma, não se pode julgar um indivíduo pela
consciência que tem de si. Afinal, “não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência”[16].
Nem todos os
que se dizem socialistas realmente o são. Como bem disse François Perroux,
muitos “acreditam estar morrendo pela classe, morrem pelos rapazes do Partido.
Acreditam estar morrendo pela Pátria, morrem pelos industriais. Acreditam estar
morrendo pela liberdade da Pessoa, morrem pela Liberdade dos dividendos.
Acreditam estar morrendo pelo Proletariado, morrem por sua burocracia.
Acreditam estar morrendo pr ordens de um estado, morrem pelo dinheiro que
mantém o estado. acreditam estar morrendo por uma Nação, morrem pelos bandidos
que a amordaçam”[17].
Nós, à
esquerda, ao contrário da burocracia, devemos formar um “bloco revolucionário”
e incentivar a auto-organização das massas através de conselhos de fábrica,
comitês de bairro, etc. e, com isso, destruir o estado burguês e sua
“democracia”, construindo a autogestão social, a única forma possível que
manifesta a etimologia da palavra democracia: governo do povo.
................................................................................................................................................
Artigo publicado originalmente na Revista Brasil Revolucionário, Vol. 08, 07 de Junho de 1991.
[1]
Coutinho, Carlos
Nelson. A Democracia Burguesa Como Valor Universal.
São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 25.
[3] É óbvio que os escritos de Marx
dão margem a esse tipo de interpretação no que se refere às forças produtivas
mas não em relação ao estado. Sobre as forças produtivas Marx observou que a
dialética dos conceitos “forças produtivas” e “relações de produção” apresenta
limites que “estão por determinar e que não suprime a diferença real” (Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2 edição, São Paulo,
Martins Fontes, 1983, p. 227). De qualquer forma, vários pensadores marxistas
(como A. Gorz) e não-marxistas (como Ivan Illich) questionam a neutralidade das
forças produtivas e a técnica defendida pelas “esquerdas” tradicionais.
[5] Marx, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: Fromm, Erich. Conceito
Marxista do Homem. 3ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1964, p. 171.
[6] Cf. Kosik, Karel. Dialética
do Concreto. 4ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
[7] Luxemburgo,
Rosa. Ob. cit., p. 100.
[8] Cf. Viana, Nildo. O Que
São Partidos Políticos. Goiânia, Edições Germinal, 2003.
[9] Costa
Neto, L. Hegemonia e Política de
Estado. Paz e Terra, Vozes, 1988, p. 77.
[10] Para uma crítica mais aprofundada
da ideologia da cidadania, cf. Viana,
Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A
Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé,
2003.
[11] Marx,
Karl. A Questão Judaica. São Paulo,
Moraes, 1978, p. 51-52.
[12] Magri,
Lúcio. Parlamento ou Conselhos Operários.
In: Pannekoek, Anton e outros. Conselhos Operários. Coimbra, Centelha,
1975, p. 109.
[13] Marx,
Karl. Introdução à Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel. In: Marx,
Karl. Ob. Cit.
[14] Kautsky,
Karl. As Três Fontes do Marxismo. São
Paulo, Global, s/d.
[15] Salvatori,
M. Premissas e Temas da Luta de Karl
Kautsky contra o Bolchevismo. In: Mattick,
P. e outros. Karl Kautsky e o Marxismo.
Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988, p. 164.
[16] Marx,
Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª
edição, São Paulo, Ciências Humanas, 1982, p. 37.
[17] Apud. Marcuse, Herbert. A
Ideologia da Sociedade Industrial. 6ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1982,
p. 194.
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