BORDIGUISMO, CONSELHISMO E
NÓS
Nildo Viana
O chamado esquerdismo[1]
possuiu inúmeras concepções e correntes políticas. Entre estas correntes se
destacam duas: o bordiguismo, gestado por Bordiga e a Esquerda Comunista
Italiana e o comunismo conselhista, desenvolvido pelos revolucionários
holandeses e alemães. O objetivo do presente texto é ressaltar as diferenças e
semelhanças entre estas duas concepções e ver como elas nos ajudam a constituir
uma teoria da revolução proletária.
O Bordiguismo e o Movimento do Capital
Comecemos pelo bordiguismo. O bordiguismo nasceu na
Itália, através de Bordiga e suas obras. Bordiga e seus continuadores
desenvolveram uma ampla teoria do capitalismo a partir da obra de Marx. Depois
de Bordiga, a grande obra do bordiguismo, a nosso ver, é a de Jean Barrot, O Movimento Comunista[2].
É uma obra monumental e que fornece uma análise do capitalismo de forma
aprofundada e ao mesmo tempo sintética. Consideramos esta obra também como uma
síntese do bordiguismo (embora realize algumas rupturas com o próprio Bordiga,
principalmente no que se refere à questão do partido). A grande contribuição do
bordiguismo ao marxismo e ao mesmo tempo seu elemento central, é justamente a
sua análise da dinâmica do capitalismo, centrada na produção de mais-valor. O
bordiguismo analisa o processo de constituição, desenvolvimento, e
auto-dissolução do capital. Aí reside sua força e, ao mesmo tempo, sua
fraqueza. Ao analisar o capitalismo, o bordiguismo não sai de sua esfera, segue
sua dinâmica, seu processo de constituição e desenvolvimento, mas ao ficar restrito
a esta dinâmica, acaba concebendo a constituição do comunismo como
auto-dissolução do capital. O movimento do capital aponta para o seu próprio
fim, através, como colocou Barrot, da “caducidade do valor”.
O que temos aqui é, a
nosso ver, o elemento central do bordiguismo, a centralidade que oferece à “lei
do valor”. Disto resulta uma concepção economicista e determinista. A dinâmica
do capital aponta para sua própria dissolução, ou seja, isto já está
determinado. Daí todas as demais questões e relações sociais são derivadas do
processo de produção capitalista. Assim, a concepção de história do bordiguismo
se revela “fechada”, onde a categoria da possibilidade inexiste. A constituição
do comunismo é derivada do movimento do capital e assim não há espaço para se
pensar a negação do capital como criação do proletariado. Disto resulta a
concepção de Bordiga da “crise final” e do partido-seita. O movimento
automático do capital gera o comunismo.
Entre os esquerdistas,
curiosamente, o bordiguismo é a única corrente que ainda concede um papel ao
partido político. Mas isto não é nenhuma novidade e o próprio Jean Barrot
reconheceu isto. Segundo ele, no Prefácio
à Edição Portuguesa, o seu livro O
Movimento Comunista, “tende a
apresentar uma lógica mais mecânica do que social – a palavra ‘mecanismo’
surge, de resto, com relativa freqüência. Tem-se, por isso, por vezes, a
impressão duma evolução automática, prevista, ‘programada’, segundo ‘leis’
comparáveis às da física ou das matemáticas. A análise é exata; faz, porém,
abstração de outros aspectos do problema e da realidade. Tende a tudo explicar
em função de uma dinâmica econômica cujo impulso inelutável engendraria a
revolução comunista tal como engendrou o capitalismo. É verdade que a causa
profunda do movimento operário é a sua situação material; mas, quando Marx fala
de ‘constrangimento histórico’ na Sagrada Família, este constrangimento não é
independente da ação humana e da capacidade (ou incapacidade) dos proletários
para agir”[3].
Mas mesmo depois desta
“autocrítica”, Barrot não supera sua visão do processo de constituição do
comunismo via auto-dissolução do capital. Tanto é verdade que no mesmo prefácio
contesta a organização sindical e partidária, os grupos políticos e fala em
grupos informais que nascem não se sabe de onde e nada mais além disso. Com o
bordiguismo corremos o risco de compreender o movimento do capital mas não o
engendramento do comunismo.
O Conselhismo e o Movimento Operário
O comunismo conselhista
já parte de uma perspectiva diferente. Através das obras de Pannekoek, Korsch,
Rühle, Mattick, Gorter, entre outros, se constitui como uma corrente política
marxista principalmente na Holanda e Alemanha. Ao contrário do bordiguismo, que
centra sua atenção no movimento do capital, o conselhismo focaliza o movimento
operário. O comunismo conselhista nasceu no interior do processo de formação
dos conselhos operários na Alemanha, Rússia, etc., em períodos revolucionários.
Daí a obra dos comunistas de conselhos se centrar na questão do movimento
operário e da problemática dos conselhos. Pannekoek, por exemplo, dedicou
inúmeros escritos ao tema dos conselhos operários. Derivado desta concepção
conselhista e centrada no movimento operário, o comunismo conselhista logo
percebeu o papel contra-revolucionário dos partidos, sindicatos,
social-democracia, bolchevismo. A luta operária engendra os conselhos operários
e a autogestão social. Assim, a luta de classes assume importância na análise
da realidade realizada pelos representantes teóricos do conselhismo.
O movimento do capital,
por sua vez, foi relegado à segundo plano, o que fez alguns pensarem, tal como
Wright[4],
que os comunistas conselhistas centravam sua análise na questão da autogestão
enquanto administração. Ora, qualquer leitor de Pannekoek[5],
por exemplo, percebe que o modo de produção comunista, para o conselhismo, é a
autogestão, e isto significa que ela não é mera forma de administração e sim uma relação de produção. Tal posição se
encontra, sem dúvida, no grupo Socialismo
ou Barbárie, tal como se vê nas obras de Castoriadis[6],
mas não na produção dos comunistas conselhistas.
O movimento operário é o
fio condutor da análise dos comunistas conselhistas. Ora, o próprio Marx deixou
bem claro que o comunismo é constituído por esta classe social e que é a luta
de classes que define quando e como isto ocorre. Daí, sem dúvida, o comunismo
conselhista ser a corrente política marxista que assumiu a posição mais
revolucionária entre todas as correntes esquerdistas.
Bordiguismo e Conselhismo
A concepção bordiguista
tomou como referência fundamental O
Capital, de Karl Marx[7],
para desenvolver suas teses. Se retomarmos Barrot, veremos que para ele o
proletariado é revolucionário devido ao movimento do capital. Ao tomar O Capital como referência fundamental, o
bordiguismo realizou a leitura de todas as outras obras de Marx através da sua
mediação. Em O Capital, Marx analisa
o processo de produção de mais-valor, capitalista, e por isso centrou sua
atenção principalmente no processo de produção e distribuição. Assim, o que
aparece são as duas classes sociais fundamentais na luta em torno do
mais-valor. Sem dúvida, não é possível separar o modo de produção capitalista
das demais relações sociais. Quais relações sociais? As formas de regularização
(ou “superestrutura”) e as demais formas de produção não-capitalistas. Assim,
para quem se limita à leitura de O
Capital, é possível pensar que a sociedade capitalista só possui duas
classes sociais, o que é incompatível com outros textos de Marx, nos quais apresenta
o campesinato, a burocracia, etc., como outras classes sociais existentes no
capitalismo. Mas trata-se de uma obra inconclusa. O capítulo que ele planejava
escrever sobre o estado e o outro que começou a escrever sobre as classes
sociais, não foram desenvolvidos. Isto prova que é impossível isolar o modo de
produção das formas de regularização, bem como é um equívoco pensar que o
capitalismo só possui duas classes sociais, pois, mesmo em O Capital, Marx apresenta passagens sobre a burocracia e os latifundiários,
que não são nem burgueses nem proletários. A partir de tal ponto de partida, o
bordiguismo irá centralizar sua atenção no movimento do capital e desconhecer a
ação revolucionária do proletariado. Se limitar à leitura de O Capital também significa observar o
movimento do capital, do valor, a tendência de dissolução e destruição do
capitalismo, mas, dependendo da leitura, se pode ver isto como a palavra final,
o que significa a auto-dissolução do capital enquanto conclusão da história.
Ora, a auto-dissolução do capital não diz nada sobre a sociedade
pós-capitalista, apenas coloca que haverá transformação social mas não o seu
sentido. A percepção deste sentido só pode ocorrer fora do movimento do
capital. É por isso que a história não está pré-determinada, pois a
auto-dissolução do capital pode tanto constituir o modo de produção comunista
quanto um modo de produção burocrático. Para reconhecer esta ameaça (o modo de
produção burocrático) e para saber como se pode constituir o modo de produção
comunista, é preciso ultrapassar a análise do movimento do capital e perceber o
desenvolvimento do movimento operário, o que realizou o comunismo de conselhos.
O comunismo conselhista,
diferentemente do bordiguismo, irá tomar como referência fundamental, apesar
disto não estar explícito, o texto de Marx sobre A Comuna de Paris[8]. É em A Guerra Civil na França e ao analisar a ação dos “comunardos” que
Marx irá colocar que é nesta experiência histórica que se descobriu,
finalmente, a forma de emancipação dos trabalhadores. É na Comuna que nascerão
os primeiros esboços de conselhos operários e a primeira grande experiência
histórica de autogestão social. Na Comuna, o movimento operário autogeriu suas
lutas, dispensando representantes e qualquer forma de organização burocrática.
O texto de Marx sobre a
Comuna de Paris assume, para os comunistas conselhistas, também um significado
metodológico: a teoria do comunismo só pode se constituir com base na
experiência histórica do movimento operário. Toda a constituição histórica
posterior do comunismo conselhista se fundamentará neste princípio
metodológico. Tanto que é que a grande obra de Karl Korsch, Marxismo e Filosofia, se fundamentará
justamente na idéia de relacionar marxismo e proletariado. O marxismo é aí
definido como expressão teórica do movimento operário. A crítica dos comunistas
conselhistas ao bolchevismo, por sua vez, tem como fundamento o caráter
não-proletário do leninismo, que ao invés de se fundamentar na experiência do
movimento operário se baseia no pressuposto cientificista do kautskismo. A
crítica do capitalismo estatal russo, por sua vez, tem sua razão de ser por não
se fundamentar na experiência do movimento operário mas, ao contrário, por
combatê-lo, tal como foi feito com os sovietes (conselhos operários).
Assim, no bordiguismo a
ênfase recai sobre O Capital enquanto
obra teórica e no movimento do capital enquanto objeto de análise; no
conselhismo, a ênfase recai no texto sobre A
Comuna de Paris enquanto obra teórica e no movimento operário enquanto
objeto de análise. Sendo assim, não podemos de deixar de reconhecer que a
compreensão do movimento do capital e do movimento operário são fundamentais,
mas que a opção conselhista, por compreender o conteúdo do comunismo e o seu
processo de formação, foi muito mais longe do que o bordiguismo.
Nós...
Movimento do capital,
movimento operário. A ênfase apresentada tanto pelo bordiguismo quanto pelo
conselhismo deixa de lado um terceiro elemento, o dos grupos revolucionários.
Ou, em outras palavras, tanto o bordiguismo quanto o conselhismo negligenciaram
a questão dos grupos revolucionários. O partido-seita de Bordiga ou os “grupos
informais” de Barrot são insuficientes, bem como as teses das organizações
conselhistas de publicação e agitação ou da dissolução dos coletivos revolucionários
nas organizações operárias.
Este terceiro elemento
que foi excluído deve ser incluído. Qual é o motivo da inclusão? O motivo
reside no fato de que é necessário realizar uma síntese analítica entre o
movimento do capital e o movimento operário. A partir desta análise veremos,
entre outras coisas, que existe uma luta de classes entre capitalistas e
proletários e que o futuro não está definido. O capitalismo pode durar mais
tempo do que se espera, pode destruir a humanidade (se não houver uma transformação
social, certamente a destruição ambiental necessitada pelo capital levará ao
fim do planeta e junto com ele a humanidade...), pode se auto-destruir, abrindo
a possibilidade da transformação social,
mas cujo sentido será definido pelas demais classes sociais, se destacando aqui
o proletariado e a burocracia. Ao colocar a questão da burocracia entramos numa
outra discussão, a das demais classes sociais, cuja existência complexifica a
luta de classes. As frações de classes e as demais classes sociais como o
campesinato e a burocracia colocam em evidência o problema da luta
revolucionária pela autogestão e seus obstáculos. As demais classes e frações
de classes perdem a importância e não possuem nenhum projeto político
alternativo ao capitalismo, com exceção da burocracia. Portanto, a luta do
proletariado é contra a classe capitalista e ao mesmo tempo contra a
burocracia. A burocracia já tentou assumir o poder utilizando o proletariado, e
o bolchevismo foi seu produto mais genuíno. O que resultou foi em uma
contra-revolução burocrática ou revolução burguesa sem burguesia que gerou o
capitalismo de estado. Isto coloca a necessidade de se pensar nos obstáculos da
revolução proletária. Além da burguesia há o obstáculo representado pela
burocracia.
A luta de classes irá
definir, mas tal luta ocorre envolvendo todos os seres humanos nesta sociedade.
Todas as classes, frações de classes, movimentos sociais, grupos políticos,
organizações, comunidades, etc., estão envolvidos neste processo e pesam na
balança. Ora, justamente aqueles que possuem uma concepção revolucionária não
podem ficar de fora da luta de classes (se “omitir”, se isso fosse possível,
pois na verdade seria uma posição conservadora, já que fortaleceria o domínio
da burguesia ou a ação da burocracia) e devem, no final das contas, refletir
sobre sua relação com o proletariado, sem o qual não há revolução e nem
autogestão.
A revolução proletária
enfrenta inúmeros obstáculos. A transformação das relações sociais entre os
sexos, por exemplo, ocorrerá com o processo de constituição de uma nova
sociedade. Mas se isto é deixado de lado, se não há uma luta cultural contra o
sexismo, se o movimento das mulheres não busca questionar o processo de
opressão da mulher, isto poderá ser um obstáculo a mais para a realização da
sociedade autogerida. A transformação das relações raciais também ocorrerá,
mas, durante o processo, se não há desde hoje um questionamento radical do
racismo, uma intensa luta cultural, uma auto-organização daqueles submetidos ao
racismo, então se observará mais um obstáculo para a transformação social. A
opressão das crianças, a questão da juventude, dos idosos, a questão religiosa,
entre inúmeros outros elementos são obstáculos para a revolução proletária e
para a constituição da autogestão social.
Um dos grandes problemas
do marxismo foi ter descuidado da questão dos valores e dos sentimentos, que
são constituídos socialmente, sem dúvida, mas que influenciam as relações
sociais, geralmente no sentido conservador. A mentalidade (alguns psicólogos
diriam “personalidade”) dos indivíduos impedem muitos a aderir ao processo
revolucionário ou a fazê-lo de forma ambígua (um autoritário que quer ser
revolucionário certamente irá aderir a uma corrente leninista, seja stalinista
ou trotskista, que se caracteriza por reproduzir elementos da sociedade
capitalista, tal como o culto à autoridade, o burocratismo, etc.). Este é outro
obstáculo ao processo revolucionário. Mas nem todos os indivíduos que estão
momentaneamente nesta corrente possuem mentalidade autoritária, o que significa
que podem superar tal situação. Muitos entram em tais correntes por não
conhecer nenhuma outra. Mas se os grupos revolucionários se omitiram ou se
esconderem, se não realizarem a crítica do bolchevismo, se não se tornarem
conhecidos, então isto vai se reproduzir constantemente. Isto irá reforçar qual
lado da luta de classes?
A partir destes questionamentos, que de forma alguma
esgotam os obstáculos ao processo revolucionário, devemos concluir que é
preciso partir das contribuições do bordiguismo e do conselhismo mas devemos ir
além deles. Este além significa, fundamentalmente, compreender a sociedade
capitalista como uma totalidade, ou seja, o movimento do capital, o movimento
operário e tudo o mais que está envolvido no processo de produção e reprodução
do capitalismo. Sem dúvida, a determinação fundamental continua sendo a luta
entre burguesia e proletariado, mas ela não pode ser isolada das demais lutas
sociais, que apresentam novas determinações ao processo social e que devem ser
integrados em qualquer análise da realidade social.
O papel dos militantes e grupos revolucionários é
buscar acelerar o processo revolucionário e, ao mesmo tempo, criar as condições
favoráveis para a vitória do proletariado. A luta para criar uma situação
revolucionária não é suficiente, se não houver simultaneamente uma luta por uma
nova correlação de forças favorável ao proletariado. Assim, a formação de uma
situação revolucionária significa a alteração da correlação de forças em favor
do proletariado, mas que precisa ser intensificada, ou seja, isto pressupõe que
antes mesmo da situação revolucionária é necessário buscar criar uma nova
correlação de forças, que pode, inclusive, colaborar com a criação desta
situação revolucionária. Isto não tem nada a ver com qualquer estratégia
defensiva, pois trata-se de fazer avançar centros de contra-poder na sociedade
capitalista, de corroer a hegemonia burguesa na sociedade civil e na esfera
cultural, de reforçar a contestação ao capitalismo por parte do proletariado e
diversos outros segmentos sociais (juventude, camponeses, mulheres, idosos,
crianças, trabalhadores desempregados, entre inúmeros outros) e sua
auto-organização, de constituir coletivos revolucionários e contribuir com sua
articulação, o que significa colocar na ordem do dia, sem quaisquer
ambigüidade, a crítica da sociedade capitalista em sua totalidade e a proposta
revolucionária de uma nova sociedade, autogerida. Significa, também, não evitar
o confronto com as forças conservadoras, reformistas, e pseudo-revolucionárias.
Significa, também, ultrapassar o equívoco já apontado por Rosa Luxemburgo, em
escolher entre o abandono do caráter de massa ou do objetivo final: “a histórica marcha do proletariado até à
sua vitória final não é efetivamente uma tarefa simples. Toda a originalidade
deste movimento reside no fato, pela primeira vez na história, as massas
populares deverem realizar as suas idéias por si próprias e contra todas as
classes dominantes, mas situando o seu objetivo para além da sociedade atual,
para além dessa sociedade. Precisamente essa vontade consciente só pode ser
formada pelas massas dentro de uma luta contínua contra a ordem existente,
aliar a luta diária à grande reforma do mundo, eis o grande problema com que
depara o movimento social-democrata. Por conseqüência, deve progredir evitando
dois obstáculos: o abandono do caráter de massa e abandono do objetivo final,
regresso ao estado de seita e transformação num movimento reformista burguês
(...)”[9].
Tal escolha não tem sentido do ponto de vista
revolucionário, pois de nada adianta ser um movimento de massa se não é
revolucionário, e para isso já temos muitos partidos, organizações sindicais,
etc.; assim como nada significa criar um círculo de cinco pessoas que pensam
revolucionariamente mas nada fazem e ninguém conhece. Na época e contexto em
que escreveu Rosa Luxemburgo, início do século e um partido social-democrata de
massas (o qual ela confundia com o movimento operário, pois para ela, o
movimento operário e o movimento socialista – ou social-democrata, na época
sinônimos – são a mesma coisa ) isto tinha sentido: buscar superar a dicotomia
movimento de massa X estado de seita. Hoje, a única dificuldade existente é em
ter objetivos revolucionários e meios adequados e se isto proporciona um estado
de seita ou movimento de massas não é o fundamental, e para isso é necessário
um conjunto de determinações (forma de atuação, estratégia, contexto social,
etc.). Priorizar um movimento de massas pode levar a fazer concessões de caráter
não-revolucionário e priorizar o objetivo sem analisar os meios, significa
criar um mecanismo de auto-isolamento das lutas sociais, o que significa em
nada contribuir para o movimento revolucionário.
Assim, a questão
fundamental se torna a da estratégia revolucionária. Os objetivos colocados
(criar correlação de forças favoráveis ao proletariado e buscar acelerar o
processo revolucionário, objetivando a instauração da autogestão social)
precisam de meios correspondentes e este é o papel que cabe a nossa estratégia
e ação. Já colocamos aquilo que consideramos algumas ações que visam
concretizar tal processo (luta cultural, criação de centros de contra-poder,
etc.). As formas para se realizar isto ocorre em todas as instâncias da
sociedade capitalista. A luta cultural, teórica, artística, são elementos que
devem compor a prática revolucionária. A formação de uma expressão política do
bloco revolucionário é outro elemento fundamental. Aqui entramos em outro
aspecto a ser discutido.
Um bloco revolucionário é constituído pelo conjunto de coletivos, setores
das classes exploradas, organizações, indivíduos, movimentos sociais,
concepções... revolucionárias em uma sociedade e que se contrapõe ao bloco
reformista (social-democracia, bolchevismo, classes auxiliares da burguesia,
organizações, indivíduos, concepções...) e ao bloco dominante (classe
dominante, forças conservadoras...). Tal bloco, a partir desta definição,
existe em toda sociedade, de forma mais ou menos organizada, com mais ou menos
força, etc. Ora, o que se nota nos últimos anos, a nível mundial e nacional, é
um crescimento e fortalecimento deste bloco revolucionário (no Brasil, por
exemplo, se vê o crescimento e expansão do anarquismo, autonomismo, marxismo
autogestionário, “inimigos da economia política”..., e muitos outros grupos e
coletivos sem maior definição teórica ou de concepção). Isto não significa que
ele está articulado e que possua uma expressão política correspondente ao seu
potencial. Isto quer dizer que já existe uma expressão política (forças
revolucionárias) do bloco revolucionário mas ela ainda não se encontra
articulada. Se conseguir formar tal expressão política de forma articulada,
conseguirá ultrapassar as idiossincrasias, o grupismo, idiolatrias, a primazia
das identificações formais (As identificações formais são aquelas feitas tendo
por base uma determinada concepção política – seja o luxemburguismo, o
anarquismo, o autonomismo, o conselhismo, o bordiguismo, etc. – e significa uma
identificação com determinada concepção de mundo, o que provoca um raciocínio
no seu interior, que na maioria da vezes leva a negar as demais concepções.
Este processo de identificação é natural e todos, mesmo os que buscam criar sua
própria identificação – criar sua própria concepção – não escapam disso. O
problema reside quando a identificação formal (cultural) se sobrepõe à
identificação fundamental, que é aquela caracterizada pelo conjunto de valores,
objetivos, que possuímos, e assim, dois indivíduos, por partirem de
identificações formais distintas, se negam a agir coletivamente e se esquecem
que possuem a mesma identificação fundamental. A forma domina o conteúdo e quem
perde com isso é o movimento revolucionário, ou seja, a luta por uma sociedade
radicalmente diferente), as divergências de pormenores e linguagem, etc., e
conseguir uma maior eficácia e, assim, contribuir com o processo
revolucionário, intervindo nos movimentos sociais, nas instituições, etc.,
alterando a correlação de forças na sociedade capitalista, sendo o que deveria
ser e nem sempre é: um movimento revolucionário.
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Bordiguismo, Conselhismo e Nós. Revista
Ruptura, Ano 08, num. 07, 2001.
[1] A expressão esquerdismo,
atribuída aos marxistas revolucionários que discordavam do bolchevismo, é vista
pejorativamente pelo leninismo, que
produziu a primeira obra de crítica ao esquerdismo (Lênin, W. O
Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo. 6a edição, São
Paulo, Global, 1989). No entanto, o esquerdismo, enquanto termo, foi resgatado
e para nós assume o significado equivalente ao de marxismo revolucionário e,
por conseguinte, antagônico tanto ao bolchevismo quanto à social-democracia.
[2] Barrot, Jean. O
Movimento Comunista. Lisboa, Etc, 1975.
[3] Barrot, Jean. Ob. cit., p. 9.
[4] Wright, Steven. As
Tradições Revolucionárias: O Comunismo de Conselhos. Revista Ruptura. Ano
8, n. 7, Agosto de 2001.
[5] Cf. Pannekoek, Anton. A
Luta Operária. Lisboa, Centelha, 1977.
[6] “Chaulieu
(Castoriadis) mostra bem no seu trabalho Les Rapports de Production en Russia que há ali exploração dos operários, mas não
mostra a natureza especificamente capitalista dessa exploração. Há nisso, desde
logo, incompreensão do movimento do capitalismo para o comunismo, ao qual se
substituem contradições reais mas perfeitamente secundárias, ao nível da
gestão, por exemplo” (Barrot, J. Ob. cit., p.
60). Aqui vemos novamente a força e a fraqueza do bordiguismo: identificou o
equívoco de Castoriadis mas não conseguiu perceber o aspecto revolucionário
contido em sua abordagem, justamente a questão da gestão (ou melhor, da
autogestão). Se se fizer a leitura dos textos comunistas conselhistas, irá se
ver que a questão da produção de mais-valor é apresentada como a forma de
exploração na Rússia. A diferença entre a abordagem comunista conselhista e de
Castoriadis já é visível no próprio nome atribuído para caracterizar a
sociedade russa: capitalismo de estado, para os comunistas conselhistas, capitalismo
burocrático, para Socialismo ou Barbárie.
Diferença não desprezível se recordarmos que capitalismo de estado significa,
tal como colocou Pannekoek (na obra citada), que o estado monopoliza a
apropriação do mais-valor produzido pela classe operária e capitalismo
burocrático, que a burocracia dirige o proletariado (cf. Castoriadis, C. A Sociedade Burocrática. Porto, Afrontamento, 1979).
[7] Marx, Karl. O Capital.
5 vols. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
[8] Marx, Karl. A Guerra
Civil na França. São Paulo, Global, 1986.
[9] Luxemburgo, Rosa. Textos
Escolhidos. Lisboa, Estampa, 1977, p. 103.
Nossa, publicado em 2014, originalmente em 2001 na hoje lendária revista Ruptura. Faz tempo, pelo menos pra mim que tenho 24 anos. Eu integrei de 2011 a 2014 uma seita bordiguista, confesso que na época não entendia bem pelo o que lutava, só fazia uma ideia, mas como proletário me sentia no dever de me manter vinculado ao partido histórico do proletariado, participava atentamente das reuniões de formação teórica, e algumas madrugadas dormia menos pra queimar carros de empresas ligadas à gestão estatal, pichar palavras de ordem em prédios públicos e terrenos abandonados e panfletar nas caixas de correio dos bairros da cidade chamando para a luta nas ruas contra o capital, partidos políticos e sindicatos. Nos considerávamos herdeiros da grande revolução de outubro de 1917, sobre os conselhos operários, o camarada que nos reuniu no partido apenas nos dizia que eles surgiriam de novo num período revolucionário. As contribuições teóricas do MOVAUT eram desconsideradas, nosso camarada mais experiente, com quinze anos de militância na época se orgulhava de já ter discutido com Nildo Viana no CMI ou com alguém se passando pelo doutor. Em 2015 o camarada chegou a compartilhar um texto aqui do blogue positivando o conteúdo, penso que era sobre o Natal se não me engano, descrevendo como um texto de um "simpatizante do comunismo". Tive um surto existencial romântico aos 20 anos, enviei um e-mail sentimental para a organização e me desfiliei do partido e me afastei dos outros militantes, não sentia mais que era meu lugar, mas me sentia culpado e covarde por não entender direito o que estava acontecendo e abandonar os camaradas. Venho fazendo meu caminho desde então e tentando entender mais sobre o tal movimento autogestionário, antes eu pensava: autogestão é o caralho, a revolução deve ser comunista. Hoje eu vejo como não entendia as palavras. A luta continua, a luta pela hegemonia proletária, pela autogestão dos meios de produção, pelo modo de produção comunista.
ResponderExcluirPois é, esses processos ocorrem e a cultura existente hoje permite a proliferação de pequenos grupos e apesar da existência de muita informação disponível na internet, falta o filtro da formação política anterior. Mas seguimos na luta! abs.
ExcluirProfessor, fui alertado que o doutor fala de Bordiga através de terceiros, sem levar em consideração a obra do próprio Bordiga para definir sua teoria do que é bordiguismo. Algo parecido com o que muitos pseudomarxistas fazem com Marx. Seria interessante uma tese sobre Bordiga baseada no próprio.
ResponderExcluirIlustre anônimo, eu li vários textos do Bordiga e até escrevi sobre ele. Porém, penso que deve reler o texto, pois não estou tratando de Bordiga e sim do bordiguismo, que vai além de Bordiga (assim como o marxismo vai além de Marx). Releia o texto e veja que comento os bordiguistas, especialmente o melhor deles, Jean Barrot. Sobre Bordiga, eu escrevi sobre sua concepção de democracia (deve achar neste mesmo blog), mas nunca dediquei um escrito sobre ele. Se um dia tiver oportundidade, eu farei. Inclusive eu planejo publicar uma coletânea de textos dele, mas esse plano, de mais de dez anos, nunca se concretizou. Quanto aos supostos indivíduos que te alertaram, digam para eles reler o texto (esse específico) e para prestarem mais atenção em suas afirmações... Grato!
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