PSICANÁLISE DA
ILUSÃO ELEITORAL 01:
O DESEJO COISIFICADO
Nildo Viana
A época das eleições revela um conjunto de comportamentos e
discursos irracionais, sendo que alguns são racionalizados. No entanto,
diversas pessoas que passam a sua vida inteira alheia às questões políticas e
sociais mais amplas, de repente, como num passe de mágica, se tornam ardorosos
defensores de candidatos A ou B. Depois de três anos de completo apoliticismo
emergem figuras que do nada se julgam entendidos em política e que devem
convencer os demais a qualquer custo. Um comportamento extremamente irracional.
Sendo que sua motivação não é racional, então talvez seja interessante
descobrir quais suas reais motivações. Obviamente que excluímos da análise
aqueles que possuem interesses (pessoais, grupais, etc.) envolvidos em sua
escolha eleitoral, que abordamos em outra oportunidade[1].
Aqui se trata do caso de pessoas que não possuem nenhum interesse pessoal ou
grupal no processo eleitoral e se tornam, repentinamente, defensores
insistentes de determinados candidatos, o que torna a irracionalidade ainda
mais perceptível.
A psicanálise[2] é
extremamente útil para explicar esse comportamento irracional. E nada melhor do
que um psicanalista servir de exemplo para análise. Um psicanalista
profissional geralmente é alheio às questões políticas, mas não deixa de se
envolver no processo eleitoral. Vejamos que diz o psicanalista Contardo
Calligaris:
Votar
talvez seja um rito e uma espécie de ato de fé. Mas o momento crucial desse
rito não é coletivo – ao contrário, ele é estritamente reservado ao indivíduo.
Rito de qual culto, então? E ato de fé em quê? Pois é, ninguém (salvo ilusões e
delírios) acredita que, depositando nosso voto na urna, a gente possa mudar o
mundo. Mas, paradoxalmente, votamos exatamente por isso, para confirmar nossa
fé no poder de os indivíduos modificarem o mundo[3].
Essa é a questão fundamental que atinge grande parte da população.
A ilusão eleitoral se fundamenta, em grande parte dos casos, numa “fé”, num
desejo. A questão é que não é um desejo como os outros que temos na nossa vida.
É um tipo específico de desejo. É um desejo que entra em contradição com a
realidade, sendo ilusório, mas que se sustenta por ser coisificado. É um caso
semelhante ao de pessoas que, dominadas pelos valores burgueses da competição, na busca de ascensão e riqueza, querem se tornar milionários, mas nada fazem para
concretizar tal desejo. Esse tipo de pessoa fica esperando “a grande sorte”, o
“destino”, “Deus” ou qualquer outra coisa que produza um resultado sem o
trabalho de lutar para consegui-lo. Algumas pessoas ficam esperando a riqueza sem fazer nenhum esforço para tal. Outros jogam na loteria esperando um dia ser
contemplados.
Todos estes exemplos revelam desejos coisificados. O desejo
ganha vida própria, passa a ser um agente da história ou da vida dos
indivíduos, se autorrealizando, pois aquela que deseja nada faz para sua
realização. Essa forma de desejo é produto da sociedade capitalista e da
alienação generalizada (isso será abordado em outro texto), mas se reproduz na época
das eleições. É isso que explica pessoas geralmente alheias às questões
políticas, tanto institucionais (as políticas estatais e processos políticos partidários
e parlamentares, ações governamentais) quando no sentido mais amplo (local de
trabalho, moradia, estudo, manifestações, movimentos sociais, reflexões, etc.),
repentinamente começam a querer discutir política e colocar como fundamental
algo que nem sequer faz parte de sua vida cotidiana.
O desejo coisificado tem na democracia representativa a sua
forma mais cristalina de existência, pois basta você escolher seu
“representante” e governante e pronto, pois continuar alheio à vida política. A
valoração da política se dá apenas no momento eleitoral, bem como a ação
política se reduz ao voto. Depois de heroicamente, como nosso psicanalista
acima, votar, o cidadão vai para casa e passa a cuidar de sua vida privada. O
desejo coisificado de mudança ou qualquer outro é fetichista e por isso tem a
ver com a fé, tendo um mecanismo psíquico semelhante. Ele é uma mistura de
vontade intensa com conformismo prático. Em alguns, o conformismo prático pode
até gerar um certo ativismo para que o desejo coisificado, ainda sob forma
fetichista, seja “realizado” (pedir votos, fazer “promessas” – como algumas
pessoas religiosas fazem, ir na loteria toda semana jogar, etc.).
O desejo coisificado provoca uma pseudestesia (falsa
sensação) de esperança. No caso eleitoral, o eleitor vota e vai cuidar da vida
privada, só reaparecendo nas próximas eleições, alguns anos depois. Se o
candidato dele perdeu, ele tenta votar no mesmo ou semelhante. Se ganhou e não
cumpriu as promessas, ele aceita as supostas explicações ou esquece tal fato e
vota novamente. Alguns, nesse caso, podem trocar de candidato. Esse mecanismo
psíquico é o mesmo do jogador de loteria que quer ficar milionário: ele joga e
perde, mas na semana seguinte e nas posteriores, está novamente fazendo sua
“fezinha”[4],
nome esclarecedor. Ele continua com sua crença irracional de que da próxima vez
ele poderá ganhar.
A superação do desejo coisificado em época eleitoral pode
ocorrer sob a forma positiva, que é sua substituição por uma esperança
verdadeira, na qual o indivíduo busca efetivamente realizar e percebe que
depende dele para se concretizar, ou sob a forma negativa, que é a sua substituição
pelo niilismo, o desejo de destruição de si e/ou dos outros. A psicanálise pode
apenas mostrar esse processo psíquico e explicar suas fontes, trazendo a
necessidade de superação da situação que gera o desejo coisificado. O marxismo
é fundamental para a explicação dessa situação e por apresentar um projeto
alternativo de sociedade, a autogestão social. Da perspectiva da luta política,
a luta contra a ilusão eleitoral e o desejo coisificado deve se aliar com
análise da totalidade da sociedade e projeto autogestionário como alternativa.
(Continua).
[2] Trata-se, aqui, de psicanálise social, e não
o freudismo ortodoxo ou as ideologias psicanalíticas de Lacan, Jung e outros.
Além de Freud, é possível citar Fromm, Adler, entre outros, bem como a
“sociologia psicanalítica” de Mannheim e Roger Bastide.
[4] A expressão popular "fezinha"
(fezinha é diminutivo de fé) é usada quando uma pessoa vai apostar numa casa
lotérica.
Bem esclarecedor o seu texto pela sua fundamentação, problematizações e da alternativa proposta, que só é possível superando o fetiche do voto e de toda a ideologia da democracia representativa. O proletariado se tornando protagonista na luta política legítima, autogestionária, que na perspectiva marxista, isso só acontece na práxis (Sem dicotomia da teoria com a prática).
ResponderExcluirExcelente texto. Vou pesquisar sobre o assunto sobre autogestão social e colocar na prática algumas atividades nesse sentido.
ResponderExcluirGrato!
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