Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação
Nildo Viana
A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores. Esta é
uma das frases mais célebres de Karl Marx e sua veracidade foi provada em
diversos momentos históricos e em nossa vida cotidiana. Aí está contido a ideia
da automancipação proletária, também defendida por Bakunin, Rosa Luxemburgo, Pannekoek
e vários outros pensadores revolucionários. É justamente isso que distingue o
pensamento revolucionário proletário das demais formas de pensamento.
A ideia-chave é a da automancipação proletária. A grande questão é como
se realiza esta autoemancipação. Para Marx, Rosa Luxemburgo e outros, é através
da própria luta da classe proletária que se constitui o processo de autoemancipação.
Para se chegar a um determinado objetivo, é necessário utilizar os meios que
possibilitam chegar a ele, ou seja, é fundamental a unidade entre meios e fins,
tal como destacou Rosa Luxemburgo. Isso é o que se vê no diálogo entre o Mestre
Gato e Alice, em Alice no País das Maravilhas.
Alice, diante de três estradas, pergunta: “Qual caminho devo seguir?” O Mestre
Gato responde: “Aonde você quer ir?” E a resposta é: “Para qualquer lugar”. O
Mestre Gato diz: “Então escolha qualquer caminho”. Se não há objetivo, qualquer
caminho serve, mas se alguém quer chegar a um lugar definido, então necessita escolher
o caminho que possibilita chegar até lá.
É nesse contexto que se coloca a questão da autoemancipação e dos
caminhos para se chegar a ela. Ao mesmo tempo, se coloca a questão do processo
eleitoral e da participação da população no mesmo. Até que ponto as eleições
podem promover uma contribuição para a emancipação humana ou para a melhoria
das condições de vida dos trabalhadores e demais classes exploradas e grupos
oprimidos. Aqui temos um caminho e todo caminho leva a algum lugar. Sendo
assim, a escolha do caminho significa a escolha do lugar aonde se quer chegar
e, nesse sentido, é importante discutir ao lugar que leva o caminho eleitoral.
Como o caminho eleitoral parece não levar a lugar algum, então é preciso
iniciar por este para depois observar qual é o caminho necessário para se
chegar ao lugar que queremos, a libertação humana.
Processo
Eleitoral e Luta de Classes
O processo eleitoral não é algo simples, ou seja, não é apenas o ato de
votar no dia da eleição. Em primeiro lugar, o processo eleitoral é marcado por
um rígido controle estatal. O estado, através da legislação eleitoral, dos
procedimentos burocráticos, da interferência de suas instâncias (jurídicas,
políticas, etc.) produz um conjunto de regras para o jogo eleitoral. Entre
essas regras, cabe destaque ao papel mediador do partido político (Viana,
1993a; Viana, 1993b). Os partidos políticos são os meios pelos quais os
indivíduos devem se submeter para lançar sua candidatura. Somente através da
participação num partido político é que o indivíduo pode se lançar candidato e
isso também não é algo simples, ele precisa conseguir ser escolhido para ser
candidato, e, quanto mais elevado é o cargo para o qual quer se candidatar, mas
difícil é e mais poder é preciso ter no interior do partido para conseguir a
indicação.
Este processo parece inocente, mas nada tem de inocente. O estado
capitalista não é uma instituição neutra que visa representar ou expressar os
desejos e interesses da população. Apenas nas ficções liberais isso tem sentido,
mas não nas relações sociais concretas. O estado representa os interesses da
classe dominante, ou seja, da classe capitalista. Também expressa,
relativamente, os interesses das classes auxiliares da burguesia, especialmente
da burocracia estatal, e, assim, executa o papel de reproduzir as relações de
produção capitalistas.
Da mesma forma, os partidos políticos não são instituições neutras que
representam o “povo” ou os trabalhadores e sim os interesses de determinadas
classes sociais, fundamentalmente a classe dominante ou alguma de suas classes
auxiliares, dependendo do partido (Viana, 1993a). As classes exploradas não
possuem partidos políticos, pois mesmo aqueles que dizem representar os trabalhadores
e/ou possuem um grande número de trabalhadores no seu interior, representam os
interesses da classe que possui a direção e hegemonia no partido, geralmente a
burocracia partidária e a intelectualidade.
Assim, o estado constitui e controla o processo eleitoral visando que ele
sirva ao processo de reprodução das relações de produção capitalistas, e os
partidos políticos fazem o mesmo, com a diferença que disputam para assumir o
governo e fazer parte do bloco dominante. As lutas dos trabalhadores podem
pressionar as ações estatais, mas não pode conquistá-lo e nem usá-lo como
quiser, tal como afirmam alguns ideólogos, pois o Estado tem, como essência, a
relação de dominação, é a parte dominante de uma relação social concreta e por
isso serve à classe dominante. Através do estado, no máximo se trocaria os
indivíduos no governo ou a classe que domina, mas jamais seria possível a
emancipação humana ou a libertação dos trabalhadores, duas faces da mesma
moeda.
Assim, tanto quem coordena o processo eleitoral como quem está na
disputa, possuem o mesmo objetivo de realizar a reprodução das relações de produção
capitalistas. O estado organiza o processo eleitoral através da disputa
eleitoral e partidária e toda uma legislação vem para promover um processo de
burocratização e manutenção dos partidos mais conservadores no poder. As exigências
legais para a legalização de um partido, para que haja uma candidatura (além de
ter que estar subordinada a um partido, existem critérios como idade para
concorrer a determinados cargos, residência no local onde se candidata por um
determinado período, etc.). Os partidos também realizam processos internos de
controle e assim a burocracia partidária acaba tendo hegemonia nos partidos de
esquerda e os grandes políticos profissionais ou burgueses dominam os partidos
conservadores. A legislação também atinge os partidos e limita sua liberdade de
ação.
Porém, o processo eleitoral ainda tem vários outros aspectos que fazem
com que as eleições não levem a lugar algum. A própria eleição promove uma situação
que é de reforçar as relações de produção capitalistas. Isso ocorre de uma
forma que podemos colocar da seguinte forma: a organização estatal e partidária
impede qualquer forma de oposição radical no processo eleitoral e, além disso, promove
um processo de mistificação e de legitimação do capitalismo, por um lado, e, um
processo de cooptação e corrupção, por outro. O processo de oposição radical no
interior do processo eleitoral sempre foi difícil, devido ao processo de
corrupção e burocratização dos partidos ligados ao movimento operário, mas com
o passar do tempo, a democracia representativa se torna cada vez mais
conservadora (Viana, 1993b) e cada vez mais a oposição se torna mais
domesticada e sem a menor capacidade de apresentar um programa revolucionário,
a não ser como mera propaganda mal feita.
O processo de mistificação ocorre com a ilusão eleitoral. A eleição é um
processo no qual o eleitor escolhe no mercado eleitoral aqueles que irão
governá-lo, ou seja, impor suas decisões, ao contrário do que prega a própria
ideologia eleitoral, que é a falsa tese de que “o poder emana do povo”. O
eleitor ao eleger um candidato, perde todo o poder, o seu suposto poder de
decisão é apenas no momento do voto, no qual escolheria os candidatos. Parafraseando
Marx, quanto mais o eleitor se fia no voto, menos tem de si mesmo. Porém, uma
vez eleito, o candidato passa a ter autonomia e não se submete a nenhum
controle dos eleitores. De pedinte de voto passa a ser o senhor do eleitor, que
passa, tão logo acabe a eleição, de senhor a servo.
A ilusão de escolha e decisão e de que isso terá algum retorno para ele
ou para a população pode persistir por algum tempo, mesmo porque o ato do voto
cria um vínculo psíquico entre o eleitor e o eleito, caracterizado por um
processo de esperança e orgulho próprio que faz com que o votante não queira ou
demore muito para admitir que o candidato que ele elegeu não realizará suas
promessas, não concretizará nada que se esperava dele. O vínculo psíquico entre
eleitor e eleito pode durar muito tempo e racionalizações como as de que é
preciso tempo para que consiga fazer algo são comuns e mostram a dificuldade do
eleitor de se desvincular do eleito. Isso reforça o efeito ilusório do processo
eleitoral, que, mesmo superado, ainda não é considerado com um erro momentâneo,
apenas uma escolha errada e por isso ainda haverá o candidato ou partido que
realizará a sua redenção ou pelo menos irá melhorar suas condições de vida.
Porém, esse vínculo psíquico não é apenas entre eleitor e candidato
eleito, mas também pode se manifestar como vínculo entre grupos de eleitores,
cuja crença e preferência comum criam uma comunidade ilusória e reforço
recíproco, criando um círculo ilusório de crenças que muitas vezes são marcadas
por uma extrema irracionalidade, assemelhando-se aos efeitos do futebol (Viana,
2010). As esperanças e crenças em determinados partidos ou candidatos podem
promover uma vinculação muito forte entre setores da população e candidatos,
gerando, no momento da vitória, uma pseudestesia (falsa sensação) coletiva de
alegria[1], que
perdura por algum tempo. Essa esperança e crença também tem uma duração mesmo
depois do partido ou candidato chegar ao poder estatal ou ser eleito, quando as
promessas e propostas não se concretizam e/ou se mostram insuficientes para
resolver os problemas sociais mais urgentes da população. A sociabilidade
capitalista e a competição promovem uma forte adesão a determinados candidatos
e a vontade de sua vitória eleitoral, inclusive sendo a justificativa para a
escolha do candidato, o que está na frente nas pesquisas eleitorais, o que é
amplamente utilizado por várias siglas partidárias. Da mesma forma, a pseudestesia
provocada pela vitória eleitoral do candidato, cria outro vínculo irracional e
a fidelidade que se prolonga durante grande parte do mandato, reforçando e
obliterando o senso crítico dos eleitores mais envolvidos com o processo
eleitoral.
A legitimação se manifesta através das ideologias e representações
ilusórias que dizem que os eleitos foram escolhidos pelo “povo” e assim não há
nada a fazer, mesmo quando ocorre a decepção com os eleitos, pois somente no
próximo “pleito eleitoral” é que isso poderá ser alterado. Isto ocorre desde a
ideologia da “vontade geral” ou “vontade coletiva” até chegar às representações
ilusórias do voto da maioria. As ações dos políticos profissionais empossados
são legítimas porque foram escolhidos pelo voto popular, pela decisão da
maioria. Claro que se abstrai todo o processo existente por detrás de tal
“escolha”, inclusive que raramente é a maioria que escolhe, se se considerar
apenas os eleitores, e nunca ocorre, se se considerar o conjunto da população,
ou seja, se incluir os não-votantes (não-eleitores, abstenções, voto nulo e
branco) e os que votam nos candidatos derrotados. O processo eleitoral ocorre
dentro da legalidade e da vontade popular e, por isso, não pode ser
questionado, o que se pode fazer é esperar a próxima eleição e os novos
eleitos.
Os intelectuais cumprem um papel importante para reforçar essa legitimação
através de várias ideologias e justificativas do processo eleitoral. Desde os
discursos falaciosos da cidadania, da vontade popular, da democracia, até
justificativas com uma percepção supostamente mais crítica da realidade, tal
como aqueles que apelam para uma pretensa “ameaça fascista” para garantir a reprodução
do processo eleitoral ou então o que dizem que a participação é necessária para
fazer o parlamento de tribuna revolucionária, o que nunca se efetivou
concretamente em nenhum lugar do mundo.
Por fim, temos o processo de cooptação e corrupção que sempre ocorre nos
processos eleitorais. Além da prática cotidiana de cooptação e corrupção
realizada por governos e partidos políticos, através de cargos, favores, etc.,
temos também a corrupção eleitoral, tanto financeira, quanto as promessas de
cargos, favores e benefícios. Os alvos principais são os indivíduos que
potencialmente podem angariar mais votos devido sua posição junto a setores da população.
É isso que torna militantes estudantis, ativistas comunitários e de movimentos
sociais, sindicalistas e membros de associação de bairros, entre outros, o alvo
principal dos partidos e candidatos. Da mesma forma, os cooptados e corrompidos
são futuros reprodutores do processo de cooptação e corrupção. O processo
eleitoral é uma verdadeira escola de manipulação e corrupção e uma fábrica de
políticos profissionais, quando o demônio compra sua alma com seu dinheiro
sujo.
A mercantilização das relações sociais está presentes nas eleições e na
corrupção eleitoral. A venda do voto pode ser considerada uma “corrupção do
eleitor”. A corrupção é uma relação social no qual há o corruptor e o
corrompido. O corruptor é o que corrompe, suborna, oferece dinheiro em troca de
algo, que, no caso, é o voto. Do lado do corruptor, há o dinheiro e o desejo de
consumo da mercadoria chamado voto e do lado do corrompido, há o desejo de algo
em troca, que é uma mercadoria ou a possibilidade de aquisição de mercadorias. Só
existe a venda do voto por existir a oferta e a procura e, no caso, a procura
precede a oferta, pois só havendo procura poderá haver oferta.
Do lado do corruptor, isso ocorre devido sua ambição e ânsia pelo poder e
tudo que está relacionado a isso. Do lado do corrompido, isso ocorre por vários
motivos. O eleitor corrompido entende o ato eleitoral como sem sentido, como
algo que não envolve sua vida cotidiana, que não produz mudanças. A percepção
disso ocorre pela experiência cotidiana do votante, pois entra ano e sai ano,
entra governo e sai governo e nada em sua vida muda. Assim, o não-significado
do voto é razão para sua desvaloração cultural e que deve passar a ter alguma
utilidade. Tendo em vista que vivemos numa sociedade que realiza a
mercantilização das relações sociais em todos os níveis e tudo é transformado
em mercadoria, o eleitor vê, na proposta de venda a efetiva oportunidade de
venda, a possibilidade de ter algum retorno com o voto. Ele pode ser útil e
qualquer coisa que se consiga por ele é “lucro”.
Um terceiro elemento que ajuda a explicar a venda do voto é o processo de
corrupção existente na sociedade e política brasileira, desde o genérico
“jeitinho brasileiro” até as diversas denúncias de corrupção tanto no poder
executivo quanto no legislativo, a percepção dos políticos profissionais no
Brasil é bastante negativa e muitas vezes eles são vistos como sinônimo de
corruptos. Sendo a política um festival de corrupção, então vender o voto é
algo dentro da normalidade política brasileira. A desilusão eleitoral é
reforçada pela corrupção estatal existente.
Porém, como o voto é secreto, o que se vende, no fundo, não é o voto, mas
a promessa do voto, que nem sempre se cumpre por ele ser secreto e por que
alguns eleitores entendem que tal venda é um motivo para não se votar no
candidato comprador de votos. Assim como o candidato corrupto promete e não
cumpre, o eleitor corrompido também o faz. Porém, o elemento ativo nesse
processo é o corruptor, aquele que quer comprar o voto, sem o qual a transação
não ocorreria.
No entanto, o processo eleitoral não ocorre apenas através da relação
entre eleitores e candidatos, ou seja, entre indivíduos, pois estes são seres
humanos concretos, e por isso não é possível deixar de lado a luta de classes
nesse contexto. Grande parte da população apresenta uma desilusão com as
eleições e a democracia representativa, outra parte é cética, e isto é
derivado, em parte, das experiências eleitorais passadas e das desilusões que
lhes acompanham, e, em parte, do descontentamento oriundo de uma ampla
insatisfação, inclusive de necessidades básicas, e da falta de atendimento
destas necessidades, o que atinge mais o lumpemproletariado, o campesinato, o
proletariado e algumas outras classes desprivilegiadas.
É por isso que o discurso eleitoral tem que produzir promessas
irrealizáveis e oferecer migalhas atrativas para a parte mais descontente da população.
Trata-se de uma estratégia da classe dominante ou de suas classes auxiliares para
buscar atrair para seu partido a camada enorme de pessoas descontentes e
desiludidas, o que é complementado com a busca de corrupção eleitoral, através
de oferecimento de benefícios pessoais em troca do voto. Aqui, os elementos da
sociabilidade capitalista, como a competição, mercantilização e burocratização
das relações sociais (Viana, 2008), são elementos fundamentais para o sucesso
da corrupção e cooptação eleitoral. A competição em torno do sucesso, status,
poder, riqueza, numa sociedade mercantil, promove a facilidade no processo de
corrupção e coloca o processo eleitoral como meio de ascensão social. Alguns
indivíduos bem intencionados acabam, devido à predominância da mentalidade
burocrática, aderindo aos partidos e muitos se corrompem nesse processo, outros
realizam uma ruptura que pode desembocar no imobilismo ou no ativismo
antipartidário. Outros são cooptados através do emprego como cabos eleitorais e
promessas de emprego permanente após as eleições, caso seu candidato ganhe,
além do sonho de alguns em se tornar candidatos.
Porém, os partidos expressam as classes sociais privilegiadas e disputam
entre si os cargos e a posição de governo, querendo integrar o bloco dominante.
Nesse contexto, o discurso eleitoral tem o objetivo de buscar, a qualquer
custo, a vitória. E para isso é preciso atingir o maior número de pessoas e
interesses. Os velhos discursos sobre saúde, educação, segurança, etc., apenas
revelam essa tentativa de atingir uma grande parte da população, pois essas
demandas são visíveis e acessíveis pelas pesquisas de opinião. Daí também o
discurso policlassista, onde a classe ou grupos específicos com interesses
específicos são substituídos pelo “povo”. Daí vem outra conseqüência, que é a
necessidade de propaganda generalizada, atingindo o maior número de pessoas e
sob variadas formas, desde a propaganda eleitoral gratuita nos meios oligopolistas
de comunicação até a distribuição de panfletos, santinhos, bandeiras, adesivos,
e diversas outras formas. Isso tudo produz um discurso despolitizado e
despolitizador, que reforça a mistificação eleitoral.
Por isso tudo, o processo eleitoral contribui com a reprodução das relações
de produção capitalistas. Agora já
podemos responder a pergunta inicial: para onde leva o processo eleitoral? A
resposta é evidente: o caminho eleitoral leva para a reprodução das relações de
produção capitalistas, a manutenção do capitalismo, o que significa a reprodução
da alienação, da miséria e da desumanização.
Desta forma, é impossível se pensar um caminho para a liberdade através
da escravidão. A libertação não pode ocorrer via escravidão, somente através da
recusa da escravidão é que a libertação se torna uma possibilidade real. O
processo eleitoral é um dos sustentáculos da escravidão moderna, da
desumanização e da alienação. Por isso, é necessária a recusa do processo
eleitoral, da democracia representativa, dos partidos, do estado e da mediação burocrática
instituída por ele. A recusa do processo eleitoral pode se manifestar como
abstencionismo ou como voto nulo[2]. É disto
que trataremos a seguir.
As Formas do Voto Nulo
O voto nulo ou a abstenção é a opção que alguns indivíduos tomam durante
o processo eleitoral. Porém, não se deve pensar que o voto nulo sempre
significa a mesma coisa, pois expressa práticas e concepções diferentes. Assim,
é fundamental perceber que o voto nulo assume várias formas. Assim, é preciso
saber que muitos votam nulo não por vontade ou opção e sim por dificuldade em
votar. Esse é o voto nulo involuntário.
É o caso daqueles que, quando a eleição era com cédula de papel, tinham
dificuldades em escrever o nome/número dos candidatos ou, na urna eletrônica,
dificuldade em digitar, seja por falta de habilidade com a escrita ou
digitação, seja por esquecer os dados dos candidatos. Porém, o número de votos
nulos derivados da inabilidade do votante é relativamente pequeno e os
candidatos e governo se esforçam para criar mecanismos de treinamento e
sugestões para superar este processo (tal como urnas eletrônicas e simulações
de votação e propaganda em TV).
Além dessa forma de voto nulo, que é involuntária, há o voto nulo espontâneo. Essa forma de voto
é produto da desilusão e do ceticismo perante o processo eleitoral. O votante
não acredita nas eleições, nos candidatos, nos partidos. Essa descrença o faz
votar nulo. Assim, o voto nulo espontâneo é um ato fundado na descrença e por
isso cumpre o papel de desvincular o votante do candidato e do processo
eleitoral como um todo, manifestando-se como uma recusa legítima da farsa
eleitoral. Essa recusa aponta para a deslegitimação e desvinculação psíquico
dos eleitores com a democracia burguesa e isso é um ponto de partida para o
voto nulo engajado numa perspectiva política mais ampla e alternativa. Porém,
isso é uma potencialidade que, para se efetivar, é necessário ir além e isso
pode ocorrer de forma também espontânea no caso de determinados indivíduos ou
de setores da população, desde que haja ascensão das lutas sociais, ou então
uma ampla luta cultural que consiga realizar uma crítica da democracia burguesa
e permitir uma politização mais rápida no caso de alguns indivíduos ou grupos.
O voto nulo espontâneo, portanto, é revelação da crise de legitimidade do
Estado capitalista e de uma politização inicial de setores da população, que
traz em si uma grande potencialidade. Aqueles que votam nulo espontaneamente
possuem uma potencialidade e tendência de avançar no sentido de uma concepção
mais crítica da realidade, embora a descrença também possa ser, em alguns
casos, generalizada, o que dificulta a aceitação de uma proposta alternativa, o
que é reforçado pela mentalidade dominante (valores, sentimentos, concepções
dominantes, que ficam nos marcos da sociedade capitalista, naturalizando-a). No
entanto, mesmo nestes casos, uma ampla luta cultural voltada para aprofundar a
crítica da democracia burguesa e do capitalismo, por um lado, e para mostrar a
necessidade e possibilidades de formas alternativas de ação política com o
objetivo de transformação social, pode transformar o voto nulo efetivado por
estes indivíduos em voto politizado.
O voto nulo espontâneo pode ser substituído pelo voto nulo politizado. Porém, este último também assume formas
diferenciadas, já que sendo politizado, pode ser feito a partir das mais
variadas concepções políticas. Embora seja minoritário, é possível que a
insatisfação se alie a concepções pouco elaboradas, reflexões superficiais,
mescla de representações ilusórias e representações verdadeiras, mentalidade
dominante e cultura contestadora, unindo voto nulo e moralismo ou nacionalismo,
por exemplo. Porém, isto se deve em parte ao processo geral de despolitização
da sociedade capitalista, o que é corroído com a ascensão das lutas dos
trabalhadores e lutas sociais em geral. Dentro do voto nulo politizado há o voto nulo oportunista, no qual se une
recusa temporária da democracia burguesa (por impossibilidade de participação
por determinados pequenos partidos ou organizações aspirantes a partido) e
tentativa de recrutar militantes. No entanto, o oportunismo está apenas em quem
propõe o voto nulo e não em quem vota nulo a partir da propaganda, pois
desconhece suas motivações, a não ser o vínculo com figuras ou pensadores
políticos.
O voto nulo politizado é desenvolvido quando se encontra ligado a
concepções políticas libertárias, embora haja muita falta de politização e
equívocos também neste caso, o que é oriundo da formação cultural e política deficiente
de muitos militantes ou de limites de algumas tendências que ainda se ligam a
formas organizacionais ultrapassadas (anarcossindicalismo, por exemplo). Esta
forma de voto nulo é a forma libertária e pode ser dividido entre semilibertário, devido suas limitações
acima aludidas, e o libertário. Assim,
o voto nulo libertário é a forma mais
avançada de voto nulo quando ultrapassa os limites acima aludidos, pois não só
mostra recusa e protesto contra a democracia e sociedade burguesas, como também
apresenta um projeto concreto e alternativo de prática política e sociedade.
Há uma forma específica de voto nulo libertário que compartilha os
princípios dele, mas que possui algumas especificidades. É o voto nulo autogestionário, que é uma
forma de voto nulo libertário, mas que tem como diferencial determinadas
propostas específicas. É justamente este voto que abordaremos a seguir.
O Voto Nulo Autogestionário
O voto nulo autogestionário é o que vincula voto nulo e autogestão
social. Sem dúvida, muitas tendências anarquistas também fazem o mesmo. Porém,
há algumas diferenças e isto será explicitado aqui. A ideia básica do voto nulo
autogestionário é explicitada em sua própria denominação, que revela a
necessidade de inseparabilidade entre meios e fins, pois autogestionário quer
dizer que visa à autogestão social. Assim, se o voto é um meio para a
reprodução da sociedade capitalista, então é necessário combatê-lo. Isto se
deve ao fato de que não basta garantir a correspondência entre meios e fins, é
necessário evitar e combater os meios inadequados de luta e que servem para
outras finalidades. Assim, o voto obrigatório e o voto válido devem ser
combatidos, assim como toda concepção política que aponte para o processo
eleitoral como forma de luta revolucionária. Da mesma forma, algumas formas de
voto nulo devem ser superadas por outras, o que significa que a luta pelo voto
nulo deve não somente ser uma forma de recusa do voto e das concepções que lhes
acompanha, mas também de aprofundamento e radicalização do voto nulo em suas
formas não-libertárias.
Assim, a luta pelo voto nulo autogestionário é estratégica, ou seja, tem
uma finalidade imediata articulada com o objetivo final que é a autogestão
social. Ela busca atingir o conjunto das classes exploradas e grupos oprimidos,
bem como a todos os possíveis aliados da luta pela emancipação humana, e, no
interior destes, aqueles que possuem uma posição a favor do voto nulo sob
formas incipientes, visando colaborar com a superação das suas contradições.
Assim, a luta pelo voto nulo assume formas mais sintéticas e de propaganda
generalizada, sendo, portanto, mais simples e acessível, e formas mais
elaboradas, teóricas, buscando expressar a questão da negação do processo
eleitoral com a totalidade das relações sociais, o que remete para a discussão
sobre Estado capitalista, democracia burguesa, partidos políticos, políticos
profissionais, capital eleitoral (“indústria eleitoral”), ideologia e
ideologias políticas, exploração e luta de classes, etc. de forma mais
aprofundada. Neste sentido, a luta pelo voto nulo numa perspectiva
autogestionária aponta para a propaganda generalizada e para a elaboração
teórica, sendo esta última a fonte inspiradora da primeira, que é sua versão
mais simples, sintética, acessível.
Outro elemento do voto nulo autogestionário é que não só apresenta uma
concepção crítica e totalizante do processo eleitoral como também do próprio
voto nulo, de seus limites e formas, ou seja, é uma proposta e prática política
fundada na reflexão e não no praticismo, defendido por determinados grupos e
tendências. O próprio voto nulo deve ser analisado e ver seus limites como
prática e concepção, suas formas de manifestação concreta. Assim, nem todo voto
nulo é relevante para uma análise política, caso, por exemplo, ele seja
voluntário em grande número de casos. Da mesma forma, o voto nulo despolitizado
é um potencial que precisa de se desenvolver, e a luta cultural e pelo voto
nulo autogestionário tem um papel fundamental nesse processo. Assim, é
necessário refletir sobre as formas e limites do voto nulo e também sobre o
próprio voto nulo autogestionário, buscando analisá-lo, compreendê-lo,
aperfeiçoá-lo e contribuir, assim, para que ele supere seus possíveis limites e
ganhe maior eficácia.
Um terceiro elemento é que além da concepção crítica e totalizante do
processo eleitoral e do caráter reflexivo sobre o voto nulo, inclusive o de
caráter autogestionário, é fundamental nunca perder de vista, tanto na
propaganda generalizada como na elaboração teórica, o vínculo necessário entre voto nulo e autogestão social. Obviamente
que, no primeiro caso, isso se dá de forma precária, principalmente dependendo
do material (se é um adesivo, por exemplo, não é possível aprofundamento,
apenas defesa do voto nulo e vínculo com autogestão social), porém, é
necessário sempre utilizar as palavras “voto nulo” e “autogestão social”
juntas, pois a negação ganha explicitamente a afirmação que lhe é complementar.
O voto nulo não é um objetivo em si mesmo, nem a luta pelo voto nulo[3].
Esta última é parte de uma luta cultural e prática para deslegitimar,
desmistificar, corroer o processo eleitoral no sentido de avançar a consciência
revolucionária e colocar em evidência um projeto alternativo de sociedade, a
autogestão social. Assim, não tem caráter apenas negativo, mas também
propositivo. Não votar apenas por não votar, é algo que pode ocorrer
concretamente, mas não como objetivo da luta autogestionária. Nesse caso, o
vínculo entre voto nulo e autogestão social é fundamental e por isso é
importante não só colocar a necessidade de práticas conjuntas ao voto nulo e
alternativas (auto-organização, auto-formação), como o sentido e objetivo disso
tudo, a revolução proletária, a instauração de uma sociedade radicalmente
diferente, a emancipação humana. Um ato tão insignificante como o voto pode ter
um significado político radical, ser um momento de colocar em discussão e
reflexão a autogestão social, a emancipação humana.
Assim, o fundamental é deixar claro o vínculo entre a luta pelo voto nulo
e o próprio voto nulo com a perspectiva do proletariado, a luta pela autogestão
social, unindo os dois elementos com propostas práticas e reflexões críticas,
pois assim a deslegitimação e desmistificação ganham maior profundidade indo
além do próprio ato do voto nulo, bem como o negacionismo puro é superado por
uma ação possível e projeto revolucionário.
Nesse sentido, quem opta pelo voto nulo autogestionário faz uma opção
pela autoemancipação proletária e humana, ou seja, pela autogestão social.
Quanto mais pessoas votarem nulo nessa perspectiva, mais pessoas conscientes
estarão defendendo a autogestão social. O significado disso é o aumento de
indivíduos e de ações a favor da autogestão, o que torna sua tendência de
realização cada vez mais forte. É um passo no caminho da autogestão, embora
seja no início da estrada, sem ele os passos seguintes dificilmente serão
dados, pois a crença na democracia burguesa e no processo eleitoral é um
obstáculo a ser superado. A classe proletária, em seu conjunto, assim como
outros setores da população, pode dar um salto e pular etapas, mas isto depende
das lutas sociais. Os indivíduos isolados, no entanto, somente através da luta
cultural poderiam realizar tal salto. Porém, alguns vão a passos lentos, outros
saltam, mas se for na estrada certa, chega-se ao lugar desejado, a
autoemancipação humana.
Referências
Viana,
Nildo. Estado, Democracia e Cidadania.
Rio de Janeiro, Achiamé, 2003b.
Viana,
Nildo. Notas Sobre o Significado Político
do Futebol. Maringá/PR, Revista Espaço Acadêmico, Ano 10, num. 111, Agosto
de 2010.
Viana,
Nildo. O Que São Partidos Políticos?
Goiânia, Edições Germinal, 2003a.
Viana,
Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do
Capital. Ensaios Freudo-Marxistas.
São Paulo, Escuta, 2008.
..........................................................................................................................................
VIANA, Nildo . Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação. Revista Enfrentamento, v. 4, p. 17-26, 2010.
http://enfrentamento.net/Texto%20Nildo%20Viana.pdf
[1]
As raízes dessa pseudestesia se encontram na ânsia popular por mudanças, a
necessidade de esperança, que todo ser humano carrega no seu íntimo e a vontade
de sua materialização, se agarrando muitas vezes à ilusões e soluções fáceis, o
que cria um vínculo irracional nas disputas políticas, provocando um
envolvimento emocional forte que gera brigas e desentendimentos entre eleitores
(tal como também ocorre com o futebol e religião, embora sob formas e razões
diferenciadas). O fascismo, por exemplo, pode se beneficiar deste tipo de
vínculo irracional. A sua irracionalidade está no aspecto emocional e
sentimental da ligação sem qualquer coordenação mais efetiva da consciência, ou
seja, de ordem racional. É por isso que é porta aberta para a violência, já que
a comunicação e reflexão são interrompidas.
[2]
O abstencionismo era a prática mais corrente dos setores politizados e à
esquerda no início do século 20 até os anos 1960. Porém, no caso brasileiro,
onde o voto é obrigatório e quem não vota é penalizado, o voto nulo é a forma
de ação antiparlamentar existente. Alguns pregam o abstencionismo, pensando ser
assim mais radical, porém, não existe nenhuma diferença fundamental entre as
duas ações. Se o voto nulo pode parecer “legitimador” por se realizar o ato do
voto, embora recusando-o, o abstencionismo tende a ser desmobilizador, já que
não provoca nenhum ato, nem de recusa. O voto nulo faz perder tempo, mas se for
uma luta cultural, provoca reflexões e ações. O abstencionismo também pode
fazê-lo, mas não tem ao seu lado a obrigatoriedade de presença numa seção
eleitoral. O abstencionismo promove um total afastamento da política burguesa,
enquanto que o voto nulo ainda mantém um vínculo formal. No fundo, ambos tem
vantagens e desvantagens e a opção por um ou por outro, ao invés de radicalismo
abstrato e rebeldia irrefletida, é mais questão de contexto e estratégia. No
presente texto, como são bastante semelhantes, quando falamos de voto nulo
involuntário, espontâneo, voluntário e autogestionário, isso também se aplica
ao processo de abstenção e ao abstencionismo.
[3]
Luta e não “campanha”, que significa reproduzir a linguagem eleitoral.
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