EDUCAÇÃO E VALORES
DA AXIOLOGIA À AXIONOMIA
EDUCATION AND VALUES
FROM AXIOLOGY THO AXIONOMY
FROM AXIOLOGY THO AXIONOMY
Nildo VIANA
Doutor em Sociologia/UnB
Professor da Faculdade de Ciências Sociais/UFG
RESUMO: A
educação é geralmente analisada a partir da questão da produção intelectual. Daí
a importância de uma análise da relação entre educação e valores, pois estes
são uma das principais determinações da produção intelectual e são pouco
abordados. Os valores estão presentes no cotidiano e no processo de
socialização dos indivíduos, incluindo a educação escolar. A educação formal
não repassa apenas saberes, mas também valores. A discussão em torno de quais
valores a educação escolar repassa e quais deveriam repassar, remete ao
problema da axionomia e axiologia, ou seja, os valores dominantes e os valores
autênticos. Os valores dominantes são os da competição, da mercantilização, da
burocratização, etc. Os valores autênticos são os que apontam para a
solidariedade, igualdade, liberdade, criatividade, etc. Na escola existe um
conflito de valores e hegemonia da axiologia. A partir dos conceitos de
valores, axiologia, axionomia e da compreensão de sua produção social,
analisamos o fenômeno educacional e sua realidade efetiva, predominantemente
axiológica, reprodutora dos valores dominantes. A análise dos valores é
fundamental para entender o processo educacional e suas determinações e como
isso se manifesta através de determinados valores que reforçam a reprodução da
sociedade atual, bem como as brechas e alternativas existentes na sociedade ligadas
a outros valores e sua manifestação no espaço escolar. Isso leva a concluir que
a educação axiológica é predominante mas que existem a possibilidade de uma
educação axionômica, o que remete à relação entre axionomia e utopia, o desejo
da transformação social.
PALAVRAS-CHAVE: Educação, Valores, Axionomia, Axiologia, utopia.
ABSTRACT: Education is often analyzed from the issue of intellectual production. Hence the importance
of analyzing the relationship between education
and values, as these are
one of the main determinations
of intellectual production and are
rarely approached. The values are present in daily life and in the
socialization process of individuals, including school education. Formal
education not only transfers knowledge but also values. The discussion about
what values the school education which should pass and
passes, refers to the problem of axionomy and axiology, ie, the dominant values
and authentic values. The dominant values are those of the
competition, commoditization, bureaucratization, etc. The true values are pointing to the
solidarity, equality, freedom, creativity, etc.. At school there is a conflict
of values and hegemony of axiology. The concepts of values, axiology, axionomia
and understanding of their social production, we analyzed the educational
phenomenon and its actual
reality, predominantly axiological
reproductive of dominant values. The analysis of the values
is fundamental to
understanding the educational process and its determinations
and how it manifests itself through certain values that strengthen the reproduction of contemporary society, as well as the gaps
in society and alternatives related to other values and their manifestation in the
school. This leads to the
conclusion that education is predominant axiological but there the possibility
of a axionomical education, which refers to the relationship between axionomy
and utopia, the desire for social transformation.
KEYWORDS: Education, Values, Axionomy,
Axiology, utopia
INTRODUÇÃO
A educação pode
ser analisada sob diversas formas e o foco analítico é geralmente direcionado
para a questão da produção intelectual. Nesse sentido, torna-se importante a
análise e debate sobre uma questão intimamente relacionada com a produção
intelectual, sendo uma de suas principais determinações, que não recebe tanta
atenção como deveria, que é a relação entre educação e valores[1].
A educação não está relacionada apenas ao saber (seja segundo a concepção
tradicional da “transmissão do saber”, seja na progressista da “produção do
saber”). O sistema educacional tem como objetivo declarado a produção do saber,
mas não revela seu objetivo real: a reprodução das relações de produção
capitalistas. As organizações complexas, segundo Etzioni:
Pela apresentação de uma situação futura, indicam uma
orientação que a organização procura seguir. Dessa forma, estabelecem linhas
mestras para a atividade da organização. Os objetivos constituem, também, uma
fonte de legitimidade que justifica as atividades de uma organização e, na
verdade, até sua existência. Além disso, os objetivos servem como padrões,
através dos quais os membros de uma organização e os estranhos a ela podem
avaliar o êxito da organização – isto é, sua eficiência e seu rendimento. Os
objetivos servem também, de maneira semelhante, como unidades de medida para o
estudioso de organizações, que tenta verificar sua produtividade (Etzioni,
1976, p. 13).
A produção de
saber permite justificar e legitimar a instituição educacional e, ao mesmo
tempo, ocultar seus objetivos reais. Ainda segundo Etzioni, toda organização
complexa possui uma duplicidade expressa em um objetivo declarado e um objetivo
real, sendo que este último é ocultado e substituído, no reino da ideologia e
do discurso, pelo primeiro. O objetivo declarado do sistema educacional é
produzir e socializar o saber visando a formação para a cidadania. Pode-se ler
na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, o seguinte:
A educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.
Aqui temos o objetivo declarado do sistema
educacional: a sua finalidade é o pleno desenvolvimento do educando e seu
preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Porém, o
seu objetivo real é repassar determinado saber e controlar sua produção nas
instituições de educação, e, ao mesmo tempo, preparar a força de trabalho para
o exercício do trabalho alienado e, ainda, atuar sobre a totalidade da
sociedade no sentido de contribuir para reproduzir as relações de produção
capitalistas. Isto está implícito, por exemplo, na noção de “cidadania” (Viana,
2003) ao invés da formação onilateral do indivíduo, tal como proposto por Marx
(Manacorda, 1991; Viana, 2004). O significado da cidadania é pouco discutido,
apesar desta palavra ser repetida exaustivamente. No fundo, a cidadania
significa integração na sociedade capitalista através do reconhecimento estatal
(Viana, 2003) e assim se legitima a sociedade capitalista, reforçando sua
reprodução. Desta forma, o que numa perspectiva pode ser percebido como
benefício para o indivíduo (qualificação para o trabalho, cidadania), noutra
perspectiva, é entendido como integração e preparação para viver sob um
processo de dominação e exploração. Porém, o ponto de maior destaque aqui cabe
à ideia de “desenvolvimento pleno do educando”. O que se quer dizer com isso?
Desenvolvimento intelectual pleno ou desenvolvimento onilateral? O
desenvolvimento onilateral é muito mais amplo, implica em pleno desenvolvimento
intelectual, mas também físico, ou seja, remete para a manifestação do conjunto
das potencialidades humanas e não para apenas uma dessas potencialidades. Ora,
preparar para a cidadania e para o trabalho pode dar a impressão de
onilateralidade. Porém, ao invés de uma concepção marxista, o seu fundo é uma
concepção durkheimiana:[2]
“A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações
que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto
suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos,
intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e
pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine” (Durkheim,
1978, p. 32)
Assim, o
objetivo da educação é integrar o indivíduo na sociedade capitalista, tanto
para se adequar ao Estado e suas instituições, quanto para prepará-lo para seu
lugar na divisão social do trabalho, incluindo formação de força de trabalho.
Ela busca, portanto, a adesão do educando ao capitalismo, ao Estado, às
instituições, através de sua legitimação, por um lado, e adequação a sua
posição na divisão social do trabalho, classe social, etc., por outro. O
indivíduo deve aceitar o todo (do capitalismo) e sua posição no seu interior
(divisão social do trabalho, embora com ilusão de ascensão, de acordo com as
regras do jogo e geralmente partindo de uma concepção e valores
individualistas). Como o sistema educacional realiza esse processo? Segundo as
representações cotidianas e ideologias mais divulgadas é através da “produção
do conhecimento” ou, em alguns casos, do “pensamento crítico”. Aqueles que apontaram
uma percepção mais crítica do sistema educacional, no entanto, compartilham com
essa ideia, tal como Bourdieu e Passeron, que focalizam sua análise na
violência simbólica, capital cultural e capital linguístico (Bourdieu e
Passeron, 1982)[3].
No entanto, a
educação não serve para a reprodução do capital apenas através do saber que
produz, repassa e controla[4].
Esse é o seu meio declarado de
realização dos seus objetivos. Porém, assim como existem objetivos declarados e
reais, também existem meios declarados e reais de realização. Não se trata de
tomar, pura e simplesmente, a concepção de Etzioni (1976) sobre os objetivos e
dizer que funciona de forma análoga no caso dos meios. A questão é que toda
organização busca meios legítimos de realização de seus objetivos. Esses meios
legítimos, portanto, são os meios declarados e que legitima a ação educacional,
no caso do sistema educacional. E, geralmente, esses meios declarados são meios
efetivamente utilizados.
Porém, ao lado
desses meios declarados e efetivamente utilizados, outros meios, ocultos ou não
explicitados, atuam e, muitas vezes, com maior força e eficácia que os
anteriores. Os meios ocultos que o sistema educacional utiliza para realizar
seus objetivos são variados, tais como os valores, os sentimentos[5],
etc. Um papel de destaque cabe aos valores, pois estes remetem ao processo de
adesão do indivíduo ao processo de reprodução da sociedade capitalista, sua
integração e participação, que significa não só práticas, mas desejo, vontade.
A sociedade capitalista produz uma mentalidade dominante, a mentalidade
burguesa, constituída por um conjunto de valores, concepções, sentimentos, que
não só fazem o indivíduo agir de determinada forma, mas também a querer agir dessa forma (Viana, 2008a).
O nosso objetivo
é discutir esses meios ocultos expressos na questão dos valores. Esses meios
ocultos podem ser praticados de forma intencional ou não intencional. Isso
ocorre pelo motivo de que apesar da pretensa separação entre ideias e
racionalidade, por um lado, e valores (bem como sentimentos, o que aqui não
discutiremos por focalizarmos a questão valorativa), ela inexiste na realidade
concreta. Não existe pensamento sem valores e nem valores sem consciência. O
ser humano é um ser valorativo (Viana, 2007) e, portanto, não há como se abster
de valores, ser “neutro”, sendo que a neutralidade é apenas um discurso
ideológico, no sentido marxista do termo[6].
E assim como um remédio que é ministrado para atingir um determinado problema
de saúde, mas atinge o organismo como um todo (e daí se cria a ideia de “efeito
colateral”), os valores caminham junto com as ideias e, portanto, mesmo que não
haja intencionalidade, eles são repassados praticamente em todos os momentos do
processo educacional. Porém, ao contrário dos remédios, o “efeito colateral”,
os valores, no caso do processo educacional, é muito mais eficaz e forte que o
“tratamento principal”, ou seja, as representações cotidianas, saberes
funcionais e ideologias “administradas” aos alunos. Nesse sentido, é fundamental
discutir o conceito de valores e os principais aspectos envolvidos em sua
formação e desenvolvimento, bem como sua atuação no sistema educacional. O
próximo item será dedicado a uma discussão teórica sobre os valores para, num
momento posterior, analisar seu papel na educação.
VALORES, AXIOLOGIA E AXIONOMIA
Os valores
estão presentes no cotidiano e no processo de socialização dos indivíduos,
incluindo a educação formal, escolar. A educação formal não repassa apenas
saberes, mas também valores, tal como colocamos anteriormente. A discussão em
torno de quais valores a educação escolar repassa e quais deveriam repassar,
remete ao problema da axionomia e axiologia, ou seja, os valores dominantes e
os valores autênticos. Nesse sentido, uma discussão teórica sobre valores se
torna fundamental e apresentaremos um esboço aqui, sendo que uma análise mais
profunda dos valores foi desenvolvida em outra obra e poderá ser consultada
(Viana, 2007)[7].
Os valores
podem ser definidos como aquilo que é importante, significativo, para os
indivíduos ou grupos. Assim, o que é considerado belo, bom, importante,
interessante, etc., é aquilo que é valorado, que é um valor para quem afirma
isso. Isso significa que, ao contrário de algumas concepções filosóficas
(Frondizi, 1993), o valor não é algo intrínseco às coisas, objetos, seres. Os
valores são atribuídos pelos seres humanos, não estão nos seres, são atribuídos
a eles. Esse processo de atribuição de valores aos seres, objetos, etc., é o
que chamamos valoração.
O processo de
valoração pode ser distinguido em valoração primária e derivada. A valoração
primária é aquela pautada pelos valores fundamentais de um indivíduo/grupo e é
a fonte da valoração derivada, funcionando como critérios para as demais
valorações e escolhas do indivíduo. Os valores fundamentais são aqueles que
revelam não só o que é mais importante para os indivíduos e sua posição
superior na sua escala de valores, mas também aquilo que é essencial para o
indivíduo e grupo, o que o mobiliza e o que serve de mecanismo de escolha e
valoração derivada.
Os valores
fundamentais, portanto, se referem, fundamentalmente, ao mundo social,
existencial e afetivo do indivíduo ou grupo, ou seja, tem como foco os seres
humanos. Os valores derivados são produzidos a partir dela, o que não significa
que não existam conflitos na mente dos indivíduos, mas que isso é derivado de
seu processo histórico de vida. Quando um indivíduo faz escolhas ou seleciona,
demonstrando gostos, preferências, etc., está sendo orientado, principalmente,
mas não unicamente, por valores. Sem dúvida, a consciência (o que inclui
informações, saber acumulado, etc., que varia de indivíduo para indivíduo, de
grupo para grupo, etc.) e os sentimentos também atuam e determinam o processo
de escolha e seleção, mas os valores fundamentais possuem um papel essencial
nesse processo.
Porém, se os
valores constituem aquilo que é importante e significativo para os indivíduos e
grupos, então o que é desprezado, insignificante, sem importância, é um
desvalor. A escala de valores de um indivíduo vai dos valores fundamentais,
para os valores derivados até chegar aos desvalores. Assim, a valoração e
desvaloração andam juntas, e ao dizer que isso é belo e aquilo é feio, isso é
bom e aquilo é mau, o que se faz é atribuir valores e desvalores. O que é valor
para uns, pode ser desvalor para outros. O futebol pode ser um valor para o
João, mas pode ser um desvalor para Maria. A arte abstrata pode ser um valor
para determinados grupos sociais e um desvalor para outros. Em sociedades diferentes,
valores diferentes. Isso ocorre também com indivíduos e grupos em sociedades de
classes, heterogêneas. Nas sociedades divididas em classes sociais, isso
instaura um conflito de valores e gera valores antagônicos, que perpassam não
somente as classes sociais, pois se reproduz nas demais divisões sociais
existentes.
No entanto, não
se trata de nenhum relativismo valorativo reconhecer que cada
indivíduo/grupo/classe produz seus valores e desvalores. Isso é explicado pelo
fato de que cada indivíduo ou grupo cria seus valores, mas isso não quer dizer
que eles sejam equivalentes. Em primeiro lugar, os valores são constituídos
socialmente, não são uma produção arbitrária do indivíduo ou grupo. Os valores
constituídos socialmente expressam interesses de classes e estão relacionados
com o desenvolvimento da consciência (falsa ou correta) da realidade, bem como
com os sentimentos, que também são determinados socialmente. Devido a isto
podemos distinguir entre valores universais, que são valores autênticos, e
valores particularistas, inautênticos. Os valores universais e autênticos, são
aqueles que expressam as necessidades humanas, a natureza humana[8].
Na sociedade capitalista, os valores dominantes são os valores da classe
dominante e estes são particularistas, inautênticos, servem para a reprodução
dessa sociedade e, portanto, para a reprodução da alienação. Os valores
dominantes, no capitalismo, apontam para a competição, o poder, a riqueza, o status, o dinheiro, etc., enquanto que
os valores autênticos apontam para a liberdade, a solidariedade, a
criatividade, etc.
Daí deriva dois
conceitos fundamentais para nossa análise: a axiologia e axionomia (Viana,
2007). A axiologia é uma determinada
configuração dos valores dominantes, inautênticos, particularistas e
axionomia uma determinada configuração dos valores autênticos. Obviamente que
os valores dominantes podem assumir diversas formas (pode, inclusive,
mesclar-se com valores autênticos, mas tornando-os subordinados). É por isso
que a axiologia é uma determinada configuração, e podem existir diversas
configurações dos valores dominantes. Assim, o poder pode ser o valor
fundamental e subordinar todos os demais valores para uma determinada formação
axiológica, enquanto que em outra pode ser o dinheiro. O mesmo ocorre com a
axionomia, pois, apesar de manifestar valores autênticos, os indivíduos que o
fazem estão submetidos à sociedade capitalista e não estão livres da influência
da cultura e dos valores dominantes. Os produtores e portadores dos valores
dominantes são geralmente indivíduos da classe dominante e de suas classes
auxiliares, enquanto que os produtores e portadores dos valores autênticos são
geralmente indivíduos das classes exploradas.
Na sociedade
capitalista, os valores dominantes são os da competição, da mercantilização
(ter ao invés de ser), da burocratização (a necessidade de subserviência e
obediência e da existência de líderes), do dinheiro, sucesso, riqueza, poder e
consumo. O modo de produção capitalista cria não somente valores dominantes, mas
reforça determinadas concepções (representações cotidianas ilusórias,
ideologias, etc.) que acabam sendo introjetadas no universo psíquico dos
indivíduos, gerando uma mentalidade burguesa (Viana, 2008a), e esta não apenas
faz as pessoas agirem como agem, mas também querer agir desta forma (Viana,
2008a). O capitalismo produz pessoas competitivas, ambiciosas, que buscam o
dinheiro e a riqueza, ou o poder, o sucesso e a fama, acima de tudo, sendo seus
valores fundamentais e que incentivam o desenvolvimento de sentimentos como
inveja e ciúme, ao lado de representações cotidianas ilusórias e ideologias que
naturalizam esses valores e sentimentos (Viana, 2008b).
No capitalismo,
os valores autênticos são os que apontam para a solidariedade, igualdade,
liberdade, criatividade, verdade, entre outros. Esses valores subsistem na
sociedade capitalista de forma marginal, muitas vezes estando subordinados aos
valores dominantes, outras apenas como discurso distante da prática (é comum
ver “comunistas” loucos por dinheiro, bem como cientistas que fazem discurso
sobre verdade e que sua produção segue as modas e financiamentos mesmo quando
discordam do seu conteúdo, ou, ainda, “democratas autoritários”, entre outras
contradições entre discurso e prática). Porém, tais valores se manifestam como
valores fundamentais em indivíduos e grupos e tornam-se mais fortes em
determinados períodos, principalmente quando ocorre a ascensão das lutas
sociais.
Sem dúvida,
diversas outras questões derivadas e aprofundamentos seriam necessários. No
entanto, essa breve discussão teórica sobre valores já explicitam os
pressupostos teóricos da análise que desenvolveremos a seguir e outras
bibliografias poderão complementar elementos apenas esboçados aqui (Viana,
2007).
EDUCAÇÃO, AXIOLOGIA E AXIONOMIA
O conflito de
valores, que existe até mesmo nos próprios indivíduos, se reproduz no processo
educacional, no qual os valores dominantes são amplamente hegemônicos. Entender
a manifestação de conflitos valorativos no sistema educacional é fundamental. O
processo educacional visa reproduzir as condições para reprodução do
capitalismo e isto é feito sob várias formas. Em primeiro lugar, isso é feito
através da disciplina, objetivando formar força de trabalho disciplinada. A
organização escolar é uma organização disciplinadora que exerce violência
disciplinar[9]. Isso se revela através da
própria organização da sala de aula, do prédio escolar e das ações
extra-pedagógicas executadas. A sala de aula se organiza de forma hierárquica,
tendo o professor como o centro e as carteiras em fila indiana, voltadas para o
centro. Essa organização espacial revela a concepção pedagógica e valorativa
que está objetivada nela, que é os valores da hierarquia, do mestre, etc. O
prédio escolar é dividido entre os locais de poder e administração, as salas de
aulas, os espaços para outras atividades, sanitários, sala de professores,
etc., sendo que o centro é sempre o local do poder. Estes exemplos se encaixam
melhor em escolas, mas, com maior complexidade, acaba sendo vista em grandes
instituições, tal como as universidades.
“A escola
funciona num lugar cujo espaço está fisicamente circunscrito. Este,
paralelamente, é organizado por meio de estruturas arquitetônicas. Ao mesmo
tempo em que o poder estabelece esses lugares para transmitir os saberes
legítimos, nega-se esta função ao resto dos espaços. No entanto, é necessário
esclarecer que essa ideia de uma escola que ocupa um lugar, planificado e
construído especificamente para este fim, é um fato relativamente recente -
meados do século XIX – e é a principal característica que identifica a escola
capitalista” (Funari e Zarankin, 2005, p. 04).
A própria
escola, enquanto prédio, é um lócus voltado para atividades especializadas
(ensino, aprendizagem, segundo a ideologia dominante) que revela valores e
imposição disciplinar. Além da organização espacial, a ação extra-pedagógica
também busca efetivar disciplinamento (filas, cantar hino nacional, locais
especializados para atividades especializadas, etc.). A forma e o conteúdo do
ensino também visam efetivar controle, tal como os horários e procedimentos de
controle dos alunos, que reproduzem as formas efetivadas no processo de
trabalho nas empresas capitalistas. A legislação produzida pelo estado institui
o sistema de exames e presença obrigatória, mais uma forma de exercer o
controle.
A instituição
destes procedimentos disciplinares são acompanhadas de ideologias,
representações cotidianas legitimadoras e, ainda, valores que reforçam sua
legitimidade e adesão a eles através da introjeção dos mesmos, bem como da
introjeção de outros valores dominantes que os reforçam. Essas ideologias,
representações cotidianas ilusórias e valores são repassados pelo professor que
é produto dessa sociedade e pelos demais integrantes da escola, que vai desde a
roupa que usa até as práticas e discursos cotidianos. Mas isso ocorre,
principalmente, pelo material didático e pela bibliografia utilizada. Os livros
didáticos são um forte exemplo de expressão de valores dominantes e basta
folhear ou ler um para ver, não apenas equívocos presentes em muitos, mas
principalmente valores, que são os valores dominantes (inclusive suas mutações
com o passar do tempo) e vulgarização de ideologias. Já no ensino superior, as
ideologias tomam conta e basta ver os modismos acadêmicos submetidos à lógica
do capital editorial e aos interesses do Estado, para notar como a formação do
profissional que irá trabalhar com as crianças e jovens já está, a priori, determinada para a reprodução
dos valores e ideologias dominantes. As ideologias dominantes não repassam
apenas ideias falsas sistematizadas, repassam também valores. Quando se ensina
o criacionismo ou o darwinismo na escola se repassa valores e basta citar que
no primeiro caso temos a religião e no segundo a ciência como valores
intimamente relacionados.
Da mesma forma,
o outro papel fundamental da escola, é exercido através da violência cultural
(Viana, 2002), ou “simbólica” (Bourdieu e Passeron, 1982) exercida através da
imposição do saber escolar (Bourdieu e Passeron, 1982; Viana, 2002; Sarup,
1980). Essa violência cultural significa repassar representações cotidianas
ilusórias ou reais, saber funcional (técnico e burocrático), ideologias e
valores. Os procedimentos disciplinares garantem e necessidade de submissão à
violência cultural e esta os legitima e reforça. O saber escolar, ligado aos
interesses da classe dominante e reproduzindo a cultura dominante e mercantil,
é valorado e aí se revela uma das mais eficazes formas de imposição valorativa.
O saber escolar é cultuado e sobrevalorado, o que significa uma autovaloração
por parte dos agentes do processo de escolarização. Além disso, o formalismo, o
tecnicismo, também são valorados e reforçam o reino dos especialistas e
burocratas. A burocratização é a forma predominante de controle das
instituições escolares: quanto mais burocracia, mais controle. Nas
universidades, onde esse processo é mais amplo e complexo, a supervaloração da
ciência, do formalismo, tecnicismo, são expressões do duplo papel da violência
cultural, reproduzir saberes e valores para reproduzir a instituição e a
sociedade que a produz.
Em todos estes
processos se manifesta uma educação axiológica, ou seja, uma educação que
materializa os valores dominantes, tanto em sua dimensão social mais ampla
quanto em sua dimensão mais especializada, da instituição e suas formas
derivadas, em novas subdivisões da instituição. A arquitetura do prédio escolar
revela valores materializados, por isso é axiológica. Da mesma forma, a
violência disciplinar e a cultural são legitimadas e justificadas pelos valores
dominantes e são, ao mesmo tempo, manifestação de tais valores. Da mesma forma,
o que ocorre é que existem valores ligados a interesses e posições mais
específicas no interior da sociedade. Por exemplo, a valoração da própria
educação formal, da pedagogia, do professor, está presente nas escolas, mas
também está presente a valoração da escola X, da profissão Y, e assim por
diante e essa última valoração reforça a primeira. Por exemplo, a valoração da
ciência, tal como se pode ver no texto clássico de Max Weber, A Ciência como Vocação, e nas
representações cotidianas ilusórias existentes no interior das escolas e
universidades, é complementada e reforçada pela valoração da sociologia, da
matemática, da geografia, da história, da biologia, da física, etc., pois ao se
valorar uma ciência particular, se valora, automaticamente, a ciência em geral.
Isso também está envolvido na manifestação da competição interprofissional que
reproduz a competição social geral e busca apenas mais espaço e poder na
sociedade e na esfera científica (Bourdieu, 1994). Para os indivíduos das
classes exploradas, a imposição dos valores dominantes é um processo
contraditório (por exemplo, valorar o consumo ostentatório sem poder
efetivá-lo) e para os indivíduos das classes privilegiadas isso ocorre via “subordinação,
pela inculcação de valores compatíveis com sua futura posição na divisão
técnica e social do trabalho” (Motta, 1979, p. 72-73).
Assim, a escola reproduz a
divisão social e repassa os valores dominantes, incluindo o da ascensão social.
O indivíduo é preparado para uma adesão à sociedade capitalista, através da
disciplina, dos saberes e valores repassados pela escola. A própria educação
como meio de ascensão social reproduz um valor dominante (ascensão social,
competição) e para isso reproduz outros valores dominantes:
“Procura-se
formar indivíduos para uma sociedade de organizações. A lealdade e a
responsabilidade, a alta tolerância à frustração, a capacidade de adiar
recompensas e o desejo de ascender socialmente são valores que se traduzem não
em mero discurso, mas nos jogos e exercícios da própria escola” (Motta, 1979, p.
73).
Esse processo de introjeção
dos valores dominantes acabam reforçando a mentalidade burguesa (Viana, 2008a),
através da qual a burguesia se torna presente no íntimo das pessoas, em seu
universo psíquico. A escola prepara os indivíduos para reproduzir essa
mentalidade e, ao mesmo tempo, aceitar seu lugar na divisão de classes e na
divisão social do trabalho, com a esperança de mudar isso individualmente
através da ascensão social. Uma vez que o indivíduo já recebe tal socialização
na sociedade em geral e na família, então a escola é uma das instâncias de
reprodução das ideologias e valores dominantes mais poderosas, já que reforça
com aparente “cientificidade” tudo isso. Uma vez introjetado os valores
dominantes, o conservadorismo se torna reinante:
“As pessoas que
se submetem ao padrão dos outros para medir seu crescimento pessoal próprio,
cedo aplicarão a mesma pauta a si próprios. Não mais precisarão ser colocadas
em seu lugar, elas mesmas se colocarão nos cantinhos indicados; tanto se
espremerão até caberem no nicho que lhes foi ensinado a procurar e, neste mesmo
processo, colocarão seus companheiros também em seus lugares, até que tudo e
todos estejam acomodados” (Illich, 1979, p. 77).
Em síntese, a
educação é predominantemente axiológica e repassa os valores dominantes. A
reprodução dos valores dominantes é uma das ações cotidianas da escola,
inclusive de acordo com a própria divisão entre as escolas. As escolas para as
classes privilegiadas visam formar dirigentes, pessoas que comandem e exerçam o
poder, repassando determinados valores e junto com isso incentiva a valoração
da alta cultura, da distinção social, etc. As escolas voltadas para as classes
desprivilegiadas já possuem especificidades que significam outros valores,
embora coincidentes em muitos pontos com os das classes privilegiadas, e que
são apresentados em outra perspectiva. Assim, o exercício da autoridade é um
valor dominante que quando é ensinado para quem é formado para exercer tal
autoridade é diferente de quando é ensinado para quem é educado para aceitar a
autoridade e se submeter a ela.
EDUCAÇÃO, AXIONOMIA E UTOPIA
Porém, isso não
deve gerar uma concepção reprodutivista, pois onde existe dominação, existe
luta. A educação é hegemonicamente axiológica. Os elementos de axionomia no
processo educacional é geralmente marginalizado ou subordinado à axiologia. No
entanto, ela existe e se manifesta. Geralmente ela se manifesta acompanhado o
pensamento crítico e a resistência cotidiana nas escolas e universidades, bem
como através das teorias e produções intelectuais contestadoras. O sistema
educacional é marcado por contradições, lutas, e por isso existe resistência,
crítica, que se manifesta marginalmente e em determinados contextos e momentos
históricos se fortalece e permite um avanço da axionomia contra a axiologia. Em
determinados contextos e momentos históricos, pode até se tornar hegemônico,
tal como no maio de 1968, em Paris.
A resistência
cotidiana mostra uma divergência de valores e concepções. Enquanto a ascensão
social é um valor dominante, os apáticos, em alguns casos, não se mobilizam
para efetivar tal valor por discordância[10].
Da mesma forma, a resistência pela ação coletiva, pela crítica, também são
manifestos juntamente com valores autênticos. O movimento estudantil, por exemplo,
apesar de hoje estar submetido a organizações burocráticas (União Nacional dos
Estudantes, DCEs, etc.), ainda se manifesta e ao fazê-lo revela valores
diferentes dos dominantes (de forma mais ou menos ampla, de acordo com a ação e
discurso efetivado). As lutas espontâneas pelo passe livre, por moradia
estudantil, entre outras, são justificadas por valores da igualdade, liberdade,
etc., o que reforça a resistência no nível cultural.
Da mesma forma,
as propostas pedagógicas[11]
alternativas também expressam valores autênticos, em alguns casos de forma
subordinada, que é outra forma de manifestação da axionomia no processo
educacional. Algumas práticas individuais também são impulsionadoras de valores
autênticos, que se revela nas práticas cotidianas, na reflexão e análise
crítica da realidade, bem como no uso de teorias e obras que apontam para a
emancipação humana. O uso de obras axionômicas produzidas na história da
humanidade é um elemento importante no processo educacional e isso vale desde
as obras teóricas que materializam os valores autênticos (Marx, Korsch,
Pannekoek, etc.), obras literárias (de autores como Lima Barreto, Franz Kafka,
Michael Ende, etc. ou obras específicas, como O Pequeno Príncipe), revistas em quadrinhos (V de Vingança, Ferdinando e os Shmoos, Era Urso? Etc.), filmes (A Nós a Liberdade, Um Estranho no Ninho,
Quando Explode a Vingança, Momo e o Senhor do Tempo, Tartufo, etc.). Esse
processo é perpassado por lutas, avanços e recuos e é determinado por outras
lutas, inclusive as travadas fora das instituições de ensino, principalmente as
lutas de classes no sentido de realizar a transformação social, bem como o
conjunto das lutas sociais de grupos oprimidos e outros setores da sociedade.
A axionomia
também se manifesta em práticas cotidianas que expressam potencialidades
humanas que, muitas vezes, são reprimidas (mesmo que no discurso sejam
valoradas), tal como o exercício da criatividade, o que Marx denomina práxis ou
trabalho como objetivação (Marx, 1983; Marx, 1988). Essa potencialidade humana
é reprimida mas reaparece na vida cotidiana, nos momentos de lazer, no
exercício da imaginação.
“Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a
algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’,
de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos
relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador
abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de
relacionar, ordenar, configurar, significar. Desde as primeiras culturas, o ser
humano surge dotado de um dom singular: mais do que homo faber, ser fazedor, o
homem é um ser formador. Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os
múltiplos eventos que ocorrem ao redor de dentro dele. Relacionando os eventos,
ele os configura em as experiência do viver e lhes dá um significado. Nas
perguntas que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar,
ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma” (Ostrower, 1987, p. 9).
Após expor que
a educação axiológica é predominante e mostrar a possibilidade de manifestação
da axionomia no processo educacional, é preciso analisar e trabalhar a ideia da
íntima relação entre axionomia e utopia[12],
o desejo da transformação social. Nesse sentido, a ideia de transformação
social está intimamente relacionada com a ideia de valores autênticos, da
axionomia, que aponta para uma nova forma de compreender o processo educacional
e o papel da escola, bem como de professores e alunos. A necessidade da utopia
é a centelha que aponta para a transformação social. Assim, a tese apresentada
é a da ligação indissolúvel entre axionomia e utopia e da necessidade de luta e
busca de uma educação axionômica.
A luta por uma
educação axionômica é, ao mesmo tempo, uma luta contra a educação axiológica e,
por conseguinte, contra os valores veiculados por ela, entre os quais a
supervaloração dela mesma, a meritocracia (que coloca o mérito como valor
fundamental, sendo que tal mérito é, geralmente, medido em termos quantitativos
e formais, tal como ocorre hoje com o sistema educacional brasileiro sob o
signo do neoliberalismo). A revaloração do autodidata e das formas de educação
não-formal, também são elementos que mostram valores igualitários, e que
coincidem com as teorias que combatem as ideologias do “dom” (Bisseret, 1978) e
outras mais.
Isso se deve ao
fato de que a educação é predominantemente axiológica, bem como o mundo em que
vivemos é hegemonicamente axiológico. A transformação desse mundo axiológico em
um mundo axionômico significa a concretização dos valores autênticos. Porém,
não se trata apenas de mudanças de valores, pois estes existem e podem ser
alterados, mas não é possível realizar a transformação social apelando apenas
para a mutação valorativa. Ela faz parte da luta e deve ser encaminhada, mas é
preciso atuar na totalidade das relações sociais e com uma ação unitária
totalizante, que atua não apenas na instância dos valores, mas também da
consciência, dos sentimentos, das práticas concretas, da ação política em
sentido amplo, e isso em todos os lugares possíveis (local de trabalho,
moradia, estudo, etc.) e que tem como condição fundamental a superação das
relações de produção capitalistas através das lutas do proletariado que geram
novas relações de produção.
Sendo assim, no
próprio processo educacional deve ser travado uma luta cultural e prática pela
transformação do sistema educacional no sentido de abrir brechas e permitir
maior espaço para a resistência, axionomia, pensamento crítico e articular isso
com reivindicações imediatas e a longo prazo, específicas (dos estudantes,
professores, etc.)[13]
com gerais. No plano educacional isso remete a luta em torno das políticas
educacionais, da organização das instituições de ensino, das demandas dos
diversos setores envolvidos (professores, estudantes, funcionários, famílias
dos estudantes, comunidade em geral, etc.) e sua articulação com o projeto de
transformação social, entre outros aspectos.
Um destes
aspectos é a própria prática educacional e que se manifesta, inclusive, no que
se considera que deva ser a forma de atuação no processo de educação. Assim, a
discussão sobre pedagogia – no sentido de concepção de como deve ser a educação
– se torna fundamental. A proposta de pedagogia autogestionária[14]
vai nesse sentido, pois não só se fundamenta na axionomia e entra em
contradição com a axiologia, como une mudanças formais e de conteúdo,
antecipando um processo de transformação cotidiana no espaço escolar que abre
as portas para outras transformações educacionais e contribui com a luta pela libertação
humana.
Neste contexto,
é importante ressaltar que a axionomia entra em contradição com as ideologias,
valores dominantes, sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa e, por conseguinte,
sua concretização depende da transformação social radical, pois somente assim
passa de elemento marginal e subordinado para hegemônico. Isso significa a
transformação de um mundo axiológico em um mundo axionômico. Os valores são
mobilizadores, assim como a consciência e os sentimentos, e por isso é
necessário lutar pela axionomia e sua inserção no processo educacional, pois
faz parte da luta de classes e do projeto de emancipação humana, mas sua
concretização na totalidade das relações sociais depende da transformação das
próprias relações sociais, pois enquanto existir exploração, dominação,
opressão, o que é garantido pelo domínio do capital e do Estado, não será possível
uma hegemonia da axionomia e nem a libertação humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os valores são
fundamentais para o processo de formação intelectual do indivíduo. O
desinteresse é um dos principais obstáculos para o processo educacional. Este
aspecto da questão não foi abordado aqui, mas os elementos aqui discutidos
apontam para uma percepção da importância dos valores no processo educacional.
Os valores dominantes quando agem no processo educacional, podem ser incentivo
para o empenho dos alunos (é por isso que se usa, por exemplo, a competição
como incentivo para o estudo, apesar de beneficiar alguns e prejudicar a
maioria, além do que esse benefício é relativo, já que apenas proporciona a
realização de valores burgueses de ascensão social, o que muitas vezes entra em
contradição com outros valores, tal como a verdade, a solidariedade, etc.). Na
maioria dos casos, os valores dominantes são frios e não proporcionam o
engajamento do aluno no processo de aprendizagem, já que este é apenas um meio
para atingir determinados fins e não um fim em si mesmo. E é isso que faz da
nota a preocupação fundamental e não a aprendizagem, já que o controle e
registro, e depois o “prêmio”, se faz em torno dela e não da formação real. Tal
como coloca Ivan Illich:
“Ensina-se nas escolas que a aprendizagem proveitosa
resulta de uma regular assistência escolar e que a utilidade do aprendido
aumenta com a quantidade do que nos ensinaram. As possibilidades profissionais,
a consideração social, a ascensão social e econômica, dependem do número de
anos em que se frequentou a escola com sucesso, de qualificações e diplomas que
podemos ostentar” (Illich, 1976, p. 13).
Os valores
autênticos, por sua vez, beneficiam o processo de aprendizagem e autoformação
do indivíduo. Eles não somente criam as condições de possibilidade de romper
com as ideologias dominantes e representações cotidianas ilusórias, como também
é, ela mesma, uma práxis e, portanto, desenvolvimento das potencialidades
humanas e materialização de valores autênticos. Porém, o sistema educacional e
a educação escolar são fortes obstáculos para isso:
“Temos de ter em conta esta verdade: manter o sistema
dominante mediante a negação da fantasia é tarefa fundamental de toda a
educação fiel ao sistema, por conseguinte, é uma função fundamental da escola.
A nossa escola é, entre outras coisas, fundamentalmente, um obstáculo à
fantasia. A criança é, num sentido muito mais concreto, mais homem do que a
pessoa mais crescida: vive mais daquela imaginação tipicamente humana,
exclusiva dos homens, que se chama fantasia. Uma sociedade que receia a
mudança, a inovação, a aventura, a revolução, não pode fazer nada com isto. Não
é por acaso que se encontra esta fantasia na sociedade restrita das crianças e
dos loucos, em alguns espíritos delicados ou em profissões específicas como os
artistas, que existem para entreter da forma mais elevada ou mais vulgar os
restantes membros da sociedade, os formais e os sérios” (Nenning, 1976, p. 113).
Desta forma,
existem obstáculos, mas eles não são irremovíveis e é preciso pensar formas de
se superar pelos menos parte destes obstáculos. A luta contra os valores
dominantes e por uma educação axionômica envolve inúmeras outras questões, das
quais podemos apontar apenas alguns aspectos. Nesse sentido, é importante
realizar uma crítica radical à pedagogia burguesa (em suas diversas formas),
demonstrando seu caráter repressivo, coercitivo, autoritário, axiológico,
burocrático, além de estar a serviço do capital, razão de assumir tais
características. Além disso, reproduz relações sociais tipicamente burguesas,
não só na relação entre professor e aluno, mas também através de relações que
buscam incentivar entre os alunos, uma antecâmara da vida no trabalho, marcadas
pelo autoritarismo, competição, passividade, repetição. É necessário também
lutar pela desburocratização das escolas através do controle da comunidade
escolar sobre sua direção burocrática, além de buscar sua aproximação com a
sociedade, a classe trabalhadora, buscando diminuir a interferência estatal.
Isso tanto através de sua intervenção direta (burocracia escolar controlada
pela burocracia estatal), independentemente de qual governo for, incluindo os
ditos de “esquerda”. Outro elemento importante é o incentivo para a
auto-organização dos estudantes, tanto no que se refere aos problemas políticos
quanto pedagógicos. O combate por mudanças legislativas no sentido de ampliar a
autonomia e desburocratização da escola é outro item que não pode ser
esquecido.
Para
concretizar isso, a criação de um movimento não-burocrático (e sem participação
de organizações burocráticas que buscam aparelhar os movimentos) que articule
experiências, apoio material e político, a partir da elaboração de uma
estratégia de luta nacional, torna-se necessário. Tal movimento deve contar com
todos os interessados, incluindo professores, estudantes, funcionários,
comunidade, etc. Outro elemento é a criação de publicações (jornais, revistas, publicações
eletrônicas, etc.) com o objetivo de discutir as questões anteriormente
levantadas e abrir espaço para a crítica das pedagogias burguesas e o
desenvolvimento de uma pedagogia autogestionária. É necessário que, nesse bojo,
haja uma luta contra as organizações burocráticas, tanto que dominam as formas
de organização de professores, estudantes, funcionários e as externas que
buscam aparelhar e dominar estas.
Sem dúvida, isto
pode ser considerado como sendo concepções “políticas”, “ideológicas”,
“valorativas”. Obviamente que são e todas as demais existentes, inclusive tais questionamentos,
também são. A grande diferença é quais valores se manifestam em cada caso. Como
colocou Max Adler:
“Constitui
opinião generalizada que a educação é apolítica... precisa ser neutra... uma tal concepção da
educação... configura o conceito de uma educação... também num espaço associal.
Porém, assim que se focaliza a educação em sua determinação concreta através da
formação social... o conceito de educação, aparentemente autossustentado, é
imediatamente referido às oposições reais, às contradições da sociedade de
classes – e hoje ainda não temos nenhuma
outra” (apud. Schmied-Kowarzik, 1988, p. 117).
Consequentemente,
“uma vez reconhecida a contradição de classes necessária da vida social
atual... toda educação que tem
clareza quanto aos
seus objetivos precisa tomar partido, e não pode haver dúvidas quanto a
como isto ocorrerá” (apud. Schmied-Kowarzik, 1988, p. 117). M. Adler continua:
“A tomada de partido pelo socialismo faz parte da própria educação
humanizadora”. E, retomando Marx (Viana, 2004) conclui: “Deste modo, também a
reforma escolar só atinge seu sentido próprio e sua realização completa através
da educação socialista, que necessariamente ocorre fora da escola, nos
institutos educacionais próprios do proletariado. Desta forma, a educação
socialista se torna peça integrante da própria luta de classes proletária”(apud.
Schmied-Kowarzik, 1988, p. 118).
Assim, a
reflexão crítica sobre os valores culturais, seu processo de formação social,
e, por conseguinte, de nossos próprios valores e sua relação com a educação são
fundamentais para romper com a naturalização das relações sociais produzidas
pelas ideologias e representações cotidianas ilusórias e para se constituir
novas práticas educacionais, no sentido da libertação humana. A autorreflexão
sobre nossos valores – e a percepção de que eles não são naturais e foram
constituídos socialmente – é o ponto de partida para conseguir avançar na luta
pela liberdade e, nesse caso, como já dizia Marx, só temos nossos grilhões a
perder e um mundo a conquistar.
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[1]
Poucos discutiram a relação entre educação e valores, tal como Furter, embora
com uma concepção diferente de valores e manifesta valores parcialmente
distintos dos aqui apresentados (Furter, 1970).
[2] A
concepção durkheimiana de educação pode, sem dúvida, ser integrada na concepção
marxista, desde que se perceba que se trata do que a educação é e não do que
deveria ser e a distinção na concepção do que deveria ser (formação
especializada para Durkheim e formação onilateral para Marx) acarreta diferença
na forma de avaliar a educação como ela é na sociedade moderna (concepção
apologista em Durkheim, concepção crítica em Marx).
[3]
Claro que se trata de uma crítica moderada e baseada numa concepção
reprodutivista (Peixoto, 2010).
[4] O
sistema educacional não visa desenvolver o saber, mas controlá-lo, tanto em sua
produção (pesquisa), quanto em sua transmissão (ensino). Obviamente que esses
objetivos são apresentados como sendo voltados para o desenvolvimento ao invés
do controle.
[5] No
presente artigo abordaremos apenas a questão dos valores, deixando para outra
oportunidade a abordagem de outros elementos envolvidos.
[6]
Ideologia, no sentido atribuído por Marx, é falsa consciência sistematizada
(Marx e Engels, 2002; Viana, 2010; Viana, 2011). Logo, não se trata da
concepção positivista clássica, segundo a qual a ideologia seria um pensamento
valorativo, pois, numa abordagem marxista, todo pensamento é valorativo.
[7] A
base do desenvolvimento a seguir é fundamentado nessa obra e por isso não
indicaremos novamente a fonte, a não ser em alguns casos necessários e o que
for outra contribuição, estaremos acrescentando com indicações bibliográficas.
[8]
Aqui não poderíamos discutir e aprofundar a questão da natureza humana, nem em
nossa formulação (Viana, 2007) nem em sua fonte inspiradora, ou seja, em Marx
(1983; Viana, 2011), e que é retomada por vários outros pensadores. Em síntese,
podemos dizer que a natureza humana não é algo metafísico e nem algo empírico,
mas sim algo concreto e que pode ser descoberta pelo estudo das necessidades
humanas (tanto as comuns a todos os animais, que são as necessidades básicas,
quanto as especificamente humanas, derivadas da ação de satisfazer tais
necessidades, tal como o trabalho como objetivação – e não como alienação –, a
criatividade, a liberdade, etc.).
[9]
Aqui utilizamos um conceito amplo de violência, que busca dar conta tanto da
violência visível quanto da violência invisível. Violência, em nossa concepção,
é uma relação social de imposição, na qual determinados indivíduos ou grupos
impõe algo a outros indivíduos ou grupos contra sua vontade ou natureza (Viana,
1999; Viana, 2002).
[10]
Claro que, na maioria dos casos, a discordância é apenas com os meios
utilizados e não com os objetivos, almejado pela maioria dos apáticos.
[11]
Aqui a palavra pedagogia manifesta uma determinada concepção do que deve ser a
educação, e não em outros sentidos da palavra.
[12]
Por utopia entenda-se uma concepção crítica da sociedade existente acompanhada
de um projeto alternativo de sociedade. Aqui se trata de uma utopia concreta e
não uma utopia abstrata, para usar termos de Ernst Bloch (Bicca, 1987). A
utopia abstrata é aquela que não apresenta a forma e o agente da transformação
social e a utopia concreta aponta a forma e o agente desse processo – o
proletariado, classe revolucionária –, tendo no marxismo sua expressão teórica
mais desenvolvida.
[13] A
articulação de luta por necessidades específicas e gerais, imediatas e a longo
prazo (a transformação social radical) é uma necessidade para não se efetivar
políticas meramente corporativas, reprodutoras das relações sociais existentes.
E isto deve estar articulado, sob pena de fracasso caso não o faça, com o
movimento operário e a luta pela abolição das relações de produção
capitalistas.
[14]
Não será possível aqui, por questão de espaço, discutir a pedagogia
autogestionária, que já foi objeto de reflexões que podem ser consultadas
(Viana, 2008c). Aqui cabe apenas deixar claro que a pedagogia autogestionária
não é a mesma coisa que autogestão pedagógica e sim um meio para se chegar a
esta última, sendo que esta depende, também, da transformação social radical, a
instauração da autogestão social.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Educação e Valores: Da Axiologia à Axionomia. In: Silva, Luzia Batista de Oliveira; Barcellos, Ana Carolina Kastein; Marcon, Gilberto Brandão (Orgs.). Sobre teorias, teóricos e temas relevantes em Educação. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011.
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