Nildo Viana
Direita e esquerda são termos amplamente utilizados por
intelectuais, meios oligopolistas de comunicação, políticos profissionais,
militantes, entre outros. O significado desses termos é confuso, especialmente
o termo “esquerda”. É preciso superar a obscuridade terminológica e
substituí-la pela clareza conceitual. A confusão terminológica nunca foi
interesse daqueles que lutam por uma transformação radical e total da sociedade
e sua existência e reprodução é interesse daqueles que buscam conservá-la. O
esclarecimento conceitual, por sua vez, é apenas um momento da luta que prepara
o momento seguinte, que é o posicionamento diante da realidade explicada
conceitualmente. Esse é o nosso objetivo aqui.
A definição tradicional dos termos “direita” e “esquerda”
remete ao caso da revolução francesa. No parlamento francês nesse período, duas
alas disputavam o poder: aqueles que se posicionavam espacialmente à direita,
os que queriam conservar intactas as relações sociais existentes, e aqueles que
se posicionavam à esquerda, os que queriam mudanças. A direita era composta
pelos representantes da nobreza e clero, classes decadentes, e a esquerda pelos
representantes do “terceiro estado”, ou seja, pela burguesia, apoiada pelo
campesinato e proletariado, as classes ascendentes.
Dessa divisão espacial surgiu a definição política da
direita como representante da “elite”, dos “poderosos”, dos “conservadores” e a
esquerda como representante do “povo”, dos “dominados”, dos adeptos das
mudanças. O movimento socialista (incluindo diversas concepções, como
lassallistas, marxistas, anarquistas, social-democratas, bolchevistas, etc.),
em todas as suas tendências, acabou incorporando essa linguagem e a interpretou
como sendo uma oposição entre classe dominante (burguesia) e classe operária
(proletariado), ou, ainda, entre partidários do capitalismo e do “socialismo”
(ou “comunismo”, “anarquia”, etc.), respectivamente.
Essas concepções se popularizaram e se tornaram hegemônicas.
Nos meios políticos e intelectuais, a versão “socialista” se tornou hegemônica.
A existência de diferenças e divisões, tanto na direita (liberais, democratas,
fascistas, nazistas, etc.), quanto na esquerda (social-democratas, comunistas,
anarquistas, etc.) e suas subdivisões, geraram, por sua vez, toda uma
terminologia derivada (extrema-direita, extrema-esquerda, esquerdismo, etc.),
bem como muitos direitistas, buscando disfarçar suas posições, criaram o
“centro” e novas divisões (centro-direita, centro-esquerda, etc.). Assim, a
esquerda (Lênin) denominou os radicais que se opunham a ele como sendo
“esquerdistas” e parte da direita preferiu se chamar de “centro”, pois
“direita” não é algo bem visto.
Com o passar do tempo, essa terminologia torna-se cada vez
mais obscura, pois a direita raramente se assumia assim e a “esquerda” se
dividia em diversas concepções que buscavam se afastar de outras (dependendo da
tendência, queria se afastar do extremismo, do reformismo, do esquerdismo, do
capitalismo estatal – vulgo “socialismo real”, etc.) e por isso foi gerando
novos termos: “esquerda democrática”, “nova esquerda”, “esquerda
revolucionária”, etc.
Mais recentemente, a partir da hegemonia neoliberal, a
direita buscou ressignificar a distinção entre direita e esquerda visando
valorar a primeira e desvalorar a segunda, o que permitiria assumir o que antes
escondiam. A direita criou, através de algumas instituições (tal como o
patético Instituto Von Mises), financiamento e intelectuais neoconservadores,
duas novas formas de opor os dois termos da contenda. A primeira forma renovada
consistia em opor defensores do “livre mercado” e defensores da “intervenção
estatal”. A direita, nesse caso, é composta pelos partidários do livre mercado
e seus opositores de esquerda seriam partidários do intervencionismo estatal. A
segunda forma renovada consistia em opor os defensores da “liberdade”,
representantes da direita, e os defensores da “igualdade”, representantes da
esquerda.
Assim, a ideologia neoliberal busca confundir ainda mais as
coisas que já são confusas através de abstrações metafísicas e oposições
superficiais. Distinguir direita e esquerda por “mais ou menos mercado” ou
“mais ou menos Estado” significa gerar uma oposição quantitativa, de grau, ao
invés de qualitativa. A oposição metafísica entre liberdade (existem inúmeras concepções
de liberdade, embora a concepção liberal privilegie a liberdade de mercado e a
liberdade individual nesse contexto) e igualdade (que também possui inúmeras
concepções a respeito, indo da igualdade formal até o igualitarismo) é uma
falsa oposição, pois liberdade e igualdade se complementam ao invés de se opor,
quando são verdadeiras e não apenas representações ilusórias visando ludibriar
a população.
Todas essas concepções de direita e esquerda são
problemáticas, limitadas, falsas. Elas não dão conta de explicar a realidade e
as divisões políticas e usam termos que são categorias do pensamento (direita,
esquerda, centro, são ferramentas intelectuais para se pensar o espaço e nossa
localização nele e são termos relativos que mudam de acordo com a nossa
localização no espaço) e não conceitos. Por isso são meras formas
classificatórias que variam de acordo com o classificador, com suas concepções,
valores, ideologias, etc.
O único sentido aceitável para a oposição entre direita e
esquerda é o de classe. Nesse caso, a direita seria a posição política da
burguesia e a esquerda a posição política do proletariado. No entanto, nem
nessa formulação tal oposição é aceitável. O problema não reside apenas no fato
do termo esquerda ser usado a torto e a direito, mas, principalmente, por
trocar coisas reais, as posições políticas de determinadas classes sociais, por
coisas metafóricas e imaginárias e, por isso, mais facilmente manipuláveis. Isso
também significa trocar uma linguagem direta por uma indireta, sendo que não há
obstáculo para usar a primeira. Ao invés de direita e esquerda, o verdadeiro
antagonismo é entre burguesia e proletariado.
A oposição entre direita e esquerda tem sua origem no
parlamento francês, demonstrando que são dois lados da mesma moeda. Direita e esquerda
não são antagônicas, elas são opostas e sua oposição ocorre dentro da arena
burguesa. A esquerda é uma farsa, é a parte eclética da mentalidade burguesa,
aquele que elege o progresso como alvo principal. O seu discurso pode expressar
a reivindicação de “redistribuição de renda”, mais democracia, etc., ou seja,
reformas no capitalismo ao invés de transformação social radical e total. Por
isso pode fazer discurso sobre igualdade e contra desigualdade (termo abstrato
e que não expressa o processo de exploração que precisa ser abolido). Assim, a
direita é composta pelo bloco dominante e a esquerda pelo bloco progressista. Ambas
possuem posições burguesas, uma mais firme e conservadora, privilegiando a
ordem e os interesses do capital, e outra mais flexível, que privilegia o
“progresso” e tenta reunir ecleticamente burguesia e proletariado, concedendo
migalhas, realizando cooptação, etc., quando está no poder e fazendo discurso
supostamente revolucionário ou reformista quando tenta chegar ao poder (seja
por via eleitoral, como a social-democracia, seja pela via insurrecional, como
o bolchevismo).
Em síntese, direita e esquerda são termos problemáticos e
abstratos que, no fundo, expressam duas posições burguesas, a do bloco
dominante e a do bloco progressista. Setores deste último podem se tornar parte
do bloco dominante (tal como os partidos socialistas e trabalhistas que
conseguiram vitórias eleitorais e conquistaram governos na Europa e como o PT –
Partido dos “Trabalhadores”, no caso brasileiro), mas isso é temporário e
significa que assumem a posição conservadora com elementos de progressismo. A
direita e a esquerda são duas posições no interior da sociedade burguesa e por
isso não há antagonismo entre elas e sim oposição. O antagonismo ocorre entre
os blocos dominante e progressista, por um lado, ou seja, a posição burguesa, e
o bloco revolucionário, a posição proletária, por outro.
Por isso, o uso dos termos “direita” e “esquerda” expressa a
luta cultural da burguesia para afastar a consciência da luta de classes e a
posição revolucionária do proletariado da disputa política e em seu lugar
colocar a oposição superficial entre duas forças políticas da burguesia, uma
mais organicamente ligada a ela, e outra composta por suas classes auxiliares
ou frações delas, que tenta conquistar o poder estatal e nunca a transformação
social radical e total. Direita e esquerda são farinha do mesmo saco.
Assim, é fundamental superar essa obscuridade terminológica
caracterizada pela divisão entre direita e esquerda e retomar a expressão real
de relações sociais reais. A luta mais importante e fundamental não é entre
forças políticas (o bloco dominante e o bloco progressista) que disputam o poder
estatal burguês, seja para conservá-lo ou para reformá-lo. A luta fundamental é
entre as classes sociais que expressam os interesses da conservação, por um
lado, e as que expressam a necessidade da transformação, por outro. Ou seja, é
a luta entre classe capitalista e classe operária. Esta luta se manifesta,
também, na luta do bloco revolucionário (expressão política do proletariado e
portador do projeto autogestionário) e a direita e a esquerda (bloco dominante
e bloco progressista, respectivamente). A autogestão social significa a
abolição tanto do capital (relações de produção capitalistas, cuja expressão
jurídica é a propriedade privada dos meios de produção) quanto do Estado.
Por isso o bloco revolucionário é antagônico aos demais
blocos sociais (dominante e progressista ou “direita” e “esquerda”) sob todas
as formas que eles assumem suas oposições, pois eles não dizem o que realmente são
e querem, aparecem sob representações cotidianas ilusórias ou ideologias. Ou
seja, o bloco revolucionário é antagônico tanto aos mercantilistas (partidários
do “livre mercado”) quanto aos estatistas (partidários do intervencionismo
estatal ou da estatização), pois propõe abolir o mercado e o Estado, sendo
antimercado e antiestatal. Da mesma forma, o bloco revolucionário, de caráter
proletário, é antagônico tanto ao libertarianismo, libertarismo, etc., quando
ao igualitarismo corporativista, estatista, etc., pois não existe liberdade e
igualdade numa sociedade capitalista e numa sociedade autogerida eles são harmônicos.
Igualdade sem liberdade não é igualdade, pois se alguém tem o poder de coibir a
liberdade alheia, então há desigualdade. Liberdade sem igualdade não é
liberdade, pois não há como ser livre entre desiguais em autoridade, poder,
riqueza, etc., seria uma liberdade de poucos. Logo, essa oposição mostra apenas
que os partidários da “liberdade” são farsantes que usam esse discurso para manter
o seu poder, a desigualdade e a falta de liberdade. Mostra, também, que os
partidários da “igualdade” são igualmente farsantes, pois não existe igualdade
sem liberdade, sob coerção estatal ou imposição moral, seja ela qual for.
Da mesma forma, o bloco revolucionário é antagônico tanto ao
capitalismo quanto a todas as formas de capitalismo reformado. Isso vale tanto
para o “socialismo real” (na verdade, um capitalismo estatal), quanto para o
“Estado de bem estar social” (um capitalismo com intervencionismo estatal e
algumas concessões em políticas estatais). Isso vale também para qualquer
projeto ainda não concretizado que se chame “socialismo”, que não passa do
capitalismo com algumas alterações (tal como as propostas de “ecossocialismo”,
“socialismo de mercado”, “federalismo de pequenos produtores” e outras
fantasmagorias semelhantes).
Assim, é necessário entender que essa oposição entre direita
e esquerda é uma forma de buscar a conservação do capitalismo, constituindo uma
oposição dentro de um marco que nunca ultrapassam, que é o do capitalismo. As
duas posições são discursos falaciosos que evitam o verdadeiro antagonismo ao
buscar ofuscar a existência do proletariado e da alternativa expressa por ele e
pelo bloco revolucionário, que é anticapitalista. Assim, a disputa de duas
posições pró-capitalistas, com uma ou parte dela aparentando ser anticapitalista,
evita o fortalecimento de uma verdadeira posição anticapitalista. As
experiências históricas, desde o caso da URSS e leste europeu, além da China,
Cuba, etc. e dos governos social-democratas (também “democratas”,
“trabalhistas”, etc.) na Europa e resto do mundo comprovam isto, pois apenas
reformaram o capitalismo e trocaram governantes ou grupos capitalistas, sem
nunca abolir a exploração e a dominação. Estatizaram mais ou menos e nunca
aboliram o Estado. Portanto, é tempo de superar a falsa oposição entre direita
e esquerda e enterrar essa última no museu da história, pois é uma velharia tal
qual a primeira.
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VIANA, Nildo. Direita e Esquerda: Duas Faces da Mesma Moeda. Revista Posição. Vol. 3, num. 10, abr./jun. de 2016.
http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/06viana010/432
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VIANA, Nildo. Direita e Esquerda: Duas Faces da Mesma Moeda. Revista Posição. Vol. 3, num. 10, abr./jun. de 2016.
http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/06viana010/432
Excelente texto. Há muita confusão no uso desses termos "direita" e "esquerda", que é reproduzido até por militantes honestos, mas que não se atentam na importância do esclarecimento intelectual e em marcar uma posição revolucionária.
ResponderExcluirSem dúvida, Felipe Andrade. Abs.
ExcluirO que opera de verdade é sistema
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