Rádio Germinal

RÁDIO GERMINAL, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. Para iniciar clique em seta e para pausar clique em quadrado. Para acessar a Rádio Germinal, clique aqui.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Música Popular e Domínio Temático


Música Popular e Domínio Temático

 

 


Nildo Viana*




A análise social da música, que é a que ocorre no âmbito da sociologia e do marxismo, se diferencia da análise puramente técnica ou das avaliações idiopáticas[1]. A análise da música popular possui uma especificidade, se comparada com a música chamada clássica e em relação à música instrumental. A diferença ocorre na mensagem que ela repassa através da letra da música (VIANA, 2007a). A música popular é cantada e não apenas aparece a voz humana como palavras, frases, que formam uma mensagem. A mensagem na música clássica ou instrumental é distinta e seu processo analítico também. Se a mensagem na música popular ocorre, principalmente, mas não unicamente, via letra da música, então é fundamental uma análise mais profunda dessa. As mensagens das músicas possuem, por sua vez, determinados domínios temáticos mais recorrentes e que se reproduzem com maior frequência. O nosso objetivo é justamente analisar a relação entre música popular e domínio temático. Assim, o conceito de domínio temático, a sua relação com a diferenciação musical, os grandes domínios temáticos, entre outras questões, serão aqui abordadas.
Antes de prosseguir, é útil explicitar alguns conceitos fundamentais, como os de música popular e domínio temático. A música popular se distingue da música folclórica e de outras formas musicais. A distinção mais importante é entre música popular, música folclórica e música nacional-popular. A música folclórica é a música produzida pela própria população e sem a sofisticação e tecnologia que mais tarde será comum na música popular posterior. A música folclórica é aquela que reproduz uma determinada tradição comunitária, marcada por relações familiares, de trabalho, nas quais se passa de geração para geração o legado cultural (VIANA, 2016). Assim, a música folclórica é marcada pela tradição, entendendo por essa o conjunto de ideias, hábitos, costumes, de uma população, que é repassada de geração em geração (GINSBERG, 1966).
A música popular, por sua vez, é aquela produzida pela própria população ou consumida por ela, que emerge a partir da música folclórica e é urbanizada. Assim, se o Lundu é música folclórica, o samba é música popular, pois surge através da urbanização e mutação da música folclórica. O samba é música popular original, porquanto surge a partir da adaptação da música folclórica à sociedade capitalista, urbana, comercial. Uma vez existindo e sendo objeto de reprodutibilidade tecnológica e de consumo popular, deixa de ser original e passa a ser remodelada de acordo com o capital comunicacional[2]. Assim, podemos dividir música popular original e música popular remodelada. A música popular remodelada, por sua vez, quando se torna de consumo popular em território nacional através da sua reprodutibilidade tecnológica (via discos – desde o vinil até o CD – rádio, televisão, etc). atingindo o grande público, torna-se nacional-popular, tal como a MPB (VIANA, 2016).
A música popular ao possuir letra e melodia (VIANA, 2007a), envia sua mensagem através de ambas, mas o que é mais presente para os ouvintes é a letra. O nosso objetivo aqui é analisar os domínios temáticos contidos nas letras da música popular.
Antes de prosseguir, é importante definir o conceito de “domínios temáticos”. A expressão foi cunhada, pelo que sabemos, pela primeira vez pelo crítico literário Jean-Paul Weber, numa obra intitulada “Domaines Thématiques”, publicado em 1965 pela editora Gallimard (PRÉVOST, 1976). Este autor, segundo Prévost, visa realizar uma interpretação temática das obras literárias. No entanto, o termo é aqui utilizado em outro sentido e a análise temática de Weber é um procedimento arbitrário fundado na busca do “tema original”, que segundo ele teria sua origem na infância, algo destituído de senso de realidade e, nesse sentido, a crítica de Prévost (1976) à sua concepção é adequada.
O que entendemos por “domínio temático”? Em primeiro lugar, o domínio temático ou temário, é uma forma de analisar como que, na produção cultural em geral (ciência, filosofia, literatura, música, etc). uma obra, autor, conjunto de obras, etc., focaliza e evidencia determinados temas. A palavra tema tem sua origem no latim (“thema”) e possui diversos significados. Na linguagem cotidiana, é sinônimo de “assunto” e em ciências é geralmente entendido como “objeto de estudo”. Em música, o “tema musical”, é um motivo ou elemento, ou, ainda, uma parte de uma peça musical, que gera uma variação. É mais popular quando o referido tema é produzido a partir de um motivo, que é uma sucessão de notas utilizadas, ou leitmotiv, que é um motivo associado a pessoas, lugares, etc. Isso ficou popularizado com a nomeação de certas músicas a partir do tema, como no caso de “tema de Lara”[3]. O tema de Lara é assim chamado por causa da música que faz parte da trilha sonora do filme Doutor Jivago, dedicado ao momento de romance da personagem Lara. Ou “tema de Vilma”[4], relativo à personagem da novela Selva de Pedras, de 1976. Depois se tornou popular usar o termo “temas de novelas”.
Aqui entendemos por tema um determinado “campo perceptivo” constituído por determinado aspecto da realidade que é gerado um determinado “campo de atenção”[5]. Esse campo de atenção na produção teórica é o foco analítico e no campo das imagens é o foco visual. Quando o campo de atenção se torna exclusivo, o que significa exclusão do fundo ou do resto, ele se torna monotemático. Quando ele é entendido como foco momentâneo e reconhece a existência de outros campos de atenção possíveis, então é politemático. O campo de atenção monotemático tende a ser reducionista e o politemático pode ser pluralista (aborda vários temas numa sucessão temporal ou divisão espacial) ou totalizante (tratando-o como foco inserido em uma totalidade). O tema, na pesquisa científica, é o campo perceptivo que o pesquisador abordará a partir do seu campo de atenção.
Um tema nunca está isolado e mesmo que seja constituído um campo de atenção monotemático ele sempre terá subtemas, pois deve se referir, mesmo que nunca se torne seu tema principal, a eles. É por isso que um tema constitui um domínio, ou seja, um espaço delimitado composto pelo tema principal, subtemas, temas derivados e correlatos. Um tema de pesquisa é, no fundo, referencial ao tema principal, que constitui um domínio temático. O tema principal é parte e gerador do domínio temático. Assim, o tema pode ser considerado que a mesma coisa que domínio temático ou temário, quando o consideramos um tema principal composto por subtemas e temas correlatos e derivados, ou seja, como totalidade. A expressão domínio temático ou temário é para enfatizar o caráter totalizante da análise, pois o tema traz dentro de si outros temas (quando mais se estuda um fenômeno, mais questões, ou seja, subtemas, temas derivados e correlatos, aparecem). Através da ideia de domínio temático é possível distinguir tema principal, subtemas, temas correlatos e derivados.
No caso da música popular, o tema é o campo perceptivo da realidade que é explicitado na letra da música pelo campo de atenção do compositor. Se a música trata de futebol, esse é o seu temário, o seu domínio temático, cuja tema principal é esse esporte. Esse é o caso da música de Moraes Moreira, Sangue, Swing e Cintura, composta para homenagear seleção brasileira na Copa do Mundo de 1982:

SANGUE, SWING E CINTURA
Moraes Moreira
 
O rei aqui é Pelé
Na terra do futebol
Olé! É bola no pé
Redonda assim como o sol
Seja no Maracanã
Ou num gramado espanhol
Escola aqui é de samba
E bola é arte do povo
Sua alegria Deus manda
Nasce um Garrincha de novo
Quem sabe tem mais de um
Quebrando a casca do ovo
Ta lá, ta lá, ta lá
Ta no filó
Ta na filosofia
Quem sabe, sabe:
O craque brasileiro
Tem sabedoria!
Sangue, swing e cintura
Mistura de fé
Futebol e arte
Que em nenhuma outra parte
Do mundo não há:
Galinho de Quintino
Flamengo menino
Grito em forma de hino - Gol!
Calcanhar de Sócrates
Gogó de cantor!
Só craque, só craque, só craque, só craque
Só craque e Doutor!
Telê, um fio de esperança
De velho, moço e criança
Unindo os corações
E assim de novo do mundo seremos
Seremos os campeões!

O tema principal é o futebol brasileiro. Alguns subtemas são a relação entre futebol e cultura brasileira, sua popularidade, seleção brasileira, a qualidade dos jogadores brasileiros, a copa do mundo de 1982 na Espanha, etc. Cada um desses subtemas poderiam constituir outro domínio temático. A análise de um domínio temático pressupõe a identificação do seu tema principal. As formas de abordagem do domínio temático é outro elemento importante, pois um mesmo tema pode ser abordado sob formas distintas. As abordagens dos domínios temáticos assumem formas distintas dependendo de qual produção cultural se trata. Adiante vamos retomar essa questão ao tratar das abordagens temáticas da música popular.
Após esta breve introdução e esclarecimento conceitual é possível avançar na reflexão sobre a questão específica da música popular e sua relação com os domínios temáticos. Para tanto, vamos abordar a questão da diferenciação musical no que se refere aos domínios temáticos, os domínios temáticos mais recorrentes e as abordagens dos mesmos.
Divisão Social do Trabalho e Diferenciação Musical
A produção musical é geralmente marcada por um processo de classificação e diferenciação. O nosso objetivo é abordar a diferenciação musical por domínio temático. Antes, no entanto, é importante uma breve digressão sobre as demais formas de diferenciação musical. Como o conjunto das músicas populares existentes e produzidas mostra uma grande diversificação, com maiores ou menores diferenças, então emerge um processo classificatório que busca explicitar essa diferenciação. Essa diferenciação pode ser meramente idiopática ou pode ser fundada em critérios técnicos, formais, históricos, entre outros.
Deixaremos de lado as diversas formas de classificação, especialmente as idiopáticas, para focalizar nas mais utilizadas socialmente. As duas formas de classificação mais utilizadas é a que se realiza por gênero musical e a que se realiza por forma musical. A música pode ser dividida por sua forma e aqui a divisão ocorre entre a chamada “música clássica” ou “erudita” e a “música popular”. A divisão de classe, expressão da divisão social do trabalho, está presente nessa forma de classificação, bem como, geralmente, os valores associados que apontam para a suposta superioridade da música “clássica” diante da “popular”.
A forma mais comum de diferenciação da música popular, no entanto, é a por gênero. A classificação por gênero é tão problemática quando em diversos outros casos. O gênero tem como principal elemento delimitador o aspecto formal, técnico e melódico. Assim, é possível elencar diversos gêneros: blues, jazz, rock, samba, frevo, entre inúmeros outros. Contudo, o gênero cinematográfico, para citar apenas um exemplo, é de classificação mais fácil, pois a mistura de gêneros é menor. Por isso, o gênero musical deve ser entendido de forma mais flexível. É necessário entender que existe metagêneros, como a MPB (VIANA, 2016), os subgêneros (como subdivisões dos gêneros, tal como existe no rock e samba, como no exemplo do indie rock e do samba-canção), os gêneros mistos (o samba-rock, por exemplo, pode ser considerado um subgênero do samba e do rock), entre outros elementos complicadores. Contudo, a diferenciação por gênero traz alguns inconvenientes no processo de formação social do gosto musical, bem como confusões a respeito.
O nosso objetivo é, indo além dessas e outras formas de diferenciação, acrescentar uma outra, que muitas vezes aparecem sob forma não-consciente, que é a diferenciação temática. Toda música popular, com exceção das tentativas instrumentais, se manifesta através de uma letra que escolhe um determinado tema para a manifestação da canção. No entanto, existem certos domínios temáticos que são relacionados com gêneros, subgêneros, épocas, regiões, cantores, compositores, etc. A partir de uma perspectiva de análise global, é possível distinguir e diferenciar as músicas por grandes domínios temáticos. Desde sua origem, a música possui alguns domínios temáticos mais constantes. A música folclórica, por exemplo, trata da vida rural, da cotidianidade do trabalho, entre outros temas correlatos.
A música popular, por sua vez, devido seu lugar de manifestação, já aponta para a vida urbana, especialmente a das classes desprivilegiadas. A sexualidade e o amor romântico aparecem com frequência entre os domínios temáticos mais recorrentes ao lado das condições de vida e cultura das classes desprivilegiadas. Esse processo ocorre nas suas origens, pois com o processo de desenvolvimento da música nacional-popular, esta se torna referência e modelo para as manifestações da música popular, ao lado da urbanização, desenvolvimento tecnológico, mudanças sociais, etc. Na época de surgimento de um gênero musical é comum que haja uma unidade entre ele e um certo domínio temático (como o gospel, blues, etc). e somente com a formação do nacional-popular e influência do capital comunicacional é que os gêneros passam a abordar uma diversidade de domínios temáticos e o vínculo se desfazem, parcialmente ou completamente[6].
A música nacional-popular, que no caso brasileiro ficou conhecida como MPB, tem alguns grandes domínios temáticos: o romantismo sentimental, a sexualidade, a natureza, a tradição, a nacionalidade, a cotidianidade (incluindo trabalho, lazer, cultura, etc)., existencial, autorreferencial, etc. A música nacional-popular nos Estados Unidos e outros países tende a ter os mesmos grandes domínios temáticos (e poderiam ser subdivididos em subdomínios). Não poderemos abordar todos, muito menos de forma aprofundada, por isso vamos analisar mais profundamente alguns e apenas citar brevemente outros, deixando vários de fora da análise. Por isso vamos selecionar alguns dos domínios temáticos mais recorrentes para explicitar o processo analítico do temário musical.
Os Domínios Temáticos Recorrentes
O destaque é para o domínio temático romântico. A música popular tem como domínio temático hegemônico o romantismo. O romantismo sentimental é aquele que manifesta os sentimentos, especialmente o amor (romântico ou sexual, mas também fraterno, materno, paterno, etc).. As letras expressam as várias formas de amor, sua realização, decepção, lamentação, idealização, dificuldades, etc., bem como suas consequências, expectativas, etc. O romantismo sentimental se manifesta, assim como todos os demais domínios temáticos, sob distintas formas, dependendo da época, classe social de origem dos compositores, entre outras determinações. A divisão de classes sociais se manifesta na produção musical e explica as formas do romantismo e suas manifestações. O que predomina é o romantismo sentimentalista, típica da música nacional-popular trivial[7], mas há também o romantismo ilustrado da música nacional-popular erudita e o romantismo significativo na música nacional-popular semierudita. Essa divisão pode ser observada nos exemplos abaixo, com Amado Batista[8] representando a música trivial, Vinicius de Moraes[9] representando a erudita e Lulu Santos[10] a semierudita:
Meu Ex-Amor
Eu Não existo sem você
Certas Coisas
Amado Batista

Vinicius de Moraes
Lulu Santos
Eu tive um amor
Amor tão bonito
Daqueles que matam
Com sabor de saudade

Meu ex-amor
Tem coisas que a gente não esquece
Mas você não merece
Tanta dor

Foi bonito demais
Mas eu estou sozinho
Fui rico de amor
E hoje estou tão só
Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor, não tenha medo de sofrer
Pois todos os caminhos me encaminham prá você
Assim como o oceano só é belo com o luar
Assim como a canção só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem só acontece se chover
Assim como o poeta só é grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor não é viver
Não há você sem mim, eu não existo sem você
Não existiria som se não houvesse o silêncio
Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite, não e sim

Cada voz que canta o amor não diz tudo o que quer dizer
Tudo que cala fala mais alto ao coração
Silenciosamente
Eu te falo com paixão

Eu te amo calado
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncio e de luz
Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer

A vida é mesmo assim
Dia e noite, não e sim

Eu te amo calado
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncio e de luz
Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer
(E digo)

O romantismo sentimentalista é geralmente exagerado e vinculado com lamentação, dor, morte, loucura, sofrimento, etc. Esses elementos podem aparecer nos demais casos, mas sem os exageros e sem ser um processo repetitivo. Outra característica do romantismo sentimentalista é a quase ausência do resto do mundo diante do sofrimento ou sentimento do personagem musical. No romantismo ilustrado, o que ocorre é que o amor é apresentado mais poeticamente e de forma menos exagerada. O romantismo significativo é o mais rico em significado e menos carregado no exagero ou na leveza. A tendência, nesse caso, é ser mais realista (e na letra acima as contradições se manifestam) sem perder o caráter poético e metafórico. Outra diferença reside no grau de complexidade das letras, opondo uma extrema simplicidade e baixa figuratividade na música trivial em comparação com a versão romântica ilustrada e também com a significativa. Para além da letra, há a diferença na melodia e totalidade da música (interpretação, por exemplo), mas nosso foco aqui é apenas a letra e sua mensagem.
Essas formas de romantismo expressam distintas perspectivas de classe. O romantismo sentimentalista expressa o binômio venal-superficial (intelectual venal/grande público), que reproduz uma fórmula que vincula cotidianidade das classes desprivilegiadas e simplificação (geralmente espontânea) do compositor[11], nesse caso, um artista venal, gerando superficialidade. O romantismo ilustrado expressa o binômio culto-formal (intelectuais hegemônicos/público intelectualizado), que reproduz a complexidade musical com a formalidade burguesa, vinculando o recato burguês e a musicalidade formal, ambos do universo deste tipo de artista, o hegemônico. O romantismo significativo expressa o binômio social-substancial (intelectuais engajados/público politizado)[12], que reproduz o compromisso social, em graus variáveis, com o conteúdo voltado para o realismo, a crítica, o humor, a ironia, a utopia. O romantismo significativo na música semierudita pode pender mais para o erudito e aumentar o formalismo ou pender mais para o sentimentalismo e aumentar mais a simplificação e superficialidade. Voltaremos a discutir as perspectivas de classe quando relacionarmos domínios temáticos e abordagens dos mesmos.
O domínio temático da sexualidade é muito presente nas composições musicais populares. No caso da música nacional-popular isso não é diferente. O domínio temático da sexualidade é aquele que trata não do amor romântico ou sexual, ou seja, no plano sentimental, e sim no plano exclusivamente sexual. Assume na música trivial um caráter apelativo; na erudita um caráter discreto e na semierudita um caráter múltiplo, indo do realismo, passando por algumas manifestações apelativas, até chegar a formas mais elaboradas e próximas da erudita. Abaixo exemplos das três formas que o domínio da sexualidade aparece na música nacional-popular, a forma trivial como Valesca Popozuda[13], a forma erudita com Gilberto Gil[14] e a forma semierudita com Kid Abelha[15].

Hoje Não Vou Dar Eu Vou Distribuir
Índigo Blue

Pintura Íntima
Valesca Popozuda

Gilberto Gil
Leoni e Paula Toller
(Kid Abelha)
Hoje, hoje eu não vou dar, eu vou distribuir
(Pode mandar o próximo)
Hoje, hoje eu não vou dar
(Pode mandar o próximo)
Hoje, hoje eu não vou dar

Você quer meu corpinho?
Não precisa insistir
Você quer meu beijinho?
Não precisa insistir
Você quer colinho?
Não precisa insistir

Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir
Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir
Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir

(Eu sou a Bruna e faço tudo o que você quiser)
(Pode mandar o próximo)

Você quer meu corpinho?
Não precisa insistir
Você quer meu beijinho?
Não precisa insistir
Você quer colinho?
Não precisa insistir

Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir
Hoje, hoje eu não vou dar
Hoje, hoje eu não vou dar
Hoje, hoje eu não vou dar
Eu vou distribuir

(Pode mandar o próximo)
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão

Sob o blusão, sob a blusa
Nas encostas lisas do monte do peito
Dedos alegres e afoitos
Se apressam em busca do pico do peito
De onde os efeitos gozosos
Das ondas de prazer se propagarão
Por toda essa terra amiga
Desde a serra da barriga
Às grutas do coração

Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão

Sob o blusão e a camisa
Os músculos másculos dizem respeito
A quem por direito carrega
Essa Terra nos ombros com todo o respeito
E a deposita a cada dia
Num leito de nuvens suspenso no céu
Tornando-se seu abrigo
Seu guardião, seu amigo
Seu amante fiel
Vem amor que a hora é essa
Vê se entende a minha pressa
Não me diz que eu tô errado
Eu tô seco, eu tô molhado

Deixa as contas
que no fim das contas
O que interessa pra nós
É fazer amor de madrugada
Amor com jeito de virada

Larga logo desse espelho
Não reparou que eu tô até vermelho
Tá ficando tarde no meu edredon
Logo o sono bate

Deixa as contas
que no fim das contas
O que interessa pra nós
É fazer amor de madrugada
Amor com jeito de virada

Aqui se reproduz as diferenças comuns entre as três divisões da música nacional-popular. Por um lado, temos a manifestação trivial, com conteúdo vulgar, a erudita com conteúdo mais ameno, sob forma metafórica, bem como no caso da semierudita. O nível de complexidade das músicas (na totalidade) é sempre a mesma, indo do mais simples para o mais complexo. Assim, é possível perceber a relação entre simplicidade e mensagem direta. Quanto mais simples a letra da música, mais direta é, se aproximando da propaganda, da política, da conversa cotidiana. Por isso seu menor grau de artisticidade, no caso, de musicalidade[16]. Esse é um elemento que revela sua qualidade inferior. A simplicidade se revela também no desdobramento do tema, que pode ser sucinto, repetitivo, sem maior relação ou desenvolvimento, enquanto que nos casos de maior complexidade, mais elementos estão presentes. A complexidade da letra aponta para um uso mais constante e rico das metáforas, ironias, entre outros elementos, e também por um maior desdobramento do tema. Nos exemplos acima citados, a música Pintura Íntima aponta para um título mais complexo e menos direto, mas a letra é muito curta e repetitiva, apesar de ter elementos metafóricos. A análise aqui se limita à letra da música e não sua totalidade, que apontaria para a necessidade de analisar também a melodia, interpretação, etc., e, nesse caso, a diferenciação se torna mais ampla entre as três músicas.
Um outro domínio temático muito presente é a natureza. Desde a música folclórica, o tema da natureza sempre foi um dos mais constantes e continua sendo um dos mais cantados na música popular. Na música nacional-popular, ele reaparece com presença mais constante em alguns gêneros e subgêneros, bem como em certos momentos históricos. A música sertaneja, o rock rural, a música nordestina e nortista, tendem a colocar o tema da natureza mais constantemente. Abaixo um exemplo de música sertaneja[17], rock rural[18] e uma exceção: um rock (não-rural) abordando a natureza[19].

Colheita de Milho
Sobradinho

A Natureza
Zezé di Camargo e Luciano

Sá e Guarabyra
Casa das Máquinas
Até hoje ainda me lembro
Era manhã de setembro
O sol com intenso brilho
Eu na frente abrindo as covas
Chiquinha, menina nova
Vinha atrás plantando o milho

O sol dava um bronzeado
No seu corpinho rosado
Lhe dando uma cor morena
Cada grão que ela plantava
Uma esperança brotava
Como brota uma açucena

A natureza não erra
E os grãos rachando a terra
E o broto nasceu robusto
Em cada braça do eito
Coração roçava o peito
Como o vento no arbusto

O milho cresceu depressa
Parecia uma promessa
Na minha boca granando
E no tempo de colheita
Chiquinha, menina feita
Era espiga se empalhando

Numa tarde de pamonha
Eu sem jeito, com vergonha
Já pressentia o perigo
Fui buscar no milharal
Mais milho para o curau
E Chiquinha foi comigo

Quebrando milho na chuva
Eu tropeçava nas curvas
Do seu corpinho molhado
Debaixo do pé de milho
Como espigas no atilho
Ficamos os dois atados

Passou o ano e desta feita
Vamos ter duas colheitas
O tempo foi bom pro milho
Enquanto crescem as espigas
Chiquinha cresce a barriga
Pra colhermos nosso filho
O homem chega, já desfaz a natureza
Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar

O sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o gaiola vai subir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai-se embora com medo de se afogar.

Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Pilão Arcado, Sobradinho
Adeus, Adeus ...

A natureza
A nossa terra
A natureza
A nossa terra

Que a chuva molhou
Que o sol purificou
Transa que Deus criou
Nasci

A natureza
A nossa terra

Que a chuva molhou
Que o sol purificou
Transa que Deus criou
Nasci

Uuuh

A natureza
A nossa terra

Que a chuva molhou
Que o sol purificou
Que o homem destruiu
Morri

Uh

As três músicas acima tematizam a natureza e podemos notar as diferenças. No caso da música sertaneja, é quando tematiza a natureza que se produz as letras mais longas e desenvolvidas. O rock rural de Sá e Guarabyra já trata da natureza numa perspectiva mais crítica, mostrando a destruição do sertão, enquanto que o rock da Casa das Máquinas é a letra mais curta. É possível perceber que o domínio temático da natureza ganha maior desdobramento na música sertaneja acima apresentada, mas fica num nível descritivo, colocando em evidência a vida cotidiana. O sentimento do “homem do campo” em relação à vida rural aparece e relacionada com a vida de um casal. A música de Sá e Guarabyra, por sua vez, é mais curta, mas oferece uma concepção mais totalizante e crítica, ao colocar a relação entre ser humano e meio ambiente, mostrando uma crítica da destruição ambiental e remodelação do ambiente, bem como os sentimentos derivados dessa situação. A música de Casa das Máquinas é a mais curta e simples. Contudo, apresenta maior criticidade, pois quando termina afirmando que “o homem destruiu” e “morri”, coloca o personagem musical, a própria natureza, como vítima da destruição efetivada pelos seres humanos. Apesar de ser uma crítica limitada, não só pelo pouco desenvolvimento, mas por, devido a isso dar a entender que é uma relação abstrata entre ser humano e natureza, ao invés de relações sociais complexas que geram tal processo, incluindo a divisão social e o fato de que o processo destrutivo é produto do modo de produção capitalista, com tudo que é derivado disso.
O domínio temático da nacionalidade (ou da “brasilidade”, no caso brasileiro) é outro bastante explorado e conta com manifestações de nacionalismo. A era Vargas marcou uma expansão enorme do número de músicas que tematizam o Brasil e nacionalidade brasileira, desde Aquarela do Brasil, de Ari Barroso. Vejamos três exemplos:

Eu Te Amo Meu Brasil
Notícias do Brasil

País Tropical
Os Incríveis

Fernando Brant e Milton Nascimento
Jorge Bem Jor
Escola...
Marche...
As praias do Brasil ensolaradas
Lá lá lá lá...

O chão onde país se elevou
A mão de Deus abençoou
Mulher que nasce aqui
Tem muito mais amor

O Céu do meu Brasil tem mais estrelas
O sol do meu país, mais esplendor
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar amor

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Ninguém segura a juventude do Brasil

As tardes do Brasil são mais douradas
Mulatas brotam cheias de calor
A mão de Deus abençoou
Eu vou ficar aqui, porque existe amor

No carnaval, os gringos querem vê-las
Num colossal desfile multicor
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar amor

Adoro meu Brasil de madrugada, lá, lá, lá, lá.
Nas horas que eu estou com meu amor,lá,lá,lá,lá.
A mão de Deus abençoou.
A minha amada vai comigo aonde eu for.

As noites do Brasil tem mais beleza, lá, lá, lá, lá.
A hora chora de tristeza e dor, lá, lá, lá, lá.
Porque a natureza sopra e ela vai-se embora enquanto eu planto amor.

Eu te amo meu Brasil, eu te amo.
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
Eu te amo meu Brasil, eu te amo.

Ninguém segura a juventude do Brasil.
Uma notícia está chegando lá do Maranhão.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Veio no vento que soprava lá no litoral
de Fortaleza, de Recife e de Natal.
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
e lá do norte foi descendo pro Brasil Central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul!

Aqui vive um povo que merece mais respeito!
Sabe, belo é o povo como é belo todo amor.
Aqui vive um povo que é mar e que é rio,
E seu destino é um dia se juntar.
O canto mais belo será sempre mais sincero.
Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar.
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade,
ser mais sábio que quem o quer governar!

A novidade é que o Brasil não é só litoral!
É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.
Tem gente boa espalhada por esse Brasil,
que vai fazer desse lugar um bom país!
Uma notícia está chegando lá do interior.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil,
não vai fazer desse lugar um bom país!


Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza, mas que beleza
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)

Tenho um fusca e um violão
Sou Flamengo
Tenho uma nêga
Chamada Tereza

Sambaby
Sambaby

Sou um menino de mentalidade mediana
Pois é, mas assim mesmo sou feliz da vida
Pois eu não devo nada a ninguém
Pois é, pois eu sou feliz
Muito feliz comigo mesmo

Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza, mas que beleza
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)

Tenho um fusca e um violão
Sou Flamengo
Tenho uma nêga
Chamada Tereza

Sambaby
Sambaby

Eu posso não ser um band leader
Pois é, mas assim mesmo lá em casa
Todos meus amigos, meus camaradinhas me respeitam
Pois é, essa é a razão da simpatia
Do poder, do algo mais e da alegria

Sou Flamê
Tê uma nê
Chamá Terê
Sou Flamê
Tê uma nê
Chamá Terê

Do meu Brasil

Sou Flamengo
E tenho uma nêga
Chamada Tereza
Sou Flamengo
E tenho uma nêga
Chamada Tereza

As letras acima mostram a mesma temática, sob formas distintas. O ufanismo presente na letra da música trivial de Os Incríveis, produzida no período da ditadura militar, é visível, pois no Brasil tudo é “mais”[20]. A música erudita de Milton Nascimento e Fernando Brant já possui uma criticidade e um foco maior no “povo” do que nas belezas naturais[21]. Já a música semierudita de Jorge Bem Jor é mais próxima do nacionalismo, sendo da mesma época que a música de Os Incríveis[22]. A simplicidade dessas duas músicas apenas acompanha o conteúdo menos crítico, demonstrando pouco desdobramento e formação política mais restrita. A figuratividade está menos presente em ambas, o que mostra, novamente, sua maior simplicidade.
Outro tema que aparece frequentemente na música nacional-popular brasileira é a política institucional. Este também é o caso da vida cotidiana (que incluiria outros temas, como trabalho, lazer) e autorreferência. Esses temas são muito comuns na história da música brasileira. A política institucional começa a aparecer mais efetivamente a partir de Getúlio Vargas e sua emergência política vinculada com samba e com o aparato estatal usando a música para gerar a ideia de nacionalismo. Chico Buarque, por exemplo, gravou várias músicas sobre política na época da ditadura militar, bem como diversos outros cantores e compositores. A vida cotidiana, desde a do “malandro” até a do trabalhador, bem como outros elementos, é um dos elementos mais trabalhados e desenvolvidos na música brasileira. O trabalho, por exemplo, sempre esteve presente na MPB, especialmente após o “refinamento” do samba e sua apropriação estatal. Zé Geraldo, Djalma Dias, Raimundo Fagner, entre diversos outros, tematizaram a questão do trabalho numa perspectiva diferente da hegemônica nessa época. O domínio temático da autorreferência é aquele que tematiza a própria subesfera musical ou seus gêneros, cantores, compositores, etc. Isso é mais comum no caso do samba e do rock, embora também na MPB erudita, especialmente nas músicas de Caetano Veloso, com constantes referências a outros cantores e compositores, mas em diversos outros casos (embora mais como subtemas ou temas derivados ou correlatos). A seguir um exemplo de cada um desses domínios temáticos:

Capitão de Indústria
Cálice

Aumenta que isso aí é rock and roll
Djalma Dias

Chico Buarque e Gilberto Gil
Celso Blues Boy
Eu
Às vezes fico a pensar
Em outra vida ou lugar
Estou cansado demais

Eu
Às vezes penso em fugir
E quero até desistir
Deixando tudo pra trás

É
É que eu me encontro perdido
Nas coisas que eu criei
E eu não sei

Eu
Não sei da vida, da estrada, do amor e das coisas
Livres, coloridas
Nada poluídas

Qual
Acordo pra trabalhar
Eu durmo pra trabalhar
Eu corro pra trabalhar

Mal
Não tenho tempo de ter
Um tempo livre de ter
Ou nada ter que fazer

Eu
Não vejo além da fumaça que passa
E polui o ar
Eu nada sei

Eu
Só sei que tenho esse nome honroso, pomposo
Capitão de indústria
Capitão de indústria

Qual
Acordo pra trabalhar
Eu durmo pra trabalhar
Eu corro pra trabalhar

Mal
Não tenho tempo de ter
Um tempo livre de ter
Ou nada ter que fazer

Eu
Não vejo além da fumaça que passa
E polui o ar
Eu nada sei

Eu
Só sei que tenho esse nome honroso, pomposo
Capitão de indústria
Capitão de indústria
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Estava deitado dormindo acordado
Sem ter nada o que fazer
Liguei o rádio no meio da noite
O ritmo do som era pesado
Subi o volume e o vizinho gritou
Aumenta que isso aí é Rock and Roll
Aumenta que isso aí é Rock and Roll

Rock and Roll, Rock and Roll, Rock and Roll
Rock and Roll, Rock and Roll, Rock and Roll

Era como um trem sacudindo a cabeça
Parado é que não dava pra ficar
O guarda noturno as meninas da esquina
Todo mundo que escutou
Gritaram mais alto ninguém segurou
Aumenta que isso aí é Rock and Roll
Aumenta que isso aí é Rock and Roll

Rock and Roll, Rock and Roll, Rock and Roll
Rock and Roll, Rock and Roll, Rock and Roll


As músicas acima apontam para três domínios temáticos, o trabalho, a política e a autorreferência. O trabalho aparece na música de Djalma Dias, narrando a vida de trabalho de um operário e sua situação e sentimentos. Na música gravada por Chico Buarque, composta em coautoria com Gilberto Gil, o tema é a política, mais exatamente a ditadura militar, com sua censura, sangue, etc. Já a letra da música de Celso Blues Boy é autorrefencial, sobre o rock e suas características, vistas positivamente. Para cada um desses domínios temáticos, diversas outras manifestações musicais poderiam ser citadas.
Outros domínios temáticos poderiam ser acrescentados, mas estes estão entre os principais. A complexidade das músicas (letra e melodia, bem como geralmente os demais elementos componentes da totalidade que forma a música) é variável. No caso, vamos destacar apenas as letras das músicas. A MPB trivial é a mais simples, passando pela MPB semierudita até chegar a sua forma erudita. No entanto, isso nem sempre ocorre. Existem algumas músicas triviais que possuem letras mais elaboradas do que o normal, bem como letras de MPB eruditas mais simples. Da mesma forma, a fronteira entre a semierudita e as duas outras nem sempre é clara, pois depende do conjunto de compositores, cantores, etc. e algumas que estão mais próximas do trivial e outras mais próximas da erudita.
Além da singularidade de cada cantor/compositor, também há um outro elemento que serve para fugir dessa posição hegemônica que vai do simples ao complexo, que é o próprio domínio temático. A música trivial consegue ser mais profunda (em comparação com seus outros domínios temáticos) quando o tema é a natureza, na qual a qualidade da composição e sua complexidade é melhor do que no caso de outras temáticas. A razão disso se encontra em algumas determinações, como a relação com o meio ambiente mais forte dos cantores e compositores triviais (especialmente os da música sertaneja), a tradição da música folclórica que serve de inspiração, o próprio tema que dificulta vulgaridades, entre outras. A interpretação e a melodia, por sua vez, não ultrapassam seus limites próprios, mas no plano do conteúdo há uma sensível diferença em relação ao que é mais comum. A complexidade da música erudita ou do semierudito pode diminuir dependendo do tema em questão. O tema da sexualidade também acaba gerando dificuldades para a música erudita e semierudita, que, muitas vezes, especialmente no último caso, não consegue evitar a vulgarização ou então os lugares comuns, como a tematização da repressão sexual sob forma simplista e ingênua, como fizeram certas bandas de rock (Ultraje a Rigor e outras). Porém, isso depende também dos compositores e os exemplos acima citados mostram a possibilidade de sair da simplificação e vulgarização. Isso significa que para analisar os casos concretos é necessário perceber suas múltiplas determinações.

Domínio Temático e Abordagem
A discussão sobre domínio temático ficaria incompleta se não tratássemos também da questão da abordagem. A abordagem no âmbito do domínio temático musical significa a perspectiva de quem trabalha o tema. A perspectiva individual do compositor é sempre expressão de uma perspectiva mais ampla, que é a de classe social, que constitui um conjunto de concepções, sentimentos, valores, entre outros elementos. O tema da natureza pode ser abordado sob várias formas e perspectivas. Os três exemplos que apresentamos anteriormente apontam para isso.
É possível verificar, no âmbito da música nacional-popular, quatro abordagens principais dos temas musicais. Elas seriam a apologética, a intuitiva, a descritiva e a crítica e cada uma tendo formas distintas de efetivação. A abordagem apologética é aquela que realiza a apologia do tema em questão. Nos exemplos anteriores, é o que se pode ver na música de Os Incríveis sobre o Brasil. Também é visível em Obrigado ao Homem do Campo, de Dom e Ravel[23], entre inúmeros outros exemplos em vários temas musicais. A abordagem intuitiva é aquela que revela apenas impressões sem maiores reflexões, mostrando mais uma relação emocional com o tema musical. A abordagem descritiva é a mais pobre, pois apenas apresenta o tema, descrevendo sua existência e características, sem se posicionar claramente, diretamente, sobre ele. A abordagem crítica é a mais rica e que tem mais formas distintas de manifestação e por isso abordaremos mais profundamente adiante.
É preciso entender que o domínio temático é composto pelo tema principal e por subtemas correlatos ou derivados. A abordagem em relação ao tema principal pode não ser a mesma em relação aos subtemas. O dinheiro como domínio temático nos ajuda a explicar esses aspectos. Abaixo apresentamos quatro abordagens (apologética, intuitiva, descritiva, crítica) sobre o dinheiro:
Mim Quer Tocar
Com Dinheiro, Tudo Bem

Ultraje a Rigor

Bezerra da Silva
Dinhero! Dinhero! Dinhero! Dinhero!

Mim quer tocar
Mim gosta ganhar dinheiro (dinhero!)
Me want to play
Me love to get the money (the money!)

Mim é brasileiro
Mim gosta banana (banana!)
Mas mim também quer votar
Mim também quer ser bacana (bacana!)

Mim quer tocar
Mim gosta ganhar dinhero (dinhero!)
Me want to play
Me love to get the money (the money!)

Mim gosta tanto tocar
Mim é batuquero (conhero!)
Mas mim precisa ganhar
Mim gosta ganhar dinhero (dinhero!)

Mim quer tocar
Mim gosta ganhar dinhero (dinhero!)
Me want to play
Me love to get the money (the money!)

The money! money!
Dinhero! dinhero!
Money! money!
Dinhero! dinhero!
Money! money!
Dinhero! dinhero!
Hei nheero! inheerooo!...

Dinhero! dinhero!
Dinhero! dinhero!


Olha aí
Com dinheiro tudo bem sem dinheiro tudo mal
O dinheiro nesta vida é peça fundamental

Quando eu estou com dinheiro
Sou o melhor homem do mundo
Mas se eu não tenho trocado
Não presto sou vagabundo

E com dinheiro tudo bem sem dinheiro tudo mal
O dinheiro nesta vida é peça fundamental

Com dinheiro eu sou um grande sujeito
Ninguém vê nenhum defeito, eu sou gente sim senhor
Sem dinheiro tô distante, não sou nada
Sou figura apagada, objeto sem valor

Mas com dinheiro tudo bem sem dinheiro tudo mal
O dinheiro nesta vida é peça fundamental

Com dinheiro sou um cara esclarecido
Sempre sou bem recebido em todo lugar que vou
Sem dinheiro sou humano e farrapo
Só conheço um maltrato, resta o que o mundo deixou

Mas com dinheiro tudo bem sem dinheiro tudo mal
O dinheiro nesta vida é peça fundamental

Com dinheiro sou bonito sou gostoso
Sou jovem sou carinhoso todas querem me ganhar
Sem dinheiro sou um velho sem vergonha
Só quero garota nova não conheço meu lugar

Mas com dinheiro tudo bem sem dinheiro tudo mal
O dinheiro nesta vida é peça fundamental

Pecado Capital
Maldito Dinheiro
Paulinho da Viola

Eduardo Dusek
Dinheiro na mão é vendaval
É vendaval!
Na vida de um sonhador
De um sonhador!
Quanta gente aí se engana
E cai da cama
Com toda a ilusão que sonhou
E a grandeza se desfaz
Quando a solidão é mais
Alguém já falou...

Mas é preciso viver
E viver
Não é brincadeira não
Quando o jeito é se virar
Cada um trata de si
Irmão desconhece irmão
E aí!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!

Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
E solidão! E solidão!
E solidão! E solidão!
E solidão! E solidão!
“Eu era lixeiro, você empregada
A gente se amava e se encontrava
Na mesma calçada”.
(Bis).

Ouvindo pelo rádio,
uma brega de Amado Batista
Eu me lembrei, já meio atrasado,
da hora do dentista

Saí correndo de casa,
quase caí na esquina ao ver
Dentro de um carro parado,
                          se prostituía...
A minha esforçada professora,
                          de biologia
Pra aumentar seu salário,
                          ela se vendia

Maldita segunda-feira,
em que eu tive que aprender
Maldito dinheiro!
Dele todos dependem

Maldita segunda-feira,
em que eu tive que aprender
Que nem todos no mundo são
como gostariam de ser
Que nem todos no mundo são
como gostariam de ser

As músicas apresentadas acima mostram distintas abordagens do dinheiro. A música do Ultraje a Rigor é uma abordagem apologética, pois realiza o elogio do dinheiro e assume o dinheiro como necessidade e valor[24]. As entrevistas do vocalista da banda não contradizem essa interpretação e por isso fica descartada a hipótese de que poderia ser uma ironia. A música de Bezerra da Silva, por sua vez, é descritiva[25], mostrando a valoração e desvaloração do indivíduo a partir do fato de possuir ou não dinheiro. Sem dúvida, aqui se pode pensar que há uma crítica, mas isso depende dos valores do compositor e do ouvinte, bem como o dinheiro, em si, não é questionado e sim as pessoas que valoram quem o possui e desvaloram quem não o possui. A música de Paulinho da Viola, por sua vez, apresenta uma abordagem intuitiva[26]. O dinheiro é apresentado como algo que muda a vida, gera “vendaval” e “solidão”, mas não há nenhuma explicação ou desdobramento racional do significado do dinheiro ou do motivo pelo qual produz essas consequências. A música de Eduardo Dusek desenvolve uma abordagem crítica através dos casos concretos que são narrados (a prostituição da professora para aumentar seu “salário/renda”) e afirmações como “maldito dinheiro”, “dele todos dependem” e a contraposição entre ser (“nem todos no mundo são o que gostariam de ser”) e o ter (todos precisam possuir, ter, dinheiro) que explicitam a negatividade do dinheiro[27].
Assim, o domínio temático do dinheiro foi apresentado sob quatro abordagens distintas. Vários outros exemplos tanto de abordagens apologéticas quanto críticas, poderiam ser citados, desde o funk ostentação até o rock mais envolvido com a crítica social. Essas duas abordagens são as que expressam mais explicitamente valores e concepções, sendo de análise relativamente mais fácil. A abordagem descritiva de Bezerra da Silva mostra como o indivíduo está dependente do dinheiro, bem como sua aparência social, sem, no entanto, efetivar nenhuma crítica. Da mesma forma, a abordagem intuitiva de Paulinho da Viola destaca o impacto sentimental (solidão) e social (vendaval) na vida do indivíduo quando ele possui dinheiro. Em nenhum dos dois casos há um posicionamento claro sobre o dinheiro, apenas mostram, sem se posicionar claramente e diretamente, o aspecto negativo do dinheiro. Na abordagem de Bezerra da Silva, o dinheiro é “peça fundamental” e traz valoração do indivíduo possuidor do mesmo, enquanto que na abordagem de Paulinho da Viola, ele é gerador de solidão. Num caso, a descrição aponta para uma impressão de que o dinheiro é fundamental por causa da sociedade e a intuição que é gerador de problemas.
Das quatro abordagens de um domínio temático, a abordagem crítica é a mais complexa. Ela pode ser realizada sob várias formas. A crítica social, enquanto forma de manifestação da crítica no âmbito da produção artística, pode ser pessimista, moralista, fragmentária ou radical. A crítica de Eduardo Dusek na letra acima é pessimista, pois não aponta para nenhuma alternativa, mostrando resignação. As duas músicas a seguir exemplificam duas outras formas de abordagem crítica do dinheiro:
Corrida do Ouro
Amor por Dinheiro

Coral Som Livre

Titãs
Muito dinheiro fora de hora
Sempre modifica as pessoas
Muito dinheiro
Quando chega ninguém espera
Modifica todas as coisas

Muito dinheiro
Quando pinta na vida
Modifica tudo na vida

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Muito dinheiro fora de hora
Dá um revertério na cuca

Muito dinheiro
Prá quem não sabe
O que é dinheiro
Põe toda a moçada maluca

Muito dinheiro no bolso
E no banco
É pior do que pouco dinheiro

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Quem corre atrás do tesouro
Da mina de ouro
Tem conta secreta
No banco suíço
Se esquece que a vida
Existe só prá ser vivida

Quem pensa que a grana
Que pinta de graça
Resolve os problemas
Do amor e da vida
Perdeu a sua chance
De ter a tal felicidade
De verdade

Muito dinheiro fora de hora
Sempre modifica as pessoas
Muito dinheiro

Quando chega ninguém espera
Modifica todas as coisas
Muito dinheiro

Quando pinta na vida
Modifica tudo na vida

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Essas pessoas
Correm atrás do dinheiro
Todo mundo correndo
Sempre atrás do dinheiro

Essas pessoas vivem todas correndo
Atrás de muito dinheiro
Acima dos homens, a lei
E acima da lei dos homens
A lei de Deus

Acima dos homens, o céu
E acima do céu dos homens
O nome de Deus

E acima da lei de Deus
E acima da lei de Deus
O dinheiro!

Que mata, salva, compra
amor verdadeiro
Que suja, limpa, compra
amor por inteiro
Amor verdadeiro
Amor verdadeiro
Dinheiro!
Amor por dinheiro!
Amor por dinheiro!


Você não vale nada
Você não vale nada
Você não vale nada



A música Corrida do Ouro traz uma abordagem crítica sobre o dinheiro, mostrando a competição, valoração excessiva do dinheiro, etc.[28] No entanto, é uma crítica moralista, pois constata a manifestação do fenômeno (valoração do dinheiro, competição, etc). e contesta o dinheiro como valor fundamental, mas isso é apresentado apenas no nível valorativo (pois quem valora o dinheiro “se esquece que a vida/existe só prá ser vivida” e perde a chance “de ter a tal felicidade/de verdade”). A crítica moralista é fragmentária[29] e assim a crítica ao dinheiro nessa música não ultrapassa esse nível. A música Amor por Dinheiro também questiona a valoração do dinheiro e que ele “mata”, “suja”, mas também “salva”, “limpa” e compra “amor verdadeiro”, embora o “verdadeiro” seja ironia, pois sua verdade é o “amor por dinheiro”[30]. A crítica é fragmentária por questionar, basicamente, o amor pelo dinheiro, sua excessiva valoração, e não o processo que gera a valoração excessiva do dinheiro.
Uma crítica radical não foi encontrada no caso do domínio temático do dinheiro. A crítica social radical é mais fácil em formas artísticas que possuem conteúdos mais extensos que permitem esse processo. No entanto, é possível encontrar letras de música em outros domínios temáticos que realizam uma crítica social radical e totalizante, como as músicas de Edmilson Marques[31].
Em síntese, a análise dos domínios temáticos pressupõe compreender não apenas o temário de uma música ou conjunto de músicas, mas também a abordagem pela qual o tema é tratado. Essa é uma questão fundamental no processo analítico dos domínios temáticos musicais. No entanto, esses elementos apresentados até aqui não esgotam a questão e por isso é necessário observar outros elementos relacionados aos domínios temáticos da música popular.
Domínios Temáticos Musicais: Elementos, Estrutura e Totalidade
A análise dos domínios temáticos nas letras da música popular pode ser sobre a relação gênero/domínio temático; sobre a evolução histórica dos temas musicais e sua relação com as mudanças históricas (ou um momento histórico específico); determinados domínios temáticos selecionados, ou mesmo apenas uma letra de música. Em todos estes processos é importante entender o aspecto formal das letras e seu conteúdo. Um tema musical exposta numa letra de música pode ser dividido em elementos temáticos: tema principal, subtemas, temas correlatos, temas derivados, temas complementares. Sem dúvida, as letras muito curtas e muito simples poderão ser monotemáticas, ou seja, ter apenas um tema.
A estrutura da letra é expressa no tema principal, que é o elemento gerador dos demais temas e subtemas. O tema principal pode se desdobrar em outros temas, sob forma mais ou menos complexa. A análise de um domínio temático numa letra de música popular deve levar isso em consideração tanto os temas e subtemas como os demais temas em seu significado próprio. Um subtema pode realizar uma submensagem complementar. Esse é o caso da música abaixo de Raul Seixas, Eu Também Vou Reclamar, de 1976[32]:
Eu Também Vou Reclamar
Raul Seixas
Mas é que se agora
Pra fazer sucesso
Pra vender disco
De protesto
Todo mundo tem
Que reclamar (01)

Eu vou tirar
Meu pé da estrada
E vou entrar também
Nessa jogada
E vamos ver agora
Quem é que vai güentar (02)

Porque eu fui o primeiro
E já passou tanto janeiro
Mas se todos gostam
Eu vou voltar (03)

Tô trancado aqui no quarto
De pijama porque tem
Visita estranha na sala
Aí eu pego e passo
A vista no jornal

Um piloto rouba um “mig”
Gelo em Marte, diz a Viking
Mas no entanto
Não há galinha em meu quintal
Compro móveis estofados
Me aposento com saúde
Pela assistência social

Dois problemas se misturam
A verdade do Universo
A prestação que vai vencer
Entro com a garrafa
De bebida enrustida
Porque minha mulher
Não pode ver

Ligo o rádio
E ouço um chato
Que me grita nos ouvidos
Pare o mundo
Que eu quero descer (07)

Olhos os livros
Na minha estante
Que nada dizem
De importante
Servem só prá quem
Não sabe ler

E a empregada
Me bate à porta
Me explicando
Que tá toda torta
E já que não sabe
O que vai dá prá mim comer

Falam em nuvens passageiras
Mandam ver qualquer besteira
E eu não tenho nada
Prá escolher (10)

Apesar dessa voz chata
E renitente
Eu não tô aqui
Prá me queixar
E nem sou apenas o cantor (11)

Que eu já passei
Por Elvis Presley
Imitei Mr. Bob Dylan, you know...
Eu já cansei de ver
O Sol se pôr (12)

Agora eu sou apenas
Um latino-americano
Que não tem cheiro
Nem sabor (13)

E as perguntas continuam
Sempre as mesmas
Quem eu sou?
Da onde venho?
E aonde vou, dá?

E todo mundo explica tudo
Como a luz acende
Como um avião pode voar
Ao meu lado um dicionário
Cheio de palavras
Que eu sei que nunca vou usar

Mas agora eu também resolvi
Dar uma queixadinha
Porque eu sou um rapaz
Latino-americano
Que também sabe
Se lamentar (16)

E sendo nuvem passageira
Não me leva nem à beira
Disso tudo
Que eu quero chegar
-E fim de papo! (17)






A letra é uma crítica a um conjunto de músicas, especialmente as que apresentam “reclamações”. O tema principal é, portanto, as músicas de protesto que realizam reclamações. O foco principal é a música Apenas Um Rapaz Latino Americano, de Belchior[33]. A crítica aparece mais explicitamente nos versos[34] 11, 13 e 16. “Nem sou apenas um cantor” em contraposição a “sou apenas um cantor”[35]; e quando afirma que o rapaz latino-americano “não tem cheiro nem sabor” e “que também sabe se lamentar”. Há também crítica a outras músicas, como Pare o Mundo que eu Quero Descer, de Silvio Brito[36] e Nuvem Passageira, de Hermes de Aquino[37], como se vê nos versos 07 e 10/17, respectivamente. O primeiro é “um chato que me grita aos ouvidos” e o segundo “manda qualquer besteira” e “não me leva nem à beira”.
A letra coloca a crítica num contexto, que é a totalidade da música. As críticas de Raul Seixas foca a MPB da época, o que no final da década também será feito por Rita Lee (composição dela e Paulo Coelho)[38] e cita até Raul Seixas[39]. As críticas de Raul Seixas, apesar das referências a Hermes de Aquino, são endereçadas especialmente para Belchior e Silvio Brito ou o que se chama “música de protesto”. Raul Seixas é um dos principais representantes da criticidade musical e a sua crítica reside numa comparação entre o seu rock crítico e as novas músicas de protesto. As músicas de protesto da metade dos anos 1970, tal como representadas por Belchior e Silvio Brito, são mais “reclamações” (verso 01: “Mas é que se agora/Pra fazer sucesso/Pra vender disco/De protesto/Todo mundo tem/Que reclamar”), por isso o título, Eu Também Vou Reclamar. E ele compara sua produção, história e formação com os demais (versos 02, 03 e 12). A crítica ao Belchior é justamente por sua música ser mais lamentação do que crítica (verso 16: “Mas agora eu também resolvi/Dar uma queixadinha/Porque eu sou um rapaz/Latino-americano/Que também sabe/Se lamentar”).
No entanto, a análise de um domínio temático não é um trabalho de isolamento. Os domínios temáticos são constituídos social e historicamente e por isso sua adequada compreensão requer o entendimento de suas múltiplas determinações. Nesse processo o contexto histórico, social, cultural e musical é fundamental. Aliás, a análise acima só foi possível pelo motivo do autor dessas linhas conhecer as músicas de Silvio Brito, Belchior e Hermes de Aquino, ou seja, o contexto musical. E ao pesquisar o contexto musical torna-se possível recordar ou descobrir mais relações que são outras determinações da letra da música de Raul Seixas. Silvio Brito não aparece apenas por compor músicas de protesto recheadas de reclamações como a citada por Raul Seixas. Ele mesmo realizou uma crítica ao Raul Seixas em um dos seus maiores sucessos, Tá Todo Mundo Louco[40]:
Tá Todo Mundo Louco
Silvio Brito

Essa música foi feita
Num momento de depressão
Eu tava com papo cheio
Com raiva da vida
Com raiva de tudo
Fiz essa música
Prá encher o papo
De todo mundo...

É uma música sem graça
Sem métrica, sem rima
Sem ritmo
Com muitos erros de português
Agora ninguém tem nada com isso
Porque a música é minha
Eu faço dela o que eu quiser... (02)

Eu fiz tudo prá não fazer
Um plágio mas ela saiu
Muito parecida
Com a música do Raul Seixas... (03)

Oh mas não tem nada não
Porque não foi feita
Prá fazer sucesso
Nem prá ser apresentada
Em um programa de televisão...

Eu até coloquei
Uma frase em inglês
Prá valorizar a música
“I Love You”
É uma dessas músicas chatas
Enjoada e sem graça
Que a gente faz
Prá participar de festival...

Você que tá ouvindo
Essa música
Num tem nada com isso
Deve tá me achando
Um chato, enjoado
Não liga “prisso” não!
Não liga “prisso” não!
Não liga “prisso” não!
É a cabeça irmão...

É a cabeça irmão
É a cabeça irmão
Mas que depressão!
É a cabeça irmão

É a cabeça irmão
Mas que confusão!
É a cabeça irmão
É a cabeça irmão
Desafinação!
É a cabeça irmão
É a cabeça irmão...

Tá Todo Mundo Louco!
Oba!...

Tube ri din din, din din!
Tube ri din din, din din!

Tudo está ficando diferente
Ninguém vê!
Já estou cansado
De ouvir você dizer:
Que eu não sei fumar
Que eu não sei beber
Que eu não sei cantar
Aquilo tudo
Que você adora ouvir
E eu não sirvo prá você
Por que?
Eu não sei cantar inglês
Por que?
Eu não sei cantar inglês
Ran!...

Tá Todo Mundo Louco!
Oba!...

Tube ri din din, din din!
Tube ri din din, din din!

Já não compreendo
A razão do desamor
Nem entendo porque
Ninguém fala mais de amor
Você me traiu
E disse que é normal
Um a um todos irão por certo
Acompanhar a evolução
E quase que eu fiquei prá trás
Por que?
Fui querer ser bom rapaz
Por que?
Fui querer ser bom rapaz
Ran!...



Nessa música, gravada em 1974, dois anos antes de sua outra música criticada por Raul Seixas e da música deste, ele faz referência à música Ouro de Tolo[41], que tem alguns elementos de interpretação semelhante. Ouro de Tolo é uma música mais falada do que cantada, tal como o início da música de Silvio Brito. Silvio Brito diz, no verso 02, que tal música é “sem graça”, “sem métrica, sem rima [o que é correto], sem ritmo” e depois, no verso 03, “Eu fiz tudo prá não fazer/Um plágio mas ela saiu/Muito parecida/Com a música do Raul Seixas...”[42]. A crítica de Raul Seixas, tinha, portanto, duas motivações, que seriam a resposta à crítica recebida e a avaliação da música de protesto em meados dos anos 1970.
Assim, certas letras de músicas são pouco compreensíveis sem uma maior compreensão do contexto da subesfera musical, as disputas no seu interior, bem como contexto social mais amplo no qual isso ocorre[43]. Em certos casos, é necessário entender o contexto cultural, que, nesse período, era marcado por um descontentamento de setores da sociedade com o regime militar. Isso deveria se expressar musicalmente, mas a repressão e a censura não permitia que isso ocorresse explicitamente. É nesse contexto que as letras musicais ficam mais ricas em figuratividade ao usar metáforas e outros elementos para realizar a crítica sem sofrer censura, bem como surge uma solução secundária que é a “reclamação”. O uso da metáfora para permitir a crítica musical é a realizada pelos compositores que visavam (ou tinham como público) os setores mais intelectualizados e as classes privilegiadas. O uso da reclamação como forma de crítica musical é realizada pelos compositores que tinham como alvo o mercado consumidor que estava descontente com a situação do país, não somente a ditadura militar, mas também a crise pecuniária (“econômica”) dos anos 1970. No primeiro caso, Chico Buarque é um dos principais exemplos e no segundo o próprio Silvio Brito, que em sua música Para o Mundo que Eu Quero Descer coloca a questão da crise do petróleo explicitamente.
A reclamação era mais compreensível para a maior parte da população, enquanto que a crítica musical através de metáfora, não compreendida por muitos, aparecia apenas como mais música comum sem mensagem política. O sucesso da “música de reclamação” é evidente com a vendagem de Silvio Brito, que chegou a afirmar em entrevista que vendia muito mais discos do que Raul Seixas e pela própria afirmação deste no início de sua música: “mas é que se agora/Pra fazer sucesso/Pra vender disco/De protesto/Todo mundo tem/Que reclamar”. A competição pela vendagem e o critério usado pelo Silvio Brito para fazer a comparação mostra duas concepções distintas no interior da subesfera musical sobre música e produção musical, bem como duas posturas intelectuais distintas.
Desta forma, a análise dos domínios temáticos na música popular gera a necessidade de análise da totalidade que é a sociedade, bem como da cultura, subesfera musical, além das letras musicais sob forma aprofundada. Sem dúvida, existem diferenças analíticas dependendo do caso concreto, pois a análise de um domínio temático geral aponta para um certo peso maior na questão social e do capital fonográfico e se for de uma letra de música apenas ganha mais peso a biografia e posição do cantor/compositor na subesfera musical. Outra diferença, ainda segundo os dois exemplos acima, é que no primeiro caso o foco analítico é nas letras musicais em sua totalidade e no segundo caso nas unidades (linha e verso) de uma única letra musical, bem como sua relação com a totalidade musical (melodia, interpretação, etc).. Obviamente que este último procedimento pode ser realizado para reforçar a análise no primeiro caso.
Os recursos metodológicos para a análise do domínio temático são os do método dialético[44], que permite analisar a constituição e essência das produções musicais. As categorias da dialética e seu campo analítico é fundamental e está na base do processo analítico que apresentamos aqui. Isso fica explícito na distinção entre classificação e diferenciação e uso de conceitos e categorias como totalidade, domínio temático, determinações, etc. O domínio temático é um dos elementos principais da história da música popular e por isso sua análise metodologicamente fundamentada é essencial para a compreensão mais profunda de suas mensagens.
Considerações Finais
O domínio temático é uma das questões fundamentais presentes na análise da música popular. A sua análise rigorosa, fundada em uma base teórico-metodológica, permite superar as idiopatias e tecnicismos. A análise do domínio temático é o foco na mensagem das letras musicais. Ela permite uma análise rigorosa de cada composição de letra musical, bem como da própria constituição de determinados grandes domínios temáticos e seus vínculos históricos, políticos, sociais, culturais, bem como com gêneros, movimentos artísticos, etc.
A análise dos domínios temáticos recorrentes é uma das necessidades para ampliação do desenvolvimento da consciência sobre a música popular, bem como a análise de letras musicais específicas. O processo analítico aqui realizado visou mostrar alguns elementos básicos para a concretização desse objetivo. Há um vasto campo a ser explorado no plano da música popular, especialmente a brasileira.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec, 1990.

GINSBERG, Morris. Psicologia da Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2a edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.

MARX, Karl Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

PRÉVOST, Claude. Literatura, Política, Ideologia. Lisboa: Moraes, 1976.

VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.

VIANA, Nildo. Cinema e Mensagem. Análise e Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 2a edição, Goiânia: Edições Germinal, 2001.

VIANA, Nildo. O Mistério da MPB. In: SOUZA, Erisvaldo (org).. Música e Sociedade. 2016.

VIANA, Nildo. Tropicalismo: A Ambivalência de um Movimento Artístico. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007.



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG; Doutor em Sociologia (UnB).
[1] Avaliação é o processo de atribuir valor a algo e avaliação idiopática é a forma de avaliação fundada nas  preferências e gostos individuais elaboradas a partir dos sentimentos dos mesmos. A análise vai além da avaliação no sentido de que ao lado do valorativo e sentimental, a abordagem da música ocorre realizando uma autorreflexão consciente (de si) e totalizante (da música), o que é ausente na idiopatia.
[2] Inicialmente, de acordo com a evolução histórica, pelo capital fonográfico e radiofônico, e, posteriormente, também pelo capital televisivo, editorial, etc. O Estado é outra determinação desse processo de remodelamento musical.
[5] Bakhtin, ao tratar do tema no contexto de sua análise linguística, aponta para uma concepção semelhante: “a cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto de atenção do corpo social e que, por causa disso, tomam um valor particular” (BAKHTIN, 1990, p. 44).
[6] No caso da música gospel havia, inicialmente, uma unidade entre gênero musical e domínio temático. Esse vínculo original é desfeito através da dissolução do gênero no domínio temático religioso. O que ocorre, geralmente, é diferente: o gênero amplia os domínios temáticos e o vínculo original é desfeito pela variação temática do gênero e não pela autonomização do domínio temático.
[7] A música nacional-popular é a constituída a partir do momento que a reprodutibilidade tecnológica instituída pelo capital comunicacional (fonográfico, radiofônico, televisivo, etc.) passa a ter alcance nacional. No Brasil, a MPB é a expressão desse processo. Aqui usamos música nacional-popular quando tratamos em todos os casos e MPB quando tratamos do caso brasileiro.
[11] Aqui não deixa de ser importante ressaltar que na análise das letras de música, o compositor da letra ganha mais importância do que o intérprete, ou seja, o cantor, quando não são a mesma pessoa.
[12] Aqui também pode se manifestar, ambiguamente ou temporariamente, os intelectuais ambíguos ou dissidentes, respectivamente e uma parte do público pode ser tanto o grande público quanto o público intelectualizado. O público politizado se distingue não pela classe social, como no caso do grande público, que se refere à maioria da população, composta pelas classes desprivilegiadas, e o público intelectualizado, composto pela burguesia e suas classes auxiliares (burocracia, intelectualidade), e sim pela posição política. É por isso que remete principalmente (no nível da coerência e não na quantidade) aos intelectuais engajados e secundariamente aos intelectuais ambíguos, que fica entre o público politizado e os demais, e os dissidentes, que em sua competição com os hegemônicos pode apelar para tal público temporariamente. Os dissidentes, geralmente, reproduzem sua filiação ao binômio culto-formal. Sobre as diversas posturas intelectuais, cf. Viana ().
[16] A música como forma de arte é uma expressão figurativa da realidade (VIANA, 2007b), pois, fora disso, vira propaganda, panfleto, etc. Assim, um documentário não é um filme, pois o primeiro visa apresentar a realidade e o outro visa figurar. Da mesma forma, os quadrinhos não são histórias em quadrinhos, pois o primeiro visa apresentar a realidade e o segundo figurar. O documentário e os quadrinhos usam uma forma semelhante, mas o conteúdo é radicalmente distinto. Isso também ocorre no âmbito da música. Os jingles eleitorais, por exemplo, não são música, propriamente dita, e sim propaganda política ou comercial. Nesse caso, a distinção entre jingle e música é relevante e a proximidade que muitas vezes ocorre entre jingle e música trivial é reveladora.
[29] A crítica moralista e fragmentária “geralmente andam juntas” (VIANA, 2012). A crítica moralista é fragmentária, pois reduz os fenômenos e problemas sociais a uma questão moral, o que significa abordar apenas parte da realidade, um fragmento dela. Contudo, nem toda crítica fragmentária é moralista, pois pode focar num aspecto da realidade isolado, sem apresentar julgamento moral.
[34] Em poesia se denomina verso a cada linha poética e estrofe um conjunto de versos. No caso de letras musicais, tal como alguns autores estrangeiros utilizam, denominamos a cada de linha como simplesmente linha e um conjunto de linhas como verso.
[35] Que aparece nesse verso de Belchior: “E eu sou apenas um rapaz Latino-Americano/Sem dinheiro no banco/Por favor/Não saque a arma no "saloon"/Eu sou apenas o cantor”. Na letra da música de Belchior, por sua vez, tem crítica à música “Divino Maravilhoso”, gravada por Gal Costa e composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil (https://www.youtube.com/watch?v=medIG-0YQRA).
[39] “Um tal de Raul Seixas/vem de disco voador”.
[42] Silvio Brito depois faria uma homenagem a Raul Seixas após sua morte, Com um Abraço para o Raul (https://www.youtube.com/watch?v=bObyZ6Wfgy4 ). E parece fazer autocrítica: “Por que será que as pessoas só reconhecem seus heróis e profetas só quando eles triunfam ou morrem”.
[43] É isso que permite interpretações opostas e antagônicas de certos fenômenos musicais, como, por exemplo, o tropicalismo (VIANA, 2007a).
[44] O método dialético foi exposto de forma sintética por Marx (1983), retomado por autores como Lukács (1989), Korsch (1977), e contemporaneamente vem sendo recuperado da deformação realizada por sua simplificação, formalização ou transformação em metafísica (VIANA, 2001).
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Publicado originalmente em:
Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016
http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/issue/view/Sociologia%20em%20Rede%2006 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Acompanham este blog: