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terça-feira, 21 de julho de 2015

Educação Física, Competição e Sociabilidade Capitalista


Educação Física, Competição e Sociabilidade Capitalista

Nildo Viana*

Resumo:
O artigo aborda o tema da competição na educação física. A competição é apontada como um produto social e histórico, constituído pelo capitalismo que gera uma sociabilidade e mentalidade competitivas, cujo resultado é a naturalização desse fenômeno social. A educação física tende a reforçar esse processo de naturalização e, assim, reproduzir as suas bases sociais de existência. Esta reflexão provoca a necessidade de repensar as teorias e práticas da educação física, apontando para uma mudança pedagógica, pautada na pedagogia autogestionária.

Palavras-Chave: Competição, Educação Física, Sociabilidade, Mentalidade, Pedagogia Autogestionária.

Resumen:



El artículo aborda la cuestión de la competición en educación física. La competición es vista como un producto social e histórico, constituido por el capitalismo que genera una sociabilidad y mentalidad competitivas, que se traduce en la naturalización de este fenómeno social. La educación física tiende a reforzar este proceso de naturalización, y aportar así sus bases sociales de la existencia. Esta reflexión conduce a la necesidad de revisar las teorías y prácticas de educación física, apuntando a un cambio pedagógico, basado en la pedagogía autogestionaria.


Palabras clave: Competición, Educación Física, Sociabilidad,  Mentalidad, Pedagogía Autogestionaria.


A competição é um elemento estrutural da sociabilidade capitalista e se encontra presente na esfera esportiva, onde muitas vezes é visto como se fosse algo natural. O nosso objetivo aqui é justamente mostrar que a competição não é natural e sim um produto social e histórico e isso vale para as representações cotidianas presentes na educação física.
A questão da competição na educação física possui grande importância, tendo em vista que é um elemento presente e obrigatório da educação formal, bem como se desenvolve também em outras formas de socialização, sem obrigatoriedade ou formalidade. É um fenômeno social que tem importância no processo de reprodução ou transformação das relações sociais e possui um forte vínculo com a cotidianidade e cultura existente em nossa sociedade. A desnaturalização da competição é fundamental para uma reformulação do ensino em educação física, e este trabalho visa contribuir com esse processo.
Assim, ao lado da reflexão crítica e desnaturalização da competição e sua vigência na educação física, abre-se espaço para repensar suas práticas e vínculos sociais, bem como apontar a necessidade de mudanças e novas práticas, que é onde se insere a discussão sobre pedagogia autogestionária. Além de perceber os problemas e realizar reflexão crítica, é necessário propor novas práticas e concepções e a pedagogia autogestionária é uma excelente ferramenta para lançar novas luzes no processo educacional e na prática da educação física em particular.
As raízes sociais da competição:
capitalismo, sociabilidade e mentalidade competitiva
A competição é um fenômeno social e produzido socialmente. Para compreender esse processo é fundamental entender a dinâmica da sociedade capitalista. Marx, ao produzir sua teoria do capitalismo (MARX, 1988), forneceu elementos fundamentais para entendermos o processo de competição social como produto histórico-social. O modo de produção capitalista é constituído a partir de uma relação social específica, um tipo específico de exploração. O capitalismo, que muitos definem equivocadamente como “sistema produtor de mercadorias” (KURZ, 1993), é, na verdade, um modo de produção de mais-valor (“mais-valia”). A produção de mercadorias existiu antes do capitalismo e, sob o mesmo, pode assumir a forma de produção mercantil simples (MARX, 1988). Porém, a produção de mercadorias no capitalismo é produção capitalista de mercadorias, sendo, simultaneamente, produção de mais-valor. Esse modo de produção tem como pressupostos a divisão social do trabalho, mercado, entre outros, que colocam a necessidade da competição. Essa necessidade se dá pela própria dinâmica capitalista em sua totalidade e isso reforça sua reprodução para outras instâncias além do próprio modo de produção.
Para Marx, no entanto, a competição era um problema a ser superado, ao contrário do que pregava a ideologia liberal, que, como mostraremos adiante, faz a apologia da competição. A competição entre as empresas capitalistas, ao invés de regular o mercado, produzia uma “anarquia” na produção. A competição entre as empresas capitalistas se dava em vários aspectos, mas ocorria principalmente no plano do desenvolvimento tecnológico e mercado consumidor. A competição entre os trabalhadores também é prejudicial para eles, principalmente no plano político. Os trabalhadores realizam uma competição por mercado de trabalho, por melhores salários, etc. Além disso, a competição entre desempregados e empregados pressionaria os salários para baixo.
O capital, para manter sua dominação e ampliar o processo de exploração, busca incentivar a competição entre os trabalhadores. Assim, desarticula suas formas de associação e luta conjunta contra o capital (MARX, 1985). Esta é uma das principais estratégias do capital, na qual se usa a cooptação, a delação, a formação de interesses específicos, como formas de criar competição entre os trabalhadores. Para citar apenas uma dessas formas cotidianas de incentivo de competição entre os trabalhadores, podemos citar o caso de certos restaurantes de empresas que usam a fila para criar animosidade e conflito entre os seus funcionários (BASTERD, 1982).
Essa competição no processo de produção e distribuição dos bens materiais irá se reproduzir em diversas outras instâncias das relações sociais. A própria sociabilidade moderna acaba se constituindo como competitiva, além de burocrática e mercantil (VIANA, 2008a). A sociabilidade é o conjunto das relações sociais que reproduzem, na cotidianidade, as relações de produção dominantes, o modo de produção dominante (VIANA, 2008a). Assim, a competição acima aludida no modo de produção capitalista se reproduz no conjunto das relações sociais da sociedade moderna, criando uma sociabilidade capitalista. Nessa sociabilidade, a competição é um dos elementos fundamentais e base da mesma.
Assim, a competição invade o conjunto das relações sociais e pode ser vista não somente no processo de produção e distribuição dos bens materiais, mas também nas escolas, na política institucional, nos meios oligopolistas de comunicação, na família, nas brincadeiras, na arte, no lazer, nos jogos, nos esportes, etc. A competição se torna generalizada na sociedade capitalista, que é uma sociedade competitiva[1].
Como isso é vivido cotidianamente pelas pessoas, então não é necessário realizar sua demonstração, mas como é algo muitas vezes não-refletido, não-pensado, então mostrar sua ocorrência em algumas relações sociais acaba sendo importante. Na escola, por exemplo, a competição é iniciada desde o primeiro momento. Deixando de lado os casos nos quais a própria entrada na escola se dá via competição (sorteio, vestibular, etc.), o modo de ensino se fundamenta em técnicas competitivas (disputas entre “meninos e meninas”, gincanas, por exemplo), além de formas informais de incentivo à competição (sistema classificatório por notas, referências ao “melhor aluno da sala”, etc.). Isto sem considerar as escolas mais competitivas (escolas militares, etc.). Inclusive isso recebe uma grande adesão por parte de muitos alunos, devido à socialização anterior e simultânea realizada no conjunto das relações, na família, nos meios de comunicação. A criança e o jovem, devido ao seu processo de socialização numa sociedade competitiva, ao ser convidado para uma tarefa competitiva, tende a se interessar mais e a competição escolar fica mais atrativa, o que convence professores e outros a incentivar a prática competitiva. Isso, por sua vez, reforça a socialização para a competição. A escola reproduz e reforça a sociedade competitiva, mesmo porque os seus objetivos estão ligados intimamente à competição social (mercado de trabalho, formação de dirigentes, etc.) e é realizada por indivíduos (professores, diretores, etc.) que são socializados nessa sociedade.
Os jogos e esportes são outras formas de competição social. A mentalidade competitiva é um dos grandes incentivadores para a realização e prática de diversos tipos de jogos e esportes. No entanto, tais jogos e esportes acabam realizando um processo de socialização das crianças e reprodução da mentalidade e sociabilidade competitivas. A respeito do esporte, afirmou Adorno:
“O esporte é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão, a brutalidade e o sadismo, principalmente no caso de espectadores, que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. É preciso analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da educação sobre a mesma” (ADORNO, 1995, p. 127).
A suposta ambigüidade do esporte apontada por Adorno é a existente entre a competição desenfreada (que gera agressão, brutalidade, etc.) e a cooperação (que gera o cavalheirismo, etc.). Porém, a análise de Adorno é demasiada abstrata e remete o problema do esporte às pulsões, o que é um dos pontos problemáticos de sua análise, convivendo com outros (VIANA, 2005), pois o processo sócio-histórico de engendramento da agressividade no esporte é abandonado e substituído por abstrações não fundamentadas.
O esporte, na sociedade moderna, é fundado na competição e esta se torna, na maioria dos casos, o seu único objetivo. O futebol, por exemplo, mostra seu vínculo com a competição social não apenas por ser competitivo, mas também por ser condicionado por ela em vários aspectos. As torcidas mais atuantes e fanáticas são oriundas, principalmente, das classes desprivilegiadas, compostas por indivíduos que perderam a competição social pela riqueza, poder, sucesso, fama e compensam isso com formas substitutas de satisfação, tal como ser torcedor do time vencedor (o que explica que os times campeões formam maiores torcidas com o passar do tempo e sucessão de títulos), ser da torcida organizada “vencedora” dos embates entre torcidas, etc. (VIANA, 2010).
Assim, o indivíduo, desde que nasce, começa a ser socializado para ser competitivo. Além da escola e da família, a competição é inculcada desde a mais tenra infância pelos meios oligopolistas de comunicação (desenhos animados, por exemplo, onde muitas vezes há uma eterna competição sem sentido, como em Tom e Jerry, mas também Pernalonga, Pica-Pau, entre os mais antigos, e Dragon Ball, Yuyu Hakusho, entre os mais recentes). Esse processo de competição também se encontra na política institucional (competição eleitoral, competição por cargos, competição pelo poder, etc.), nas relações amorosas (ALBERONI, 1980), na religião (BERGER, 1985), na produção intelectual (BOURDIEU, 1994; VIANA, 2003a).
O modo de produção capitalista produz uma sociabilidade capitalista e esta tem como um de seus componentes fundamentais a competição. Isso, por sua vez, vai produzir efeitos na esfera cultural, na produção intelectual e no universo psíquico dos indivíduos (VIANA, 2008a). Nesse sentido, Wright Mills (1970) vai cunhar o termo “personalidade competidora”. No entanto, preferimos trabalhar com a ideia de mentalidade burguesa (VIANA, 2008a), que tem como fonte inspiradora a concepção de “caráter social” exposta por Erich Fromm.
Segundo Erich Fromm, o estudo da saúde mental remete ao problema do contexto social em o indivíduo vive. Este contexto social exerce influência sobre o indivíduo e assim é preciso entender o conceito de caráter social. O caráter individual difere do caráter social, pois o primeiro enfatiza a diferença do indivíduo com o coletivo e o segundo é o núcleo compartilhado de caráter da maioria das pessoas de um determina sociedade (FROMM, 1976). A função do caráter social é moldar as energias psíquicas dos indivíduos de tal forma que eles não só aceitem as normas sociais como adquirem o desejo de se comportar de acordo com elas. A formação do caráter social possui diversas causas (uma complexa interação de fatores sociológicos e ideológicos), mas o processo econômico tem um papel predominante nesse caso. Cada sociedade vai exigir um tipo de caráter social e a questão está em descobrir qual caráter social determinada sociedade necessita. O mercado capitalista, na sociedade moderna, exige a competição e, portanto, um caráter social competitivo. 
Nos nossos termos, entendemos que a mentalidade competitiva é uma característica da mentalidade dominante em nossa sociedade. E essa mentalidade é uma das mais poderosas bases da produção cultural e intelectual e atinge a produção científica, filosófica, artística, religiosa, etc. Assim, a produção científica é constituída no interior de uma determinada sociabilidade e mentalidade dominantes e reproduz, em seu interior, aspectos desta.
A própria esfera científica é marcada por uma intensa competição e por isso surgem ideologias que naturalizam a competição. Esse é o caso do darwinismo e do liberalismo, para citar apenas dois exemplos. Os economistas liberais colocavam que a competição (ou concorrência) é útil para a população. As empresas capitalistas, segundo Adam Smith, devido à competição, seriam constrangidas a produzir mercadorias para atender as necessidades do mercado consumidor e o consumidor ganharia assim em quantidade e qualidade de mercadorias (HUNT e SHERMANN, 1998). Outro economista liberal, Thomas Malthus, através de sua “lei da população” (haveria, segundo ele, um crescimento populacional muito maior do que a produção de alimentos), apontava para um processo de luta pela sobrevivência, uma competição entre os seres humanos, nas quais os mais fortes sobreviveriam. Darwin irá se inspirar nesta concepção (e na de Herbert Spencer) e produzirá uma concepção biológica naturalizante da competição, com sua teoria da luta pela vida e sobrevivência dos mais aptos (VIANA, 2001; VIANA, 2003a; VIANA, 2009b). Após produzir a chamada “teoria da evolução”, ele a aplicou aos seres humanos (DARWIN, 1974; VIANA, 2001), mostrando que a luta pela vida e sobrevivência dos mais aptos também ocorre nas sociedades humanas, sendo o criador do darwinismo social, em que pese alguns pensar que ele nada tem a ver com isso.
Porém, o que estes pensadores fazem é traduzir a sociabilidade dominante em ideologia, falsa consciência sistemática da realidade. Como já colocamos anteriormente, Karl Marx já havia criticado a ideologia liberal. Porém, ele desmontou também a “lei da população” malthusiana e, ainda, foi um dos primeiros críticos de Darwin, revelando o caráter de transferência das relações sociais capitalistas da sociedade inglesa para o mundo natural:
“Darwin, que estou relendo, diverte-me quando diz que aplica a teoria de Malthus nos animais e também nas plantas, como se em Malthus não fosse brincadeira aplicar a teoria, inclusive da progressão geométrica, não às plantas e animais, mas aos homens. É notável ver como Darwin encontra nos animais e nas plantas sua sociedade inglesa, com a divisão de trabalho, a competição, a abertura de novos mercados, as ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ de Malthus” (apud. VIANA, 2009b).
Portanto, a competição é um elemento estrutural da sociabilidade capitalista e se reproduz na mentalidade burguesa dominante[2], e, ainda, afeta o processo educacional, inclusive a educação física. A questão da relação entre competição e educação física é fundamental para pensarmos a prática educacional nessa área.
Educação Física, Escola e Competição
A educação formal é uma forma específica de socialização. A socialização é o processo no qual um indivíduo se torna, por um lado, um ser social, e, por outro, um indivíduo adequado e adaptado a determinadas relações sociais (VIANA, 2011). Nas sociedades pré-históricas e indígenas, o processo de socialização ocorria espontaneamente através das relações sociais existentes enquanto que na sociedade moderna ela tem um espaço social (e físico) privilegiado, especializado e burocratizado onde se realiza parte da socialização dos indivíduos. A educação formal, portanto, é típica da sociedade moderna e pode ser também denominada socialização escolar, ou seja, através de uma instituição específica. A escola é uma instituição burocrática (TRAGTENBERG, 1988; VIANA, 2008b) e se organiza via hierarquia funcional, estando atrelada ao Estado (tanto as escolas públicas quanto as privadas, pois existe uma regularização jurídica do ensino em todas elas, realizadas pelos organismos governamentais, além de outras formas de controle e fiscalização).
O que se convencionou chamar de “educação física” é um setor especializado da educação formal, voltada para a questão corporal e o esporte. Sendo assim, o seu lócus de realização é a escola.
A educação busca criar na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos pela sociedade (DURKHEIM, 1974), então é necessário saber que tipo de “estado” que a educação física busca despertar que se encontra a sua especificidade. A educação física é um setor especializado dentro da educação em geral. Apesar dos governos e programas educacionais (tal como se vê nos parâmetros curriculares nacionais) colocar questões mais amplas como seus objetivos, isto não corresponde à realidade concreta. Esse é o “objetivo declarado” e não o “objetivo real” (ETZIONI, 1976). O objetivo real da educação física se refere às atividades físicas e movimentos corporais, com pouca inserção em outros aspectos. Obviamente que isto terá implicações em outras instâncias da vida e consciência do aluno, mas de forma limitada.
As considerações de determinados professores ou pesquisadores sobre novos objetivos não são a realidade concreta, mas apenas brechas ou projetos para uma outra realidade no futuro. Assim, o objetivo real da educação física remete às atividades físicas e movimentos corporais, o que significa que é nesta instância que ela atua, mas não diz quais são seus objetivos. Obviamente que, no nível geral, seus objetivos são os mesmos de todas as escolas: reprodução das relações de produção capitalistas, através da reprodução de determinada cultura, comportamento, valores, etc. Aliás, os parâmetros curriculares de educação física são exemplos de reprodução da cultura dominante.
Porém, no processo mais específico e prático da educação física, ela tem um papel não apenas de reproduzir valores, comportamentos, disciplina e outros aspectos comuns no processo educacional, mas também uma ação direcionada para o processo de intervenção sobre o corpo através de determinadas atividades físicas. O objetivo da educação física é preparar o aluno para controlar seu próprio corpo, e, ao fazê-lo permitir-lhe poupar energias, refletir sobre suas ações físicas e gestos e assim gerar maior eficácia. Claro que estes são objetivos gerais abstratos, que ganham sob determinados contextos históricos e interesses estatais, configurações mais específicas, entre as quais o “esportivismo” durante o regime militar no Brasil (OLIVEIRA, 2004) ou a “aptidão física para a saúde”, como nos anos 1980 (FERREIRA, 2001). Em outras palavras, o objetivo é um controle a partir do professor que incentiva um autocontrole e desenvolvimento do aluno no sentido desejado pela sociedade, e que segue, de forma mais ou menos ampla, as concepções pedagógicas, políticas educacionais, diretrizes escolares, etc. que são dominantes em determinado momento histórico.
A educação física é um fenômeno social como qualquer outro e assim é necessário ter em mente a relação entre esta forma específica de educação formal e a sociedade. A educação física é um processo de socialização voltada para atividades físicas que são exigidas pela sociedade. Essas exigências é que possuem um papel importante no sentido de que o indivíduo possa desempenhar bem suas atividades profissionais (como força de trabalho) ou preparatórias para tal (atividades escolares), entre outras.
O controle do corpo é uma meta, mas não é inocente. O indivíduo deve controlar seu corpo para ser melhor controlado pela sociedade, ou mais exatamente, pelos detentores do poder. O bom condicionamento físico e a disciplina corporal é uma condição para possuir trabalhadores, soldados, desportistas e isto é conquistado através do controle corporal. O rendimento do indivíduo (no trabalho e na escola), os gastos estatais (despesas com saúde pública), entre outros exemplos, estão envolvidos nesse processo e por isso a saúde se torna também um momento da preocupação da educação física.
O controle corporal é uma característica da sociedade moderna. É por isso que nas sociedades pré-classistas, a socialização da criança se dava via atividade física direta (trabalho, jogo, etc.). Segundo Vayer e Tolouse, “esta atividade está presente sob formas distintas em todas as sociedades, em todas as culturas, pois é importante para conservar as instituições de reversão das energias, ou seja, de liberação das tensões e das necessidades fisiológicas dos indivíduos (...)” (VAYER e TOLOUSE, 1985, p. 55).
Na sociedade capitalista, a educação formal assume várias formas de acordo com as mudanças sociais, especialmente as mudanças no regime de acumulação[3]. A escola é o veículo desta educação formal específica e por isso é preciso compreendê-la para analisar esse processo. A atividade esportiva possui uma historicidade dependente da historicidade da sociedade, como todos os outros fenômenos sociais (VIANA, 2007a). Segundo Vayer e Tolouse, a estrutura social (a sociedade) condiciona as atividades esportivas e os jogos e é através da escola e do adulto que, na sociedade contemporânea, elas são impostas às crianças. Assim, os jogos e esportes que são repassados pela educação física são os constituídos pela sociedade capitalista e de acordo com suas exigências e características.
Na sociedade capitalista, há uma imposição realizada – através da escola e do adulto – sobre as crianças de uma educação física que repassa um “modo específico de encarar as atividades esportivas e de jogo” (VAYER e TOLOUSE, 1985). Ou seja, é uma violência cultural (VIANA, 2002) que transforma a educação física em uma atividade axiológica e voltada para o controle corporal dos indivíduos. Esse modo específico de conceber as atividades esportivas e os jogos é pautado pela competição. A escola é um “sistema fechado” e que deve garantir a reprodução desse modo específico e impedir que algo fora do sistema perturbe a sua reprodução (VAYER e TOLOUSE, 1985).
Assim, no interior da educação física, alguns profissionais, constituídos por esta sociedade e realizando, por conseguinte, sua naturalização, acabam reforçando esse processo social já existente. Aliado a isso a própria formação profissional é outro obstáculo em muitos casos. Isso não só produz uma educação física competitiva como ainda reforça a naturalização da competição e a formação de mentalidade competitiva. Ocorrendo isso, a educação física se torna axiológica, ou seja, portadora dos valores dominantes, especialmente a competição.
A axiologia é uma determinada configuração do padrão dominantes de valores, que, na sociedade capitalista, tem na competição um de seus valores fundamentais (VIANA, 2007b). A educação axiológica forma o indivíduo para reproduzir tais valores e, por conseguinte, reproduzir essa sociedade. Além do discurso do profissional de educação física que tende a naturalizar a competição, ainda há as próprias práticas corporais, que, dependendo da forma como são realizadas[4], reforçam esse processo de inculcação dos valores dominantes, especialmente da competição, reforçando a formação de mentalidade competitiva. A educação escolar, no entanto, não permite a autonomia individual e autogestão pedagógica, ou, segundo linguagem de Vayer e Tolouse: não permite um pleno desenvolvimento da auto-organização:
“Para obter a resposta que espera, o adulto, após haver imposto o seu projeto, é obrigado a intervir no desenvolvimento da ação, estruturando a tarefa e graduando as dificuldades. Todavia, o projeto da ação e seu desenvolvimento não corresponde, necessariamente, às capacidades atuais do indivíduo ou aos seus motivos presentes, e o adulto é obrigado, então, a apelar para fatores externos que se enxertam na tarefa para levar a criança a agir: é os sistemas de notas, classificações e julgamentos de valor” (VAYER e TOULOUSE, 1985, p. 106-107).
Jean-Claude Coste possui uma concepção semelhante no que diz respeito ao processo educativo:
“Sob o peso da educação, aprende-se a negar as necessidades do corpo e seus desejos, a mascarar as suas exigências. É por isso que, à nossa revelia, o corpo traduz as nossas palavras para traduzir o nosso desejo. Essa oposição acarreta condutas patológicas, tão correntes na reeducação psicomotora: tiques, gagueira, inibição, impotência sexual, distúrbios respiratórios, tudo sintoma da dificuldade do sujeito em comunicar-se com outrem” (COSTE, 1981, p. 46-47).
Assim, a educação escolar promove uma imposição da competição, nas variadas disciplinas e sob várias formas, inclusive a educação física. Trata-se de uma forma de violência cultural e disciplinar da escola (VIANA, 2002). Isso se manifesta no conteúdo do que é ensinado, nos valores que são repassados, nas formas de motivação que também se baseiam em princípios competitivos (sistema de notas, classificação, etc.). Isto também se manifesta no caso da educação física. A violência cultural no processo de educação física tem como base a cultura e os valores dominantes repassados pelo discurso do professor, pela prática esportiva ou qualquer atividade física realizada e a violência disciplinar pela imposição de determinadas atividades físicas, disciplinarização do corpo, posturas, hábitos, etc.[5]
Educação Física e Pedagogia Autogestionária
Diante deste processo, torna-se fundamental repensar o ensino e a educação física, incluindo as propostas pedagógicas existentes[6]. Assim, é necessário repensar a prática da educação física num sentido axionômico[7]: “para que a atividade facilite o desenvolvimento da personalidade é preciso que o indivíduo seja o sujeito de sua ação; é a noção de auto-organização” (VAYER e TOULOUSE, 1985, p. 106). Assim, ao reconhecer a unidade entre mente e corpo (COSTE, 1981; VAYER e TOULOUSE, 1985), também aponta para ir mais longe no processo de educação física.
A pedagogia autogestionária é uma proposta que tem similaridade com as pedagogias não-diretivas, mas vai além delas tal como a apresentada por Vayer e Tolouse. A proposta destes autores aponta para um avanço no sentido da autonomia individual, mas ainda possui limites, pois esquece que a sociedade moderna é competitiva e o processo educacional no geral visa reproduzir essa competição e as demais instâncias de socialização (família, meios oligopolistas de comunicação, internet, etc.) apontam para isso e, portanto, ao lado da mentalidade dos indivíduos, inclusive das crianças, essa pedagogia não-diretiva reproduziria os conteúdos e práticas já existentes, de caráter competitivo. Portanto, é fundamental a categoria dialética da totalidade e relembrar que a educação física é parte da sociedade e está submetida a ela, além de que sua historicidade é dependente da historicidade da sociedade.
Por isso, a proposta da pedagogia autogestionária assume papel fundamental no atual sistema de ensino e também no que se refere ao caso específico da educação física. Assim, torna-se importante definir pedagogia autogestionária e sua distinção em relação à autogestão pedagógica. A pedagogia autogestionária não é o mesmo que autogestão pedagógica, pois esta última significa que não há mais processo de ensino-aprendizagem, mas auto-aprendizagem, o que pressupõe uma nova sociedade, já que os entraves burocráticos, mercantis, culturais, entre outros, serão removidos. Nesse sentido, a autogestão pedagógica é o modo de educação da sociedade autogerida, ou seja, fundada na autogestão social. Porém, como coloca Lobrot, a autogestão pedagógica tem o papel de preparar a autogestão social (LOBROT, 1973).
A pedagogia autogestionária não é a mesma coisa que autogestão pedagógica, apesar de ter elementos dela. O objetivo da pedagogia autogestionária é duplo: a autogestão pedagógica e a autogestão social.  A autogestão pedagógica é uma pedagogia autogerida, efetivada. É colocada em prática apenas em momentos revolucionários na sociedade capitalista e uma vez realizada a transformação social e implantada a autogestão social, ela se torna o modo de educação desta nova sociedade. A pedagogia autogestionária esboça a autogestão pedagógica e seu objetivo é concretizar esta e a autogestão social.
Assim, a pedagogia autogestionária é um esboço e projeto de autogestão pedagógica e para isso efetiva diversas práticas educativas diferenciadas das pedagogias tradicionais e críticas (VIANA, 2008b) e entre estas práticas está a luta pela autonomização dos alunos e a crítica e recusa da burocracia escolar. Porém, não deixa de lado o aspecto fundamental que é a totalidade, categoria fundamental da dialética materialista, e assim não reproduz o messianismo pedagógico (ROSSI, 1980) e o isolamento fantástico do processo educacional. Também não cai, devido a isso, no voluntarismo de alguns adeptos da autogestão pedagógica, como é o caso de Lobrot (1973), já que parte de uma análise da totalidade da sociedade capitalista e do sistema de ensino, e todas as limitações derivadas disso.
Por isso, a pedagogia autogestionária não é apenas forma e sim conteúdo, ou seja, ela não apenas é uma nova forma de relação entre professor-aluno, não só propõe mudanças no processo educacional em sala de aula e atividades afins, como também aponta para um papel ativo do professor no sentido de realizar a crítica das ideologias, burocracia e todas as formas de mistificação e relações fundadas na alienação, exploração e dominação. Isso significa, em outras palavras, que passa uma mensagem, trabalha também o conteúdo, algo esquecido por vários adeptos da autogestão pedagógica, não percebendo que a liberdade em apenas uma esfera de atividades é cercada pela falta de liberdade em todas as outras e que por isso pode ser adaptada como uma forma nova para conteúdos velhos.
Assim, a luta de classes não é esquecida e nem deixa de ser travada, mesmo porque a pedagogia autogestionária, ao não isolar a pedagogia da realidade social mais ampla, também não se limita a pensar apenas a relação professor-aluno (em sala de aula ou quadra de esportes) e a aprendizagem, mas também avança no sentido de buscar novas formas de ação e transformações no interior da escola, visando formar centros de contra-poder, instituir novas relações sociais e autonomizar as instituições em relação ao Estado e mercado, e aumentando a influência e participação da sociedade civil e de formas de auto-organização da população no seu interior. Ou seja, a pedagogia autogestionária articula as questões imediatas com as de mais longo prazo, a forma e o conteúdo, num sentido autogestionário. E por isso ao invés da competição incentiva a cooperação, a solidariedade, e isso não significa apenas uma prática física, mas também outros valores, fazendo dessa prática axionômica em substituição da prática axiológica anterior.
Da mesma forma, outras ações e medidas concretas e imediatas estão intimamente ligadas com a busca de alterações na escola e na sociedade. A busca de autonomização dos estudantes é um incentivo, também, para sua autonomização enquanto indivíduos e trazem a valor da liberdade e criatividade, colocando a burocratização, mercantilização e competição como desvalores. Esse processo deve se estender para outras atividades no interior da escola e da sociedade, abrindo caminho para uma transformação das mentalidades e valores, o que reforça o processo de luta pela transformação social.
A partir da pedagogia autogestionária se torna necessário não somente repensar a prática do ensino de educação física e a formação dos professores de educação física, como, também, ampliar o saber destes sobre a sociedade como uma totalidade. Esse repensar do ensino da educação física aponta para a superação do ativismo físico, pois além das atividades físicas é necessário incentivar a reflexão dos alunos sobre elas e ainda sobre suas determinações e alternativas, incluindo o questionamento da competição e dos demais elementos da sociabilidade capitalista, sem cair, obviamente, nos discursos ideológicos da “cidadania” (VIANA, 2003b) e correlatos. Ao invés de reproduzir o discurso dominante, reprodutor da cultura e valores dominantes, é necessário realizar a crítica da cidadania enquanto forma de integração dos indivíduos na sociedade burguesa, incorporação de suas ações no âmbito estatal, e colocar a necessidade da auto-organização da população, no sentido da transformação social e generalização da associação dos livres indivíduos associados.

Referências:

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* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG); Mestre em Filosofia (UFG) e Sociologia (UnB); Doutor em Sociologia (UnB). E-mail: nildoviana@ymail.com
[1] Esta afirmação pode causar estranhamento em muitas pessoas, justamente devido a ter nascido e sido criado nessa sociedade e por isso tender a considerar a competição natural. Isso é reforçado pela cultura dominante, pela sociabilidade e mentalidade hegemônicas e, além disso, por ideologias diversas (liberalismo, darwinismo, etc.). Porém, além da relação entre competição e sociedade capitalista, basta informações sobre as sociedades pré-históricas, pré-capitalistas e indígenas, fornecidas pela historiografia e antropologia, para se perceber que a competição não é algo natural. As sociedades indígenas, por exemplo, vivem através da cooperação e não da competição, bem como as chamadas “sociedades pré-históricas”. A competição, nas sociedades de classes, aumenta em relação às sociedades pré-classistas, mas não atinge o caráter estruturante que tem no capitalismo. Assim, nem no feudalismo ou no escravismo a competição terá o papel proeminente que possui no capitalismo.
[2] Entenda-se por “mentalidade burguesa” não somente a mentalidade dos indivíduos burgueses, mas a de todos os indivíduos que, mesmo sem pertencer a essa classe, possui tal mentalidade. A mentalidade dominante é a mentalidade da classe dominante.
[3] Sobre regimes de acumulação, cf. VIANA, 2009a; VIANA, 2003b.
[4] “Certos fatos evidentes, tais como a organização de si mesmo condiciona a organização do mundo que rodeia o indivíduo, os problemas de personalidade são inseparáveis de sua expressão corporal, por fazerem, atualmente, parte da literatura e por terem adquirido o status de conhecimento ou da atividade corporal e levaram-nos a e reservar todo um capítulo de seu programa à educação do esquema corporal e seus componentes” (VAYER e TOULOUSE, 1986, p. 92).
[5] Sobre violência cultural, a obra de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron oferece algumas indicações interessantes, sobre o título de “violência simbólica” (BOURDIEU e PASSERON, 1982) e sobre violência disciplinar e disciplinamento do corpo, a obra de Foucault também contribui para o entendimento de seus procedimentos (FOUCAULT, . O que fica ausente nas análises destes autores, entre outras coisas, é a percepção da totalidade da sociedade capitalista, a razão de ser destas formas de violência, entre outros problemas analíticos (VIANA, 2002).
[6] Por pedagogia se entenda uma determinada concepção de educação, de como ela deve ser (VIANA, 2004).
[7] Axionômico, em contraposição a axiológico, expressa os valores autênticos dos seres humanos, ou seja, aqueles que manifestam as necessidades autênticas, tais como a práxis, criatividade, sociabilidade fundada na cooperação, liberdade, ou seja, o conjunto das potencialidades e necessidades humanas (VIANA, 2007b).

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Educação Física, competição e sociabilidade capitalista. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 16: maio-out/2011, p. 71-88.
Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE
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