AUTOGESTÃO: O SIGNO E O SER
Nildo Viana*
A palavra autogestão possui inúmeros significados. Isso é
relativamente comum. Raramente existe consenso em torno do significado das
palavras, especialmente quando se trata de conceitos ou construtos[1],
ou seja, termos técnicos, científicos, filosóficos, teóricos. Não discutiremos
aqui o problema das concepções a respeito dessa questão, mas tão-somente
apresentaremos uma concepção a respeito, para, assim, esclarecer a questão
conceitual do termo autogestão.
A luta de classes em torno do
signo
A palavra autogestão pode significar coisas distintas
(GUILLERM e BOURDEUT, 1976; VIANA, 2008a). Essa discussão recorda Foucault e
seu livro “As Palavras e as Coisas” (1987),
ou o livro de Cabral (1983) O
Proletariado: O Nome a Coisa. Temos, em ambos os casos, deixando de lado as
diferenças de concepções e significados, uma oposição: por um lado, a palavra
ou o nome e, por outro, a coisa. Nas sociedades de classes, marcadas pela
divisão e pelo antagonismo, há não só distintas percepções da realidade
derivadas da posição dos indivíduos na divisão social do trabalho, mas também
oposição e muitas vezes antagonismo.
Marx explicou isso em sua obra A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1992): a divisão social do
trabalho faz com que eu tenha um modo de vida distinto do de outras pessoas,
que eu tenha relações sociais diferentes, que eu perceba o mundo a partir das
minhas atividades, relações (com os demais seres humanos e com a natureza). Uma
pessoa que só enxerga preto e branco, não terá noção das cores e nem imaginação
para pensá-las, a não ser num nível muito mais abstrato (tal como nós, que
podemos imaginar abstratamente que podem existir outras cores além das que
conhecemos, mas não podemos imaginá-las diretamente), alguém que vive numa
sociedade escravista na posição de escravo, não entenderá as relações
estabelecidas entre os indivíduos da classe senhorial ou as perceberá de forma
radicalmente distinta da que eles mesmos percebem.
Contudo, há um outro elemento nesse processo todo. A divisão
social do trabalho e o modo de vida diferenciado que ela cria, gera não só uma
limitação na percepção da totalidade que é a sociedade e dos outros modos de
vida, mas também promove a constituição de valores, sentimentos, interesses,
processos inconscientes, etc. Esses aspectos influenciam na consciência dos
indivíduos, bem como essa consciência também exerce influência sobre eles. A
divisão social do trabalho mais ampla, que constitui as classes sociais,
promove uma diferenciação intelectual, valorativa, sentimental, etc. Isto,
obviamente, vai interferir no processo de constituição e significação das
palavras. Sem dúvida, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante e
por isso ela vai impor uma determinada “nomeação” do mundo. Da mesma forma,
quanto mais complexa é a divisão social do trabalho em uma determinada
sociedade, mais divisões e subdivisões existirão, inclusive no interior das
classes privilegiadas.
Nesse contexto, é interessante retomar a análise de Mikhail
Bakhtin e sua ideia de que existe uma luta
de classes em torno do signo. Sem dúvida, o seu universo linguístico é bem
distinto do nosso, o que apenas reproduz outras diferenças de concepção, a
começar pelo significado que atribui ao termo “ideologia”, para exemplificar
com mais uma distinção entre signo e ser, e por isso não compartilhamos a
totalidade de sua abordagem, mas apenas esse elemento mais específico (e mais
alguns, que aqui, para nossos propósitos, não vem ao caso). Segundo Bakhtin: “o ser, refletido no signo, não apenas nele
se reflete, mas também se refrata. O que é que determina essa refração do ser
no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e
mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes” (1990, p. 46).
Pois bem, vamos reter desse autor apenas essa ideia: existe
uma luta de classes em torno do signo. Mas antes disso, há também uma luta de
classes em torno das palavras, mesmo que haja consenso sobre o seu significado
ou pelo menos aproximação. As palavras indesejáveis, portadoras de significados
que remetem a seres indesejados, considerados inexistentes, falsos ou
contrários aos interesses, valores e concepções da classe dominante (ou outra
classe, grupo social, etc.) podem ser censuradas, impedidas de vir à tona. Elas
são censuradas, se tornam “tabus”, são proibidas, recriminadas, marginalizadas,
ignoradas. As palavras censuradas, proibidas, recriminadas, omitidas, apontam
para o indesejável, o falso, o inexistente, e se relacionam com o pecaminoso, o
maléfico, o que deve ser negado.
Isso pode aparecer de forma mais simples e na vida cotidiana
e já está na socialização das crianças, com a censura ao “palavrão” e este pode
ter conotação sexual, religiosa, etc. Mas não apenas isso é censurado. Para
quem viveu no período do regime militar no Brasil, a palavra “comunismo” era
censurada/recriminada e tinha que ser proferida de forma mais baixa e
cautelosa. Esse processo de censura e recriminação[2]
não atinge somente as palavras, mas esse é o caso aqui analisado. Ele pode ser
exemplificado tal como no filme A Vila
(Shyamalan, EUA, 2004), na qual os seres imaginários que aterrorizam os
moradores do vilarejo são “aqueles os quais não mencionamos” ou “podemos
mencionar” (e o vermelho, uma cor, também é censurada). Aqueles que não podemos
mencionar são os monstros que nos perseguem, reprimem, e, portanto, é aquilo
que não desejamos. Obviamente que “o que não desejamos” é algo produzido
socialmente e de acordo com determinados interesses, tal como no filme é uma
produção fictícia dos anciões.
Contudo, nem sempre
é possível censurar e reprimir as palavras, pois há indivíduos e grupos que
insistem em proferi-las e em regimes supostamente democráticos não podem ser
silenciados sem uma boa justificativa[3].
É nesse momento que emerge a luta de classes em torno dos signos. Embora no
primeiro caso ela já exista, no segundo caso ela é exclusivamente isto. Se
durante a ditadura militar no Brasil a palavra comunismo era
censurada/recriminada, ela era também ressignificada para que esse processo
pudesse ocorrer e foi nesse contexto que surgiu algumas imagens equivocadas
atribuídas a este termo, geralmente se referindo ao capitalismo de Estado da
antiga União Soviética (devido à guerra fria e também à confusão política em
torno do termo, aparentemente referente ao pensamento de Marx), e as ideias,
desde as mais absurdas, tal com a de que “os comunistas comem criancinhas”[4]
ou a de que as pessoas recebiam uma ração predeterminada, eram uma atribuição
de significado ao termo que assustava e justificava a censura e recriminação.
No caso dos regimes democrático-burgueses, o que ocorre é,
prioritariamente, uma luta de classes em torno dos signos. As palavras
comunismo, revolução, socialismo, solidariedade, entre diversas outras, são
ressignificadas de acordo com os interesses de classe, as concepções
ideológicas, etc. Este é o caso, por exemplo, daqueles que afirmaram que houve
uma revolução em 1964 no Brasil. A palavra “revolução” aqui tem o significado
antagônico ao que tem, por exemplo, nas concepções marxista e anarquista. Mas
os próprios termos “marxismo” e “anarquismo” são ressignificados (nesse caso,
deformados). O marxismo assume inúmeros significados diferentes de seu sentido
original e o mesmo ocorre com o anarquismo. Assim, se revolução se transforma
em mera mudança de governo, ou em tomada do poder estatal ou, ainda,
transformação radical do conjunto das relações sociais, temos três concepções
distintas. Num caso, a revolução, entendida como “mudança de governo”, está
próxima da concepção conservadora que busca esvaziar a radicalidade do termo e
banalizá-lo, retirando-lhe a eficácia política e simbólica. Noutro caso, a
revolução como tomada do poder estatal, apenas a reduz a uma mera insurreição
armada que toma pela força o aparato burocrático do Estado. Na terceira
concepção, a marxista, significa uma transformação radical do conjunto das
relações sociais, ou seja, das relações de produção e das demais relações
sociais, incluindo a abolição do aparato estatal. A revolução, assim, pode significar
uma mudança de governo, de forma estatal ou sua abolição[5].
A luta de classes em torno do ser que o
signo expressa
Sintetizando a discussão até aqui: há uma luta de classes em
torno do signo. O mesmo vale para a palavra autogestão. Contudo, antes de
passar para este caso específico, é necessário tratar do outro aspecto, o ser.
Se as palavras expressam os seres, então é preciso reconhecer que há uma luta também
no que se refere ao ser. A luta de classes em torno dos signos apenas expressa
a luta de classes em torno dos seres, da realidade concreta. A relação entre
signo e ser, ou entre “palavras” e “coisas”[6]
é bastante complexa. Alguns defendem que as palavras são arbitrárias, meras
criações. Para outros, elas são exatamente iguais ao real, ao ser.
A realidade contradiz as duas concepções: se as palavras
expressam o ser, um mesmo ser teria apenas uma palavra para expressá-lo ou
apenas um significado para cada palavra; se as palavras são arbitrárias ou
meras convenções, então ou seria um mundo paralelo imaginário sem realidade
efetiva ou seria apenas uma forma de manipulação do real. Como sabemos, existem
várias palavras para dizer uma mesma coisa, assim como uma mesma palavra possui
vários significados. Se eu digo cachorro ou cão, estou me referindo ao mesmo
animal, são sinônimos e a existência destes é mais do que conhecida. E se eu
digo “cão”, posso estar me referindo ao animal ou ao “diabo”. Estes são
exemplos simples e, no fundo, tanto faz dizer cão ou cachorro, pois eles
remetem ao mesmo animal e tanto faz se uso a palavra cão com significado
literal ou figurado. Isso por si só não anula a ideia de equivalência entre
palavra e coisa, ou entre signo e palavra.
Claro que aqui estamos no nível da linguagem simples, pois
se passarmos para a linguagem complexa, isso fica muito mais complicado. Se eu
digo “capitalismo”, estou me referindo a um determinado modo de produção ou
sociedade (o modo de produção capitalista é parte e determinação fundamental da
sociedade capitalista), mas também posso dizer “modernidade” ou sociedade
moderna, ou mesmo como Marx colocou, modo de produção moderno ou, ainda,
burguês (MARX e ENGELS, 1988). Se a palavra capitalismo significa o ser que é a
sociedade capitalista e modernidade também, então não há problema. Contudo, no
plano da linguagem complexa, há outro problema, que é o significado. Qual é o
significado da palavra “capitalismo”? E “modernidade”? Em Marx é possível
entender que existe uma equivalência entre signo e ser, mas se entendermos o
capitalismo no sentido weberiano ou qualquer outro? A palavra pode ser a mesma,
mas o ser é outro. Enquanto Marx pensa na totalidade das relações sociais
constituídas a partir do modo de produção capitalista, em Weber (1987) é apenas
um fragmento dessa realidade e é por isso que ele pode falar em diversos “tipos
de capitalismos” e encontrar capitalismo na sociedade escravista. A construção
weberiana é arbitrária, e ele busca legitimar isso ao defender a elaboração de
“tipos ideais”.
Logo, para um relativista, a questão é apenas que cada um
define essa palavra diferentemente. No entanto, aqui temos uma estratégia
ideológica que é uma outra forma de fazer desaparecer o ser, o real. É possível
fazer isso através da censura e recriminação de palavras, mas também através da
ressignificação ideológica, ou seja, deformação do seu significado. Usa-se a
palavra capitalismo, mas ela já significa outra coisa, que não é o seu ser. A
substituição de significado é, ao mesmo tempo, a substituição do ser, do real.
E essa substituição do ser significa que um o verdadeiro é substituído pelo falso.
A ideologia cumpre esse papel. Isso ocorreu com capitalismo, comunismo,
marxismo, autogestão e inúmeras outras palavras e signos. No entanto, essa
deformação do significado pode ocorrer tanto através da maculação[7]
quanto da ornamentação, ou seja, do embelezamento ou eufemismos visando tornar
mais aceitáveis ou legítimas formas de dominação e exploração. Um exemplo desse
último é a palavra “democracia”, utilizada indiscriminadamente para justificar
e legitimar práticas até mesmo ditatoriais, como no caso de chamar os países
capitalistas estatais do Leste Europeu como “democracias populares”, mas também
chamar o regime estadunidense de “mundo livre”, entre diversos outros exemplos.
A luta de classes em torno do significado
da autogestão
O caso do termo “autogestão” é apenas um entre milhares. Ao
invés do procedimento ideológico, vamos partir do ser que a palavra autogestão significa para depois chegar ao significado da palavra. A origem do ser
antecede a origem da palavra e seu significado autêntico. O significado da
palavra autogestão antecede sua existência e suas origens remontam o chamado
socialismo utópico[8].
Com a emergência da sociedade capitalista e todos os seus problemas sociais,
emerge também a proposta de uma nova sociedade. Sob formas muitas vezes
fantasiosas e detalhistas, sem a análise de suas possibilidades de instauração,
quem poderia ser o agente principal desse processo e como seria a passagem de
uma forma de sociedade (capitalista) para outra, ou então formas pouco
realistas (educação, razão, cooperativas), os socialistas utópicos antecederam
a ideia de constituição de uma sociedade marcada pela igualdade e liberdade. Devido
a estes limites, são utopias abstratas, que, no entanto, expressam determinada
fase do movimento operário, o período de seu surgimento e expansão, sendo
adequadas para este momento, embora conservadoras num momento posterior, devido
ao avanço das lutas de classes.
Proudhon aprofundou um pouco esse processo e, posteriormente,
Bakunin desenvolveu suas concepções retirando algumas ambiguidades e
aprofundando a proposta federalista e uso do termo “anarquia” e Marx constituiu
a ideia da nova sociedade a partir das noções de associação e comunismo. Pannekoek,
Rühle e os demais comunistas conselhistas mantiveram a palavra “comunista” ou
“sistema de conselhos”. A concepção de Pannekoek (1977) sobre os conselhos
operários realiza a expressão do ser que é o comunismo tal como Marx pensou,
apenas fornecendo maior concreticidade devido às novas experiências históricas
que fizeram emergir a nova forma organizacional da luta proletária. Até esse
momento, a palavra autogestão não existia, apenas o significado do ser que ela
expressava e outras palavras existiam buscando realizar tal expressão:
federalismo, anarquia, comunismo, associação, socialismo, etc. Posteriormente,
o ser da autogestão reapareceria com outros nomes, tal como “sistema de
conselhos” (alguns comunistas conselhistas), por exemplo.
Com o passar do tempo, emerge a palavra autogestão. Ela
surge sob duas formas e em ambos os casos abre uma oposição ao “comunismo”,
cujo significado foi deformado pelo bolchevismo. Assim, podemos falar de uma
gênese iugoslava da palavra autogestão e uma gênese francesa. Na Iugoslávia, a
palavra autogestão, em servocroata samoupravlje,
união de samo (auto) e upravlje (gestão) (ARVON, 1982; GUILLERM
e BOURDEUT, 1976) apresenta uma tentativa de avançar uma alternativa ao regime
da URSS (era um regime independente e isso tem a ver com o fato de ter sido o
único país do Leste Europeu a ter se livrado do nazismo por conta própria ao
invés dos demais, libertados pelo país de Stálin), o que ficou conhecido como
“titoísmo”, nome derivado do líder iugoslavo, Josip Broz Tito. O regime
iugoslavo se denominava “autogestionário” e se organizava através da
estatização dos meios de produção, comandada pela Liga dos Comunistas da
Iugoslávia (nome do Partido Comunista neste país) com a existência de cogestão
nas fábricas e pequenas propriedades privadas. O termo autogestão seria
reduzido ao processo de “gestão de empresas”, tal como será entendido
posteriormente na França. A suposta “autogestão” nas fábricas era o que em
qualquer outro lugar se chamaria de “cogestão”[9]
ou “participação”, pois os proletários apenas geriam os processos produtivos,
de forma limitada, sendo que “o que” produzir, “quando” e “para quê” eram
definidos externamente, pela burocracia estatal, restando aos trabalhadores uma
maior influência apenas no “como” produzir.
Aqui se revela a ornamentação, mais um aspecto da luta de
classes em torno dos signos: a tentativa de inovar e embelezar algo que, na
essência, não difere de outros processos sociais e históricos. Assim como a
antiga União Soviética se dizia “socialista” ou “comunista”, a Iugoslávia se
dizia “autogestionária”, um nome novo que na verdade não correspondia a
etimologia da palavra, já que o que existia era uma heterogestão com
participação dos trabalhadores em aspectos do processo de trabalho e
organização da indústria (enquanto unidade de produção). Da mesma forma, o
Partido Nazista se dizia “socialista”, bem com os milhares de partidos
supostamente “socialistas” e “comunistas”[10].
A gênese francesa se encontra na própria experiência
iugoslava, sendo que a palavra autogestion
é uma tradução literal de samoupravlje.
Segundo Arvon:
O termo
autogestão foi introduzido na França no final dos anos sessenta para designar a
experiência iugoslava a partir de 1950 com vistas a instaurar um socialismo
antiburocrático e descentralizado. A escolha do termo não parece, contudo,
muito acertada. Como a noção de “gestão” está carregada de uma racionalidade
puramente econômica, a de autogestão se encontra a priori limitada à “gestão de
uma empresa”, de uma coletividade, pelo pessoal” (definição do dicionário Robert)
(ARVON, 1982, p. 7).
Essa importação da palavra, portanto, está em dissonância
com o seu significado autêntico. Mas a relação entre o ser (comunismo,
anarquia, livre associação dos produtores, etc.) com o signo (autogestão) não
existia nem no caso iugoslavo e nem em sua primeira aparição no caso francês.
Isso, no entanto, irá mudar com a emergência do maio de 1968, que é quando a
palavra ganha seu significado autêntico:
O brusco
surgimento da noção de autogestão na França é habitualmente atribuído ao
espetáculo inesperado de uma Iugoslávia que, surgida subitamente do dócil
pelotão dos países satélites [da URSS – NV], se isola desde 1950 empenhando-se
com temeridade em um processo autogestionário. Contudo, tal hipótese não contém
mais que uma parte da verdade e, além disso, se vê alterada pela simples
cronologia: dado que a moda autogestionária data de princípios dos anos 1970,
seria necessário admitir que o conhecimento de uma experiência socialista nova
realizada por um país da Europa tenha demorado cerca de vinte anos para
aparecer na França e para suscitar ali derivação (ARVON, 1982, p. 38).
Nesse sentido, a gênese francesa da palavra lhe atribui um
significado novo. Esse “significado novo” significa, no fundo, unir o signo e o
ser da autogestão, união inexistente anteriormente, pois o ser, o projeto
utópico de uma nova sociedade fundada na auto-organização geral da sociedade,
já existia, bem como uma palavra que expressa isso (entre outras, como
anarquia, comunismo, sistema de conselhos, autogoverno dos produtores,
indivíduos livremente associados, etc.) emerge posteriormente, mas significando
algo mais restrito (cogestão de empresas) e é num determinado contexto da luta
de classes que o ser e o signo se unificam:
Foi muito
mais a explosão de todas as estruturas autoritárias em maio de 1968 o que fez
nascer na França a curiosidade por um processo fundamentalmente antiautoritário
empreendido em outro lugar e do qual haviam bastado estudos quase anatômicos
até antes de que viesse lugar sua atualização brutal. A confusa aspiração de
maio de 1968 em substituir um centralismo opressivo, de origem jacobina e uma
burocracia todo-poderosa, própria do modelo socialista tradicional, por
organismos políticos e econômicos descentralizados no qual seria lícito a cada
um assumir de novo sua existência total, tomar conta do seu próprio destino, em
uma palavra, “significar” uma vida que se fez absurda, vai em busca de uma
doutrina global que pode traduzi-la em termos claros; e a esse respeito a
autogestão se presta maravilhosamente (ARVON, 1982, p. 38).
Na França, antes da eclosão da luta estudantil e operária, a
Internacional Situacionista já apontava para uma concepção autogestionária nos
escritos de Debord e outros, sendo inclusive uma de suas fontes inspiradoras[11].
Depois do Maio de 1968, a definição de autogestão passou a ser
predominantemente esta durante algum tempo. Alguns, autores, com ambiguidades,
passaram a usar o termo, como Henri Lefebvre, George Gurvitch e Roger Garaudy.
Esse é o mesmo caso da Central Sindical CFDT – Cofederação Francesa Democrática
do Trabalho, que, apesar de se inspirar e ser influenciada pelo maio de 1968,
limita a autogestão à gestão de empresas. Contudo, sem deformar a concepção de
autogestão que emergiu como resultado da luta de classes, as obras de Alain
Guillerm, Yvon Bourdet, entre outros, mantiveram a essência revolucionária e
proletária deste conceito. Nesses autores e em outros, a autogestão significa
uma sociedade nova, fundada na autogestão coletiva generalizada das relações de
produção e relações sociais (GUILLLERM e BOURDET, 1976; TRAGTEBERG, 1986;
VIANA, 2008b).
Assim, a história posterior do termo “autogestão” não foi
definitivamente resolvida, pois isso depende da luta de classes e da
perspectiva de classe de quem o usa e o define. Os debates prosseguiram com as
críticas dos bolchevistas e outros, por um lado, e, por outro, com as
deformações e adaptações às necessidades do capital e das classes
privilegiadas. É graças a essas apropriações do termo “autogestão” pelas concepções
reformistas que faz Claude Berger, em seu excelente livro de comparação da
concepção de comunismo em Marx e Lênin, negar o termo “autogestão” e tentar
resgatar um termo mais abstrato e menos exato utilizado amplamente pelo autor
de O Capital: associação (BERGER,
1977). No entanto, essa discussão remete ao problema dos signos e os motivos
para utilizá-los. Sem dúvida, seria possível abandonar o uso do termo
autogestão e em seu lugar usar associação, autogoverno, ou qualquer outro, da
mesma forma que os termos “socialismo” e “comunismo” foram relativamente
abandonados por aqueles filiados ao marxismo autêntico.
Além dos franceses citados que mantiveram o significado
autêntico da autogestão, há também outros que mantiveram essa concepção, tais
como Maurício Tragtenberg (1986), no Brasil, em seu livro introdutório que
oferece uma concepção autogestionária em sua essência, bem como outros. Assim,
o motivo de manter o termo autogestão como significando a sociedade comunista,
anarquia, sistema de conselhos, etc., se deve ao próprio processo de luta de
classes.
Os termos “socialismo” e “comunismo” foram deformados
totalmente, mas não só isso, pois tal deformação (realizada pelos
socialdemocratas, bolchevistas, ideólogos burgueses, etc.) se tornou amplamente
hegemônica, tendo uma tradição, história, produção intelectual cujo peso torna
quase impossível disputar-lhe o significado. Da mesma forma, para as classes
trabalhadoras (proletariado, campesinato, etc.) a equivalência desses termos
com os partidos e países supostamente “socialistas” e “comunistas” é algo
evidente e hegemônico, sendo que seria um luta inglória tentar desfazer isso
atualmente.
Da mesma forma, o termo anarquia é ligado à tradição
anarquista e esta é dividida em diversas correntes, inclusive dando
significados distintos a ele. O anarcossindicalismo atual, por exemplo, ainda
pensa na anarquia como uma sociedade gerida por sindicatos (sem perceber que os
sindicatos são organizações da sociedade burguesa que não existirão mais na
sociedade autogerida). Outros termos, como “sistemas de conselhos” e
“associação” não são tão adequados, pois além da deformação destas palavras já
existir, acabam tendo outros problemas, como por exemplo, o uso de uma palavra
que aponta para algo fechado (“sistema”) e uma única forma de organização
(conselhos), sendo que os conselhos operários são, desde Pannekoek (1977), mais
um princípio organizativo (auto-organização, autogestão) do que uma forma
específica e pronta para sempre. A palavra “associação”, por sua vez, é bastante
abstrata e que carrega inúmeros outros significados, bem como apresenta
dificuldades de gerar derivados, importantes na luta proletária.
A deformação do termo autogestão, que se inicia com a
socialdemocracia e eurocomunismo na Europa e ganha terreno com a emergência da
contrarrevolução cultural preventiva do pós-estruturalismo (VIANA, 2009) e seus
ideólogos, reforçada pela generalização do neoliberalismo e proliferação de
cooperativas e ideologias como a da “economia solidária” é bem mais fraca do
que no caso dos termos socialismo e comunismo, bem como a novidade da palavra
ainda persiste para amplas parcelas da população. Nesse sentido, a luta em
torno do termo autogestão e seu significado é fundamental para o próprio
projeto autogestionário de transformação radical da totalidade das relações
sociais. E por isso a luta pela autogestão é também uma luta cultural pelo
significado autêntico desta palavra.
Considerações Finais
O objetivo do presente texto foi realizar uma análise da
relação entre signo e ser no caso da autogestão. A palavra autogestão (o signo)
pode expressar distintos significados (seres). A intenção aqui foi a de
discutir a relação entre signo e ser para recuperar o ser que a palavra
autogestão significa, expressa e demonstrar que esse processo faz parte da luta
de classes. A luta cultural burguesa (e de suas classes auxiliares,
especialmente a burocracia e a intelectualidade) busca, num primeiro momento,
silenciar e omitir o uso autêntico do termo autogestão e, num segundo momento,
para deformar o seu verdadeiro significado. A luta cultura proletária consiste
em evidenciar e divulgar o conceito de autogestão e recuperar o seu significado
autêntico.
Assim, o uso do termo autogestão se justifica e devemos
efetivar uma luta cultural para recuperar o seu significado autêntico e para
combater as deformações e apropriações deste termo pelas ideologias vigentes e
do passado. Sem dúvida, para realizar a distinção entre o seu significado autêntico
e as suas deformações, algumas vezes usamos “autogestão social”, o que é um
truísmo, tal como usar “marxismo libertário” ou “marxismo autogestionário”,
pois foram as deformações que ocultaram a sua essência libertária e
autogestionária. O presente texto é apenas mais um capítulo dessa longa luta e
certamente não é seu epílogo.
Referências
ARVON,
Henry. La Autogestion. 2ª edição,
México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec, 1990.
BERGER,
Claude. Marx Frente a Lênin.
Associación Obrera o Socialismo de Estado. Madrid, Zero, 1977.
CABRAL,
Manuel V. Proletariado: O Nome e a Coisa.
Porto: A Regra do Jogo, 1983.
CARVALHO,
Nancy. Autogestão: O Governo pela
Autonomia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CASTORIADIS,
Cornelius. Socialismo ou Barbárie. O
Conteúdo do Socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 4ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1987.
GUILLERM, Alain e BOURDET, Yvon. Autogestão: Mudança Radical. Rio
de Janeiro, Zahar, 1976.
MARX,
Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Petrópolis: Vozes, 1988.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A
Ideologia Alemã. 3ª edição, São Paulo: Hucitec, 1992.
PANNEKOEK,
Anton. Los Consejos Obreros. Madrid:
Zero, 1977.
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. 3ª edição, São Paulo:
Moderna, 1989.
VIANA, Nildo. A
Consciência da História – Ensaios sobre o materialismo histórico-dialético.
2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo. Democracia e autogestão. Achegas, v. a, p. 4a, 2008a. Disponível
em: http://www.achegas.net/numero/37/nildo_37.pdf
VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.
VIANA, Nildo. Rousseau e a Teoria da
Autogestão Social. Revista Eletrônica
Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 53, p. 01-06, 2005. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/054/54viana.htm
WEBER, Max. A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo. 5a edição, São Paulo: Pioneira,
1987.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais/UFG e Doutor em Sociologia/UnB.
[1]
Construtos, aqui, devem ser entendidos como “falsos conceitos” (VIANA, 2007).
Obviamente que a presente definição já explicita o não consenso em torno dos
termos, pois a palavra construto possui outros significados em outros
discursos. E para entender o que significa um “falso conceito” é necessário
entender o significado do termo conceito. Aqui, conceito significa “expressão
da realidade”, unidade entre signo e ser, consciência e realidade. Um construto
é uma falsa expressão da realidade, um signo que não expressa o ser, o real,
mas o deforma.
[2]
Entenda-se “censura” por “proibição”, o que significa impedir alguém de fazer
algo ou punir caso o faça, que, no caso das palavras, proibir usá-las ou punir
caso a façam. Por recriminação entenda-se o ato de condenar moralmente o uso da
palavra.
[3]
Claro que nem tudo que é marginalizado ou ignorado é algo que deva ser
considerado algo que expresse alguma realidade. Os devaneios individuais de
certos indivíduos ou intelectuais, podem muito bem ser ignorados por não terem
realmente nenhum valor. A ciência das ideias de Destutt de Tracy é um desses
casos, pois a tal ciência não vingou e tal definição perdeu o valor. Da mesma
forma, há palavras e até conceitos de grande importância para entender a
realidade, mas que são ignorados por que expressam concepções revolucionárias
que são recusadas pela maioria das pessoas e principalmente pelos
representantes intelectuais da burguesia. Assim, entre o “louco” e o teórico há
uma grande distância, não só na fundamentação e processo de produção, como
também nas razões da marginalização e omissão. Assim, não se deve cair numa
concepção ingênua e simplista segundo a qual tudo que é marginalizado e omitido
é real e verdadeiro, pois além da luta de classes existem outras subdivisões,
idiossincrasias, interesses, desequilíbrios psíquicos, que podem ter a
aparência de “revolucionário” e ser outra coisa, inclusive conservadora.
[4]
Obviamente que isso tem a ver com o suposto retorno do canibalismo na região do
Alba durante a fome e miséria após a revolução bolchevique ou então ao suposto
canibalismo durante a estatização forçada do campo sob comando de Stálin.
[5]
Quando um partido socialdemocrata ganha uma eleição, trata-se de mudança de
governo; quando um partido “comunista”, tal como o bolchevique na Rússia de
1917, toma o poder estatal via insurreição, muda sua forma, já não é mais um
estado tzarista, liberal, etc. e, por fim, quando o proletariado destrói o
aparato estatal, tal como no caso da Comuna de Paris, temos uma transformação
radical do conjunto das relações sociais, pois isso somente é possível com um
conjunto de outras mudanças sociais.
[6]
Para alguns, “coisa” e “ser” são os termos filosóficos mais abstratos. Para
nós, ser é uma categoria do pensamento, uma ferramenta intelectual para pensar
o real.
[7]
A maculação é atribuição de desonra, impureza, defeito moral, pecado, tal como
se encontra nos dicionários.
[8]
Alguns pensam em Rousseau como antecessor da ideia de autogestão (GUILLERM e BOURDET,
1976; CARVALHO, 1983), embora isso seja exagerado (VIANA, 2005).
[9]
“Assim, os decretos sobre ‘a autogestão’ inauguram, de fato, na empresa, um
regime híbrido, que chamamos mais justamente de cogestão” (GUILLERM e BOURDET,
1976).
[10]
Sem dúvida, alguns acreditam sinceramente que são “socialistas” ou
“comunistas”, mas numa concepção de socialismo que é a burocrática e, no caso
do nazismo, era apenas um nome que nada tinha a ver com a ideia, mesmo porque o
nazismo sempre foi anticomunista, a não ser no caso de alguns de seus
representantes no início que logo foram afastados do partido. A URSS, como
todos sabem, era União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (sem sovietes e
sem socialismo) o NSDAP, era o Partido Nacional-Socialista Alemão dos
Trabalhadores.
[11]
Alguns citariam o coletivo Socialismo ou
Barbárie, de Lefort, Lyotard e Castoriadis, entre outros. Contudo, a
concepção desse coletivo apontava para a “gestão operária” (CASTORIADIS, 1983) e
se limitava à gestão das empresas, criando uma ideologia administrativista, de
caráter autonomista. Cornelius Castoriadis nunca foi um autogestionário, em
nenhuma das três fases do seu pensamento, trotskista, autonomista e pós-estruturalista,
ele defendeu tal concepção.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Autogestão: O Signo e o Ser. Enfrentamento. Goiânia: ano 8, N. 14, jul/dez. 2013.
http://enfrentamento.net/enf14.pdf
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Autogestão: O Signo e o Ser. Enfrentamento. Goiânia: ano 8, N. 14, jul/dez. 2013.
http://enfrentamento.net/enf14.pdf
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