AS REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NO
DISCURSO JORNALÍSTICO
Nildo Viana*
Resumo: O artigo aborda as
representações da violência no discurso jornalístico. O objetivo central é
demonstrar que o que predomina no discurso jornalístico é uma posição ideologêmica.
Para tanto, se utiliza da análise do discurso em sua vertente crítica para
analisar um caso que reproduz a prática constante de grande parte dos discursos
jornalísticos sobre o fenômeno da violência. Esse caso exemplar é reforçado por
outros casos concretos e a conclusão do artigo é a de que a maioria dos
discursos jornalísticos possui uma posição ideologêmica que se manifesta em
suas representações sobre a violência.
Palavras-chave: discurso
jornalístico, representações, violência, ideologema, análise do discurso.
Abstract: The paper explores the representations of violence in
journalistic discourse. The central objective is to demonstrate that the
predominant speech is a journalistic position ideologemical. Therefore, using
discourse analysis in its critical stance to analyze a case that reproduces the
constant practice of most journalistic discourses on the phenomenon of
violence. This exemplary case is reinforced by other individual cases and
conclusion of the article is that most of the journalistic discourse has a
position ideologemical which manifests itself in their representations of
violence.
Keywords: journalistic discourse, representations, violence, ideologem,
discourse analysis.
A violência é um dos temas
mais debatidos na atualidade, tanto nos meios acadêmicos e políticos, quanto
nos meios de comunicação e na vida popular em geral. Assim, existe o fenômeno e
as representações do fenômeno. Nosso objetivo é justamente analisar uma das
representações deste fenômeno, a representação presente no discurso jornalístico.
O objetivo é, portanto, analisar o discurso jornalístico focalizando sua
discussão sobre violência. Para tanto, vamos discutir o conceito de violência e
após isto discutiremos o processo de produção do discurso jornalístico e suas
características, para, por fim, abordar as manifestações discursivas sobre
violência no jornalismo.
Elementos para uma Análise do Discurso
O ponto de partida de nossa
análise remete a uma discussão sobre o conceito de discurso e seu processo de
produção. O discurso é sempre proferido por alguém. Ele não é autônomo e nem é
neutro. Todo discurso é discurso de alguém e a compreensão das razões do
discurso nos leva a buscar compreender quem o proferiu e em que condições
sociais ele foi produzido. A partir destas colocações já podemos deixar claro
que não partiremos da perspectiva da lingüística estruturalista, tal como
fundada por Saussure (1995) e desenvolvida por seus continuadores. Também não
nos inspiraremos em outras correntes da lingüística (gramática gerativa,
pragmática, etc.), embora possamos, num momento ou noutro, em casos
específicos, lançar mão desta ou daquela contribuição de algumas das correntes
ou “escolas” da lingüística.
Porém, buscaremos, de forma
mais constante, utilizar a contribuição de algumas abordagens da lingüística
que estão mais próximas de uma perspectiva sociológica, em especial a teoria da
enunciação ¾ tal como representada por
Mikhail Bakhtin (1990) ¾ e da análise do discurso.
Bakhtin irá trazer para a instância da linguagem a idéia de luta de classes e
assim rompe com a idéia de pretensa inocência do discurso, pois ele é
perpassado (até em suas unidades mais simples, tal como o signo) pelos
conflitos de classes e, portanto, possui caráter social e está intimamente
ligado com as relações de poder na sociedade.
A análise do discurso, por
sua vez, nos trará diversas contribuições. Esta se caracteriza, entre outras
coisas, em romper com a dicotomia rígida entre língua (estrutura invariante da
linguagem) e fala (manifestação concreta da linguagem) inaugurada pela
lingüística estruturalista de Saussure:
Embora
reconhecendo o valor da revolução lingüística estruturalista provocada por
Saussure, logo se descobriram os limites dessa dicotomia pelas conseqüências
advindas da exclusão da fala do campo dos estudos linguísticos (BRANDÃO, 1997,
p. 9).
O discurso é produzido e
reproduzido socialmente e seu estudo, portanto, deve incorporar não apenas sua
estrutura formal mas principalmente o seu caráter social (VIANA, 2009). Porém,
nem sempre os adeptos da análise do discurso conseguiram efetivar este projeto.
Coube à chamada “escola francesa da análise do discurso” (PECHEUX, 1997;
PECHEUX, 1998; BRANDÃO, 1997) levar esta perspectiva até suas últimas consequências
e isto proporcionou, segundo alguns afirmam, a demolição do muro que separava
lingüística e sociologia.
A escola francesa de análise
de discurso nasce da tentativa de articulação entre lingüística, marxismo e
psicanálise e tem como característica articular “o lingüístico com o social” (BRANDÃO,
1997, p. 17), trabalhando de forma interdisciplinar ao tomar em consideração as
contradições de diversas ciências humanas (história, sociologia, psicologia,
etc.). Porém, a análise do discurso busca se distinguir das demais correntes da
lingüística e para fazer isto deve incluir novas dimensões, tal como colocou
Maingueneau (apud. BRANDÃO, 1997), a saber:
1. O quadro das instituições
em que o discurso é produzido, as quais delimitam fortemente a enunciação; 2.
Os embates históricos, sociais, etc. que se cristalizam no discurso; 3. O
espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior de um
interdiscurso.
Portanto, temos aqui uma
concepção que remete ao estudo da instituição onde o discurso é produzido, aos
conflitos históricos e sociais, além de levar em consideração a configuração do
espaço próprio de um discurso no contexto de um meio discursivo. Assim,
extrairemos da escola francesa da análise do discurso alguns elementos para
nossa análise, complementada com outras concepções (BAKHTIN, 1990; VIANA,
2009), que compõem o nosso referencial teórico a respeito do discurso.
Para os objetivos do
presente artigo é fundamental reter a idéia de que o discurso é produzido no
interior de uma instituição e é marcado pelo conflito. Neste momento devemos
colocar em discussão a relação entre discurso e poder. Nesta discussão retomaremos
algumas considerações de Foucault sobre este tema, lembrando que ele exerce uma
grande influência sobre a escola francesa de análise do discurso. Segundo
Foucault,
Em
toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar
sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
Assim, o poder impede a
manifestação livre do discurso. Cria um processo de exclusão através da
interdição e também (no caso da oposição entre razão e loucura) da separação e
rejeição. Aqui podemos nos reencontrar com Bakhtin (1990) e a teoria da luta de
classes em torno do signo. Também nos reencontramos com a tese de Ardiner a
respeito dos grupos silenciados. Segundo esta teoria, os grupos dominantes na
sociedade silenciam a voz dos grupos dominados e a voz destes – quando aparece,
nos raros casos em que isto ocorre – o faz sob a linguagem própria dos
dominantes. Este silenciamento dos grupos dominados (ARDINER, apud. MOORE,
1991) ou o predomínio da classe dominante na esfera do discurso (BAKHTIN, 1990)
são elementos que podem ser integrados numa análise que utiliza a concepção
foucaultiana de discurso em sua relação com o poder.
Porém, não devemos esquecer
as diferenças entre Foucault e as demais abordagens acima apresentadas.
Foucault apresenta uma concepção metafísica de poder (VIANA, 2000), pois ele
está difuso na sociedade e está em todo lugar, sendo mais uma relação do que
uma propriedade (FOUCAULT, 1986; FOUCAULT, 1983). Em Bakhtin (1990), por
exemplo, existe o poder, mas ele não é autônomo e sim a incorporação da
dominação de classe que também se encontra na esfera do discurso. A fonte da
diferença, neste caso, está no pós-estruturalismo de Foucault e na influência do
marxismo no caso de Bakhtin.
De qualquer forma, a relação
que Foucault faz entre discurso e poder – que pode muito bem ser integrada numa
concepção conflitual fundamentada na luta de classes, tal como expresso nas
obras de Bakhtin (1990) e Viana (2009), bem como em determinada fase da escola
francesa de análise do discurso – que lança mão explicitamente da obra de
Foucault – é de fundamental importância para se compreender o engendramento de
um discurso no interior de uma instituição. Segundo Foucault, toda forma de saber
é produto das relações de poder e um “novo poder” gera um “novo saber”
(MACHADO, 1981). Assim se pode dizer que o poder sobre os “loucos” gera a
psiquiatria, o poder exercido sobre os estudantes a pedagogia, etc.
Esta discussão é importante
para percebermos o entrelaçamento entre discurso e poder, instituição,
interesses. Assim, o discurso é um produto social que atua sobre as relações
sociais. Mas o que é o discurso? Podemos dizer que é uma manifestação
específica, concreta, delimitada, da linguagem e por isso se distingue dela. O
discurso é uma forma de manifestação da linguagem e esta pode produzir diversos
discursos, desde os semelhantes aos antagônicos. O discurso é uma totalidade
que possui como partes constituintes a estrutura, que é unissêmica, e a
conjuntura, que é polissêmica. Neste sentido, o discurso é sempre algo
concreto, é sempre discurso de alguém, de um autor, um grupo social, etc.,
sendo, por isso, um todo coerente e organizado (cujo grau de coerência e
organização depende de quem profere o discurso e em que contexto) e isto se
revela em sua estrutura e seu caráter unissêmico (VIANA, 2009).
O discurso é sempre discurso
de alguém, ou seja, uma manifestação específica de um determinado indivíduo e
sua consciência. A consciência, contudo, não é mais que o indivíduo consciente
e, desta forma, é manifestação deste ser social, histórico, que possui um
processo histórico de vida específico e por isso possui sua singularidade (VIANA,
2011), que pode, também, manifestar a singularidade de um grupo ou instituição.
Nesse sentido, não existe discurso destacado de quem o produz e este é um ser
humano, um ser social e histórico. Por conseguinte, o discurso é um produto
social (VIANA, 2009). O passo seguinte após a definição de discurso, é analisar
seu processo social de constituição.
Discurso Jornalístico e Propaganda Ideologêmica
Portanto, o discurso é
produzido socialmente. Em grande parte dos casos é constituído no interior de
uma instituição e por isso possui características próprias em cada instituição.
O processo de constituição do discurso remete ao contexto social e cultural. O
contexto social remete ao conjunto das relações sociais que, na sociedade
moderna, é marcada pela luta de classes. O contexto cultural, por sua vez,
remete ao conjunto das produções intelectuais e também traz em si a
manifestação do conflito entre as classes sociais. Nesse sentido, o discurso é
perpassado por relações de poder na sociedade capitalista (VIANA, 2009). Porém,
cada forma de discurso possui suas próprias determinações e por isso a análise
de sua constituição e característica se torna fundamental.
Isto significa que existem
formas de discurso que correspondem a formas de poder. A forma de discurso que
aqui nos interessa é o discurso jornalístico (em sentido estrito, ou seja,
limitando-se ao jornalismo escrito, pois este é mais fácil de analisar, embora
os mesmos procedimentos possam ser utilizados para analisar outras
manifestações). A instituição, nesse caso, é a imprensa escrita. Para
compreender o complexo problema das relações entre saber e poder nesta
instituição é preciso levar em consideração não apenas as relações internas
desta instituição como também as relações externas. Isto nos remete, novamente,
a uma análise que vai além de Foucault, que, embora utilizando sua
contribuição, insere a questão do conjunto das relações sociais e das relações
de poder na sociedade. O caso da censura e da repressão policial durante o
regime militar no Brasil[1]
coloca em questão o caráter mais amplo das relações de poder que ultrapassam os
limites de uma instituição[2].
O discurso jornalístico não
está envolvido pelas relações de poder externas apenas em períodos políticos
conturbados, pois existe todo um conflito que envolve a imprensa escrita, tais
como os anunciantes, o público leitor, etc., que remete às relações de poder em
toda a sociedade. O discurso jornalístico é fundamentalmente uma forma de
transmitir propaganda. Isto pode parecer estranho à primeira vista, pois, em
que pese a propaganda comercial que é realizada pelo jornal, o seu sentido, ou
sua razão de ser, é a informação. Isto pode ser esclarecido se retomarmos a
análise realizada por Aranguren a respeito da diferença entre informação e
propaganda. Segundo Aranguren, a fronteira entre informação e propaganda é
bastante tênue:
Como
todos sabemos, esses veículos de comunicação de massa não podem, como qualquer
outro negócio, ser lucrativo sem publicidade. A informação é fornecida
gratuitamente ao público pelo rádio e pela televisão e muito abaixo do custo
pela imprensa. Para tanto a comunicação de massa tem de ser mantida viva pela
publicidade e é, num grau cada vez mais elevado, controlada pelos anunciantes.
(...). Assim, vê-se que as notícias e as comunicações publicitárias estão
intimamente vinculadas, numa tal extensão que é impossível, muitas vezes, dizer
se uma reportagem jornalística sobre um astro cinematográfico, ou uma nova
unidade industrial (‘orgulho desta nação e eloqüente prova do progresso que nos
colocou em plano de igualdade com as nações mais avançadas’), ou uma estância
turística em grande voga, é apenas material noticioso oferecido
desinteressadamente ao leitor ou ouvinte, ou se é publicidade para manter o
jornal ou a emissora (ARANGUREN, 1975, p. 139-140).
Aranguren diz que a
fronteira entre informação e propaganda é difícil de delimitar devido também a
dois outros fatores: a interferência política e a dificuldade lingüística. A respeito da interferência política ele
afirma que:
Todo
e qualquer evento é significativo, mas o seu significado é inequívoco; precisa
ser interpretado com uma completa objetividade, que muitas vezes se almeja, mas
dificilmente se atinge. Cada jornal interpreta os acontecimentos de acordo com
o seu ponto de vista ou, nos países onde a imprensa não é livre, de acordo com
as diretrizes do governo. A distinção entre órgãos de informação e órgãos de
opinião é puramente relativa. Os órgãos de informação não estão menos
condicionados por interesses do que os de opinião; simplesmente os interesses
são de uma espécie diferente – mais econômicos do que políticos (ARANGUREN,
1975, p. 140).
Sobre a dificuldade de
natureza lingüística ele afirma que existe uma extrema dificuldade, para não
dizer impossibilidade, de distinguir entre informação e publicidade ou
propaganda. Para se observar isso basta fazer uma superposição do significado
das três palavras.
A
definição de dicionário para ‘publicidade’ é a qualidade ou estado de ser
público e o meio de fazer uma coisa pública através da informação ou
comunicação. Etimologicamente, ‘propaganda’ é a ação de propagar ¾ quer dizer, difusão ou informação. Contudo,
excetuando-se em contextos muito especiais, como ‘dar publicidade a’ (sinônimo
de ‘tornar público’) ou o latim ‘propaganda
Fidei’ (‘propagação da fé’), as palavras propaganda e ‘publicidade’ são
entendidas no sentido de um anúncio na imprensa ou para transmissão por um
veículo de telecomunicação, que divulga um produto ou serviço e é pago pelo
comerciante ou fabricante, nada tendo a ver com a difusão de notícias ou
informações. Mas, por uma inversão compensatória de significados, a propaganda
política ¾ que merece o nome tanto
quanto a sua congênere comercial ¾ rejeitou esse nome e o que costumava ser o Ministério
da Propaganda chama-se hoje Ministério da Informação (ARANGUREN, 1975, p. 141).
Portanto, a imprensa escrita
(bem como a imprensa em geral) transmite propaganda, ou seja, realiza a difusão
de alguma idéia ou acontecimento. Porém, não é qualquer idéia ou acontecimento
que são veiculados pela imprensa. Há um processo de seleção. Este é um processo complexo que se inicia com os
jornalistas (às vezes com os redatores, que indicam que tipo de notícias quer
para o jornal e que os jornalistas devem ir atrás, às vezes os próprios
jornalistas possuem autonomia de buscar as notícias, dependendo do jornal e do
contexto, mas uma vez apresentado o tipo de notícia a ser objeto de reportagem,
então é o jornalista quem faz a primeira seleção do material no próprio
processo de coleta), que realizam uma seleção
inicial, e termina com a edição e redação, que realiza uma seleção da seleção, que é uma seleção final. Neste processo de seleção
– tal como se depreende do próprio nome – algo se torna material de propaganda
e algo é excluído e assim notamos o processo de interdição e de rejeição, tal
como apresentado por Foucault.
Esse processo de seleção é
realizado através de uma diversidade de critérios e objetivos, no qual se
destacam a linha editorial do jornal, o interesse dos anunciantes, a opinião do
leitor, as ideologias e mentalidade da equipe do jornal e dos seus diretores e
proprietários, etc., mas existe outra determinação mais ampla que é a fornecida
pelo conjunto das relações sociais e de poder na sociedade, o que inclui todo o
complexo da formação cultural, dos interesses de classe e das disputas
ideológicas e políticas em determinada sociedade e em um dado momento
histórico.
Porém, é preciso distinguir
entre dois tipos de propaganda que são transmitidos pela imprensa escrita: a
propaganda ideologêmica[3] e
a propaganda comercial. Embora não se possa falar em distinção absoluta entre
ambas, pois a propaganda comercial traz em si elementos ideologêmicos (isto é,
fragmentos de ideologias) e a propaganda ideológica muitas vezes está
relacionada com a comercial e reforça a existência de uma mercantilização das
relações sociais. A propaganda comercial foi objeto de vários estudos de
especialistas das ciências sociais (BARAN e SWEEZY, 1977; MOLINÉ, 1980; LAGNEAU,
1981; PIETROCOLLA, 1985) e foi relacionada com o capitalismo monopolista e com
a “sociedade de consumo”. A propaganda ideologêmica também recebeu diversos
estudos[4] (JAHR
GARCIA, 1980; BROWN, 1971), juntamente com a propaganda política (DOMENACH,
1963; BROWN, 1971; JAHR GARCIA, 1980), embora não se possa confundir propaganda
ideologêmica e propaganda política (no sentido usual do termo), pois a
propaganda política é apenas uma modalidade de propaganda ideologêmica.
Como não é possível discutir
aqui o complexo e polêmico tema da ideologia, bem como as diversas concepções
de ideologia (ALTHUSSER, 1989; CHAUÍ, 1990; HALL et al., 1983; AGOSTI, 1984; EAGLETON,
1997; MANNHEIM, 1986; VIANA, 2013; VIANA, 2010), nos limitaremos a apresentar
brevemente a concepção que utilizaremos. A ideologia, tal como Marx colocou,
surge com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual (MARX, 1992).
Com esta divisão surgem os ideólogos e a ideologia possui como característica,
por conseguinte, a sistematização de uma falsa consciência da realidade. A
ideologia é uma inversão da realidade e é produzida pelas classes sociais que
possuem em sua consciência “limites intransponíveis” (MARX, 1988) derivados de
sua posição diante das relações de produção. A ideologia, devido seu caráter
sistemático, se erige como uma verdadeira mentalidade, portadora não somente do
sistema de pensamento explícito, mas também de valores, sentimentos, geralmente
implícitos. Porém, a ideologia possui um círculo de produtores (que são os
responsáveis pela sua produção) e reprodutores (aqueles que compreendem e
divulgam tal ideologia) mais ou menos restrito dependendo da sociedade em que
se manifesta. Uma grande parte da população possui uma mentalidade
desarticulada, tal como colocou GRAMSCI (1987) e a ideologia ao atingir esta
população acaba sofrendo o mesmo processo de desarticulação ou de perda de
sistematicidade (VIANA, 2008), devido ao processo realizado pelos receptores.
Em síntese, a recepção da ideologia geralmente destrói a ideologia enquanto
sistema, embora muitas vezes conserve aspectos que são seus componentes, que
são mesclados com outros elementos, muitas vezes contraditórios.
A propaganda é um processo
de difusão generalizada de ideias, acontecimentos, valores, etc. e esse
elemento promove, por sua vez, um obstáculo para sua difusão mantendo sua forma
sistemática: os meios oligopolistas de comunicação e suas formas de difusão são
incompatíveis com a complexidade do pensamento complexo, tal como o ideológico.
As notícias e reportagens devem ser breves e mais acessíveis possível ao grande
público. Nesse sentido, não há exatamente uma “propaganda ideológica” nos meios
oligopolistas de comunicação e sim propaganda ideologêmica e axiológica, na
qual há a difusão de fragmentos de ideologias e dos valores dominantes.
A manifestação da ideologia
no discurso jornalístico encontra outros três obstáculos: a) os produtores do
discurso jornalístico (jornalistas, copidesque, redatores, etc.) nem sempre
conseguem dominar ou compreender a ideologia que querem e/ou acreditam
reproduzir e desta forma eles passam uma falsa consciência da realidade mas
geralmente de forma assistemática; b) como o discurso jornalístico visa o
grande público ele deve simplificar e resumir a mensagem e isto dificulta a
transmissão de uma mentalidade sistematizada; c) tal discurso também deve levar
em consideração a reação do público e por isso muitas vezes deve buscar
aparentar “neutralidade” e “ética” em sua propaganda ideologêmica. Desta forma,
o discurso jornalístico é fragmentário e assistemático, carregando em si
elementos contraditórios.
Essa propaganda ideologêmica
se efetiva por diversos meios. Os meios oligopolistas de comunicação são os
mais utilizados, pois atingem uma parcela mais ampla da população. A propaganda
ideologêmica, que, tal como já colocamos, vai além da propaganda
política-institucional, também ocorre através do discurso jornalístico e
reflete as relações de poder na sociedade. Porém, isto não quer dizer que
sempre haja intencionalidade em se fazer isto, pois, como se trata de uma
mentalidade, isto ocorre naturalmente e acaba se tornando inevitável.
Neste sentido
podemos dizer que na imprensa escrita o que existe é uma propaganda ideologêmica,
embora em alguns momentos possa tentar repassar um pensamento ideológico, pois
um jornal sempre traz algumas partes (cadernos de opinião, debate, etc.) em que
é possível apresentar uma concepção sistematizada. Mas isto não ocorre com toda
imprensa escrita, pois em revistas é mais fácil veicular tal concepção. Porém,
o que se conclui é que a propaganda ideológica é limitada na imprensa escrita (e
mais ainda em suas outras formas) e que ela acaba se aproximando mais das
representações ilusórias da realidade (MARX e ENGELS, 1990) do que da
ideologia, no sentido em que utilizamos esta palavra, como sistema de
pensamento ilusório (MARX e ENGELS, 1990; VIANA, 2010), o que significa que
está mais para as representações cotidianas (VIANA, 2008), o “senso comum”, do
que para um pensamento sistemático, mas geralmente é uma propaganda
ideologêmica, mesclando representações cotidianas e ideologia, sendo que esta
aparece fragmentada e perdendo sua sistematicidade. Nesse sentido, não se trata
de ideologia propriamente dita, mas representações cotidianas com elementos
isolados de alguma ideologia. Essas representações cotidianas são ilusórias, ou
seja, expressam um imaginário social.
É desta forma que o discurso
jornalístico cria imagens dos fenômenos sociais. Não há espaço aqui para
discutir as concepções filosóficas e psicológicas da imagem (tanto a imagem
visual quanto a imagem artística)[5],
mas podemos dizer que entendemos por imagem (social, ou seja, distinta da imagem
visual e da artística) uma determinada percepção de um fenômeno social que não
ultrapassa o seu aparecer social, sendo portanto, uma representação ilusória da
realidade[6].
Essas representações cotidianas ilusórias compõem um imaginário social, uma falsa
consciência da realidade. Contudo, se o imaginário é manifestação das
representações cotidianas, isso não quer dizer que toda representação cotidiana
é ilusória. Desde Marx há a percepção de que existem representações verdadeiras
ou falsas da realidade (Marx e Engels, 1990). Contudo, essa posição não é
compartilhada por todos, pois alguns entendem que as representações são sempre
falsas (LEFEBVRE, 2006) ou verdadeiras, tal como na abordagem das
representações sociais (MOSCOVICI, 1977), o que é criticado por outros (VIANA, 2008;
PEIXOTO, 2010).
Existe um processo de
produção e substituição da imagem (SHOTTER, 1977) e o discurso jornalístico
também realiza este processo. Tal discurso realiza a criação de imagens sob os
mais variados fenômenos sociais, mas aqui nos interessa tão-somente a imagem
sobre a violência contra as crianças. Qual é a imagem que o discurso
jornalístico produz sobre a violência? O que é violência?
A questão da violência é
muito ampla e possui diversas abordagens (MICHAUD, 1989). Consideramos a
violência como um fenômeno social caracterizado pela imposição de algo – pela
força física ou por qualquer outra forma de se constranger outro a aceitar algo
indesejável ou prejudicial ao desenvolvimento natural do indivíduo ou grupo
social – realizada por um indivíduo ou grupo social a outro indivíduo ou grupo
social (VIANA, 1999; VIANA, 2002). Por isso se pode falar em diversas formas de
exercício da violência: física, simbólica, sexual, etc.
Mas cabe ressaltar a
diferença entre violência e imagem ou representação da violência, pois é
preciso enfatizar esta diferença para não se cair em equívocos. O discurso
jornalístico apresenta uma imagem da violência e, portanto, apresenta uma
representação da violência. Podemos dizer que
“não se pode tomar a
realidade da violência pelas representações dela produzidas. Sobretudo porque,
não é supérfluo relembrar, diferentes conteúdos valorativos e ideológicos são
responsáveis por diferentes representações sociais da violência” (PORTO, 1995,
p.266).
No caso do discurso
jornalístico isto é bastante visível em relação à violência, tal como foi
objeto de análise de alguns pesquisadores. Diversos pesquisadores já se
debruçaram sobre a questão da imprensa e da violência (VENTURA, 1995;
IMBERT, 1995; CARDIA, 1995). Trata-se de uma relação complexa e que tem vários
aspectos. O nosso foco aqui é a questão do discurso jornalístico sobre a
violência. Nesse caso, vamos partir de uma análise de um caso concreto para
depois passarmos para uma análise do editorial de um jornal relacionando com
nossa ideia de que o discurso jornalístico geralmente reproduz um imaginário
que repassa ideologemas.
Renata Veloso e Miguel
Alsina se debruçaram sobre o caso da atriz Daniella Perez tal como apresentado
pelo Jornal O Globo e revelaram a existência de uma mentalidade por detrás da
imagem do crime cometido, onde se apresenta a vítima como boa por natureza e o
assassino como mau por natureza e faz isto construindo uma versão do crime que
é muito mais uma construção do que uma informação. Tal construção é verificada
em seus diversos mecanismos e após isto os autores concluem que se revela uma
visão de mundo por detrás da pretensa informação. Segundo estes autores,
a construção
discursiva de O Globo, apesar de falar de um crime, revela-nos muito mais que
versões sobre um crime. Revelou-nos uma explicação do mundo onde não havia
espaço para uma reflexão crítica sobre os acontecimentos. O fato real – ou
seja, o crime – foi tirado do seu contexto (complexo) e justificado mediante os
mecanismos demonstrados: construção de uma estrutura maniqueísta e
preconceituosa (ALSINA e VELOSO, 1995, p. 214-215).
Aí se trata de
um tipo específico de violência, a violência criminal. Esta não se enquadra nas
formas de exercício da violência, pois as formas de exercício da violência se
referem ao meio que ela se manifesta (através da agressão física, cultural,
sexual, etc.). Neste caso, temos que diferenciar também quem realiza a violência
e quem é vítima da violência, pois, tal como colocamos anteriormente, a
violência é uma relação social. Por conseguinte, existem aqueles que são os
agentes da violência e aqueles que são as vítimas da violência e com isso a
classificação da violência também se torna mais complexa indo além de suas
formas para enquadrar também os grupos e indivíduos que realizam a violência e
aqueles que são atingidos por ela. Assim se pode falar de violência criminal
quando ela é executado por indivíduos considerados criminosos, violência
policial quando é realizada por policiais, violência estatal quando é efetivada
pelo Estado, etc. Em síntese, a violência é uma relação social e por isso
existem aqueles que estão envolvidos em sua existência.
Desta forma podemos dizer que
a violência pode ser classificada através da forma como ela é realizada,
através dos agentes que a executam e também através daqueles que são suas
vítimas. Mas isto pode ser mesclado. Por exemplo, a violência estatal pode ter
diversas vítimas (divergentes políticos, criminosos, etc.) e diversas formas de
se manifestar (cultural, física, etc.); as vítimas da violência também podem
ser objetos de diversas formas de violência, tal como é o caso da juventude
(violência simbólica, física, etc.) que podem ser realizados por diversos
agentes (policiais, criminosos, familiares, outros jovens, etc.); as formas de
exercício da violência, por sua vez, são utilizadas nos mais variados casos e
muitas vezes se apresentam mesclados (as violências cultural e física em muitos
casos caminham juntas).
As representações da
violência no discurso jornalístico não são homogêneas, assim como existem
divisões e brechas no capital comunicacional, bem como divisão entre os
jornalistas e outros profissionais da área da comunicação, bem como as formas
alternativas de comunicação (rádios universitárias, por exemplo), criam um
espaço para manifestação de representações marginais ou com concepções mais
críticas e sem origens ideológicas ou axiológicas.
O caso citado acima do
jornal O Globo é apenas um exemplo entre milhares. O processo de reportagens
por parte de jornais impressos, radiofônicos e televisivos. Há uma seleção de
quem são os entrevistados, quais são as perguntas, qual é o foco. Os
entrevistados vão ter suas entrevistas reduzidas e editadas. A consulta rápida
e aleatória a determinados jornais impressos (ou mesmo televisivos) confirma
isso, pois geralmente os sociólogos entrevistados ocupam uma parte mínima do
espaço e delegados e outros que confirmam a posição do jornal ganham um espaço
muito maior.
Esse processo de edição
mostra uma determinada preferência e opinião, sub-repticiamente manifesta por
ao abordar duas posições distintas, enfatiza e oferece mais tempo para a
posição dos detentores dos meios de comunicação e seus representantes. A
preferência pelo discurso do delegado, nos dois exemplos citados, em detrimento
do discurso do sociólogo, revela o discurso jornalístico, reprodutor das ideias
dominantes. O discurso dos delegados acaba naturalizando a violência, o que é típico
em diversas ideologias (VIANA, 2004; VIANA, 2002) e isso legitima a
reivindicação de mais repressão, aparato policial, redução da idade penal, pena
de morte, etc. É um discurso ideologêmico, fundado em representações que
naturalizam a violência e a sociedade existente, reproduzindo os valores
dominantes.
Ao analisar um editorial do
jornal Folha de São Paulo temos mais elementos para entender o discurso
jornalístico, analisando um caso concreto. Esse caso é exemplar, pois sendo o
editorial do referido jornal, então revela a posição assumida pelo mesmo diante
do tema apresentado. O editorial do Jornal Folha de São Paulo do dia 18 de
janeiro de 2013 inicia-se assim:
A onda de violência
que se abateu sobre a Grande São Paulo no segundo semestre do ano passado
parece ter sofrido um refluxo após a posse do novo secretário da Segurança
Pública, Fernando Grella Vieira, que assumiu o cargo no final de novembro.
Ainda assim, a insegurança persiste na periferia.
A afirmação aparentemente é
mera informação. Contudo, o discurso jornalístico, assim como o científico e
todos os que precisam aparentar neutralidade, convive com a presença do
explícito e do implícito. O explícito é aquilo que é dito diretamente, o que é
transparente, direto, declarado, admitido. O implícito é aquilo que fica
oculto, subliminar, sub-reptício, indireto, subentendido, o que fica nas
“entrelinhas”. Este é próximo ao “não dito”, para usar expressão de Foucault
(1996). O trecho acima citado tem informações explícitas: houve uma onda de
violência no segundo semestre na cidade de São Paulo de 2012; Fernando Grella
Vieira assumiu a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo no final de
novembro de 2012; persiste a insegurança na periferia da capital paulista.
Contudo, ao lado das meras informações, há o implícito, que começa com uma
relação estabelecida: a onda de violência “parece ter sofrido um refluxo após a posse do novo
secretário”. A
palavra “parece” é, obviamente, inconclusiva, mas passa uma determinada
mensagem que relaciona diminuição da violência com posse de novo secretário. O
editorial continua:
Na
sexta-feira à noite, 14 homens encapuzados mataram sete pessoas em um bar na
zona sul da cidade. A chacina se deu na mesma rua em que, dois meses atrás,
cinco policiais militares assassinaram um suspeito desarmado --cena deplorável
exibida na televisão.
A
ocorrência desse tipo de episódio mostra que o sangrento 2012 ainda não
cicatrizou totalmente, sem que a população tenha sido informada sobre as
verdadeiras razões da escalada de violência.
O
número de chacinas na região metropolitana de São Paulo vinha caindo de forma
constante desde 2007. Subitamente, as matanças saltaram de 12, em 2011, para 24
no ano passado, e o número de mortos nesses casos foi de 41 a 80.
De
todos esses homicídios múltiplos cometidos em 2012, até agora apenas um foi
solucionado pelo Estado --e seis policiais militares terminaram presos acusados
de participar do crime.
A falta de esclarecimento
infunde medo na população, que se sente à mercê da violência. Pior, alimenta a
hipótese, sinistra, de que policiais estejam envolvidos em outros episódios.
Sintoma desse quadro, pesquisa Datafolha do final de novembro mostrou que 53%
dos paulistanos sentiam mais medo do que confiança na Polícia Militar.
Novas informações são
apresentadas. O editorial informa sobre mortes na zonal sul de São Paulo: no
mesmo local onde no ano passado policiais militares assassinaram um suspeito
desarmado. Isto seria uma “cena deplorável”. Esta afirmação revela um valor
atribuído ao acontecimento. A informação é fornecida para justificar a
afirmativa de que “a escalada de violência do ano anterior ainda não havia
cicatrizado totalmente”, ou seja, o alto índice de violência não havia sido
totalmente superado. As verdadeiras razões desta escalada de violência não foi
informada à população. Ora, se não informada a verdadeira razão, então outra,
provavelmente falsa, era conhecida. Isso fica implícito. Outra informação: de
todos os crimes do ano anterior, apenas um foi solucionado e envolvia policiais
militares. O editorial continua afirmando que o não esclarecimento da população
sobre as verdadeiras razões de tal violência provoca medo na população,
inclusive da polícia militar, pois alimenta a hipótese, “sinistra”, do
envolvimento policial. Isso é complementado com a informação de uma pesquisa
que demonstra que a maioria da população (53%) sente mais medo do que confiança
na polícia militar, que seria “sintoma desse quadro”. A expressão sinistra, que
significa, tal como se observa nos dicionários, “apavorante”, “alarmante”,
“aterrorizante”, mas também “perversa”, “maldita” pode ser interpretada como
sendo uma hipótese lamentável (devido ao não esclarecimento das causas da escalada
de violência), o que seria um eufemismo e consideração do editorial amenizando
o que viria depois ou poderia ser colocada no sentido de ser assustador, o que
colocaria a posição do jornal contra o envolvimento da polícia militar em
crimes ou, ainda, uma ambiguidade premeditada para não deixar explícito o seu
posicionamento. No entanto, o conjunto das afirmações e até a seleção das
informações (diversos outros atos de violência sem envolvimento da polícia
poderiam ter sido selecionados e citados) apontam para uma posição crítica em
relação à polícia militar.
As afirmações seguintes
trazem novos elementos analíticos:
Para
o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro: a troca de comando na Secretaria da
Segurança Pública já melhorou a situação. A diminuição no número de homicídios
dolosos na capital corrobora a impressão.
Apesar
disso, as suspeitas não se dissiparam. Moradores da região de São Paulo onde
ocorreu a primeira chacina de 2013 atribuíram as mortes a agentes da PM, o que
não foi comprovado.
O
secretário Fernando Grella Vieira parece empenhado em reparar os estragos e
restaurar a confiança no trabalho da polícia. É imprescindível que o faça, e
esclarecer esses morticínios é um dos primeiros passos nessa direção.
O passo seguinte foi seguir
a lógica das reportagens e lançar mão de um especialista, logo, uma “autoridade
no assunto”, o sociólogo Ignacio Cano, que afirma que a situação melhorou com a
troca no comando da Secretaria da Segurança Pública. A diminuição dos
homicídios, a afirmação seguinte, “confirma” a “impressão”. Isso não promoveu o
fim das “suspeitas” a respeito da participação de policiais militares na
chacina de 2013. O último parágrafo termina com a afirmação de que o novo
secretário “parece” estar empenhado em “reparar os estragos” e “restaurar a
confiança no trabalho da polícia”. O editorial novamente se posiciona ao
afirmar que tal esclarecimento a respeito desses “morticínios” é
“imprescindível” e “um dos primeiros passos nessa direção”.
O discurso presente no
editorial aponta para algumas afirmações e posicionamentos. As afirmações
(fatos, avaliações, etc.) são principalmente a de que há uma escalada de
violência em São Paulo, que há um possível envolvimento da polícia militar, que
a população não foi esclarecida e isso reforça essa hipótese de envolvimento,
bem como que o novo secretário parece estar interessado em resolver o problema,
pois já teve uma diminuição. A posição do jornal está mais ou menos explícita:
há um medo da população provocado pelo não esclarecimento das razões da
escalada de violência na cidade de São Paulo e uma relação com a polícia
militar. Implicitamente o jornal confirma tal relação entre escalada de
violência e ação policial. E se posiciona no sentido de que o novo secretário
esclareça a situação, como primeiro passo, para organizar a polícia militar e
impedir a continuação da “escalada da violência”.
Em outras palavras, a
posição do jornal parece ser progressista e contra a violência policial.
Contudo, uma análise mais pormenorizada pode explicitar o implícito e mostrar
que, se a posição do jornal não é abertamente reacionária e não é favorável à
polícia militar, mas também não é progressista e crítica. Os elementos implícitos
ajudam a entender o caráter ideologêmico do posicionamento do editorial do
jornal. Em primeiro lugar, o editorial evita acusar a polícia militar da
responsabilidade de diversos atos de violência, o que pode ser interpretado
como “cautela”. No entanto, além da cautela há outros elementos. O primeiro
elemento é a força atribuída ao novo secretário de esclarecer e agir sobre esse
processo. A ideia de que cabe a um indivíduo fazer isso poderia ser um
fragmento de uma ideologia individualista, mas repassa a ideia de que o Estado,
através do governo (e, por conseguinte, da Secretaria de Segurança Pública)
representa a sociedade como um todo e é neutra, acima da sociedade de classes.
O caso da polícia militar é apenas, nesse caso, um elemento “disfuncional”,
que, pode ser resolvido com um ato do governo. Essa concepção repassada é
voluntarista e estatista, pois o Estado é que deve resolver os problemas
sociais, mesmo quando é ele que cria o problema.
O discurso jornalístico tem
um impacto sobre as representações cotidianas e é um elemento que possibilita a
monotonia repetitiva da
argumentação, algo que já foi identificado em outros casos (ALVIM, 1994).
Tal “monotonia repetitiva da argumentação”, no caso, era a ideia de que é
melhor a criança trabalhar do que ficar na rua (ALVIM, 1994). Como esse processo
ocorre em diversos outros casos e é muito presente nos discursos desenvolvidos
por pessoas não especializadas, ou seja, no campo das representações
cotidianas, então é interessante discutir seu significado e processo de
constituição. Esse fenômeno pode ser melhor denominado como o uso de chavões
para sustentar uma posição. Para sustentar a posição de que deve haver trabalho
infantil, apela-se para o chavão segundo o qual “é melhor trabalhar do que
ficar na rua”. As representações cotidianas têm como uma de suas
características a simplicidade (Viana, 2008) e por isso é necessário entender
que os chavões são recursos constantes e acabam recebendo difusão e
generalização na população. A constituição dos chavões era realizada pela
tradição oral, mas, com a emergência dos meios oligopolistas de comunicação
(jornal impresso, rádio, TV), estes acabam sendo outras fontes da produção,
reprodução e/ou difusão de chavões. Um destes chavões foi criado recentemente
no Brasil, principalmente por policiais, referente à discussão sobre redução da
maioridade penal, segundo o qual “a partir dos 14 anos o indivíduo já sabe o
que faz”, embora alguns podem “mudar a idade”, seja para mais ou para menos.
Quando os meios oligopolistas de comunicação apresentam tais chavões através de
entrevistas ou outras formas e, geralmente concordando[7],
há uma generalização do chavão junto à maioria da população. Posteriormente, ao
entrevistar a população sobre determinado acontecimento e essa lança mão desse
chavão, ela apenas reproduz o que o discurso jornalístico produziu. E isso
acaba gerando um círculo vicioso caracterizado pela propagação expandida do chavão. Um exemplo disso são as entrevistas
de determinados telejornais, mostrando o apelo ao chavão pela maioria dos
entrevistados para sustentar sua posição, ou, em alguns casos, todos os
entrevistados (apesar de ser isso questionável, não somente por questão de
poder se duvidar da honestidade do telejornal, mas também pelo local, tamanho
da amostra ou outras características das pessoas entrevistadas e não ter
mostrado outra posição)[8].
Obviamente que
o discurso jornalístico e o chavão de que o menor de 18 anos já é consciente e
responsável, traz, implicitamente, outra determinada representação da
violência, que é a de que ela se constitui como responsabilidade individual – o
que está de acordo com as concepções neoliberais e pós-estruturalistas que hoje
são hegemônicas – e que de que o remédio para esse mal é a punição, o que
também está de acordo com a ideologia neoliberal, fundada na prática repressiva
do “Estado penal”, para utilizar expressão de Löic Wacquant (2001).
O impacto do
discurso jornalístico na população é forte, mas ele atua em grande parte no
nível da opinião e não no nível da convicção, dois elementos constituintes das
representações cotidianas (VIANA, 2008). É por isso que é importante utilizar
as brechas dos meios oligopolistas de comunicação para superar os chavões e a
reprodução das representações conservadoras, ideologêmicas, axiológicas, bem
como ampliar as formas e meios de divulgar uma reflexão mais crítica e profunda
do que as veiculadas em tais meios.
Considerações finais
A conclusão
geral que chegamos é a de que as representações da violência no discurso
jornalístico repassam uma determinada mensagem marcada pela manifestação de uma
concepção ideologêmica, ou seja, um fragmento de ideologia, geralmente aquelas
que naturalizam o fenômeno social da violência. A análise do discurso
jornalístico em alguns casos comprova isso. Contudo, a abordagem aqui
apresentada não tem caráter generalizador, pois é mais que conhecido o fato de
que existem exceções, ou seja, essa conclusão não se aplica a todo e qualquer
discurso jornalístico. A realização de novas pesquisas sobre o discurso
jornalístico e o que fica implícito nele é uma das mais instigantes e
promissoras da sociologia contemporânea.
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* Professor
da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em
Sociologia pela Universidade de Brasília; autor dos livros “O Capitalismo na
Era da Acumulação Integral” (São Paulo: ideias e Letras, 2009); “Cinema e
Mensagem” (Porto Alegre: Asterisco, 2009); “Quadrinhos e Crítica Social” (Rio
de Janeiro: Azougue, 2013); “Cérebro e Ideologia” (Jundiaí: Paco, 2010), entre
outros.
[1] Sobre
isto consulte-se Faria (1979); sobre a história da imprensa escrita, veja-se
Terrou (1964).
[2] Daí a idéia
de totalidade, criticada e ausente na obra de Foucault. Sobre totalidade,
pode-se ler Lukács (1989); Korsch (2008), Viana (2007) e Marx (1983).
[3] O
ideologema é um fragmento de uma ideologia (VIANA, 2013), entendendo-se por
esse um sistema de pensamento ilusório e cuja sistematicidade não pode ser
reproduzida pelo discurso jornalístico.
[4] Os
autores citados, no entanto, usam a expressão “propaganda ideológica”.
[5] Um
histórico da concepção de imagem na filosofia e psicologia pode ser visto em
Sartre (1987) e Paim (1972).
[6] A
aparência e a essência não coincidem imediatamente na consciência humana, tal
como colocou Marx, pois se isto ocorresse a ciência seria supérflua (Marx,
1988).
[7] Como foi
colocado anteriormente, não existe neutralidade e os discursos jornalísticos
expressam valores, representações, sentimentos, embora geralmente moderados,
camuflados ou implícitos.
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Publicado originalmente em:
VIANA,
Nildo. As Representações da Violência no Discurso Jornalístico. Comunicação e Política. Vol. 31, num.
02, Mai./Ago. 2013b.
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