DA
OCUPAÇÃO DAS RUAS À OCUPAÇÃO DA VIDA:
UMA
ANÁLISE DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES NO BRASIL ATUAL
Nildo Viana
Ocupação é o ato de
ocupar, tomar conta de um território ou lugar. Esse é o processo que vem
ocorrendo na sociedade brasileira atual. A ocupação das ruas através das
manifestações foi um processo que acabou se espalhando e generalizando. Jovens,
principalmente estudantes secundaristas e universitários, ocuparam as ruas das
cidades para realizar protestos. Em Porto Alegre e Goiânia ocorreram as
primeiras ocupações através de manifestações contra o aumento da passagem. Em
várias manifestações isto se repetiu e a violência estatal através da polícia
no dia 28 de maio em Goiânia, bem como no dia 13 de junho em São Paulo,
incentivou um processo de adesão popular crescente ao movimento que ganhou
força e espaço em todas as discussões, meios de comunicação e nas próprias
ruas. Houve uma crescente ocupação das ruas pela população. A questão do preço
da passagem de ônibus foi o estopim, mas novas questões surgiram e se
desenvolveram. Agora há a perspectiva de ocupar não apenas as ruas, mas também
a sociedade como um todo, a vida em sua totalidade. Esse é o tema que
abordaremos agora.
As
razões da ocupação das ruas
A ocupação das ruas só
ocorreu devido ao fato das ruas não pertencerem à população. A onda de
protestos que ocorre na sociedade brasileira é derivada da grande insatisfação
com o transporte coletivo (preço da passagem, qualidade do atendimento, etc.) e
diversas outras questões sociais. As primeiras manifestações focalizam mais a
questão do transporte coletivo, que deveria ser estatal, mas é pertencente à
iniciativa privada que visa o lucro e não a satisfação das necessidades dos
usuários. O capital transportador, um setor do capital que lucra com a
exploração do transporte coletivo, obtém lucros que expressam a transferência
de renda da população para os seus cofres. Contudo, essa é uma questão que gera
insatisfação na vida cotidiana dos indivíduos, e para as classes desprivilegiadas
(proletariado, lumpemproletariado, trabalhadores em geral) o preço da passagem
pesa no seu bolso e o aumento gera um descontentamento por isso e ainda ser no
contexto de um péssimo serviço prestado (superlotação é apenas o exemplo mais
visível desse processo). No entanto, a população está insatisfeita com milhares
de outras coisas. No fundo, numa sociedade fundada na exploração e dominação,
no trabalho alienado, num processo de constante competição, burocratização e
mercantilização de tudo, na qual a vida é alienada, então não falta motivo para
insatisfação. Contudo, a força da hegemonia cultural da classe dominante, os
meios oligopolistas de comunicação, o papel do Estado, o apoio de outras
classes sociais privilegiadas (burocracia, intelectualidade, etc.), a repressão
policial, e diversos outros elementos constitutivos da atual sociedade,
incluindo os escapismos (televisão, internet, drogas, calmantes, consumismo, etc.)
ela não se manifestava. E por qual motivo se manifestou agora?
O motivo principal por
ter ocorrido foi o processo que essa sociedade que gera milhares de formas de
insatisfação ainda vem piorando as condições de vida das pessoas, ampliando
assim a quantidade e intensidade das insatisfações. A emergência do regime de
acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2003), caracterizado pela constituição
do toyotismo e reestruturação produtiva, neoliberalismo e neoimperialismo (“globalização”),
promoveu um aumento generalizado da exploração, da pobreza, do desemprego,
inclusive nos países imperialistas. Nesse contexto, a estabilidade política
nestes países foi suplantada e as revoltas e manifestações passaram a aumentar,
bem como nos países já caracterizados por uma alta exploração, e as lutas
sociais no México e Argentina apontam para isso. Esse processo tende se ampliar
e o caso brasileiro é apenas um sintoma disse, pois tal regime de acumulação, a
partir de 1999, começou a dar os seus primeiros sinais de esgotamento. Foi,
inclusive, nesse contexto, que emergiram várias lutas (nos casos já citados do
México e Argentina, mas também as revoltas na França em 2005 e outras
manifestações pelo mundo que foram se tornando cada vez mais cotidiano) e o
movimento denominado “antiglobalização” foi uma das consequências desse
processo. O período do pensamento único
e da hegemonia neoliberal quase absoluta é superado e em seu lugar se retoma
concepções revolucionárias (anarquismo, conselhismo, situacionismo) e críticas,
e as lutas e manifestações se ampliam, com avanços e recuos, fazendo parte da
cotidianidade do capitalismo contemporâneo dominado pelo regime de acumulação
integral. O “fim da história” propagandeado por Fukuyama (1992) foi recusado
nas ruas e nas mentes de muitos indivíduos, e a hegemonia absoluta do
neoliberalismo foi suplantado e apenas uma hegemonia relativa passou a existir.
Mas a sociedade
brasileira parecia estar vivendo em um “mar de rosas”. Um governo de um partido
denominado “dos trabalhadores”, com uma presidenta com popularidade de 73%,
aparecendo como uma grande economia, a sexta no mundo, entre outros elementos que
reforçavam a imagem de um país com estabilidade. Isso, no entanto, não aboliu o
conjunto das insatisfações existentes e nem teve grandes efeitos na vida
cotidiana dos indivíduos, principalmente os das classes exploradas. As condições
de vida são extremamente precárias, o processo de exploração se intensificou,
os níveis de desemprego são elevados, a precarização do trabalho se ampliou,
bem como os serviços de saúde, educação, entre outros, também pioraram, graças
às políticas neoliberais dos sucessivos governos até chegar ao atual. E as
políticas neoliberais são excessivamente repressivas e voltadas para conter as
revoltas, manifestações, movimentos sociais, etc. Como já dizia Bobbio, o
Estado neoliberal é mínimo (em gastos estatais e políticas sociais) e forte (em
repressão). Por isso produziu a política de tolerância zero e foi chamado pelo
sociólogo francês, Löic Wacquant (2001) de “Estado penal”.
Porém, isso não ocorreu
agora. A situação já está assim há muito tempo. Contudo, o regime de acumulação
integral vai se esgotando, bem como desenvolvendo e ampliando seus problemas de
reprodução. A crise financeira de 2008 veio reforçar tal esgotamento e os
efeitos no Brasil demoraram um pouco mais e apareceu com um impacto menor. Mas
as coisas começaram paulatinamente a piorar, desde o chamado “crescimento
econômico” que começou a decair, a inflação que vai aumentando paulatinamente,
convivendo com a desilusão de amplos setores da sociedade com o governo
supostamente socialdemocrata que no fundo é neoliberal, bem como o
descontentamento geral da população com os partidos e governos, bem como o
sistema eleitoral (basta ver os índices crescentes de voto nulo, branco e
abstenções). As lutas político-partidárias perderam o sentido e a corrupção
geral, que atinge todos os partidos, provocam uma recusa crescente da
democracia burguesa, chamada também de “representativa”, fundada nas
burocracias partidárias e no sistema eleitoral. Assim, dentre os setores mais
desiludidos e contestadores se encontra a juventude.
A precarização das
universidades vem crescendo paulatinamente e a greve que atingiu quase todas as
instituições federais de ensino, devido a isso e nova investida do governo que
precarizava ainda mais o que já era precário, foi outro sintoma. As greves
conseguiram poucos resultados e a insatisfação nos meios estudantis nessas
instituições era visível. O mesmo ocorreu nos institutos federais de educação e
tecnologia, as antigas escolas técnicas, bem como no ensino público em geral. E
novas investidas do governo Dilma, inclusive a ofensiva contra disciplinas como
história, sociologia e filosofia, o que recorda o regime militar, é apenas mais
um detalhe e motivo para insatisfação.
Nesse contexto todo, as
novas ações das empresas capitalistas e do governo aumentam mais ainda o
descontentamento popular e da juventude em especial. O aumento dos preços das
passagens, no bojo do descontentamento já existente, inclusive com a
reivindicação a muito tempo de passe livre para os estudantes, foi apenas a
“gota d’agua”, o copo encheu e transbordou. Os jovens, principalmente
secundaristas e universitários, mas aglutinando outros setores da sociedade,
protestaram, manifestaram. Não obtiveram grandes êxitos e a resposta dos
governos foi, novamente, a repressão, inclusive com violência excessiva e
truculência. Além disso, tal como se pôde observar nas afirmações de Fernando Haddad,
prefeito de São Paulo e que escreve livros sobre “socialismo”, o governo não
iria ceder. A política de endurecimento, não negociação e repressão, se
apresentou como semelhante ao caso de alguns países europeus com suas políticas
de austeridade e repressão. A repressão violenta contra as manifestações
provocou o seu fortalecimento e o apoio popular crescente e novas
reinvindicações foram realizadas e nesse processo todo novos setores
engrossaram as fileiras do movimento e o conjunto das insatisfações começou a
se delinear em diversas manifestações. As ruas foram ocupadas.
As
ruas ocupadas e a vidas roubadas
Uma vez desencadeado o movimento
de ocupação das ruas pelas manifestações estudantis e que posteriormente se
tornou da população como um todo, ampliando as reivindicações e o pensamento
crítico na sociedade, a estratégia governista foi alterada, bem como a posição
de alguns dos meios oligopolistas de comunicação. A estratégia governista era a
repressão e criminalização dos protestos e a imprensa em sua maioria acusava os
manifestantes de vandalismo. Com o processo de ampliação da ocupação das ruas,
o apoio popular crescente e novos setores entrando na luta, a estratégia
governista mudou e o discurso da grande imprensa também. Uma nova
“interpretação” passou a circular na imprensa e a criminalização das
manifestações passou a ser substituída pelo apoio. Claro que os governos passaram
a evitar o uso desmedido da repressão e o aumento do contingente de pessoas
participando das manifestações fez com que se buscasse influenciar os rumos do
movimento, dando-lhe novo caráter. A estratégia passou a ser defender o direito
e legitimidade das manifestações, desde que pacíficas e controladas pelo
Estado. No entanto, como isso não convence aqueles que já estavam engajados
nessa luta e certos setores da sociedade, então se buscou produzir uma
diferenciação no movimento, colocando que alguns produzem atos de vandalismo e
esses podem e devem ser reprimidos. Da repressão generalizada passou-se para a
repressão localizada.
A questão é que o
discurso dos meios oligopolistas de comunicação também foi mudando e se
encaixando nessa nova estratégia. A ideia era a de que já que não era possível
evitar as manifestações, cujo estopim foi o movimento inicial e mais
politizado, então era influenciar esse movimento, principalmente no caso da
parte da população que aderiu a
posteriori às manifestações, no sentido de lhe dar a direção. Nesse mesmo
momento, os partidos políticos começaram a tentar realizar o mesmo movimento de
influência, buscando apoiar, mas dando-lhe outro sentido, querendo canalizar as
manifestações para seus interesses político-partidários. Os partidos
assumidamente de direita passaram a usar os protestos para acusar os governos
de outros partidos e a nível geral, os partidos fora do governo federal
passaram a focalizar a questão do Governo Dilma. Os pequenos partidos que se
dizem de esquerda, mas cujas práticas em pouco difere dos demais, por sua vez,
apareceram oportunisticamente nas manifestações com suas bandeiras, o que lhe
valeram vaias e contestações.
Assim, o que os
partidos, imprensa, governo, etc., buscaram fazer, é ao invés de reprimir e
condenar as manifestações, apoiar e tentar dirigir as mesmas, buscando
transformá-las em luta de partidos ao invés de luta de classes. E isso a
suposta “esquerda” apoiou e como sempre contribuiu para desvirtuar o movimento.
A transformação da luta de classes em luta de partidos acaba provocando algo
diferente do momento inicial das manifestações, quando eram predominantemente
estudantis, que é a luta pela hegemonia. A intenção da classe dominante e dos
governos é redirecionar o movimento e a existência de inúmeras reivindicações
acaba facilitando esse processo. A questão da corrupção, que é uma questão de
governos e partidos, passa a aparecer com certa evidência. Sem dúvida, existe a
corrupção e é um problema que deve ser trabalhado e combatido. Mas é necessário
entender que a corrupção é um fenômeno generalizado que atinge todos os
partidos e governos. O problema é canalizar a questão para a corrupção de um
governo específico, esquecendo a corrupção do outro governo (não somente os
anteriores, mas, por exemplo, abordar a corrupção no governo estadual
esquecendo da existente no governo federal, a do partido X e não a do partido
Y).
Por isso, o movimento
corre o risco de ser reorientando numa direção moderada e que nada resolve na
vida da população. Isso será resultado da luta que está sendo travada hoje em
diversos momentos e lugares. Se isso ocorrer, vai significar uma derrota. E
será uma derrota tão grande que além de terem roubado as vidas das pessoas, o
que incentiva a população protestar e contestar, agora roubam até a sua
contestação. É isso que aqueles que detém o poder estão querendo: roubar,
dirigir, desvirtuar a contestação. Para a população, é necessário retomar o
controle da sua contestação e não fazer o jogo da classe dominante. As vidas
foram roubadas e agora querem roubar o que restou numa sociedade burocratizada,
mercantilizada e competitiva que massacra os indivíduos cotidianamente e que os
remédios, os calmantes, ajudam a manter intacta. Contudo, isso gera mais
insatisfação, mais possibilidade de contestação e talvez, o que é uma das
possibilidades, vá gerar a luta para retomar a vida em sua totalidade, com a
população buscando se reapropriar do que lhe foi expropriado.
Uma
ocupação da vida?
A vida dos indivíduos,
da população em geral, foi roubada. O trabalho alienado, o consumo alienado, o
lazer alienado, a vida alienada. A vida da população é dirigida, controlada,
por outros. A vida não pertence aos indivíduos. Restou para os indivíduos a
luta contra essa sociedade que lhe retira tudo e transforma em mero componente
de uma grande engrenagem burocrática voltada para a acumulação de capital que
beneficia apenas uma minoria, a classe dominante e suas classes auxiliares. A
luta é um dos poucos espaços de liberdade, apesar de ser ela mesmo um campo de
luta e que os partidos supostamente de “esquerda” buscam se apropriar. A
explosão de manifestações e protestos na sociedade brasileira é expressão desse
desejo de liberdade e uma primeira forma de sua concretização. As pessoas
vibrando nas ruas por ter um pequeno ato de liberdade, uma euforia contagiante,
uma efervescência que acompanha todos os processos revolucionários (Decouflé,
1970).
Contudo, o que os
governantes e a grande imprensa buscam fazer é tentar se apropriar dessas
manifestações, dirigi-las, o que significa abolir a liberdade existente na
luta. Ao controlar a luta, ela perde o seu sentido. Mas é preciso controla-la,
da perspectiva do poder, da classe dominante. Isso por dois motivos básicos: a
sua força e reivindicações são um perigo para quem detém o poder (e a
propriedade privada), já que os governantes não querem atender as
reivindicações, pois isso afetaria o lucro das empresas capitalistas e teriam
efeitos eleitorais, entre outros, bem negativos para os mesmos e o outro
motivo, mais profundo e que é um grande temor da classe dominante, o gosto da
liberdade pode gerar a reinvindicação de uma liberdade total, a transformação
da vida em sua totalidade. Isso significaria, o que é proposta de muitos
setores atuantes nas manifestações, a dispensa dos governos e a reapropriação
da vida como um todo.
A luta no interior da
luta é uma preparação e uma antecipação de uma vida autêntica, fundada na
liberdade e na igualdade. As pessoas que se sentiram mais realizadas e livres
nas ruas podem querer que isso se torne o seu cotidiano, a sua vida não em um
momento delimitado, mas em todos os momentos, não apenas nas ruas, mas no seu
local de trabalho, estudo, moradia. É preciso dar o passo seguinte e ocupar não
somente as ruas, mas a vida. Ocupar a vida é tomar conta dela e viver de uma
forma que não seja fundada na exploração de classe, na dominação, na opressão,
e que ao invés de ser mero meio para a aquisição de lucro para outros, ela seja
uma forma de satisfação das necessidades humanas e realização das
potencialidades dos indivíduos. Nesse sentido, a ocupação das ruas ganha um
novo significado: antecipação e preparação para a ocupação da vida. A abolição
de uma sociedade desumana e a constituição de uma nova sociedade, humanizada. A
passagem de uma sociedade que existe para reproduzir o capital para uma
sociedade cujo objetivo é reproduzir a vida humana. Isso significa que o temor
da classe dominante está ligado a um processo real, que pode ou não se
realizar, que vai ser o resultado de várias lutas, inclusive a luta pela
hegemonia no seu interior. A autogestão social é um desejo humano, mesmo que
sem utilizar determinadas palavras ou ter uma concepção mais claro que isso
seja, e uma possibilidade, uma tendência e por isso devemos reforçá-la para
contribuir com sua concretização.
O importante é que essa
possibilidade existe, como sempre existiu, mas em determinados momentos se
torna mais provável do que em outros. E, no fundo, o que decide isso é a
população, são os indivíduos e suas ações, inclusive superando seus medos e
compromissos com a sociedade existente, que provocam o seu massacre cotidiano.
Então é hora de ocupar as ruas e lutar por isso e assim contribuir com a
ocupação da vida.
Referências
DECOUFLÉ, André. Sociologia das Revoluções.
São Paulo: Difel, 1970.
FUKUYAMA,
Francis. O Fim da História e o Último
Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
VIANA, Nildo. Estado,
Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo.
Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
VIANA,
Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e
Letras, 2009.
WACQUANT,
Löic. As Prisões da Miséria. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Da ocupação das ruas à ocupação da vida: uma análise das manifestações populares no Brasil atual. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 4, 20 de junho de 2013. [ISSN 22380-5525].
Crie seu site grátis: http://www.webnode.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário