Os Efeitos do
Contemporâneo
Nildo Viana*
O conceito de contemporaneidade é
bastante utilizado, mas pouco definido. O seu uso geralmente é descritivo e
cronológico, sem possuir uma fundamentação teórica. Tal uso é marcado por uma
fraqueza, típica das classificações arbitrárias e periodizações superficiais,
que só pode ser superada através de uma fundamentação teórica. Para superar
isto que é necessário uma base teórica. O objetivo do presente texto é
justamente contribuir com a constituição desta base teórica e a partir dela
reconsiderar o conceito de contemporaneidade.
Antes disso, porém, é preciso
esclarecer a diferença entre os conceitos de moderno e contemporâneo. A
modernidade é um conceito amplo, que remete ao período histórico de vigência da
sociedade moderna. Desta forma, sociedade moderna é a mesma coisa que sociedade
capitalista e modernidade o mesmo que capitalismo. O termo contemporâneo, por
sua vez, remete, no sentido comum da palavra, ao que é do mesmo tempo que se
fala, expressando a época atual. Porém, o problema reside justamente em saber
qual é a delimitação de “época atual”. A
partir dessa discussão é possível apontar para algumas das determinações e
características da contemporaneidade, inclusive os efeitos do contemporâneo,
especialmente o presentismo, uma percepção da realidade que acaba sendo uma
jaula mental dos indivíduos que possuem dificuldade de perceber a historicidade
de sua época e das concepções hegemônicas nesse momento histórico.
O problema da periodização
Na historiografia escolar, ainda
se usa a periodização marcada pelas “idades”: Antiga, Média, Moderna e
Contemporânea. Essa periodização, além da linguagem pobre e pré-teórica, não
esclarece muito, além de homogeneizar as diferenças sociais e espaciais tomando
como critério uma delimitação temporal pouco fundamentada e tomando o caso da
Europa Ocidental[1].
Outras periodizações também não ultrapassam a superficialidade e o aparecer
social, tal como naquelas que se fundamentam na história da política
institucional para periodizar a história de um país[2].
Porém, a periodização da
historiografia merece uma discussão, que nem todos que se preocuparam com as
questões teórico-metodológicas desta disciplina se ocuparam ou deram a devida
importância. Quando Van Der Pot afirmou que “a divisão da história em períodos
constitui a quintessência de toda a concepção da história” (apud. DUJOVNE,
1959, p. 271), estava exagerando, mas, ao mesmo tempo, alertando para uma
discussão necessária e pouco realizada entre os historiadores, justamente aqueles
que se dedicam ao estudo da história da humanidade. Não nos ocuparemos da
periodização pré-científica, pré-historiográfica, pré-marxista, tal como as
denominadas por Besselar (1979) como “mitológica” e “bíblica”. Também não
poderemos, por questão de espaço, analisar detalhadamente várias outras
periodizações, mas tão-somente refutar a mais usual, a periodização
quatripartite das idades. A quase inexistente discussão sobre a questão da
periodização da história da humanidade na contemporaneidade é algo curioso e
mostra como a historiografia se encontra num momento de letargia intelectual[3].
A distinção realizada por Van Der
Pot, seguindo terminologia de Wildeband, entre periodização fundada em divisões
nomotéticas e ideográficas, serve para uma observação geral. A periodização
ideográfica não se fundamenta em uma lei da história, que é justamente o que
caracteriza a periodização nomotética (DUJOVNE, 1959). As primeiras são a base
das periodizações arbitrárias e empiricistas, enquanto que as segundas são a
base das periodizações positivistas clássicas. Precisamos acrescentar uma
terceira forma de periodização que rompe com a ideologia do conhecimento
fundada na separação entre sujeito e objeto, separação metafísica (VIANA,
2007). Na ideologia, realmente a realidade e a consciência[4] realmente estão separados,
mas trata-se de uma separação devido ao fato de ela expressa determinados
valores e interesses de classes que se contenta em reproduzir o aparecer
social. A dominação se reforça com a ilusão. Neste sentido, a unidade entre
realidade e consciência é possível partindo-se da perspectiva do proletariado,
tal como o faz o marxismo, o que significa que a partir de uma teoria da
história é possível se fundar uma base concreta para uma periodização da
história da humanidade. Desta forma, a teoria marxista da história serve de
base para uma periodização que rompe, simultaneamente, com o empiricismo e com
o racionalismo, ou, segundo os construtos da ideologia dominante, com o
subjetivismo e com o objetivismo.
Pagès realizou uma análise da
questão da periodização inspirado no marxismo. A periodização da história da
humanidade em quatro idades é considerada por Pagès como absurda e ele coloca
dois motivos para isso: em primeiro lugar, é uma arbitrariedade cronológica, os
anos de início e fim de uma idade não são significativos para o desenvolvimento
da história universal; em segundo lugar, tal periodização se limita ao caso
europeu (PAGÈS, 1983). Além dos defeitos intrínsecos da divisão por idades, há
também o problema adicional e não explicado da chamada “Idade Contemporânea”,
que não possui nenhuma justificativa. Idade Contemporânea é uma expressão, como
já dizia Spengler, “ridícula e desesperada” (apud. RAMA, 1968).
Assim, vemos que a divisão da
história da humanidade em “idades” é limitada, problemática e sem fundamentação
teórica. Este esquema, que inicialmente foi tripartite (Idades Antiga, Média e
Moderna) se tornou quadripartite (Idades Antiga, Média, Moderna e
Contemporânea). O acréscimo do contemporâneo é tão arbitrário e sem sentido
quando a divisão como um todo.
Esta concepção simplista e
meramente classificatória foi superada teoricamente pela teoria marxista da
história, que através de uma teoria da realidade não-metafísica passou a
periodizar a história da humanidade a partir da sucessão dos modos de produção.
Esta periodização, cujo esboço foi produzido por Marx (MARX e ENGELS, 2002; MARX,
1983), e desenvolvida por alguns de seus seguidores (PAGÈS, 1983; DHOQUOIS,
1975), e deformada por outros, apresenta como base uma teoria da história e a
história real e concreta, tal como os seres humanos a produziram
historicamente. Assim, temos, no caso europeu, as sociedades simples, a
sociedade escravista, a sociedade feudal e a sociedade capitalista[5]. Esta caracteriza o que se
costuma denominar modernidade. Como o capitalismo ainda não acabou, então não
há nada depois do moderno, a não ser no mundo nebuloso e fictício da ideologia
pós-estruturalista, chamada ideologicamente de “pós-moderna”. Sendo assim, qual
é o sentido da expressão contemporâneo?
O que é a contemporaneidade?
Podemos dizer que, em sentido
amplo, contemporâneo é sinônimo de moderno, capitalista. Assim, sociedade
moderna e sociedade contemporânea seriam a mesma coisa. Porém, em sentido
estrito, podemos colocar o contemporâneo como um estágio do moderno, a época
atual da modernidade, do capitalismo. Neste sentido, o contemporâneo é a atual
fase do capitalismo. Aqui entramos novamente para a questão da periodização. A
periodização da história da humanidade é um ponto problemático e cuja solução
se encontra na teoria marxista da história. A história do capitalismo, por sua
vez, possui também um caráter problemático. É preciso, para evitar
periodizações arbitrárias e limitadas com as que existem no que se refere à
história da humanidade, uma base teórica que permita uma periodização adequada.
A base teórica para realizar uma
periodização do capitalismo é a teoria dos regimes de acumulação. Esta teoria
parte da teoria do capitalismo de Marx, que demonstrou a dinâmica da acumulação
capitalista e permitiu desdobramentos posteriores em outros pesquisadores. Não
iremos aqui fazer uma análise e descrição de determinadas periodizações de
caráter ideológico do capitalismo, tal como a de Rostow (1965), ou outras que carregam
em si o problema da falta de uma fundamentação teórica. Também não iremos
colocar a gênese do conceito de regime de acumulação e nem as obras de
Benakouche (1980) e da escola da regulação que serão os primeiros a usar mais
sistematicamente esta noção e apresentar sua definição[6].
A recusa de uma ou outra definição
aponta para a necessidade de uma alternativa. Neste sentido, definimos um
regime de acumulação por uma determinada articulação entre organização do
trabalho, forma estatal e relações internacionais (VIANA, 2003; VIANA, 2009),
ou seja, determinada cristalização das relações de força entre as classes
sociais manifestas nesses processos sociais, garantidor de determinada forma de
acumulação de capital. A organização do trabalho, no capitalismo, significa uma
forma estabelecida, hegemônica, de imposição da classe capitalista sobre a
classe proletária de determinadas formas de relações de trabalho marcados pela
exploração e luta no processo de produção. As formas estatais expressam a
organização estatal, forma de dominação capitalista, assume em determinada
momento histórico para permitir a reprodução do capitalismo, sendo, portanto,
expressão da luta de classes a nível geral da sociedade. As relações
internacionais, por sua vez, significa como a burguesia nacional faz valer seus
interesses diante de outros modos de produção ou burguesias nacionais, o que se
manifesta através principalmente da exploração de classes em determinados
locais.
A cada etapa do desenvolvimento
capitalista, um novo regime de acumulação substitui o antigo, o que significa
uma alteração nestes três elementos, formando um novo regime de acumulação. A
mudança no regime de acumulação, por sua vez, gera mudanças nas demais relações
sociais, tal como nas ideologias, nas instituições, nas representações, na
cultura em geral. A sociedade capitalista, após o período da acumulação
primitiva de capital, passou, nos países capitalistas imperialistas, pelos
seguintes regimes de acumulação: extensivo (século 18 até o final do século
19), intensivo (do final do século 19 até a Segunda Guerra Mundial),
intensivo-extensivo ou conjugado (do Pós-Segunda Guerra até o final do século
20) e o integral (do final do século 20 até a atualidade).
A partir desta teoria, definimos
contemporaneidade o atual estágio do capitalismo, marcado pela instauração do
regime de acumulação integral[7]. Este é instaurado a
partir dos anos 80 e caracterizado pela reestruturação produtiva,
neoliberalismo e neoimperialismo, que provoca mudanças culturais, ideológicas e
políticas e faz emergir um movimento de resistência que conta com uma
diversidade de tendências políticas e organizações, e que o chamado “movimento
antiglobalização” foi a expressão mais conhecida e as novas manifestações e
revoltas apontam para a continuidade da luta e oposição ao mundo
concentracionário existente.
Os Efeitos do Contemporâneo
Assim, as mudanças sociais geram
mudanças discursivas e estas reforçam aquelas. A reestruturação produtiva e a
expansão do toyotismo como forma de organização do trabalho, o neoliberalismo e
o neoimperialismo marcam a formação de novas ideologias e construtos, tal como
“flexibilidade”, “flexibilização”, “Estado Mínimo”, “tolerância zero”;
“globalização”, “multiculturalismo”, “identidade”, “gênero”, etc. Uma
novilíngua é constituída e passa a circular e se reproduzir, sendo que por
detrás da nova linguagem, principalmente quando ela consegue se generalizar (o
que geralmente ocorre graças a apoio de governos, fundações, etc.), acabam
impondo uma certa forma de conceber a realidade.
Novas ideologias surgem, tal como
a ideologia da globalização, do trabalho imaterial, do fim da história, do fim
do Estado-Nação, do pós-estruturalismo. Estas ideologias assumem perspectivas
diferentes, por representarem países, setores, classes, frações de classes,
grupos sociais, diferentes, bem como múltiplas formas. A ideologia política
dominante é o neoliberalismo e ideólogos antigos ressuscitados como J. Rawls,
F. Hayek, entre outros, convivem com os recém convertidos, como Norberto Bobbio
e outros.
A ideologia pós-estruturalista
virou moda acadêmica e se divide em diversas correntes, algumas ditas de
“esquerda”, outras mais conservadoras, e aglutina pensadores como Foucault,
Derrida, Baudrillard, Deleuze, Guatari, Negri, Lyotard e inúmeros outros. Tal
ideologia acaba tendo ressonância no mundo acadêmico e promove diversas modas e
modismos que se tornam hegemônicos, inclusive criando nichos de mercado
consumidor acadêmico ligado a outros nichos de mercado. Este é o caso da
ideologia do gênero, derivada da ideologia pós-estruturalista (VIANA, 2006),
que está ligada a setores de consumo ligados ao movimento feminista e ao mundo
acadêmico, tal como o consumo cultural e muitos outros exemplos poderiam ser
citados.
Este processo cria os efeitos do contemporâneo, isto é, a
pressão de ideologias e concepções que se tornam hegemônicas e dominantes nesta
época, tal como a ideologia da globalização e o pós-estruturalismo. Assim, o
indivíduo fica preso na contemporaneidade, as crianças que nascem ou os mais
jovens que se envolvem com o mundo escolar passam a estar submetidos a este
mundo cultural e asfixiante. Da mesma forma como o indivíduo na sociedade
moderna não percebe a historicidade das relações sociais sob as quais vive,
julgando-as normais, naturais, universais e eternas, o indivíduo no capitalismo
contemporâneo julga que esta é a última etapa do desenvolvimento capitalista,
que de agora em diante apenas evoluções e progressos ocorrerão.
A linguagem e as ideias passam a
ser contemporâneas. As relações sociais parecem confirmar as ideologias e
representações ilusórias criadas nesta época e assim há um reforço mútuo entre
relações sociais vistas em sua aparência e ideologias e representações
ilusórias. Novas representações cotidianas, ou novo “senso comum”, emergem (o
do politicamente correto, o relativismo, culturalismo, etc.) e novas ideologias
a partir delas são sistematizadas, transformando-as em ciência, filosofia,
teologia. O movimento de retorno também ocorre, pois as ideologias produzidas
acabam influenciando as representações cotidianas. O principal efeito do
contemporâneo é aprisionar o indivíduo em uma época e cegá-lo para sua
historicidade e para a fragilidade de ideologias e representações ilusórias que
se transformam em uma cultura asfixiante.
Em consequência disto, a crítica e
a utopia são marginalizadas ou assimiladas. A crítica da sociedade capitalista
em geral e sua manifestação contemporânea fica dificultada, pois muitos
abandonam a perspectiva crítica para se aliar aos modismos, seja por
oportunismo ou interesse pessoal[8], seja por dificuldade de
perceber o movimento histórico e o caráter ideológico e ilusório dos novos
modismos. A marginalização da crítica, por sua vez, facilita a marginalização
da utopia, isto é, da crítica radical acompanhada de um projeto de
transformação social. Desde as ideologias do fim (da história, do socialismo,
etc.), que são as mais diretas, até as pseudocríticas que dizem que o
capitalismo já foi superado e agora é necessário apenas reformas ou adequações,
tal como na ideologia negrista (LAZZARATO e NEGRI, 2001), a ideia-chave é que a
utopia deve ser abandonada.
Também há uma deformação da
crítica, na qual se produz isolamento de questões sociais e de grupos e
interesses e se faz um verdadeiro cavalo de batalha em torno disso, sem
questionar as suas raízes, o seu conjunto, e sem ter um projeto alternativo,
sendo apenas manifestação de oportunismo e grupo de interesses que supostamente
se colocam como oprimidos e assumem práticas autoritárias e de conquista de
vantagens competitivas no capitalismo.
Mas existe um outro efeito do
contemporâneo. Trata-se do efeito gerado pela dificuldade de percepção da
especificidade e historicidade da época em que se vive. A percepção das
características, das ideologias, das representações cotidianas ilusórias e seu
caráter, etc., fica facilitada depois dos acontecimentos ocorridos. Porém, o
acontecimento contemporâneo é sempre de mais difícil percepção do que o
acontecimento da época anterior. Desta forma, compreender as representações
ilusórias da sociedade feudal, principalmente o caráter ilusório das suas
representações, é facilitado na época histórica posterior, mas dificultado para
seus contemporâneos. Entender o capitalismo na época do regime de acumulação conjugado
e todas as ideologias, representações, etc. (socialdemocracia, keynesianismo,
etc.), que lhe acompanha é relativamente fácil na época atual, mas não durante
a vigência daquele período. Isso cria o presentismo, tanto nas representações
cotidianas quanto nas produções culturais elaboradas (ideologias e acaba
influenciando até mesmo as concepções revolucionárias).
Esta percepção, no caso dos
pesquisadores, seja a posteriori ou
contemporaneamente, também pode ser facilitada ou dificultada dependendo de
qual perspectiva de classe e base teórico-metodológica se parte para
analisá-la. Assim, partindo das autoilusões da época, dificilmente se pode
perceber seu significado, suas características, suas tendências. Na
contemporaneidade, seria, por exemplo, tentar entender o capitalismo
contemporâneo através da ideologia da globalização ou do “pós-modernismo”, duas
autoilusões (VIANA, 2009) que nada explicam e ofuscam a compreensão da
realidade atual e delas mesmas enquanto expressões ideológicas deste momento
histórico do capitalismo. Ou então das ideologias pós-estruturalistas, que
isolam fenômenos, opressões, processos sociais, lutas. Isto é perceptível até
por quem não parte de uma perspectiva marxista:
Uma das consequências mais inquietantes e menos
destacadas do particularismo que invade a vida pública na Espanha – e em outros
lugares também – é que ele se revela contagioso. Significa um extraordinário
estreitamento de visão, a redução a espaços confinados, a parcelas artificiais
de realidade, às vezes de extraordinária pequenez, isolados de seu contexto
efetivo. Isso leva a uma miopia perigosa, a uma percepção estreita, que em
casos extremos pode limitar-se ao próprio umbigo. Esse tipo de visão não tem
futuro e exclui todo o projeto; concentra-se em questões de pequeno alcance,
que podem ser insignificantes, sobre as quais se discute de modo interminável.
Seria interessante avaliar o lugar que ocupam nos meios de comunicação questões
minúsculas que poderiam ser resolvidas em algumas linhas ou alguns minutos de
rádio e televisão (MARÍAS, 2003, p. 58)[9].
Porém, a cada regime de acumulação
que substitui o outro, as dificuldades de acumulação se tornam maiores[10]. Neste contexto, os
conflitos sociais também se tornam mais fortes, mesmo que esporádicos, assim
como há o fortalecimento da resistência e da reação direitista. O renascimento
do fascismo, o neonazismo, o misticismo aliado do direitismo e do racismo, se
fortalecem, aumentando a possibilidade, no momento de crise do atual regime de
acumulação, do retorno da barbárie. Inclusive até mesmo algumas manifestações
de resistência (como setores do feminismo e outros movimentos sociais) acabam
reproduzindo aspectos semifascistas. Isto é reforçado pelo surgimento e
militantismo de um novo tipo de intelectual direitista, o semifascista, que
defende o capitalismo em todas as oportunidades e com toda truculência
possível. Ao lado disso, porém, também se abrem brechas para o ressurgimento da
crítica e da utopia, tal como se vê nas revoltas populares na Argentina,
México, França e em novos agrupamentos, movimentos, tendências (movimento antiglobalização,
anarquismo, marxismo libertário, etc.) e nas revoltas e manifestações mais
recentes em diversos países do mundo.
A reemergência do anarquismo e a
retomada de pensadores marginalizados tal como os representantes da
Internacional Situacionista (apesar de seus limites), do comunismo de conselhos
(Anton Pannekoek, Otto Rühle, Paul Mattick, Karl Korsch, entre outros),
demonstram que as necessidades históricas fazem recuperar os pensadores que realmente
estiveram do lado da verdade, isto é, da crítica e da utopia, o que ajuda a
evitar erros do passado. No entanto, a influência do pós-estruturalismo é forte
e acaba produzindo uma deformação desse pensamento libertário, bem como a
transformação dessas concepções, expressões de lutas passadas em contextos
específicos, em dogmas acabam sendo um elemento de cisão e dificuldade de
avanço das lutas.
Assim, o ecletismo, por um lado, e
o dogmatismo, por outro, são as formas de invasão da consciência revolucionária
por concepções pseudorrevolucionárias que acabam gerando diversos conflitos e
polêmicas desnecessários e que ajudam a dividir o bloco revolucionário ao invés
de contribuir com sua unificação. Isso também acaba tendo fortes efeitos nos
movimentos sociais e no movimento operário, pois além da influência direta das
ideologias e concepções burguesas e burocráticas, ainda há, no interior do
próprio movimento revolucionário, ambiguidades que acabam prejudicando o avanço
da luta proletária e revolucionária em geral e facilitando a reprodução de tal
influência ideológica.
A raiz do ecletismo se encontra na
influência social das ideologias e representações cotidianas ilusórias, criadas
pelo capital e seu poderio mundial e nacional (capital comunicacional, capital
editorial, universidades, fundações internacionais, etc.) e reproduzidas pelas
classes auxiliares da burguesia (especialmente a burocracia e a
intelectualidade), bem como a pseudestesia de “novidade”, “juventude”,
“modernidade” ou “contemporaneidade” de tais concepções, reforçadas pela
criticada, mas ainda hegemônica, concepção evolucionista do saber, segundo a
qual a última ideia, por ser a última, seria “verdadeira” ou melhor que as
demais[11]. Isso enfraquece a força
da teoria revolucionária e da cultura contestadora existente. Interesses de
ascensão social e carreira acadêmica também são fortes nesse processo, pois o
ecletismo permite se dizer revolucionário e ao mesmo tempo agradar os pares
acadêmicos conservadores, ou seja, buscam agradar a gregos e troianos.
A raiz do dogmatismo é mais
variada e vai desde uma reação ao ecletismo, passando por pessoas com
desequilíbrio psíquico (o que não está ausente no caso anterior e em todos os
casos, mas aqui é uma certa rigidez e necessidade de apego a uma crença que
gera a posição dogmática e sua origem tem a ver com o universo psíquico de
determinados indivíduos), pouca pesquisa-leitura-reflexão[12], até o processo de
identificação com pensadores de forma rígida (e geralmente assumindo mais
rigidez do que os próprios autores), bem como sentimento de pertencimento a
determinadas tradições de pensamento tidas como puras e acima da crítica[13]. Isso gera um “situacionismo”,
“conselhismo” e anarquismo dogmáticos.
O presentismo é tão forte que
acaba se impondo não somente para as classes privilegiadas e conservadores em
geral, mas se espalha por toda a sociedade e influencia até mesmo a cultura
contestadora, que, obviamente convive com exceções, mas que não são
quantitativamente significativas, embora a radicalização e ascensão das lutas
permita um avanço nesse sentido. Daí ser importante entender que o capitalismo
contemporâneo gera um mundo de ideologias e representações cotidianas ilusórias
que busca descrever, explicar, e até contestar as relações sociais
contemporâneas, mas, no fundo, é um conjunto de formas ilusórias de percepção
desse momento histórico e por isso cria uma camada obscurante entre os
indivíduos e a realidade concreta.
Os indivíduos acabam ficando
presos no contemporâneo, tanto pelas relações sociais concretas e interesses
derivados delas, quanto pelo mundo cultural asfixiante gerado por ele. É
preciso, pois, superar o presentismo, compreender que o presente não é o
melhor, o correto, o fim da história, o progresso, etc., e, da mesma forma, que
suas manifestações culturais não são a verdade, a palavra final, o correto, o
justo. Os efeitos do contemporâneo são as marcas deste em nossas mentes e
ações, sendo que ambas podem ser removidas. O presentismo revela “ventos de
falsidade” (MARÍAS, 2003)[14] e é necessária sua
superação, para que se torne mais provável a superação da sociedade que gera
ilusões e desumanização.
Considerações finais
A superação do presentismo depende
da luta de classes e, especialmente, da luta proletária. Contudo, nós estamos
envolvidos nas lutas de classes em geral e na luta proletária em particular
(sendo ou não proletários), pois cada decisão, posição e ação, bem como
produção cultural, reforça uma ou outra tendência existente. Korsch (1973) foi
perspicaz ao afirmar que a luta de classes ocorre em todos os lugares. O regime
de acumulação integral significa a imposição do capital de determinadas
relações sociais e as lutas ordinárias, cotidianas, se dão dentro desse
processo, e as lutas extraordinárias apontam para o questionamento destas
relações sociais. As lutas ordinárias só possuem sentido se articuladas e
incentivadoras de lutas extraordinárias.
Por isso é importante entender a
contemporaneidade, o regime de acumulação integral, e ao mesmo tempo
ultrapassar as ideologias e representações cotidianas ilusórias ao seu
respeito. A compreensão do regime de acumulação integral assume importância teórica, gerando
uma ferramenta fundamental para compreender a sociedade contemporânea e
fornecendo elementos para a superação do caráter abstrato e ideológico de
outras concepções, bem como do descritivismo[15].
Sem dúvida, não é possível desconsiderar a importância
história da periodização do capitalismo e da reflexão crítica sobre o
contemporâneo, bem como o reconhecimento da dificuldade de superar a
naturalização e das ilusões da época. A compreensão da história da humanidade e
do capitalismo são elementos importantes para superar o presentismo, para
pensar um projeto de sociedade futura. Nesse contexto, a compreensão da oposição
como produto do mundo atual, com suas lutas espetaculares (DEBORD, 1997)[16],
que se tornam, contemporaneamente, lutas mercantis.
É preciso ressaltar também que a não compreensão do
capitalismo contemporâneo é um obstáculo para a compreensão da historicidade do
capitalismo e da contemporaneidade com suas lutas e processos sociais. Isso
reforça a importância do processo analítico do capitalismo para não desenvolver
ações trágicas, ou seja, aquelas que visam um objetivo e acaba tendo resultado
contrário, como na famosa tragédia grega de “Rei Édipo”. O caso de Édipo é
exemplar do que significa uma consciência parcial da realidade. Ao saber,
através de um oráculo, que seu destino seria matar seu pai e casar com sua mãe,
Édipo foge de sua cidade e se afasta dos seus pais para evitar tal futuro. O
oráculo não revelou toda a verdade, apenas parte dela, pois não informou Édipo
que ele era adotado e que a profecia era em relação aos seus pais verdadeiros,
que ele nem sequer conhecia. Essa consciência parcial, ou meia-verdade,
provocou sua fuga e nela ele se depara com ser verdadeiro pai, sem saber disso,
e acaba matando ele e depois ao chegar à outra cidade casa-se com sua mãe
verdadeira. A sua ação era para evitar um acontecimento que, no fundo, se
concretizou graças a ela. Se tivesse uma consciência mais ampla, não fugiria da
cidade e não teria realizado a sua ação trágica. Isso é o que milhares realizam
hoje, por possuírem uma consciência parcial da realidade, acabam pensando que
estão lutando por uma nova sociedade e acabam é obstaculizando isso, entre
outras possibilidades.
Em síntese, é necessária uma percepção histórica da
realidade, aliada a uma crítica revolucionária, já apresentada por Marx e seus
autênticos continuadores, e superação do presentismo e seus efeitos na produção
intelectual. Isso serve para percebermos que a consciência histórica do
capitalismo e a consciência histórica dos regimes de acumulação é um elemento
importante para a luta do proletariado e pela transformação social. Em cada
regime de acumulação, apesar da dificuldade de percebê-lo criticamente, os
representantes teóricos da classe revolucionária avançam na compreensão da
época, tal como ocorreu no regime de acumulação extensivo (Marx e, em menor
grau e sem rigor teórico alguns outros); no regime de acumulação intensivo (Pannekoek,
Korsch, etc.); no regime de acumulação conjugado (Guillerm e Bourdet, etc.). O
mesmo é preciso fazer na contemporaneidade, o que significa que é necessário
superar o dogmatismo e as reproduções mecânicas de pensadores do passado (pois
além do contexto em que produziam e traziam elementos específicos que já não
são mais os mesmos, há também a necessidade de percepção de seus limites e
problemas, quando existentes, na sua produção intelectual). O que geralmente
ocorre são avanços pontuais em aspectos do novo regime de acumulação (análise
do estado, da cultura, etc.), pois a concepção de conjunto é mais difícil. Isso
sem falar nos obstáculos representados pelo pseudomarxismo, como no exemplo da
análise de Mandel (1978) sobre o “capitalismo tardio” para explicar o regime de
acumulação conjugado.
É preciso ter em mente que a consciência histórica de
um regime de acumulação é obliterada pela hegemonia das concepções dominantes e
também por mesclas de concepções revolucionárias e ideologias dominantes
(anarquismo e pós-estruturalismo, por exemplo, um exemplo do que anteriormente
denominamos “ecletismo”). Isso atinge, sob formas diferentes, a todos os
intelectuais. Até mesmo alguns ideólogos acabam percebendo e afirmando isso.
Esse é o caso de Zygmunt Bauman, que revela isso ao explicar o motivo de ter
adotado a expressão “pós-modernidade” e abandonado, produzindo a ideia de “modernidade
líquida” para explicar a contemporaneidade: “a primeira aproximação de uma
resposta a essa pergunta [referente às mudanças da realidade atual, da
“modernidade” – NV] foi a ideia, bastante popular naquele momento, de ‘pós-modernidade’”
(BAUMAN, 2010).
Assim, o autor mostra a fragilidade de sua construção
ideológica, marcada por imprecisão e força da influência das ideias dominantes.
E, seguindo a tendência pós-estruturalista, rompendo apenas com alguns termos
usados por representantes desta, este autor passou e usar novos construtos,
especialmente “modernidade líquida”, que apenas nomeia e classifica as relações
sociais, fazendo, segundo ele, o que as ideologias pós-modernas não faziam – o que
era uma de suas fraquezas – a negação do pós sem referência ao que é, o que se
resolve apenas dando novos nomes e nada explicando, ou seja, trocando a
imprecisão da pós-modernidade e seu descritivismo superficial por outra
imprecisão descritivista e superficial chamada “modernidade líquida”. Mas o
interessante é sua revelação de sua tentativa de entender sociologicamente as
mudanças sociais em curso e a força das ideias vigentes em sua tentativa. O que
o autor não percebe, ou pelo menos não afirma, é que sua construção ideológica
também manifesta a mesma influência, inclusive a proliferação de ideologias
fundadas um individualismo intelectual (bem como ocorre com os artistas) que
significa o enfraquecimento das chamadas “escolas” (tal como o funcionalismo,
Escola de Frankfurt, etc.) em favor das produções individuais[17].
Neste contexto, torna-se necessário atualizar e
aprofundar as concepções revolucionárias. Porém, isso deve ser realizado de
forma que não somente se perceba criticamente o que não é atual e os problemas
existentes nas concepções passadas, devido sua época (e em alguns casos por
seus limites próprios, como o situacionismo), mas também que se perceba
criticamente as concepções atuais e seus vínculos problemáticos com a época
atual e, simultaneamente, fazer um balanço compreendendo que nem tudo que hoje
se critica nas concepções passadas são verdadeiras, pois a crítica pode ser,
ela mesma, falsa[18].
Essa é a importância da presente discussão e o que
justifica o presente texto. Esse processo revela uma contemporaneidade na qual
o capitalismo encontra dificuldades crescentes de reprodução, no qual lança mão
de tudo e mercantiliza tudo (a hipermercantilização é uma das características
da nova fase do capitalismo)[19].
O regime de acumulação integral não é eterno (assim como não foram os outros
regimes de acumulação e o próprio capitalismo) e cada vez mais, como todos os
anteriores, tem suas forças exauridas, possibilitando a sua crise, em que pese
use diversos elementos para evitar isso, desde as políticas de cooptação até as
de “austeridade”. A crise abre uma brecha para a superação não apenas do regime
de acumulação integral, mas também do próprio capitalismo, mas isso depende da
luta de classes, da força do proletariado e classes aliadas, bem como da
cultura revolucionária e sua transformação em “força material”, como já dizia o
jovem Marx (1968).
Neste sentido, existe uma brecha e
duas possibilidades principais[20] estão postas para a
resolução de uma crise do regime de acumulação integral: o fascismo[21] ou a autogestão social,
ou seja, uma situação semelhante a do início do século 20, no qual Rosa
Luxemburgo colocou a palavra de ordem: Socialismo
ou Barbárie. O resultado desta luta de classes pode ser a emancipação
humana ou a catástrofe e o barbarismo, que, com a guerra e a destruição em
massa de forças produtivas, pode dar novo fôlego ao capitalismo e seu processo
destrutivo e degradante. A teoria não é neutra e seu objetivo é contribuir com
a transformação social e por isso ela deve descortinar esse nevoeiro ideológico
e ilusório e buscar ampliar a consciência da realidade e fornecer subsídios
para o movimento a favor da libertação humana. Tal como já dizia Marx (1968), a
teoria se torna uma força material quando se apodera das “massas” (do
proletariado e seus aliados), quando é crítica radical e expressão da
realidade, manifestação da negação da sociedade que realizou a negação da vida.
Referências
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* Professor
da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB. Autor de A Consciência da História (Rio de
Janeiro, Achiamé, 2007) e Escritos
Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa, 2007), entre outros livros.
[1]
Pagès coloca as dificuldades de uma periodização, que se amplia quanto maior é
o período histórico ou a delimitação espacial realizada. Assim, existem
diferentes ritmos históricos na Península Ibérica, ou seja, no seu interior.
“Se nestes âmbitos regionais se observam dificuldades para usar pautas
unificadoras da história, maiores serão as dificuldades quando se intenciona
uniformizar em uma mesma periodização continentes tão diversos como Europa,
Ásia, África e América” (PAGÈS, 1983, p. 257).
[2] “É
preciso, pois, abandonar as periodizações que durante muitos anos ocuparam as
primeiras páginas dos manuais e que unicamente tinham em conta critérios
políticos. Foi usual – e em boa medida segue sendo – periodizar a história de
um país ou de uma sociedade a partir da cronologia dos seus reinados” (PAGÈS,
1983, p. 257). A historiografia brasileira não escapa a essa regra ao dividir a
história do Brasil em Colônia, Império e República.
[3] O
reconhecimento da importância desta discussão foi feita, por exemplo, por Henri
Beer e Lucien Febvre: “não há no campo da história um problema metodológico de
maior importância que o da periodização. Não é meramente um problema exterior
de ajuste e disposição por conveniência, mas um problema básico, capaz de
receber as mais diversas soluções” (apud. RAMA, 1968, p. 147). Tal
reconhecimento se manifestou sob outras formas: “a história da periodização é
uma parte da história da ciência histórica mesma” (BAUER, 1957, p. 152); “A
divisão da história em períodos constitui a quintessência de toda a concepção
da história” (Van Der Pot. Apud. DUJOVNE, 1959, p. 271).
[4]
Sem dúvida, alguns positivistas contemporâneos poderão defender a “inocência” e
“neutralidade”’ das periodizações, ou, em sua versão pós-estruturalista,
poderão defender o relativismo, afirmando que todos os pontos de vista são
verdadeiros, que é apenas uma forma camuflada de defender o velho e desgastado
princípio positivista da neutralidade. Sem dúvida, para os primeiros, temos que
dizer que não existe neutralidade (VIANA, 2000). Bauer já havia, de certa
forma, colocado isto: “um crente católico dificilmente se convencerá de que a
História Universal iniciou com Lutero uma nova fase” (BAUER, 1957, p. 147).
Quanto aos relativistas, podemos simplesmente dizer que realmente todo
pensamento é valorativo e na base de todas as periodizações existem valores e
interesses, porém, eles não são equivalentes e existem alguns valores (tais
como os daqueles que são nazistas, para pegar um exemplo extremo) que são
prejudiciais a um saber verdadeiro, mas outros são benéficos, e o problema não
está em ficar no meio do caminho e reconhecer que a produção do saber é perpassada
por valores, pois é preciso dar o passo seguinte e ver quais valores e
interesses produzem determinadas produções intelectuais, inclusive as produções
intelectuais relativistas num mundo marcado pela luta de classes, pela miséria,
pela fome, pela exploração, pela dominação. A resposta é óbvia. O relativismo
serve ao poder (VIANA, 2000).
[5] A
base real e concreta dessa periodização são a sucessão de modos de produção
dominantes neste região do planeta, gerando novas formas de sociedade.
[6]
Limitamos-nos a remeter para a obra no qual desenvolvemos a análise tanto das
propostas de periodização do capitalismo quanto da gênese do conceito de regime
de acumulação (cf. VIANA, 2009).
[7]
Obviamente que aqui tratamos de contemporaneidade em sentido restrito, ou seja,
como a atual fase da sociedade capitalista (moderna). Em sentido amplo,
contemporaneidade seria a sociedade na qual vivemos e, portanto, seria sinônimo
de modernidade. Nesse sentido estrito, o termo é também relativo a uma época do
capitalismo e também provisório, pois sendo superado por outra fase, caso isso
ocorra, então deixa de ser contemporâneo e a nova fase que assume esse nome. O
regime de acumulação conjugado (também chamado intensivo-extensivo ou
“fordista”) foi o capitalismo contemporâneo na sua época de vigência, e naquela
época falar em contemporaneidade significaria falar em capitalismo oligopolista
transnacional, outra expressão que retrata esse período da sociedade moderna.
[8] O
interesse é a mola mestra em todo esse processo, e desde que o Estado
neoliberal passou a exercer toda uma política de cooptação de setores da
sociedade, especialmente de grupos, movimentos sociais, etc. (inclusive criando
“políticas públicas setoriais”, incentivo para pesquisas com grupos oprimidos –
obviamente sob a ótica neoliberal e pós-estruturalista, desde que se queira
financiamento com facilidade, etc.). E isso gera não só aqueles que criam
ideologias e representações cotidianas ilusórias e os que são cooptados, mas
também os omissos e “colaboradores”, o que foi chamado por um filósofo e
sociólogo espanhol de “complacência”: “é muitíssimo frequente o espetáculo,
para mim entristecedor, de pessoas estimáveis que aceitam sem resistência
coisas, decisões, empreendimentos, propostas, colaborações, que lhes parecem indesejáveis,
que talvez as repugnem, mas que, pela sua complacência, recebem uma injusta
autorização, em certas ocasiões um aparente prestígio, com a influência e a
eficácia que costuma acompanhá-las. Os exemplos podem se multiplicar; e vão do
que parece – mas não é – inofensivo ao que provoca graves consequências.
Aceitam-se as homenagens a pessoas ou instituições não tidas como merecedoras
disso; por compromisso, por fraqueza, por alguma relação de amizade ou
parentesco. Isso é capitalizado, parte-se daí para ações ulteriores que podem
contradizer a verdadeira atitude que participou da homenagem” (MARÍAS, 2003, p.
42).
[9]
Este autor acrescenta, justamente, que “o pior é que essa atitude ‘contagia’ os
que não são particularistas por vocação ou interesse, os que pretendem superá-la
e restabelecer uma visão mais ampla e justa. Nada mais perigoso do que aceitar
as formulações alheias quando não são corretas, em especial se são
decididamente falsas” (MARÍAS, 2003, p. 58-59).
[10]
Isto, obviamente, vai abrir brecha também para a pesquisa e a percepção da
atual fase do capitalismo por parte dos pesquisadores que se engajam no
movimento de luta pela autogestão social, expressando a perspectiva do
proletariado.
[11] E
mais uma vez podemos ver diversos interesses por detrás disso, desde o do
capital editorial (“leia o último livro”, ou seja, compre essa nova
mercadoria...) até o de intelectuais medíocres que com preguiça de analisar
profundamente a realidade e as formas mais estruturadas de interpretação da
mesma, preferem a facilidade da reprodução dos modismos superficiais
existentes.
[12]
Tal como leitores de um livro só, ou apenas de um autor.
[13]
Não é raro passar do pensador ou doutrina “pura” e “inquestionável” para a sua
corporificação em indivíduos portadores deles. Se se considera o anarquismo é
puro e inquestionável, então todos os anarquistas (pelo menos da corrente que
se defende) também são puros e inquestionáveis. Ou seja, ao invés do ser humano
real e concreto, com tudo que é derivado disso, temos o endeusamento de determinados
indivíduos por serem adeptos de determinadas doutrinas ou concepções (que
inclusive podem ser mal compreendidas).
[14] O
que não quer dizer concordância com o conjunto das teses do autor e nem que
entendamos esses “ventos da falsidade” da mesma forma. No entanto, apesar do
autor não ser um revolucionário e compromissado com a luta pela autogestão
social, consegue perceber, por sua singularidade psíquica, diversos problemas
que muitos supostos “esquerdistas” nem sequer imaginam, por estarem submetidos
ao “espírito da época” (o presentismo), ou, como diria Marías, dominados pela
ideias vigentes ou pelos “ventos de falsidade”.
[15]
Esse é o caso de David Harvey (1992), que apesar de contribuir com alguns
elementos, peca pela abstração e falta de conexão e relação entre os processos
culturais e sociais. Obviamente que existem coisas piores, como Jameson (2002),
o pseudomarxista mais reconhecido nos Estados Unidos, apesar de seus equívocos
(VIANA, 2009) e graças sua condescendência com o pós-estruturalismo (JACOBY, 1990).
Entre os descritivistas se encontra Zigmut Bauman, com sua ideologia da
“modernidade líquida” (2001), um mero descritivismo classificatório baseado em
analogias que nada fundamentam, sendo apenas um exemplo entre milhares.
[16] O
próprio Debord e o situacionismo não escapou disso, muito menos seus herdeiros
contemporâneos, geralmente seguidores dogmáticos e “espetaculares” de uma
produção intelectual datada e com seus limites (VIANA, 2011; DEBRITO, 1985).
[17]
Na arte isso se manifesta através do pós-vanguardismo (ideologicamente chamado
de “pós-modernismo”), que abole as “vanguardas” e “movimentos artísticos”, tal
como foram o expressionismo, surrealismo, etc., substituído pelo individualismo
bem de acordo com a ideologia neoliberal.
[18]
Um bom índice para entender as determinações sociais da falsidade está em
analisar os interesses de quem realiza tal crítica. E não apenas da crítica,
mas de concepções, pois é necessário saber quem financia, com qual interesse,
bem como quem afirma, em que posição e relação com a classe dominante,
governos, etc. Obviamente que não se trata de derivação mecânica de
pertencimento de classe (o que alguns ingenuamente fazem), pois nesse sentido
todos os intelectuais e produções complexas seriam falsas. É preciso perceber que
isso é uma tendência e algo dominante na classe intelectual, mas que existem
divisões internas na mesma, além das singularidades psíquicas dos indivíduos
concretos que são intelectuais. Os interesses são mais reveladores quando se
estabelece o vínculo com a ligação de quem produz ideias com governos,
instituições, financiadores, partidos, etc. Da mesma forma, é preciso
distinguir aqueles que apenas reproduzem as ideologias e representações
dominantes daqueles que as produzem e os que o fazem por ingenuidade ou força
das ideias vigentes e aqueles por interesses pessoais. Aqueles que, devido
ingenuidade e/ou força das ideias vigentes, são os que mais necessitam entender
a questão dos interesses por detrás dos discursos e práticas e tais vínculos,
sem cair no dogmatismo e mecanicismo, inclusive entendendo os casos concretos.
[19]
Isso não deve servir de pretexto para cair nas ideologias supostamente
“esquerdistas” que acabam caindo no fetichismo do mercado, do dinheiro e do
próprio fetichismo (que se tornou uma “realidade”, para alguns ideólogos da
suposta “esquerda radical”). Esse processo de hipermercantilização apenas em
sua aparência poderia justificar o pseudomarxismo neosmithiano de um Kurz
(1993), por exemplo, pois sua essência está no modo de produção capitalista e
suas mutações. O mercado (e muito menos o dinheiro) não é uma “mão invisível”
que domina tudo, pois ela apenas manifesta as relações de distribuição
capitalistas, as ações dos capitais individuais e outros portadores de
mercadorias no processo de troca, cuja determinação fundamental está na
produção de mais-valor, na luta de classes na produção, com supremacia do
capital, que impõe o toyotismo, o neoliberalismo, o neoimperialismo, bem como
seus produtos ideológicos.
[20]
Outras possibilidades são bastante remotas e apesar de alguns voluntaristas
conservadores e reformistas sonharem com o retorno da socialdemocracia, tendo
como exemplo o chamado “capitalismo nórdico”, o que revela mais uma vez a força
das ideologias e dos interesses por detrás delas, bem como uma incompreensão da
dinâmica das relações sociais e da especificidade de determinados países
(trocada pela “vontade dos governantes”...), dificilmente poderão se efetivar.
[21]
Que pode assumir várias formas, como o nazismo, o ecofascismo, etc. Inclusive
sempre que o capitalismo perde sua estabilidade política e de acumulação,
surgem tendências de extrema-direita, que em momentos de crise pode ser usado,
assim como a socialdemocracia, para conter as lutas revolucionárias. Nesse
processo há também a emergência de um semifascismo gestado por ideólogos e
outros, que acabam sendo de certa forma reproduzido em uma versão supostamente
de esquerda, na qual o autoritarismo, dogmatismo e criação de um inimigo
imaginário, algo bastante comum no pensamento fascista, são elementos formais
que apontam para a reprodução do oprimido assumindo as práticas dos opressores.
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Publicado originalmente em: http://redelp.net/revistas/index.php/rde/article/view/2nviana1/163
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