KROPOTKIN E O
DARWINISMO
Nildo Viana*
Resumo:
O presente artigo discute a concepção de Kropotkin a respeito do darwinismo e
da evolução das espécies. Ressalta a sua contribuição ao colocar a ajuda mútua
como fator de evolução e sua crítica ao darwinismo social, mas aponta para suas
limitações, especialmente a desvinculação entre Darwin e darwinismo. Assim, Kropotkin
traria uma contribuição para pensar a evolução, desde que abstraindo sua
interpretação benevolente de Darwin.
Palavras-Chave:
Darwinismo, Evolução, Ajuda Mútua, Competição.
Abstract: This paper discusses
the design of Kropotkin about Darwinism and the evolution of species.
Highlights its contribution to placing mutual aid as a factor evolution and its
critique of social Darwinism, but points to its limitations, especially the lack
of connection between Darwin and Darwinism. Thus, Kropotkin would think a
contribution to the evolution, since abstracting their benevolent
interpretation of Darwin.
Keywords: Darwinism,
evolution, Mutual Aid, Competition.
A obra de Darwin, A Origem das
Espécies, publicada em 1859, completa 150 anos após sua publicação esse ano,
o que serviu de pretexto para inúmeras coletâneas e textos dedicados a esta
obra e seu autor. Porém, 43 anos após sua primeira edição, era publicado também
o livro O Apoio Mútuo – Fator de Evolução
Social, de Piotr Kropotkin, obra bem menos conhecida e que não recebeu o
mesmo reconhecimento acadêmico e científico, por razões óbvias. A obra de
Kropotkin é uma importante contribuição à crítica ao darwinismo e por isso
merece ser reconsiderada. A sua análise da ajuda mútua como fator de evolução é
uma contribuição importante para se repensar o processo evolutivo, bem como uma
obra pioneira, seguindo a trilha de outros que também foram além do darwinismo,
tal como Espinas, Kessler, entre outros, que o próprio Kropotkin cita. Por
isso, destacaremos a relação entre Kropotkin e o darwinismo, mostrando os
pontos interessantes da obra kropotkiniana em sua contraposição ao darwinismo e
mostrando também seus pontos problemáticos.
Darwin ou Darwinismo?
O primeiro ponto da obra de Kropotkin se encontra na sua oposição aos
darwinistas, muito mais do que em relação a Darwin. Este é um ponto importante
para discutir as relações de Kropotkin com o darwinismo. Kropotkin admite que,
num primeiro momento, chamou-lhe a atenção a “extraordinária dureza da luta
pela existência”, que ocorria “periodicamente”, graças a “causas naturais”,
razão de enorme pobreza em vastos territórios. Porém, Kropotkin também afirma
que onde havia abundância ele não percebia a “cruel luta pela existência” que a
maioria dos darwinistas apresentava como principal força ativa na evolução do
mundo animal. Foi graças a isto, segundo ele, que passou a se dedicar ao
problema das limitações naturais da multiplicação da população animal, em
comparação com a luta pelos meios de sobrevivência. Para ele, esta última se
manifesta entre as espécies e também no interior das mesmas, mas sem possuir a
mesma importância que os obstáculos naturais já aludidos. Foi por isso que
começou a duvidar da “terrível” luta pela sobrevivência no interior de uma
mesma espécie, tal como sustentada pelos darwinistas, bem como de sua
importância no surgimento de novas espécies.
Aqui temos a chave para entender a oposição de Kropotkin ao darwinismo e,
ao mesmo tempo, sua condescendência com Darwin. A distinção entre as teses
postuladas por Darwin e as postuladas pelos “darwinistas” é um elemento
importante para entender a posição de Kropotkin sobre o darwinismo.
Em sua análise do darwinismo, Kropotkin demonstrará suas simpatias pelas
teses de Espinas, um sociólogo francês durkheimiano, e pelo biólogo russo Karl
Kessler. Ambos destacaram a solidariedade e a ajuda mútua como elementos
importantes para explicar a evolução das espécies. Kessler apresentou uma
conferência na Universidade de São Petersburgo, em 1880, intitulada “Sobre a Lei da Ajuda Mútua”, que
Kropotkin tomou conhecimento e passou a defendê-la. Ele julgou que as teses de
Kessler jogava nova luz sobre a questão da evolução das espécies. Kessler
afirmava que além da lei da luta pela existência também existe a lei da ajuda
mútua, desempenhando esta última um papel mais importante no processo evolutivo
das espécies. Segundo Kropotkin:
Essa
hipótese, que na verdade não passava de um desdobramento das ideias expressas
pelo próprio Darwin em A origem do homem, pareceu-me tão correta e de
uma importância tão grande que, desde que tomei conhecimento dela (em 1883),
comecei a coletar material para desenvolver melhor essa ideia sobre a qual
Kessler tocou muito superficialmente em sua palestra e não viveu para
desenvolver, pois morreu em 1881. (KROPOTKIN,
2009, p.13).
Kropotkin parte da ideia de que a ajuda mútua estava incluída
nas teses de Darwin e que foram os darwinistas que enfatizaram unilateralmente
a “luta pela existência” e a “sobrevivência dos mais aptos”. Kropotkin afirma
que, na época em que escrevia, passou-se a falar tanto da “a luta dura e cruel
pela vida” que aparentemente realiza “cada animal contra todos os outros, cada
selvagem contra todos os demais selvagens, e cada homem civilizado contra todos
seus concidadãos semelhantes”, que tais “opiniões se converteram numa espécie
de dogma, de religião da sociedade instruída” e isto tornou necessário
apresentar uma grande série de fatos contrária a estas afirmações. Os textos de
Kropotkin surgiram justamente em oposição ao artigo de Thomas Huxley,
intitulado A Luta Pela Existência: Um
Programa. Segundo Kropotkin,
Embora
estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente tendo em vista
seus objetivos específicos, ele alertou seus seguidores para que não cometessem
o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia) de superestimar esse
sentido. Em A origem do homem, Darwin escreveu algumas páginas
memoráveis para ilustrar seu sentido próprio, o sentido amplo. Observou que, em
inúmeras sociedades animais, a luta entre indivíduos pelos meios de
subsistência desaparece, que essa luta é substituída pela cooperação e
que essa substituição resulta no desenvolvimento de faculdades intelectuais e morais
que assegura à espécie as melhores condições de sobrevivência. Ele sugeriu que,
nesses casos, os mais aptos não são os mais fortes fisicamente, nem os mais
astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de modo a se apoiarem
mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da comunidade. (KROPOTKIN, 2009, p. 20).
Aqui temos o problema da interpretação que Kropotkin realiza
da obra de Darwin. Kropotkin separa Darwin dos darwinistas a partir de duas
considerações básicas: a) Darwin usa a expressão “luta pela sobrevivência” (ou
pela vida, pela existência) num sentido amplo e figurado e os darwinistas num
sentido estrito; b) Darwin sustentaria o papel da ajuda mútua, cooperação, no
processo evolutivo e os darwinistas não. Porém, esta interpretação é bastante
problemática. Segundo Darwin:
Devo frisar que
emprego o termo luta pela sobrevivência em sentido lato e metafórico, o que
implica relações mútuas de dependência dos seres organizados, e, o que é mais
importante, não somente a vida do indivíduo, como a sua aptidão e bom êxito em
deixar descendentes. Afirma-se que dois animais carnívoros, em tempos de fome,
lutam um contra o outro em busca de alimentos necessários para sua
sobrevivência. Mas chegar-se-á a dizer que uma planta, à beira de um deserto,
luta pela sobrevivência contra a falta de água, embora fosse mais correto dizer
que a sua sobrevivência depende da umidade. Poder-se-ia dizer com mais exatidão
que uma planta, que produz anualmente um milhão de sementes, das quais uma, em
média, chega a desenvolver-se e a amadurecer por seu turno, luta com as plantas
da mesma espécie, ou espécies diferentes, eu cobrem já o solo. O visco depende
da macieira e de algumas outras árvores; ora, é somente no sentido figurado que
se poderá dizer que luta contra estas árvores, porque se grande número de
parasitas se estabelecem na mesma árvore, esta enfraquece e morre; porém,
pode-se dizer que muitos viscos, vivendo em conjunto sobre o mesmo ramo e
produzindo sementes, lutam uns contra os outros. Como são as aves que espalham
as sementes do visco, a sua sobrevivência depende delas, e dir-se-á, em sentido
figurado, que o visco luta com as outras plantas que tenham frutos, porque
importa a cada planta levar os pássaros a comer os frutos que produz, para
disseminar as sementes. Emprego, pois, para uma maior comodidade, o termo geral
luta pela sobrevivência, nos diferentes sentidos que se confundem uns com os
outros (DARWIN, 1979, p. 69).
O sentido lato e metafórico fornecido por Darwin é, como se
pode observar pelo trecho acima, no sentido de que não se trata de luta direta
entre dois animais, mas sim algo mais sutil, tal como se pode ver nas plantas.
O sentido lato da “luta pela sobrevivência” em Darwin é bem compreendida pelo
termo competição, que é um elemento característico da sociabilidade capitalista
que Darwin transfere para o mundo animal e vegetal (MARCO, 1987; VIANA, 2001; VIANA,
2003; VIANA, 2009). Logo, o sentido fornecido por Darwin é o mesmo fornecido
pelos darwinistas e, neste sentido, a interpretação de Kropotkin é equivocada.
O outro elemento responsável na condescendência de Kropotkin
com Darwin é a ideia de que este teria reservado um papel para a ajuda mútua no
processo evolutivo no seu livro A Origem
do Homem, o que não é feito pelos darwinistas. Porém, Kropotkin novamente
se equivoca, pois para Darwin a ajuda mútua é apenas uma forma assumida por
determinados grupos para lutar pela sobrevivência, ou seja, é apenas um
elemento subordinado a um princípio superior e determinante. São as vantagens
da “vida em sociedade” que fazem os seres viverem juntos e desenvolver os
sentimentos, incluindo a simpatia e o senso moral (DARWIN, 1974).
Na sociedade o
sentimento de prazer constitui provavelmente uma extensão dos afetos para com
os pais e os filhos, visto que o instinto social parece ter surgido em consequência
da diuturna permanência dos jovens com os pais e esta extensão pode ser
atribuída em parte ao hábito, mas principalmente à seleção natural. Para
aqueles animais que foram superados pela vivência numa associação, os
indivíduos que auferiram o maior prazer da vida em sociedade teriam sido mais
felizardos em escapar dos vários perigos, enquanto que aqueles que menos
cuidavam dos seus companheiros e viviam solitários teriam perecido em maior
número (DARWIN, 1974, p. 130).
Essa ajuda mútua, no entanto, ocorre “quase exclusivamente em
relação aos homens da mesma tribo” e a agressão não é crime em relação a outras
tribos. Segundo Darwin:
Nenhuma tribo
conseguiria manter-se unida se o assassínio, o latrocínio e a traição fossem
comuns; consequentemente tais crimes nos limites de uma tribo estão sujeitos à
eterna infâmia, mas não suscitam tal sentimento além destes limites. Um índio
norte-americano se sente muito satisfeito consigo mesmo e honrado pelos outros,
quando esfola um homem de outra tribo; um Dyak corta a testa de uma pessoa
inofensiva e leva-a como troféu. A matança dos recém-nascidos esteve difundida
em larguíssima escala no mundo sem encontrar reprovação; o infanticídio,
especialmente das meninas, tem sido julgado útil para a tribo, ou ao menos não
prejudicial (DARWIN, 1974, p. 142).
Assim, Darwin defende que a ajuda mútua existe realmente, mas
jamais que teria a mesma importância que a competição, e o faz colocando como
algo subordinado ao princípio utilitarista e restrito de grupos, envolvido pelo
princípio mais geral da competição. Curiosamente, Kropotkin que irá refutar os
argumentos sobre canibalismo e infanticídio para sustentar sua tese de que a
ajuda mútua é fundamental para o processo evolutivo, não percebeu que o que os
darwinistas falavam já estavam em Darwin. Kropotkin também não se atentou para
as concepções racistas e sexistas apresentadas por Darwin, tal como se pode
perceber no trecho seguinte:
Nos selvagens, as
fraquezas do corpo e da mente são imediatamente eliminadas; aqueles que
sobrevivem, apresentam normalmente um vigoroso estado de saúde. Nós, homens
civilizados, por outro lado, envidamos todos os esforços para deter o processo
de eliminação; construímos asilos para loucos, aleijados e doentes; instituímos
leis para os pobres e os nossos médicos exercitam ao máximo sua habilidade para
salvar a vida de quem quer que seja no último momento. Há motivo para se crer
que a vacinação tenha salvo um grande número daqueles que, por sua débil
constituição física, não teriam em tempo resistido à varíola. Desta maneira, os
membros fracos das sociedades civilizadas propagam o seu gênero. Nenhum
daqueles que se tem dedicado à criação de animais domésticos duvidará que isto
pode ser altamente perigoso para a raça humana. É surpreendente ver com que
rapidez a falta de cuidados, ou cuidados inapropriados, leva a degeneração de
uma raça doméstica; mas, com exceção do homem, é raro que alguém seja tão
ignorante a ponto de permitir que os próprios animais piores se reproduzam (DARWIN,
1974, p. 162).
Kropotkin diz que, nessa passagem, Darwin “abriu passo novamente ao
fermento malthusiano” depois de escrever passagens que refutam a estreita tese
malthusiana da luta pela sobrevivência, o que, no entanto, ele não demonstra e
não se encontra em nenhuma afirmação nesta obra, a não ser a passagem sobre
ajuda mútua, subordinada à luta pela sobrevivência.
Desta forma, Kropotkin foi condescendente com Darwin por não
ter interpretado sua obra corretamente e não percebido seu caráter racista e
sexista. Isto talvez tenha sido derivado de uma leitura projetiva muito mais
que uma busca de compreender a lógica do pensamento do autor. Também a
autoridade intelectual de Darwin, cuja hegemonia ideológica no âmbito das
ciências naturais logo se tornou quase inquestionável, tenham reforçado este
processo de suspensão de senso crítico. Os elementos já presentes em Darwin e
depois desenvolvidos ou simplesmente reproduzidos pelos darwinistas são, assim,
desconsiderados por Kropotkin que atribui isso apenas aos últimos.
Porém, estas observações não retiram os méritos da obra de
Kropotkin, bem como toda sua argumentação a favor da ajuda mútua, da cooperação
como elemento importante no processo evolutivo. Sem dúvida, basta estender sua
crítica do darwinismo à obra de Darwin que tal problema é resolvido. Porém,
isto também não anula alguns outros problemas na obra deste pensador, tal como
colocaremos adiante.
Competição ou Ajuda Mútua?
As críticas que Kropotkin apresenta ao darwinismo são
aplicáveis a Darwin. Porém, a argumentação de Kropotkin é bem mais voltada para
apresentar uma alternativa ao pensamento darwinista do que apontar as falhas e
problemas da teoria, embora estas coisas se confundam em determinado momento.
Kropotkin rejeita a ideia de “luta pela existência” como princípio fundamental
da evolução e coloca o papel relevante da cooperação neste processo. A maior
parte da obra de Kropotkin é dedicada a mostrar o processo da ajuda mútua no
mundo animal e humano.
Através de extenso número de observações próprias e de outros
pesquisadores, Kropotkin busca comprovar o papel da ajuda mútua no processo
evolutivo. Ele trabalha com inúmeras informações sobre aves, peixes, insetos e
outras espécies animais. Kropotkin retoma K. Kessler, que contestou o uso
abusivo do termo “luta pela existência”, perdendo de vista completamente “outra
lei”, a da ajuda mútua, talvez mais importante do que a lei da “luta pela
existência”. Kessler afirmou que a necessidade de deixar descendência une os
animais inevitavelmente: “os animais de todas as classes, especialmente das
superiores, prestam-se ajuda mútua”. Para comprovar tal tese, Kessler forneceu
inúmeros exemplos retirados da vida dos escaravelhos, das aves e de alguns
mamíferos.
Kropotkin também sustenta esta tese e afirma:
Exemplos
de ajuda mútua entre as térmites, as formigas e as abelhas são tão conhecidos
do leitor leigo, principalmente por meio das obras de Romanes, L. Büchner e
John Lubbock, que posso limitar meus comentários a umas poucas alusões. Considerando
um formigueiro, observamos não só que todo o trabalho realizado – criação
da prole, busca de alimento, construção, cuidados com os pulgões, etc. – segue
os princípios da ajuda mútua voluntária, como também devemos reconhecer, como
Forel, que a característica básica da vida de muitas espécies de formigas é o
fato e a obrigação de cada uma delas de compartilhar sua comida, já engolida e
parcialmente digerida, com todos os membros da comunidade que a peçam. Duas
formigas que pertencem a espécies diferentes ou a formigueiros hostis se evitam
ao se encontrarem por acaso; mas, se elas pertencem ao mesmo formigueiro ou à
mesma colônia, aproximam-se, comunicam-se trocando alguns movimentos de antenas
e, “se uma delas está com fome ou sede, em particular se a outra estiver bem
alimentada [...], imediatamente pede comida”. O indivíduo a quem a solicitação
é feita nunca recusa; abre suas mandíbulas, adota uma posição apropriada e
regurgita uma gota de fluido transparente, que é lambida pela formiga faminta (KROPOTKIN, 2009, p. 26).
Assim, Kropotkin dedica dois capítulos de seu livro para demonstrar a
ajuda mútua entre os animais, se baseando nas observações de pesquisadores e as
suas próprias observações, realizadas na Sibéria, de 1862 a 1866, inclusive
vivendo entre os nativos desta região. Também dedica um capítulo para os
“selvagens” e outro aos “bárbaros”, além de dois capítulos sobre a “cidade
medieval” e dois sobre a “sociedade moderna”, demonstrando, em todos, o papel
da ajuda mútua no seu desenvolvimento. O conjunto de informações que ele
trabalha é extremamente extenso e por isso iremos apenas citar o caso de sua
refutação de que o infanticídio entre os “selvagens” e sua relação com a lei da
luta pela sobrevivência, tal como defendido pelos darwinistas (e por Darwin,
embora Kropotkin não o reconheça):
Os povos
primitivos não podem criar todos os seus filhos. No entanto, observou-se que,
tão logo conseguem aumentar seus meios regulares de subsistência, eles
abandonam imediatamente a prática do infanticídio. Em geral, os pais cumprem
essa obrigação com relutância e, tão logo obtêm condições materiais, recorrem a
todos os tipos de acordo para salvar a vida de seus recém-nascidos. (KROPOTKIN, 2009, p. 26).
A ajuda mútua entre os bárbaros e na cidade medieval também reforça a
tese kropotkiniana do papel da ajuda mútua no processo evolutivo, embora, no
último caso, sua abordagem seja muito idílica, tal como alguns comentaristas
ressaltaram. Sem dúvida, a sociedade feudal era uma sociedade de classes,
fundada na exploração e na dominação, e, portanto, não podia ter como princípio
fundamental a ajuda mútua e sim a luta de classes. Obviamente que entre as
classes exploradas, e isto não foi diferente com os servos, havia cooperação e
isto faz parte da história. Kropotkin não desconhece o processo de exploração e
coloca a oposição entre os senhores feudais e servos, mas busca demonstrar que
os primeiros não conseguiram destruir a comuna aldeã, embora a tenha submetido
ao regime feudal de exploração. Nestas comunas aldeãs permanecia a cooperação,
bem como nas guildas e desdobramentos posteriores, que já não são mais
“medievais”, como coloca Kropotkin, mas trazem em si elementos herdados da
sociedade feudal.
Da mesma forma, Kropotkin apresenta inúmeras informações para sustentar a
ideia da ajuda mútua na sociedade moderna. Ele cita desde sociedade
beneficentes passando por clubes, associações, uniões, irmandades, até chegar a
casos concretos, como os bairros pobres de Londres, mostrando que, apesar das
condições desfavoráveis de vida e a ruptura que a sociedade moderna faz com as
relações de vizinhança, as crianças mantém relações de ajuda mútua e também as
mães. Ele cita relatos de mulheres grávidas que recebem o apoio das mulheres
vizinhas e da relação das mães pobres com suas crianças, ao contrário das
mulheres das classes ricas.
Para uma
senhora das classes mais ricas ser capaz de passar por uma criança faminta e
com frio na rua sem notá-la, é necessário algum treino – se isso é bom
ou mau, elas que decidam por si. Mas as mães das classes mais pobres não têm
esse treino, pois não podem suportar a visão de uma criança faminta; elas têm
de alimentá-la, e é o que fazem. (KROPOTKIN, 2009, 221).
Assim, apesar de ser possível discordar de algumas afirmações e
interpretações de Kropotkin (algumas vezes com certa ingenuidade, ao
considerar, por exemplo, que as comunidades científicas seriam expressão de
“ajuda mútua”, ao invés de interesses de grupo que mantém uma competição
interna, e muitas vezes desenfreada, pelo poder, recursos e status, que é
apenas a projeção dos seus sentimentos, obliterando um pouco o que ocorre
concretamente) ele resgata o processo de cooperação na sociedade moderna, o que
se efetiva de forma mais comum no interior das classes exploradas.
Kropotkin, assim, desta que além da luta imediata das pessoas isoladas,
existe a luta em comum, e reprova a Darwin por não ter levado em consideração
em suas análises os “obstáculos naturais à multiplicação excessiva dos animais,
tais como a seca, as inundações, os frios repentinos, as epidemias, etc.”, o
que mostraria que outras determinações atuam sobre o processo evolutivo, tal
como Marx já havia colocado em outra oportunidade (VIANA, 2009). Para
Kropotkin, esta investigação destes fatores seria indispensável para determinar,
em suas verdadeiras proporções, a importância da luta individual pela vida
entre os seres pertencentes a uma mesma espécie de animais em comparação com a
luta de todo o conjunto contra os obstáculos naturais e os inimigos de outras
espécies.
Ele conclui dizendo que a lei da luta pela sobrevivência não é, de forma
alguma, a “lei dominante da natureza”. A ajuda mútua é lei da natureza tanto
quanto a guerra de todos contra todos, tal como se deduz da observação da vida
de aves e mamíferos, entre outras espécies. Os homens possuem a inclinação à
ajuda mútua que remonta o desenvolvimento antigo do passado da humanidade, que
se desenvolveu mais facilmente em períodos de bem estar e paz, mas mesmo nas
condições mais degradantes, tal como em épocas de guerras, misérias, opressão e
calamidades, a mesma tendência continuou existindo nas aldeias e entre as
classes mais pobres da população urbana. Kropotkin ainda diz que todas as novas
doutrinas morais e novas religiões surgem da mesma fonte, de tal forma que o
progresso moral da humanidade constitui uma extensão gradual dos princípios da
ajuda mútua, desde o clã primitivo, passando pela nação, até chegar à união dos
povos.
Considerações Finais
Essa breve síntese do pensamento de Kropotkin acerca da evolução e do
darwinismo, mostra seu acerto no primeiro caso e seu erro no segundo. Assim,
apesar da generalização de Kropotkin poder ser questionada (e outras
determinações do processo evolutivo deveriam ser levadas em conta, bem como ao
invés de uma “lei geral”, teorias mais específicas para casos específicos),
ninguém pode desconsiderar seus méritos e ter resgatado a ideia de ajuda mútua
como uma das determinações da evolução das espécies, principalmente no que se
refere à espécie humana. A obra de Kropotkin foi uma grande contribuição ao
processo de superação do darwinismo e foi expressão de outra mentalidade, em
oposição à mentalidade burguesa, competitiva e darwinista, lançando luzes sobre
a escuridão produzidas por ideologias que naturalizam as relações sociais e
assim justificam e legitimam a exploração e a dominação. A leitura de Kropotkin
hoje seria não somente um antídoto ao darwinismo como também fundamental para
biólogos e outros cientistas naturais no sentido de ampliar sua percepção da
realidade e pensar as implicações da mentalidade burguesa sobre suas
interpretações sobre a vida e assim esboçar alternativas teóricas para compreender
fenômenos como a evolução das espécies.
Infelizmente, a obra de Kropotkin sobre ajuda mútua, assim como suas
outras obras importantes, tal como sua análise da revolução francesa (KROPOTKIN,
1955), a sua proposta de comunismo libertário (KROPOTKINE, 1975), o
anarcocomunismo, até em sua obra mais problemática (KROPOTKINE, 1970), bem como
outras, ainda não recebeu os estudos e reconhecimento necessário. O ponto de
partida deste reconhecimento, porém, deve partir desta obra, O Apoio Mútuo, que tem suas ideias
básicas retomadas em suas obras posteriores, e já esboçadas nas obras
anteriores (KROPOTKIN, 1978). Isto explica o motivo pelo qual até hoje não foi
produzida nenhuma obra de síntese sobre o pensamento de Kropotkin que lhe desse
o devido valor. Este é um projeto a ser realizado e prova de que este pensador
que ressaltou a ajuda mútua merece ser resgatado.
Referências
DARWIN,
Charles. A Origem das Espécies. São
Paulo, Hemus, 1979.
DARWIN,
Charles. A Origem do Homem e a Seleção
Sexual. São Paulo, Hemus, 1974.
KROPOTKIN, Pedro. A Grande Revolução. Salvador, Progresso,
1955.
KROPOTKIN, Piotr. Ajuda Mútua: Um Fator de Evolução. São Sebastião: A Senhora Editora,
2009.
KROPOTKIN, Piotr. Campos, Fabricas y Talleres. Madrid, Ediciones Júcar, 1978.
KROPOTKINE, Pedro. A Conquista do Pão. 3ª edição, Lisboa,
Guimarães, 1975.
KROPOTKINE, Pedro. Humanismo Libertário e a Ciência Moderna.
Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1970.
MARCO, Nélio. O Que é Darwinismo? São Paulo:
Brasiliense, 1987.
VIANA,
Nildo. Darwin e a Competição na
Comunidade Científica. Fragmentos de Cultura (Goiânia), Goiânia, v. 13, n.
1, p. 77-98, 2003.
VIANA,
Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço
Acadêmico. Ano VIII, num. 95. Abril de 2009.
VIANA,
Nildo. Darwinismo e Ideologia. Pós
Revista Brasiliense de Pós Graduação Em Ciências Sociais, Brasília, v. 5, p.
45-78, 2001.
* Professor
da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor
em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.
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