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sábado, 5 de janeiro de 2019

UMA NOVA PORTA SE ABRE PARA O MUNDO DOS SUPER-HERÓIS


Prefácio ao livro: REBLIN, Iuri. O Alienígena e o Menino. Jundiaí: Paco, 2015.

UMA NOVA PORTA SE ABRE PARA O MUNDO DOS SUPER-HERÓIS

Nildo Viana

O presente livro de Iuri Reblin é sua mais nova contribuição para a análise do gênero da superaventura nas histórias em quadrinhos. Reblin é um dos principais pesquisadores da superaventura e nos brinda com mais uma análise desse rico e estranho mundo. Pioneiro e ousado, Reblin aborda a possibilidade de uma leitura teológica do gênero superaventura destacando a questão da narrativa quadrinística desse gênero e seus processos criativos. Ele abre uma nova porta para a análise do mundo dos super-heróis e outras agora poderão ser abertas a partir desse primeiro passo.
Nesse contexto, ele apresenta a questão do gênero superaventura, suas características, sua história e obstáculos encontrados, destacando a questão da censura a partir da investida de Fredric Wertham e do Comics Code Authority. A questão do gênero da superaventura é discutida e analisada como um gênero próprio e ligado ao que denominou “mitologia contemporânea”. A partir desta construção histórica e analítica, Reblin relaciona superaventura e teologia. Partindo da concepção de teologia do cotidiano, desenvolvida por Rubem Alves e outros, ele aborda duas histórias de dois grandes ícones da superaventura: Paz na terra, de Superman, e O Poder da esperança, do Capitão Marvel.
Esta breve descrição não faz justiça à riqueza da obra, que assume grande complexidade e variedade temáticas (dentro de cada capítulo, emerge temas e questões interessantíssimas). Ela foi necessária para oferecer uma visão de conjunto que permite destacar pontos que consideramos extremamente importantes. Assim, como não podemos (nem devemos, de acordo com o objetivo do presente texto) abordar a totalidade e detalhadamente a obra em seu conjunto e complexidade, então vamos destacar alguns pontos que consideramos fundamentais (e que não são os únicos importantes, mas selecionamo-los a partir de nossas preocupações com a pesquisa sobre quadrinhos e com o gênero superaventura em particular).
O primeiro ponto que destacamos é a justificativa apresentada por Reblin para sua pesquisa. As histórias em quadrinhos sempre foram marginalizadas e tidas como algo “inferior”, algo que não tem grande valor, infantil, destituído de importância seja social, acadêmica, etc. Claro que isso mudou nas últimas décadas. A mudança do público, os Graphic Novels, os estudos acadêmicos que aumentam e vão se consolidando, o uso dos quadrinhos nas escolas, a complexidade crescente da produção quadrinística, a existência do underground, as produções mais reflexivas, entre outros elementos, comprovam isto. Reblin mostra, com maestria, essa valoração das histórias em quadrinhos, no caso da superaventura, principalmente a partir dos anos 1960. Ele demonstra isso ao recordar a sua inserção como parte da “cultura de massas” (cultura mercantil), sua influência na sociedade, etc., e o que podemos considerar como mais importante, entendendo a superaventura como “expressão nítida da cultura da era contemporânea” (sociedade moderna), repassando mensagens que discutem a vida e a existência dos seres humanos.
A obra de Wertham foi apenas um capítulo triste, tal como o macarthismo, da história dos Estados Unidos num contexto histórico específico de embate com o seu concorrente mundial, expresso pelo capitalismo estatal da URSS, gerando uma paranoia preventiva para justificar a repressão e perseguição de qualquer crítica ou oposição interna. Reblin mostra a emergência e superação desse capítulo vergonhoso da história americana e a retomada da superaventura para além da censura e repressão.
Nesse processo todo, a superaventura é não só um produto cultural importante, e que tem os elementos acima elencados, mas é uma necessidade de uma sociedade sem liberdade, sem autorrealização do ser humano, que promove uma satisfação substituta na realização fictícia do super-herói. A intencionalidade da criação da superaventura, perceptível através da análise do seu processo de produção, já aponta para outra coisa, para a reprodução dos valores dominantes, sendo axiológica, e também para a posição hierárquica dos Estados Unidos a nível mundial, bem como para o maniqueísmo. Desta forma, a superaventura carrega em si um elemento dominante ao nível consciente e outro que foge ao controle da consciência dos criadores, o inconsciente coletivo. Nesse contexto, há uma ambiguidade no interior da superaventura, mas os valores marginais e em contradição com os valores dominantes, em alguns casos emergem e tornam o inconsciente consciente, sendo transformador, revolucionário, manifestação axionômica. De qualquer forma, essas características são constituintes da superaventura e exercem não só o papel de expressão de uma determinada realidade social, como também a reforça, a revigora, ou a enfraquece, embora isso seja algo excepcional.
Outro ponto fundamental que destacaríamos é a análise dos vínculos teológicos de uma história do Capitão Marvel (obviamente que também de Superman, mas preferimos destacar alguns aspectos importantes, pois não poderíamos abarcar todos). Reblin coloca a questão da teologia do cotidiano como elemento de aproximação entre o religioso e a superaventura. E Shazam (Capitão Marvel), nascido da inspiração de personagens mitológicos, é um super-herói exemplar para tal aproximação. Contudo, Reblin escolhe uma história específica para tal, O Poder da esperança, na qual mostra o Capitão Marvel vivendo um dilema que envolve crianças internadas em um hospital. Uma escolha curiosa (e que também ocorre no caso do Superman, que aborda a temática da fome), pois recaí sobre a relação de um super-herói e um problema social. Mas, obviamente, não se trata apenas de um problema social, pois a realidade não está separada como é apresentada pela divisão social do trabalho intelectual. O real é único, uma totalidade. Nesse sentido, problemas sociais vivem junto com problemas existenciais, culturais, etc. E, nesse sentido, temas teológicos podem ser observados na história, desde a questão da fé e da esperança, bem como da fraternidade (a ideia de que todos os seres humanos são irmãos, filhos de Deus) e, como faz Reblin, recordar a posição de Jesus diante das crianças. Assim, Reblin destaca elementos importantes da relação entre teologia e superaventura, apresentando seus vínculos diversos.
Essa inovadora abordagem da superaventura abre novos campos analíticos que antes não estavam delineados e, além disso, abre a perspectiva de novas pesquisas que explorem novos temas, vínculos, análises, da superaventura com a teologia e com a sociedade. Um elemento interessante é que a superaventura pode ser considerada, a partir de uma divagação inspirada na análise de Reblin, uma religião fictícia. Se recordarmos que o mundo dos super-heróis é um mundo fictício que expressa, além dos valores dominantes e raras vezes valores marginais, aspectos inconscientes, incluindo o que denominamos “inconsciente coletivo”, podemos ver que a religião também traz em si tais elementos. Ela também reproduz valores (dominantes e às vezes marginais) e aspectos inconscientes e alguns do inconsciente coletivo. Em ambos os casos, as representações dos seus produtores também se manifestam. Nesse processo, há mais alguns elementos comuns: o extraordinário, o sobrenatural, o poder super-humano, bem como também o maniqueísmo, a oposição entre o bem e o mal – que se reproduz constantemente como um sonho recorrente.
Essa estrutura semelhante, no entanto, possui diferenças radicais. A primeira e mais importante no plano do pensamento é a que para os produtores da superaventura os super-heróis são ficções, seres inexistentes, produtos da imaginação criadora, enquanto que para os produtores da religião, os deuses (ou apenas um Deus) são verdadeiros, reais, seres existentes de fato. Para os gregos antigos, Zeus, Hermes, Prometeu, Minerva e diversos outros deuses existiam realmente. Para os criadores de super-heróis, o Homem-Aranha, Thor, Homem de Ferro, Hulk, Namor, são criações imaginárias deles mesmos. Claro que, também, a religião é geralmente uma produção coletiva, de uma população inteira, de uma classe social[1]. É possível acrescentar inúmeras outras diferenças, tais como o caráter explicativo (concorde-se ou não com as explicações ou com sua forma de fazê-lo) da religião e do caráter meramente autoexplicativo do mundo da superaventura, o fato do moralismo ser predominante nas religiões e secundário na superaventura.
Uma questão em comum na religião e na superaventura, entretanto, é demasiadamente interessante. Trata-se do momento utópico presente em ambas. O momento utópico é a parte de uma forma de expressão da realidade (arte, ciência, religião, filosofia, teoria, ideologia, etc.) que transcende o mundo existente, seja vendo o além dele num outro mundo ou numa outra época, sendo apenas o desejo de sua superação não expresso sob forma alguma. A religião, já dizia Marx, é o protesto contra a miséria real. Esse mundo miserável deve ser substituído. A substituição é além desse mundo, o Paraíso, a vida após a morte. Em alguns casos, a religião quer outro mundo aqui e agora, o anabatismo, Thomas Munzer e as rebeliões camponesas, as diversas manifestações messiânicas, são expressão desse processo e desse novo momento utópico acrescentado ao anterior.
A superaventura, por sua vez, apresenta como momento utópico a superação dos limites humanos realizado pelos super-heróis, um desejo de libertação gerado por uma sociedade mercantil, burocrática e competitiva. Em casos raros, há também manifestação direta de busca de uma nova sociedade aqui e agora. Contudo, esses momentos utópicos ficam no plano daquilo que Ernst Bloch denominou “utopias abstratas”, desejos e projetos sem o caminho e os meios adequados para realizá-los. As utopias concretas, aquelas que projetam uma sociedade do futuro e meios para se chegar a ela que são realistas, não se manifestam em nenhum dos dois casos. Claro está, também, que são apenas “momentos” e não a totalidade dessas produções culturais, pois o que predomina em cada uma é a reprodução da sociedade existente, o conservadorismo.
Contudo, essas breves divagações são apenas possibilidades analíticas num sentido comparativo. A obra de Reblin é muito mais profunda e ilumina diversas outras questões. Ao lado de suas outras obras anteriores, especialmente seu livro Para o Alto e Avante! Uma Análise do Universo Criativo dos Super-Heróis, ele fornece uma das mais importantes contribuições para o estudo do gênero da superaventura, sendo hoje um dos principais estudiosos deste gênero e que continua em sua longa jornada heroica de estudar, pesquisar, analisar, contribuir e divulgar estudos sobre um mundo fantástico e que nos atinge por expressar seres que fazem o que gostaríamos de fazer e muitas vezes não podemos ou temos coragem de fazê-lo. Quando as injustiças são combatidas, o mal é derrotado, nos sentimos mais humanos e ao mesmo tempo mais do que humanos, ou seja, como seres humanos que superaram suas determinações sociais. O contexto e o representante do mal é algo problemático[2], ligado a ideologemas e valores axiológicos, mas, além disso, há o sentimento de justiça, que guardamos em nós, e alguns guardam muito bem guardado (a ponto de parecer que nem existe, por não se preocupar, ou demonstrar isso, com as injustiças) que se sente satisfeito ao ver Batman derrotando um agressor covarde, ao ver Namor derrotar um vilão que ameaçava uma cidade, ao ver o Surfista Prateado se rebelar contra Galactus. O sentimento de justiça – reprimido em nossa sociedade, assim como outros sentimentos, mas de uma forma bem mais ampla ao ponto de que poucos se referem a ele e ser inexistente uma psicanálise dos sentimentos (obliterada por uma superênfase na sexualidade), revela nada mais do que a essência social do ser humano, a necessidade psíquica do vínculo social e a identificação dos seres humanos com outros seres humanos. Nesse sentido, a superaventura é humana, demasiadamente humana. O sobre-humano vem para manifestar o humano, que tem dificuldade, devido forças externas (relações sociais) de ser/manifestar o que é. Assim, o mundo dos super-heróis está vivo dentro de nós e somente aqueles que não o conheceram mais profundamente é que podem descartá-lo como algo destituído de importância.
A luta dos super-heróis, assume, portanto, uma importância social, política e existencial. A pesquisa sobre a superaventura, pelo menos no caso brasileiro, já promoveu um avanço suficiente para destacar diversos aspectos, problemáticas, elementos, que envolvem a superaventura. Iuri Reblin faz isso e seus escritos sobre a superaventura, que tem na presente obra mais uma contribuição importante, avança e reforça a necessidade de novos estudos e pesquisas sobre este mundo fantástico. Reblin, desta forma, abre nova porta para análise da superaventura – e depois dela existem outras, sendo um universo infinito de milhões de portas sucessivas – e este é um dos principais méritos do presente livro.

Nildo Viana
Outubro de 2012



[1] A exceção ocorre contemporaneamente, a partir da emergência de religiões hipermercantilizadas. Estas não são mais do que uma criação artificial de algo também artificial, que se caracterizam mais por criar igrejas do que religiões autênticas.
[2] E isso vale também para a religião, que é outra comparação possível, já que ambas combatem a injustiça, embora muitas vezes a concepção de justiça seja influenciada pela sociedade e época, restando de forma marginal uma justiça mais autêntica.

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