Juventude/1950: Teddy Boys |
CULTURA, PODER E
JUVENTUDE
Os conceitos são termos
complexos que exigem uma análise aprofundada para expressar seu significado.
Eles possuem múltiplos significados, dependendo da época e de quem os usam. O
termo cultura possui inúmeras definições, tal como outros termos correlatos, entre
eles tradição e memória. Assim, o primeiro ponto a destacar no presente texto é
o seu objetivo: esclarecer os conceitos de cultura, tradição e memória e, após
isto, relacioná-los com a questão do poder e com o processo de permanência e
ruptura em sua conexão com a juventude e a cultura juvenil.
Cultura, Tradição e
Memória
Entre as centenas de
definições de cultura, preferimos a de que ela é o conjunto das produções
intelectuais da humanidade (VIANA, 2006; BOTTOMORE, 1970), tal como já exposto
por Alfred Weber (Apud. BOTTOMORE, 1970). Logo, ao contrário de outras
definições, não colocamos a “cultura material” como parte do conceito, nem a ideia
de que cultura é a “alta cultura”, a cultura das elites[1].
Todos os seres humanos produzem cultura, isto é, produzem ideias, saberes,
valores, concepções, etc., e, por conseguinte, não é privilégio de ninguém. Por
conseguinte, não existe ninguém que não tenha cultura. Quando se diz isso, se
quer dizer, na melhor das hipóteses, de que determinada pessoa não possui cultura
erudita ou escolar e, na pior, que é ignorante, o que revela apenas uma
concepção preconceituosa, pois todos os seres humanos ignoram milhares de
fatos, ideias, etc. e se julga mal aqueles que não em acesso aquilo que temos.
A partir de nossa definição
de cultura, que delimita o conceito, tornando-o restrito ao mundo das produções
intelectuais, representações mentais, podemos ainda ver que possui enorme
abrangência. A religião, a moral, a filosofia, a ciência, as obras literárias,
as representações cotidianas (vulgo “senso comum”), os valores, etc., são
manifestações culturais. No entanto, a cultura não é algo estático, vive em
constantes mudanças. Entender estas mudanças requer compreender o seu processo
histórico de formação, suas divisões, etc. A cultura é constituída socialmente
e ela mesma é um fenômeno social. Ela não é produzida a partir do nada e sim a
partir das relações sociais concretas.
Durante o
desenvolvimento histórico da humanidade ocorreu inúmeras mudanças culturais,
que sempre acompanharam as mudanças sociais. As grandes mudanças sociais, a
passagem de uma forma de sociedade para outra (a passagem da sociedade feudal
para a capitalista, ou da escravista para a feudal, por exemplo) promoveram
grandes mudanças culturais. No entanto, no interior de uma mesma forma de
sociedade (feudal, escravista, tributária, etc.) também ocorrem mudanças
culturais. Porém, nada se compara ao ritmo de velocidade das mudanças culturais
na sociedade moderna. Para se compreender a velocidade das mudanças culturais
na sociedade moderna é preciso compreender esta sociedade e suas
características próprias e essenciais.
A sociedade capitalista
moderna é radicalmente diferente das sociedades que lhe antecederam. É por isso
que muitos sociólogos e outros especialistas opuseram as chamadas “sociedades
tradicionais” à chamada “sociedade moderna”, tal como Durkheim (1996), W. W.
Rostow (1974), entre outros. A oposição entre tradição e modernidade foi se
consolidando e assim surgiram os adeptos da modernidade e os defensores da
tradição. A época na qual esta oposição entre tradição e modernidade ficou mais
visível foi durante o período no qual se desenvolveu o processo da Revolução
Francesa. Os primeiros defensores do tradicionalismo foram os representantes
intelectuais e populares do regime feudal, defendendo a moral, a religião, a
família. Os chamados “pensadores conservadores”, como Burke, De Maistre, entre
outros, foram os seus principais porta-vozes. Do outro lado, os representantes
intelectuais e populares da modernidade, do regime capitalista, da burguesia,
saíram em defesa da laicidade, da razão, da autonomia do indivíduo.
Estas concepções
antagônicas são constituídas socialmente e ligadas aos interesses de classes
sociais e não produções arbitrárias. Assim, a tradição está sempre ligada às
relações sociais determinadas, também tradicionais, de caráter pré-capitalista,
ou, como ocorre posteriormente, não-capitalista. Com a emergência e hegemonia
do modo de produção capitalista, as relações sociais tradicionais são solapadas
e destruídas paulatinamente e junto com ela a cultura que lhe corresponde.
As vitórias das
revoluções burguesas não ocorreram na mesma época nos diversos países. A
Revolução Burguesa na Rússia só ocorreu no início do século 20 e a brasileira
em 1930. Após as revoluções burguesas, ainda permanecem resquícios de relações
de produção pré-capitalistas – que acabam sendo totalmente destruídas – e
surgem relações de produção não-capitalistas que herdam a cultura tradicional,
por ser mais compatível com suas relações sociais e com a herança cultural
recebida via família. Estas relações de produção não-capitalistas são a base de
relações sociais tradicionais, herdeiras de relações de produção
pré-capitalistas.
Esta permanência
cultural coloca a discussão sobre as relações entre tradição e modernidade em
um contexto diferente. Por isso devemos esclarecer o conceito de tradição. Este
conceito também possui diferentes definições, embora não tanto quanto o
conceito de cultura. Apresentaremos a definição que julgamos mais adequada.
Este conceito expressa o conjunto de ideias, hábitos, costumes de uma
determinada população que é transmitida de uma geração para outra, sendo que
seu conteúdo é caracterizado por uma forte ligação com o passado, a
afetividade, relações familiares, sendo que em algumas sociedades assumem o
caráter de uma convicção, possuindo um forte caráter mobilizador. A tradição é,
assim, tanto do ponto de vista da cultura quanto dos costumes, conservadora (o
que não quer dizer que o seja necessariamente do ponto de vista político), pois
ela visa transmitir e, por conseguinte, conservar, determinados costumes,
crenças, ideias, etc.
Nas sociedades
pré-capitalistas, as tradições eram mais fortes, generalizadas e resistentes. Na
sociedade moderna, elas são cada vez mais fracas e restritas a grupos e tornam-se
menos resistentes. A oposição entre tradição e modernidade deixou de ter caráter
predominantemente temporal (sociedades tradicionais X sociedade moderna) e
ganhou um caráter predominantemente espacial (sociedade rural X sociedade
urbana). A ascensão do modo de produção capitalista é marcada pelo processo de
industrialização e urbanização, tornando a cidade o centro da produção de
mercadorias e de cultura. A produção cultural no capitalismo assume um processo
homólogo ao da produção de mercadorias: concentração e centralização.
A cultura, enquanto o
conjunto das produções intelectuais, continua sendo produto do conjunto da
população. No entanto, a produção cultural das classes exploradas e da maioria
da população não é mais totalmente espontânea e sim influenciada pelos meios
oligopolistas de comunicação (Rádio, TV, Cinema, Jornais, etc.) e pela escola.
A população urbana é atingida de forma muito mais abrangente por este processo
do que a população rural, embora isto ocorra de forma cada vez mais intensa. A
população rural, devido às relações sociais persistentes, embora também perdendo
cada vez mais espaço, e menor influência dos meios oligopolistas de
comunicação, é mais ligada à tradição do que a população urbana.
A sociedade moderna
corrói, cada vez mais, a tradição. Nesta sociedade, como já dizia Marx, “tudo
que é sólido desmancha no ar”, “tudo que é sagrado, é profanado” (MARX e ENGELS,
1998). A sociedade capitalista é marcada por uma nova dinâmica do
desenvolvimento temporal. Nas sociedades pré-capitalistas e na vida camponesa e
rural em geral, temos uma percepção do desenvolvimento temporal como se este
fosse mais lento. Na sociedade capitalista, o desenvolvimento temporal aparece
como extremamente acelerado. Esta é uma diferença na percepção e não na
realidade concreta. Esta diferença de percepção é produzida pelos diferenciados
modos de vida. O ritmo de vida extremamente acelerado da sociedade moderna
promove uma percepção de aceleramento do tempo. O relógio é um dos símbolos
mais importantes da sociedade moderna, pois o tempo é fundamental para a
sociedade capitalista, já que é o tempo que está ligado ao processo de produção
de riquezas, é ele que determina o valor da mercadoria. O tempo de trabalho é o
que define o quantum de exploração, o
trabalho excedente. É por isso que ele é controlado no processo de produção, na
fábrica, e é por isso que ele se generaliza a todas as instituições da
sociedade moderna (escola, escritórios, etc.) e assim as pessoas não possuem
domínio sobre suas atividades e, por conseguinte, sobre o tempo gasto nelas.
Assim, o dia de descanso, tal como o domingo, parece mais longo.
A tradição acaba sendo
uma certa persistência da memória social. Se a população rural valora e
reproduz seus costumes, crenças, ideias, etc., a população urbana, moderna,
valora a mudança, a velocidade, a transformação. A memória social da população
rural está mais ligada ao “tempo lento”, ao ritmo da natureza, às tradições,
enquanto que a memória social da população urbana, sob o ritmo do capitalismo,
está mais ligada às novidades, às mudanças, à tecnologia. A memória social,
assim como a individual, é seletiva e tem como principais determinações em seu
processo seletivo os valores, sentimentos, concepções dos indivíduos, bem como
a pressão social e a associação de ideias, embora com menos força.
A memória social se
distingue da tradição pelo motivo de que ela recupera as lembranças do passado
em geral e não apenas aquelas que são herdadas de gerações anteriores. No
entanto, existe uma relação entre memória social e tradição. Esta relação se
revela no caso da população rural (ou, em períodos históricos anteriores, no
conjunto da população das sociedades chamadas “tradicionais”) cuja memória
social é fortemente marcada pela tradição, que veicula valores, sentimentos,
etc., presentes e reproduzidas por esta população. A memória social da
população urbana é marcada por outros valores, sentimentos, etc., tal como a
valoração da tecnologia, do novo, do que é sofisticado (e, portanto, inovação),
para colocar um exemplo contrário.
A base disto está na
própria dinâmica do modo de produção capitalista e de sua necessidade de
reprodução ampliada do mercado consumidor, que faz com que exista um acelerado
desenvolvimento de mercadorias culturais, tecnológicas, etc., e cuja expressão
mais conhecida é a moda, substituída sucessivamente e em várias esferas da vida
(roupa, produtos eletrônicos, ideologias acadêmicas, cinema, arte, etc.). A
partir do pós-segunda guerra mundial isto se aprofundou e depois dos anos 80 a
descartabilidade se torna uma características da atual fase do desenvolvimento
capitalista.
No entanto, a memória
social pode abarcar toda a população de uma determinada sociedade ou classes ou
grupos sociais no seu interior (VIANA, 2006). Da mesma forma, a seleção das
lembranças no interior dela é diferente em grupos sociais diferentes, embora
possa haver elementos comuns na memória social da totalidade da população (VIANA,
2006).
A partir dessa definição
conceitual de cultura, memória e tradição, podemos avançar no sentido de
estabelecer as relações que encontramos entre cultura e poder, para,
posteriormente, retornarmos com a questão da juventude e sua relação com a
permanência e ruptura.
Cultura e Poder
Certa vez o psicanalista
alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para a luta pela
transformação social e criação de um novo mundo – livre da exploração e
alienação e baseado na igualdade e liberdade – é responder por qual motivo os
trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por
qual motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja,
a questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é
explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no
mesmo estado não fazem a mesma coisa. A questão fundamental seria, então,
explicar por qual motivo os trabalhadores, oprimidos, descontentes não realizam
atos de negação da sociedade existente. Sem dúvida a resposta é complexa.
Existe o aparato repressivo do Estado, bem como o exército e a polícia, que são
fatores importantes para impedir estas ações. Porém, existe algo anterior à
força repressiva que é um forte obstáculo ao processo de luta por realização
das necessidades não satisfeitas. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo
ele, o que importa, para explicar a origem das desigualdades, é indicar,
“No progresso das coisas, o
momento em que, o direito sucedendo à violência, a natureza submeteu-se à lei;
de explicar por que encadeamento de prodígios pôde o forte decidir-se a servir
ao fraco, e o povo a comprar um repouso imaginário ao preço de uma felicidade
real” (ROUSSEAU, 1989, p. 49).
Portanto, Rousseau
explica a origem das desigualdades a partir do momento em que surgiu a
supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de acordo com o que
colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da desigualdade, da
exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no momento em que
falham os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim coloca a origem
da propriedade privada e, por conseguinte, da desigualdade:
“O primeiro que, tendo
cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e encontrou pessoas bastante
simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao
gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse
gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras deste impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de
ninguém. Entretanto parece que as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais
poder continuar como estavam; pois essa ideia de propriedade, dependendo de
muitas ideias anteriores que não puderam nascer senão sucessivamente, não se
formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos,
adquirir muita indústria e saber transmiti-los e aumentá-los de geração em
geração, antes de se atingir esse último estágio do estado de natureza” (ROUSSEAU,
1989, p. 84).
Rousseau, apesar de sua
contextualização histórico-social deixar muito a desejar, coloca um elemento
fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento. Ou seja, a
repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da população, a força
só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui entramos na
questão cultural e no papel da cultura para a reprodução social. A grande
questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não se rebelam? E
Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na instauração da
propriedade privada e na sua corroboração pela cultura, no consentimento. Sem
dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na reprodução da sociedade
existente e em todos os males gerados por ela.
A partir desta
constatação podemos relacionar cultura e poder. O universo cultural na
sociedade moderna é muito amplo e possui vários aspectos. Destacaremos os
principais que aproxima a cultura do poder instituído: axiologia, ideologia,
representações cotidianas ilusórias. A axiologia é uma determinada configuração
dos valores dominantes em determinada sociedade (VIANA, 2007). A axiologia na
sociedade capitalista moderna aponta para determinados valores, tais como a
competição, o culto à autoridade, a luta pela ascensão social e status, o desejo de consumo e posses
etc. A sociedade capitalista produz uma estruturação de valores que são
inculcados nos indivíduos desde sua infância. A competição é uma parte
constitutiva do processo de socialização, tanto familiar quanto escolar. Nós
vivemos num mundo competitivo e a competição acaba formando valores que são
introjetados pelos indivíduos. Todos querem “ser o melhor”, o melhor aluno (o
que tira “as melhores notas”), o melhor jogador de futebol, o torcedor do
melhor time e assim por diante. A competição que se encontra na sociedade (na
escola, na busca de posições através de concursos, na disputa por uma vaga na
escola ou universidade ou por um emprego no mercado de trabalho), no mundo dos
esportes, nas igrejas, nas instituições em geral. A competição é tão grande que
se encontra até mesmo nas relações amorosas entre homens e mulheres (ALBERONI,
1988). Esta sociedade competitiva irá criar indivíduos competitivos e é por
isso que diversos pesquisadores irão colocar a existência de uma “personalidade
competidora”, de um “caráter competitivo”. A ascensão social, a riqueza e o status são elementos fundamentais na
cultura capitalista contemporânea.
Como isto interfere na
formação da mentalidade dos indivíduos explorados e oprimidos? Isto gera, no
interior dos grupos sociais oprimidos e das classes exploradas, o
individualismo e a competição. Muitos tentam superar sua situação indesejável
de exploração e opressão através de uma solução individual, buscando realizar a
ascensão social, adquirir o poder ou riqueza. Aqui temos uma negação de uma
situação – de exploração e opressão – simultaneamente com sua reafirmação – a
solução individual que reforça os valores burgueses e leva os indivíduos a
quererem a conservação da sociedade capitalista na ilusão de que poderão
realizar tais valores. Os valores são mobilizadores, eles fazem as pessoas
agirem, escolherem, decidirem (VIANA, 2007). O aspecto mais importante do
universo cultural reside justamente nos valores. E existem, para os indivíduos,
valores fundamentais que estão acima na sua escala de valores e estes são mais
eficazes do que os outros. Estes valores são constituídos socialmente e
reproduzem a sociabilidade existente, capitalista. Tal como colocou Reich:
“A existência e as condições
de existência dos homens, refletem-se, incrustam-se e reproduzem-se na sua
estrutura mental, à qual dão forma. É só através desta estrutura mental que
este processo objetivo nos é acessível, que podemos entrava-lo, favorecê-lo ou
dominá-lo. Só por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho, da
sua procura da alegria de viver, em resumo, de sua existência psíquica, que nós
criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi tudo isto que esqueceram há
muito os ‘marxistas’ que degeneraram em economicistas” (REICH, 1976, p. 19).
Esta referência ao
marxismo é importante, pois muitos consideram que para Marx as ideias não
passavam de mero epifenômeno, de coisa sem importância e influência no curso
real dos acontecimentos e das lutas sociais, o que é um equívoco, pois para ele
as ideias se transformam em “forças materiais” quando são desenvolvidas pelos
explorados e oprimidos. Segundo Marx:
“Se alguém acredita
possuir 100 táleres*, se essa não é para ele apenas uma representação
arbitrária, subjetiva, se ele acredita nela, então os 100 táleres imaginados
têm para ele o mesmo valor que 100 táleres reais. Por exemplo, ele contrairá
dívidas em função desse seu dado imaginário, o qual terá uma ação efetiva: foi
assim, de resto, que toda a humanidade contraiu dívidas contando com seus
deuses”(apud. LUKÁCS, 1979, p. 13).
A força do imaginário,
tal como Marx colocou, é ativa e mobilizadora. Uma ideia é, independentemente
de ser verdadeira ou falsa, mobilizadora, ativa. Assim, os valores geram uma
visão imaginária de sua realização que mobiliza conservadoramente grande parte
da população.
Tendo sua base nos
valores dominantes e servindo para reproduzi-los, temos a ideologia. A
ideologia surge com a divisão entre trabalho intelectual e manual e se desenvolve
em formas cada vez mais complexas. A ideologia na sociedade capitalista se
manifesta sob a forma de ciência, filosofia, teologia. Ela é uma sistematização
da falsa consciência, ou seja, é um pensamento complexo, sistemático, que dá
forma a um conteúdo falso. Ora, a ideologia está intimamente ligada à divisão
social do trabalho e são os especialistas na produção de ideias, os ideólogos,
que irão produzir e reproduzir a ideologia. A sociedade capitalista é marcada
por uma crescente especialização e por criação de técnicos e especialistas em
quase tudo. E tais especialistas acabam assumindo a forma de autoridade e isto
propicia o que podemos denominar “culto á autoridade”. Algumas pessoas se
julgam incapazes de tomar decisões sem consultar um especialista (médico,
dentista, psicólogo e cada vez mais, arquitetos, agentes de turismo e coisas do
gênero).
Devido ao culto à
autoridade e pela desvaloração do saber popular, cria-se nos grupos oprimidos e
classes exploradas uma valoração da ideologia e um sentimento de incapacidade
de alcançar o saber científico, filosófico, teológico. Assim, o discurso dos
especialistas, dos cientistas e outros ideólogos, assumem a aparência de
verdade inquestionável (como muitos dizem ingenuamente: “isto já foi comprovado
pela ciência”). A popularização da ideologia, o que traz sua desfiguração e
simplificação, reforça, pois, o conservadorismo da população. As revistas de
vulgarização científica, os meios oligopolistas de comunicação (rádio,
televisão, jornais, revistas semanais) e o ensino escolar cumprem este papel.
Assim, a ideologia, apesar de sua produção estar restrita no círculo dos
ideólogos, possui uma eficácia política que é uma força que garante o
consentimento e a conservação da sociedade burguesa.
Por fim, temos as representações
cotidianas ilusórias, o reino do imaginário popular. O saber popular, chamado
pelos ideólogos de “senso comum”, é formado pelo conjunto das representações
cotidianas que os indivíduos possuem da natureza e das relações sociais. Estas
representações cotidianas, que se expressam no dia-a-dia da população, podem
ser falsas ou verdadeiras. Para algumas ideologias, elas são necessariamente e
sempre falsas, o que é uma inversão da realidade. As representações cotidianas
– que são as representações não apenas produzidas pelos indivíduos das classes
exploradas e grupos oprimidos, mas por todos os indivíduos desta sociedade,
inclusive os cientistas que não pensam “cientificamente” sobre tudo e a todo o
momento – são predominantemente falsas, especialmente nos setores privilegiados
da sociedade (VIANA, 2008). Na realidade concreta, existe nos indivíduos uma
mescla de representações cotidianas falsas e verdadeiras, que expressa a
contraditoriedade da consciência de classe já discutida por Reich e Gramsci (REICH,
1976; GRAMSCI, 1988). As representações cotidianas ilusórias reforçam o
imobilismo, os valores dominantes e assim por diante, também servindo para a
reprodução do capitalismo. Elas nascem, em primeiro lugar, das próprias
relações sociais existentes, que são “naturalizadas” e “universalizadas”. Quem
já não ouviu a frase “a desigualdade existirá para sempre”. Ora, as pessoas que
nascem numa sociedade caracterizada pela desigualdade, vivem e envelhecem nesta
sociedade, tendem a pensar que isto é “natural” e “universal”: assim é, assim
sempre será. Tal opinião fica mais forte ainda quando algum cientista vem para
afirmar que existe na natureza uma “luta pela sobrevivência”, onde há uma
“seleção natural dos mais aptos” e só estes sobrevivem, tal como afirmou
Darwin. Assim, as representações cotidianas também são mobilizadoras, e as que
são ilusórias mobilizam no sentido de conservação da sociedade existente. A
axiologia, a ideologia e as representações cotidianas ilusórias se reforçam
reciprocamente.
No entanto, até agora
apenas observamos o papel conservador da cultura, a sua ligação com o poder. É
necessário mostrar que isso não é o seu único papel. As classes exploradas e
grupos oprimidos trazem em si um conjunto de ideias, valores, representações que
realizam uma crítica do capitalismo. Da mesma, forma, grupos políticos,
intelectuais dissidentes, movimentos sociais, indivíduos e outros setores da
sociedade, também produzem e reproduzem uma cultura contestadora. Obviamente
que isso é mais forte em certos setores da sociedade, época, sociedade, mas a
cultura não é apenas conservadora, mas também contestadora e isto se revela
naqueles indivíduos e grupos que, devido sua posição social, formação cultural,
etc., produzem e reproduzem esta contestação.
Juventude, Cultura e
Identidade
A discussão sobre
cultura e poder, bem como a questão da tradição e memória, é fundamental para
analisar a questão da juventude. A juventude aparece, geralmente, como
relacionada ao novo, bem como à contestação. A identidade da juventude está
ligada a este processo e por isso uma discussão sobre juventude e identidade é
útil para nossos propósitos.
A primeira questão a ser
respondida é o que significa “identidade”. Não cabe aqui discutir as diversas
concepções de identidade (para ver uma síntese de várias concepções, consulte CUCHE,
2002) e sim apresentar uma definição que permita analisar o processo de
constituição da identidade da juventude. A maioria dos autores define
identidade como “conceito de si” ou “representação de si” (JACQUES, 1998).
Assim, a identidade é a autoimagem desenvolvida pelos indivíduos e/ou grupos
sociais.
A formação da identidade
é um fenômeno social marcado por um “processo de reflexão e observação
simultâneas” que atinge a totalidade do universo psíquico e no qual o indivíduo
julga a si próprio a partir do julgamento dos outros (ERIKSON, 1987, p. 21). A
identidade é formada tendo por base “quadros de referência” (GUATTARI & ROLNIK,
1996), isto é, o indivíduo cria sua identidade num contexto social delimitado.
A identidade do indivíduo vai sendo formada através de sua experiência,
observação e reflexão e todos estes fenômenos constituem um processo que também
é social.
A experiência e a
observação são referentes às relações sociais, bem como a reflexão se realiza,
também, sobre um material social. O próprio processo de experiência, reflexão e
observação é social, pois um indivíduo não observa tudo que lhe cerca ou
acontece, mas somente o que ele seleciona de acordo com seus valores, que são
constituídos socialmente (VIANA, 2007). Se a formação da identidade é um
processo social, então se torna necessário entender o papel do Outro e sua
importância neste contexto. A identidade é a autoimagem do indivíduo produzida
por ele e para ele, mas também pelos outros e para os outros. O indivíduo,
enquanto ser social, forma sua identidade através do seu processo de
socialização (BERGER & BERGER, 1978) e a autoimagem que faz de si é,
também, um produto social.
Isto também é válido
para os grupos sociais, inclusive a juventude. Vários pesquisadores já
colocaram que a juventude é uma “construção social” ou da “modernidade” (GROPPO,
2000; MUUSS, 1974; AVANZINI, 1980) ou, então, que é “apenas uma palavra” (BOURDIEU,
1983) e notaram a inexistência da juventude em sociedades pré-capitalistas (ÁRIES,
1986) e a partir dos dados etnográficos (MEAD, 1978) é possível questionar sua
existência nas sociedades pré-classistas e indígenas. Para compreender a
formação da identidade da juventude, isto é, de sua autoimagem, é necessário,
anteriormente, definir este grupo social, revelando o que lhe caracteriza
enquanto grupo.
Entre as diversas
definições de juventude, há poucas que destacam o seu caráter social. O que
predomina na esfera das representações cotidianas, dos meios oligopolistas de
comunicação e das ciências naturais é a concepção biologicista ou psicologista.
No entanto, já há muito tempo historiadores, antropólogos, sociólogos, entre
outros cientistas sociais veem apresentando um amplo material informativo e
diversas reflexões e análises que desmentem as concepções biologicistas e
psicologistas. Apesar de não haver unanimidade neste grupo sobre a questão da
juventude, pelo menos houve um avanço comum na superação dos obstáculos
ideológicos e na compreensão de que a juventude é um fenômeno social.
Dentro de uma
perspectiva que compreende a juventude como um fenômeno social é preciso
encontrar uma definição que permita avançar no processo de análise da
identidade da juventude. A definição que servirá de base para a presente
análise é a que considera a juventude um “grupo etário composto pelos ‘jovens’,
isto é, indivíduos inseridos no processo de ressocialização” (VIANA, 2004).
Desta forma, a ressocialização é o que caracteriza a juventude. A
ressocialização, ou “socialização secundária”, é um momento na vida dos
indivíduos da sociedade moderna na qual eles são preparados para realizarem uma
integração completa na sociedade, tanto na esfera do trabalho quanto na esfera
das responsabilidades sociais.
A criança é socializada
no seio da família, da escola e da comunidade para o convívio social, o
civismo, etc., enquanto que o jovem recebe uma ressocialização mais específica,
que o prepara para o mercado de trabalho, tendo, pois, um caráter
profissionalizante, ensino técnico, superior, etc., o que traz uma das
características apontadas como sendo típicas da juventude: a escolha
profissional ou vocacional (MUUSS, 1974; SPRANGER, 1970) e para as
responsabilidades sociais (casamento, família, vida política). Embora haja
diferenças neste processo dependendo da classe social, cultura, etc., esta é a
base social e unificadora deste grupo etário (VIANA, 2004).
Sendo assim, este grupo
etário é constituído em uma sociedade na qual a passagem da infância para a
idade adulta é mediada por um período de formação, mais ou menos longo, no qual
algumas instituições serão fundamentais, especialmente a escola (AVANZINI,
1980). Para os jovens das classes trabalhadoras, a passagem pela escola pode
ser mais breve e no caso dos setores mais empobrecidos pode ser até mesmo
inexistente, e neste caso o processo de ressocialização se dá via trabalho
precoce e possui um período mais curto, tal como se vê nos casamentos
realizados numa faixa etária menor do que em outros segmentos sociais (SINGER,
1976).
O processo de formação
da identidade da juventude é um processo social e, por conseguinte, sua
formação é determinada, num primeiro momento, pelo adulto, pelo “Outro”, e não
pelos próprios jovens. Somente num segundo momento é que este grupo etário
participa ativamente do processo de constituição de sua autoimagem. A
compreensão disto pode ser facilitada a partir da recordação da passagem da
obra de Simone de Beauvoir em que ela aborda a mulher enquanto “o Outro do
Outro”. Ela recorda o filósofo Hegel e a sua dialética do senhor e do escravo:
“O senhor e o escravo
estão unidos por uma necessidade econômica recíproca que não liberta o escravo.
É que, na relação do senhor com o escravo, o primeiro não põe a necessidade que
tem do outro; ele detém o poder de satisfazer essa necessidade e não a
mediatiza; ao contrário, o escravo, na dependência, esperança ou medo,
interioriza a necessidade que tem do senhor; a urgência da necessidade, ainda
que igual em ambos, sempre favorece o opressor contra o oprimido: é o que
explica que a libertação da classe proletária, por exemplo, tenha sido tão
lenta” (BEAUVOIR, 1988, p.18).
É neste sentido que
podemos dizer que a juventude tem sua identidade produzida pelo Outro, que é o
adulto. É o Outro que cria o Um:
“Nenhum sujeito se
coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que
definindo-se como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um
definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso
que se sujeite a esse ponto de vista alheio” (BEAUVOIR, 1988, p. 16).
Assim, a relação entre
opressor e oprimido é a relação do Um com o Outro e por isso o oprimido se
torna o Outro do Outro, isto é, cria sua identidade a partir do Outro. No caso
específico da juventude, ela é constituída num conjunto de relações sociais
instituídas pelos adultos e ganham sua posição social específica devido à ação
destes últimos. Para ter esta posição específica e para assumir o papel de
adulto posteriormente, o jovem é oprimido e controlado em várias instituições
(família, escola, etc.). No entanto, além destas relações sociais concretas
existe a esfera da consciência, onde se coloca a questão da identidade, da autoimagem,
e de seu processo de formação. O mundo adulto não só impõe um processo de
ressocialização, que é a base unificadora e social da juventude, como também
uma imagem da juventude, que será o ponto de partida para a criação da autoimagem
por parte desta.
A imagem da juventude
produzida pelo mundo adulto – expressão dos indivíduos integrados na sociedade
capitalista – é aquela produzida pelas diversas ciências, pelos meios
oligopolistas de comunicação, pelas representações cotidianas, etc. As ciências
modernas assumem uma importância crucial para se compreender a imagem da
juventude formada pelo mundo adulto.
“A modernidade traz
consigo um processo de cerceamento político, policial, moral, empírico e
científico do indivíduo. As ciências médicas e a psicologia buscam uma
definição exaustiva, detalhada e objetiva das fases de maturação desse
indivíduo, bem como propõem métodos de acompanhamento apropriados a cada fase
dessa evolução do indivíduo à maturidade ou idade adulta. Trata-se do fenômeno
de ‘naturalização’ e objetivação das faixas de idade pelas técnicas sociais e
pelas ciências médicas e humanas, que enfatizou principalmente a infância e a
juventude” (GROPPO, 2000, p. 59).
Este autor acrescenta
que foi crucial a criação pela psicologia do construto de “adolescência”,
realizada nos séculos 19 e 20 (GROPPO, 2000). A adolescência passa a ser vista,
inicialmente, como um período de transição da infância para a idade adulta,
como se fosse um processo linear e harmonioso, concepção que é substituída pela
ideia de que conflitos, desajustes, ambiguidades, são comuns nesta fase da
vida. De qualquer forma, a adolescência, no discurso psicológico e médico, bem
como no discurso posteriormente desenvolvido por outras ciências (psicanálise,
sociologia, etc.), passa a ser vista como uma etapa de transição entre a
infância e maturidade, concebida de forma evolucionista-cumulativa. A
adolescência, segundo estas concepções, é um período de evolução natural do
indivíduo, no qual ele se prepara para ser integrado na sociedade capitalista (GROPPO,
2000).
Não só as ciências
modernas contribuíram com este processo de constituição de uma imagem social da
juventude, pois o direito e a legislação, entre outras formas de ação estatal,
vêm para reforçar isto, criando especificidades no que se refere ao mercado de trabalho,
ao processo de educação escolar, ao processo político e também produzindo um
conjunto de responsabilidades sociais. Os meios oligopolistas de comunicação
também vão ter um papel cada vez mais importante na formação desta imagem, pois
não só passa a vulgarizar a produção científica acima descrita como também
passa a ser um mecanismo da publicidade no sentido de construir um mercado
consumidor específico, a juventude, que passa a consumir produtos específicos (VIANA,
2004). O processo de vulgarização do saber científico através dos meios
oligopolistas de comunicação, das escolas, dos profissionais que atuam junto à
população (médicos, psicólogos, pedagogos, etc.) vai difundir pela sociedade
esta imagem da juventude, que se tornará hegemônica com o passar do tempo,
passando a ser reproduzida pelas representações cotidianas, sendo mais um
elemento de reforço e constituição desta imagem.
Após esta descrição dos
mecanismos de constituição da imagem da juventude feita pelas ciências
modernas, pela legislação, pelos meios oligopolistas de comunicação, pelas
representações cotidianas, é necessário realizar uma análise crítica dela. Tal
como já foi colocado anteriormente, a imagem da juventude produzida pelo mundo
adulto é evolucionista-cumulativa (GROPPO, 2000). Ela tem como base uma
concepção evolucionista que culmina com o “mito do adulto-padrão” (LAPASSADE,
1975). Lapassade cita o trabalho de E.
Pichon que realiza a crítica da criação de modelo normativo de adulto, tomando
como exemplo Jean Piaget, autor que postula uma concepção
evolucionista-cumulativa que culmina com um “adulto ideal”, caracterizado,
entre outras coisas, por ser convencional e rígido, mecanicista, determinista,
materialista e cientificista, bem como não tendo direito de ser finalista (LAPASSADE,
1975). Mas o adulto-padrão de Piaget não se limita a isso:
“É concebido, por outro
lado, como tendo uma fixidez de crença, o que, aliás, M. Pierre Janet mostrou
bem que ninguém jamais possuiu. Do mesmo modo, sabe definir tudo, capacidade
puramente quimérica, porque incompatível com o funcionamento das disciplinas de
observação e com a própria estrutura da linguagem... Em matéria de linguagem, o
adulto-padrão fabricado por Piaget tem também um dogma que não pode afastar-se:
a doutrina saussuriana de ‘o arbitrário do sinal’... Neste terreno especial,
apanhamos Piaget no flagrante delito de tomar por definitivo e de integrar ao
seu tipo de adulto ideal uma doutrina que a um certo momento reinava numa
ciência particular” (PICHON, apud. LAPASSADE, 1975, p. 264-265).
Esta concepção do
adulto-padrão toma o jovem como um ser incompleto, um ser transitório que deve
chegar ao modelo ideal, sem questionar se tal modelo corresponde à realidade,
se é adequado, se é socialmente constituído e, por conseguinte, não sendo
universal e nem meta desejável. Assim, a concepção evolucionista-cumulativa do
adulto-padrão reproduz o processo das relações sociais tomando o indivíduo
adulto e integrado na sociedade moderna, que é uma sociedade repressiva, segundo
Freud (1978) e fundada na exploração, segundo Marx (1988), como modelo ideal a
ser seguido e concebe aquele que não realiza este caminho de desenvolvimento
como sendo “problemático”, “infantil”, etc.
Assim, a imagem da
juventude é aquela do indivíduo incompleto que se completa quando se integra
totalmente na sociedade (mercado de trabalho, instituições sociais,
responsabilidades sociais) e daí a concepção de juventude como mera transição,
um período que deve ser ultrapassado e substituído pela maturidade da idade
adulta. Este modelo encontra correspondência com o desenvolvimento cronológico
e biológico dos indivíduos, e assim se vê confirmado e naturalizado.
A juventude, neste caso,
é jogada em determinadas relações sociais, voltadas para sua ressocialização,
através de determinadas instituições (escola, associações, etc.) e recebe do
mundo adulto uma imagem determinada. É neste contexto que a juventude cria sua autoimagem,
sua identidade.
“É neste contexto que
ocorre a formação da identidade e dos valores dos jovens, bem como sua luta
pela independência. Como os jovens não constituem uma massa amorfa, há a
recusa, a crítica e a contestação sob as mais variadas formas. O processo de
ressocialização, sendo repressivo e uma antecâmara do modo de vida adulto, é
negado, bem como a dependência é negada, mas de forma ambígua, pois sua
superação significará a inserção no trabalho alienado e no mundo das obrigações
sociais também realizadas sob o signo da alienação, em instituições
burocráticas e mediadas pela competição e mercantilização de tudo” (VIANA,
2004, p. 48).
Assim, a autoimagem da
juventude é marcada pela ambiguidade derivada de sua posição social e projeto
de vida. A juventude cria sua autoimagem através da influência das pressões
sociais (ciências modernas, meios oligopolistas de comunicação, Estado,
família, representações cotidianas, etc.), mas parte da juventude recusa esta
produção externa de identidade e assim se lança à contestação, criando uma
identidade diferenciada fundada na rebeldia, na irreverência. No entanto, a
juventude carrega, em ambos os casos, com maior ou menor grau, esta ambiguidade
na sua própria identidade, em sua autoimagem.
A identidade da
juventude, assim, não é exatamente a imagem produzida pelo mundo adulto. No
entanto, este também trabalha sobre tal identidade, reinterpretando-a. Esta
reinterpretação da identidade da juventude pelo mundo adulto, especialmente
pelas ciências modernas, abarca a rebeldia e ambiguidade da juventude,
fornecendo-lhe uma naturalização, isto é, coloca nos seus quadros de referência
aquilo que tal quadro não consegue explicar e por isso naturaliza os elementos
que fogem de sua explicação, através da naturalização da “desnaturalização”
contida na rebeldia e ambiguidade dos jovens. A rebeldia e ambiguidade são
reinterpretadas como sendo um produto natural da idade, do desenvolvimento
biológico, etc.
Mas o que nos interessa
aqui é a identidade da juventude e não sua reinterpretação pelo mundo
ideológico dos adultos, expressão da cultura conservadora voltada para a
reprodução do capitalismo e sua naturalização. A autoimagem do jovem se
constrói a partir de suas relações sociais concretas e da ação cotidiana sobre
ele dos adultos, das instituições, etc., e do sentimento de pertencimento a um
grupo que possui, segundo a ideologia dominante e as representações cotidianas,
uma mesma “natureza”. O elemento mais forte para a formação da identidade da
juventude é a experiência social dos jovens, que encontram milhares de exemplos
que seguem o modelo proposto pelo mundo adulto, e isto produz um sentimento de
pertencimento ou uma necessidade de pertencimento por parte dos jovens, pois
escapar disso seria “anormalidade” e provocaria um afastamento daqueles
indivíduos da mesma faixa etária com os quais se convive e possui relações
sociais semelhantes. Assim, a autoimagem da juventude é constituída
socialmente, e acaba englobando parcialmente a rebeldia e a contestação,
exemplos de “vitalidade” jovem, mas na maioria das vezes interpretadas de
acordo com a ótica do mundo ideológico dos adultos, isto é, como um processo de
origem biológica, cronológica, etc., ou seja, natural.
Assim, a identidade da
juventude é produzida no jogo das relações sociais, mas que pode apresentar
rupturas em determinados momentos históricos, no caso das grandes
transformações sociais. Além disso, as diferenças no interior da juventude (de
classe, cultura, etc.) promovem diferenças neste processo embora não sejam tão
significativas para negar o sentimento de pertencimento à juventude, a não ser
em casos individuais raros, derivados de uma constituição psíquica particular
oriunda de relações sociais também singulares. A identidade da juventude é uma
tradução de sua situação social real, interpretada e reinterpretada pelas
ideologias, representações cotidianas, meios oligopolistas de comunicação,
instituições, etc.
Juventude, Permanência e
Ruptura
A relação da juventude
com a cultura, a tradição e a memória social é bastante complexa. A juventude,
devido à idade, cronologicamente falando, e à ideologia da juventude enquanto
“futuro” (adequada/adaptada ao mundo da novidade, das modas, etc.) tende a assumir
determinada relação com o mundo da cultura, incluindo a tradição e a memória. A
juventude, ao entrar em confronto com as relações sociais existentes (escola,
família), já que elas buscam prepará-la de forma repressiva para relações
sociais repressivas, tende a negar as tradições, identificadas com os pais, as
autoridades, as instituições existentes. Assim, de acordo com os valores
atribuídos e constituídos socialmente pela juventude, a tradição é algo a ser
negado, embora existam também aspectos das tradições que ela busca preservar.
Isto ocorre devido a dois fatores principais: a) as diferenças no interior da
própria juventude e b) o resgate de concepções que servem para as lutas juvenis
contemporâneas.
A juventude possui
vários elementos comuns que a caracteriza, mas também possui várias divisões no
seu interior, oriundas da divisão social do trabalho a nível da sociedade em
geral. A divisão de classes sociais é o aspecto mais importante e fundamental
nesse processo, atingindo o modo de vida dos jovens, criando diferenças
importantes entre os indivíduos deste grupo social. As diferenças regionais,
religiosas, culturais, espaciais, também influenciam e geram especificidades em
diversos segmentos da juventude. A juventude camponesa ou rural em geral, tende,
pelo seu próprio modo de vida, a ter uma relação com a tradição que é diferente
da juventude operária e burguesa, ambas urbanas e pouco apegadas as tradições
populares e rurais, embora mantenha uma relação um pouco diferente com as
tradições das elites, valoradas socialmente. A juventude, assim como todos os
demais grupos sociais, também se inspira no passado e nas tradições e memória
social para resgatar aquilo que lhe interessa na atualidade, tal como hoje se
vê no interesse de vários grupos juvenis por Rock and Roll, Raul Seixas,
contracultura, anarquismo, etc.
A memória social da
juventude abarca um número de lembranças menor do que a dos adultos, mas, no
entanto, resgata e seleciona aquilo que em sua época de criança assume um
sentido e significado atual. O que no período da infância não tinha muito
significado, mas foi vivenciado, pode ser resgatado e valorado, ou aquilo que
foi vivido de uma forma, pode ser resgatado sob outra forma.
A memória social da
juventude rural está muito mais ligada às tradições populares, sendo, pois, um
mundo mais próximo, embora também em renovação e este grupo social tende a ser
um dos mais importantes incentivadores dessa renovação. A memória social da
juventude urbana, por sua vez, está mais ligada aos meios oligopolistas de
comunicação, ao modismo, à novidade.
Neste sentido, abordar a
cultura juvenil pressupõe compreender as diferenças sociais no interior da
juventude e a hegemonia exercida pelos meios oligopolistas de comunicação. Na
cultura juvenil está presente a cultura geral da sociedade, mas também sua
cultura específica e assim se mescla tradição e modernidade, o novo e o velho,
o passado, o presente e o futuro. A cultura juvenil é uma subdivisão da cultura
de determinada sociedade e uma determinada concepção desta. Na cultura juvenil
existe uma memória social seletiva, fundada nos valores, sentimentos, etc. da
juventude e isto é perpassado por uma divisão, pois se manifesta de forma
diferenciada dependendo de qual classe, região, país, religião, etc., este segmento
está inserido.
Desta forma, o mais
interessante é discutir a posição da juventude diante da cultura em geral e daí
analisar a questão da permanência e da ruptura. Existem duas tendências
político-culturais na sociedade moderna que contribuem para pensar a questão da
permanência e da ruptura no plano cultural (e não só nele, mas é o que aqui
enfatizaremos). Uma se caracteriza pelo apego ao passado, às tradições, aos
sentimentos. Esta é a tendência do romantismo. A outra se caracteriza pela
apologia do novo, do futuro, do progresso. Esta é a tendência iluminista. Estas
duas concepções se encontram tanto no mundo da arte e da cultura em geral
quanto da ciência, da filosofia e das representações cotidianas.
A concepção romântica do
mundo pretende congelar o tempo, conservar as tradições, as relações sociais
tradicionais, condenam o progresso, o novo, etc. A recusa do novo é uma das
características secundárias desta concepção. O romantismo é predominantemente
conservador, mas possui um potencial crítico, que é quando entra em choque com
as ideologias do progresso e as apologias da sociedade capitalista. A concepção
iluminista, por sua vez, busca superar as tradições, o passado e fazer a
apologia do novo, do progresso, da tecnologia, símbolo da inovação. A condenação
do “ultrapassado”, do antigo, é uma característica secundária desta concepção.
O iluminismo é progressista, mas em sua concepção de progresso, e não possui um
grande potencial crítico em relação ao desenvolvimento social contemporâneo,
ficando mais ao nível da apologia.
Estas tendências acabam
influenciando a juventude, sendo que esta, em sua maioria, tende a se alinhar
com a concepção iluminista e apenas alguns de seus segmentos se aproximam do
romantismo. Elas também influenciam as concepções científicas, filosóficas,
artísticas, etc., na sociedade em geral. No entanto, em uma análise teórica da
cultura é preciso superar tanto uma quanto a outra. Uma análise teórica da
cultura não é neutra, passiva, e sim engajada em determinada mentalidade e perspectiva.
Ela é portadora de valores e sentimentos, mas, no entanto, faz a reflexão,
problematização, questionamento dos seus próprios valores e sentimentos,
inclusive buscando observar o seu processo de constituição social.
Desta forma, uma análise
teórica (ao contrário da ideológica) é crítica. Uma análise teórica da cultura
(e do romantismo e do iluminismo) busca revelar suas bases sociais, os
interesses, valores, sentimentos, por detrás dela. Ao invés de ser marcada pela
neutralidade de valores, é caracterizada por apresentar valores explícitos e
refletidos, e por descartar determinados valores a partir de sua compreensão.
No entanto, isto depende da escala de valores do indivíduo que faz a análise,
pois se a verdade for um valor mais importante para ele do que os sentimentos
agradáveis de recordações infantis, então a opção poderá ser tomada de forma
consciente. O que a análise teórica permite é, ao invés do indivíduo estar
submerso no mundo da cultura de forma acrítica, espontânea, como um peixe n’agua,
ele portar uma consciência e capacidade crítica do seu mundo cultural, do qual
ele emerge.
Assim, a tradição deve
ser observada não como algo “dado”, “estático”, “congelado”, mas algo em
constante mudança, convivendo com a permanência. A tradição não pode ser um
valor fundamental, pois suas bases sociais são predominantemente conservadoras,
embora existam aspectos nelas que são portadoras do novo, da crítica, e de
negação da sociedade existente, moderna, capitalista. As relações sociais
tradicionais trazem em si alguns elementos desvaloradas pela sociedade moderna
justamente por entrar em contradição com ela. As formas de solidariedade, a
ausência da tendência acumulativa/aquisitiva (e, portanto, consumista) que por
vezes são encontradas na população rural é um exemplo. No entanto, também
elementos de autoritarismo, conservadorismo, etc., podem ser encontrados no
mesmo espaço. Por isso, as tradições populares devem ser objeto não de apologia
ou recusa total, mas sim de resgate dos seus elementos críticos, potencialmente
contestadores da sociedade moderna e de crítica de seus elementos
conservadores. As tradições populares devem ser compreendidas como
manifestações da consciência contraditória.
A modernidade, com a
qual a maior parte da juventude se identifica, por sua vez, faz apologia da
sociedade moderna e vê a constante mutação, a inovação permanente, dentro dos
quadros restritos do capitalismo. Embora alguns setores da juventude consigam ir
além da ideologia moderna e suas manifestações culturais, isto é mais a
exceção. O pensamento moderno (e sua manifestação nas representações
cotidianas) também possui contradições, elementos conservadores e contestadores
e é preciso saber identificar suas contradições e o que pode ser resgatado.
Obviamente que isto não pode ser feito nem da perspectiva do tradicionalismo
nem da perspectiva do modernismo, e sim de uma terceira perspectiva, que rompa
com ambos a partir de uma teoria da sociedade moderna.
A juventude não sendo um
todo homogêneo, pode se aliar a uma destas tendências. Pode fazer o culto do
passado e das tradições ou do futuro, do progresso e suas ilusões, ou então
pode realizar a crítica da sociedade existente e de suas posições e opções, abrindo
caminho para o que o filósofo Ernst Bloch denominou “consciência antecipadora”
(apud BICCA, 1987), isto é, a visão do “ainda-não-existente”, a utopia, base
valorativa e sentimental para uma efetiva ruptura com o mundo atual e para a
“crítica desapiedada do existente” (MARX, 1979).
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1992.
[1]
Sem dúvida, não poderemos aqui fazer uma discussão sobre as várias concepções
de cultura existentes em nas ciências humanas, seja na antropologia ou
sociologia, devido questão de espaço. Mas existe uma bibliografia abundante
sobre isso e nas mais variadas perspectivas (WILLIAMS, 1992; CUCHE, 2002
EAGLETON, 2005; BOTTOMORE, 1970).
* Moeda alemã da época (século 19).
------------
Publicado em:
VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.
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