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domingo, 13 de janeiro de 2019

CULTURA, PODER E JUVENTUDE

Juventude/1950: Teddy Boys


CULTURA, PODER E JUVENTUDE

 Nildo Viana


Os conceitos são termos complexos que exigem uma análise aprofundada para expressar seu significado. Eles possuem múltiplos significados, dependendo da época e de quem os usam. O termo cultura possui inúmeras definições, tal como outros termos correlatos, entre eles tradição e memória. Assim, o primeiro ponto a destacar no presente texto é o seu objetivo: esclarecer os conceitos de cultura, tradição e memória e, após isto, relacioná-los com a questão do poder e com o processo de permanência e ruptura em sua conexão com a juventude e a cultura juvenil.
Cultura, Tradição e Memória
Entre as centenas de definições de cultura, preferimos a de que ela é o conjunto das produções intelectuais da humanidade (VIANA, 2006; BOTTOMORE, 1970), tal como já exposto por Alfred Weber (Apud. BOTTOMORE, 1970). Logo, ao contrário de outras definições, não colocamos a “cultura material” como parte do conceito, nem a ideia de que cultura é a “alta cultura”, a cultura das elites[1]. Todos os seres humanos produzem cultura, isto é, produzem ideias, saberes, valores, concepções, etc., e, por conseguinte, não é privilégio de ninguém. Por conseguinte, não existe ninguém que não tenha cultura. Quando se diz isso, se quer dizer, na melhor das hipóteses, de que determinada pessoa não possui cultura erudita ou escolar e, na pior, que é ignorante, o que revela apenas uma concepção preconceituosa, pois todos os seres humanos ignoram milhares de fatos, ideias, etc. e se julga mal aqueles que não em acesso aquilo que temos.
A partir de nossa definição de cultura, que delimita o conceito, tornando-o restrito ao mundo das produções intelectuais, representações mentais, podemos ainda ver que possui enorme abrangência. A religião, a moral, a filosofia, a ciência, as obras literárias, as representações cotidianas (vulgo “senso comum”), os valores, etc., são manifestações culturais. No entanto, a cultura não é algo estático, vive em constantes mudanças. Entender estas mudanças requer compreender o seu processo histórico de formação, suas divisões, etc. A cultura é constituída socialmente e ela mesma é um fenômeno social. Ela não é produzida a partir do nada e sim a partir das relações sociais concretas.
Durante o desenvolvimento histórico da humanidade ocorreu inúmeras mudanças culturais, que sempre acompanharam as mudanças sociais. As grandes mudanças sociais, a passagem de uma forma de sociedade para outra (a passagem da sociedade feudal para a capitalista, ou da escravista para a feudal, por exemplo) promoveram grandes mudanças culturais. No entanto, no interior de uma mesma forma de sociedade (feudal, escravista, tributária, etc.) também ocorrem mudanças culturais. Porém, nada se compara ao ritmo de velocidade das mudanças culturais na sociedade moderna. Para se compreender a velocidade das mudanças culturais na sociedade moderna é preciso compreender esta sociedade e suas características próprias e essenciais.
A sociedade capitalista moderna é radicalmente diferente das sociedades que lhe antecederam. É por isso que muitos sociólogos e outros especialistas opuseram as chamadas “sociedades tradicionais” à chamada “sociedade moderna”, tal como Durkheim (1996), W. W. Rostow (1974), entre outros. A oposição entre tradição e modernidade foi se consolidando e assim surgiram os adeptos da modernidade e os defensores da tradição. A época na qual esta oposição entre tradição e modernidade ficou mais visível foi durante o período no qual se desenvolveu o processo da Revolução Francesa. Os primeiros defensores do tradicionalismo foram os representantes intelectuais e populares do regime feudal, defendendo a moral, a religião, a família. Os chamados “pensadores conservadores”, como Burke, De Maistre, entre outros, foram os seus principais porta-vozes. Do outro lado, os representantes intelectuais e populares da modernidade, do regime capitalista, da burguesia, saíram em defesa da laicidade, da razão, da autonomia do indivíduo.
Estas concepções antagônicas são constituídas socialmente e ligadas aos interesses de classes sociais e não produções arbitrárias. Assim, a tradição está sempre ligada às relações sociais determinadas, também tradicionais, de caráter pré-capitalista, ou, como ocorre posteriormente, não-capitalista. Com a emergência e hegemonia do modo de produção capitalista, as relações sociais tradicionais são solapadas e destruídas paulatinamente e junto com ela a cultura que lhe corresponde.
As vitórias das revoluções burguesas não ocorreram na mesma época nos diversos países. A Revolução Burguesa na Rússia só ocorreu no início do século 20 e a brasileira em 1930. Após as revoluções burguesas, ainda permanecem resquícios de relações de produção pré-capitalistas – que acabam sendo totalmente destruídas – e surgem relações de produção não-capitalistas que herdam a cultura tradicional, por ser mais compatível com suas relações sociais e com a herança cultural recebida via família. Estas relações de produção não-capitalistas são a base de relações sociais tradicionais, herdeiras de relações de produção pré-capitalistas.
Esta permanência cultural coloca a discussão sobre as relações entre tradição e modernidade em um contexto diferente. Por isso devemos esclarecer o conceito de tradição. Este conceito também possui diferentes definições, embora não tanto quanto o conceito de cultura. Apresentaremos a definição que julgamos mais adequada. Este conceito expressa o conjunto de ideias, hábitos, costumes de uma determinada população que é transmitida de uma geração para outra, sendo que seu conteúdo é caracterizado por uma forte ligação com o passado, a afetividade, relações familiares, sendo que em algumas sociedades assumem o caráter de uma convicção, possuindo um forte caráter mobilizador. A tradição é, assim, tanto do ponto de vista da cultura quanto dos costumes, conservadora (o que não quer dizer que o seja necessariamente do ponto de vista político), pois ela visa transmitir e, por conseguinte, conservar, determinados costumes, crenças, ideias, etc.
Nas sociedades pré-capitalistas, as tradições eram mais fortes, generalizadas e resistentes. Na sociedade moderna, elas são cada vez mais fracas e restritas a grupos e tornam-se menos resistentes. A oposição entre tradição e modernidade deixou de ter caráter predominantemente temporal (sociedades tradicionais X sociedade moderna) e ganhou um caráter predominantemente espacial (sociedade rural X sociedade urbana). A ascensão do modo de produção capitalista é marcada pelo processo de industrialização e urbanização, tornando a cidade o centro da produção de mercadorias e de cultura. A produção cultural no capitalismo assume um processo homólogo ao da produção de mercadorias: concentração e centralização.
A cultura, enquanto o conjunto das produções intelectuais, continua sendo produto do conjunto da população. No entanto, a produção cultural das classes exploradas e da maioria da população não é mais totalmente espontânea e sim influenciada pelos meios oligopolistas de comunicação (Rádio, TV, Cinema, Jornais, etc.) e pela escola. A população urbana é atingida de forma muito mais abrangente por este processo do que a população rural, embora isto ocorra de forma cada vez mais intensa. A população rural, devido às relações sociais persistentes, embora também perdendo cada vez mais espaço, e menor influência dos meios oligopolistas de comunicação, é mais ligada à tradição do que a população urbana.
A sociedade moderna corrói, cada vez mais, a tradição. Nesta sociedade, como já dizia Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”, “tudo que é sagrado, é profanado” (MARX e ENGELS, 1998). A sociedade capitalista é marcada por uma nova dinâmica do desenvolvimento temporal. Nas sociedades pré-capitalistas e na vida camponesa e rural em geral, temos uma percepção do desenvolvimento temporal como se este fosse mais lento. Na sociedade capitalista, o desenvolvimento temporal aparece como extremamente acelerado. Esta é uma diferença na percepção e não na realidade concreta. Esta diferença de percepção é produzida pelos diferenciados modos de vida. O ritmo de vida extremamente acelerado da sociedade moderna promove uma percepção de aceleramento do tempo. O relógio é um dos símbolos mais importantes da sociedade moderna, pois o tempo é fundamental para a sociedade capitalista, já que é o tempo que está ligado ao processo de produção de riquezas, é ele que determina o valor da mercadoria. O tempo de trabalho é o que define o quantum de exploração, o trabalho excedente. É por isso que ele é controlado no processo de produção, na fábrica, e é por isso que ele se generaliza a todas as instituições da sociedade moderna (escola, escritórios, etc.) e assim as pessoas não possuem domínio sobre suas atividades e, por conseguinte, sobre o tempo gasto nelas. Assim, o dia de descanso, tal como o domingo, parece mais longo.
A tradição acaba sendo uma certa persistência da memória social. Se a população rural valora e reproduz seus costumes, crenças, ideias, etc., a população urbana, moderna, valora a mudança, a velocidade, a transformação. A memória social da população rural está mais ligada ao “tempo lento”, ao ritmo da natureza, às tradições, enquanto que a memória social da população urbana, sob o ritmo do capitalismo, está mais ligada às novidades, às mudanças, à tecnologia. A memória social, assim como a individual, é seletiva e tem como principais determinações em seu processo seletivo os valores, sentimentos, concepções dos indivíduos, bem como a pressão social e a associação de ideias, embora com menos força.
A memória social se distingue da tradição pelo motivo de que ela recupera as lembranças do passado em geral e não apenas aquelas que são herdadas de gerações anteriores. No entanto, existe uma relação entre memória social e tradição. Esta relação se revela no caso da população rural (ou, em períodos históricos anteriores, no conjunto da população das sociedades chamadas “tradicionais”) cuja memória social é fortemente marcada pela tradição, que veicula valores, sentimentos, etc., presentes e reproduzidas por esta população. A memória social da população urbana é marcada por outros valores, sentimentos, etc., tal como a valoração da tecnologia, do novo, do que é sofisticado (e, portanto, inovação), para colocar um exemplo contrário.
A base disto está na própria dinâmica do modo de produção capitalista e de sua necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor, que faz com que exista um acelerado desenvolvimento de mercadorias culturais, tecnológicas, etc., e cuja expressão mais conhecida é a moda, substituída sucessivamente e em várias esferas da vida (roupa, produtos eletrônicos, ideologias acadêmicas, cinema, arte, etc.). A partir do pós-segunda guerra mundial isto se aprofundou e depois dos anos 80 a descartabilidade se torna uma características da atual fase do desenvolvimento capitalista.
No entanto, a memória social pode abarcar toda a população de uma determinada sociedade ou classes ou grupos sociais no seu interior (VIANA, 2006). Da mesma forma, a seleção das lembranças no interior dela é diferente em grupos sociais diferentes, embora possa haver elementos comuns na memória social da totalidade da população (VIANA, 2006).
A partir dessa definição conceitual de cultura, memória e tradição, podemos avançar no sentido de estabelecer as relações que encontramos entre cultura e poder, para, posteriormente, retornarmos com a questão da juventude e sua relação com a permanência e ruptura.
Cultura e Poder
Certa vez o psicanalista alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para a luta pela transformação social e criação de um novo mundo – livre da exploração e alienação e baseado na igualdade e liberdade – é responder por qual motivo os trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por qual motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja, a questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no mesmo estado não fazem a mesma coisa. A questão fundamental seria, então, explicar por qual motivo os trabalhadores, oprimidos, descontentes não realizam atos de negação da sociedade existente. Sem dúvida a resposta é complexa. Existe o aparato repressivo do Estado, bem como o exército e a polícia, que são fatores importantes para impedir estas ações. Porém, existe algo anterior à força repressiva que é um forte obstáculo ao processo de luta por realização das necessidades não satisfeitas. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo ele, o que importa, para explicar a origem das desigualdades, é indicar,
No progresso das coisas, o momento em que, o direito sucedendo à violência, a natureza submeteu-se à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios pôde o forte decidir-se a servir ao fraco, e o povo a comprar um repouso imaginário ao preço de uma felicidade real” (ROUSSEAU, 1989, p. 49).
Portanto, Rousseau explica a origem das desigualdades a partir do momento em que surgiu a supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de acordo com o que colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da desigualdade, da exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no momento em que falham os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim coloca a origem da propriedade privada e, por conseguinte, da desigualdade:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras deste impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém. Entretanto parece que as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais poder continuar como estavam; pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que não puderam nascer senão sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e saber transmiti-los e aumentá-los de geração em geração, antes de se atingir esse último estágio do estado de natureza” (ROUSSEAU, 1989, p. 84).
Rousseau, apesar de sua contextualização histórico-social deixar muito a desejar, coloca um elemento fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento. Ou seja, a repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da população, a força só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui entramos na questão cultural e no papel da cultura para a reprodução social. A grande questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não se rebelam? E Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na instauração da propriedade privada e na sua corroboração pela cultura, no consentimento. Sem dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na reprodução da sociedade existente e em todos os males gerados por ela.
A partir desta constatação podemos relacionar cultura e poder. O universo cultural na sociedade moderna é muito amplo e possui vários aspectos. Destacaremos os principais que aproxima a cultura do poder instituído: axiologia, ideologia, representações cotidianas ilusórias. A axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes em determinada sociedade (VIANA, 2007). A axiologia na sociedade capitalista moderna aponta para determinados valores, tais como a competição, o culto à autoridade, a luta pela ascensão social e status, o desejo de consumo e posses etc. A sociedade capitalista produz uma estruturação de valores que são inculcados nos indivíduos desde sua infância. A competição é uma parte constitutiva do processo de socialização, tanto familiar quanto escolar. Nós vivemos num mundo competitivo e a competição acaba formando valores que são introjetados pelos indivíduos. Todos querem “ser o melhor”, o melhor aluno (o que tira “as melhores notas”), o melhor jogador de futebol, o torcedor do melhor time e assim por diante. A competição que se encontra na sociedade (na escola, na busca de posições através de concursos, na disputa por uma vaga na escola ou universidade ou por um emprego no mercado de trabalho), no mundo dos esportes, nas igrejas, nas instituições em geral. A competição é tão grande que se encontra até mesmo nas relações amorosas entre homens e mulheres (ALBERONI, 1988). Esta sociedade competitiva irá criar indivíduos competitivos e é por isso que diversos pesquisadores irão colocar a existência de uma “personalidade competidora”, de um “caráter competitivo”. A ascensão social, a riqueza e o status são elementos fundamentais na cultura capitalista contemporânea.
Como isto interfere na formação da mentalidade dos indivíduos explorados e oprimidos? Isto gera, no interior dos grupos sociais oprimidos e das classes exploradas, o individualismo e a competição. Muitos tentam superar sua situação indesejável de exploração e opressão através de uma solução individual, buscando realizar a ascensão social, adquirir o poder ou riqueza. Aqui temos uma negação de uma situação – de exploração e opressão – simultaneamente com sua reafirmação – a solução individual que reforça os valores burgueses e leva os indivíduos a quererem a conservação da sociedade capitalista na ilusão de que poderão realizar tais valores. Os valores são mobilizadores, eles fazem as pessoas agirem, escolherem, decidirem (VIANA, 2007). O aspecto mais importante do universo cultural reside justamente nos valores. E existem, para os indivíduos, valores fundamentais que estão acima na sua escala de valores e estes são mais eficazes do que os outros. Estes valores são constituídos socialmente e reproduzem a sociabilidade existente, capitalista. Tal como colocou Reich:
“A existência e as condições de existência dos homens, refletem-se, incrustam-se e reproduzem-se na sua estrutura mental, à qual dão forma. É só através desta estrutura mental que este processo objetivo nos é acessível, que podemos entrava-lo, favorecê-lo ou dominá-lo. Só por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho, da sua procura da alegria de viver, em resumo, de sua existência psíquica, que nós criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi tudo isto que esqueceram há muito os ‘marxistas’ que degeneraram em economicistas” (REICH, 1976, p. 19).
Esta referência ao marxismo é importante, pois muitos consideram que para Marx as ideias não passavam de mero epifenômeno, de coisa sem importância e influência no curso real dos acontecimentos e das lutas sociais, o que é um equívoco, pois para ele as ideias se transformam em “forças materiais” quando são desenvolvidas pelos explorados e oprimidos. Segundo Marx:
“Se alguém acredita possuir 100 táleres*, se essa não é para ele apenas uma representação arbitrária, subjetiva, se ele acredita nela, então os 100 táleres imaginados têm para ele o mesmo valor que 100 táleres reais. Por exemplo, ele contrairá dívidas em função desse seu dado imaginário, o qual terá uma ação efetiva: foi assim, de resto, que toda a humanidade contraiu dívidas contando com seus deuses”(apud. LUKÁCS, 1979, p. 13).
A força do imaginário, tal como Marx colocou, é ativa e mobilizadora. Uma ideia é, independentemente de ser verdadeira ou falsa, mobilizadora, ativa. Assim, os valores geram uma visão imaginária de sua realização que mobiliza conservadoramente grande parte da população.
Tendo sua base nos valores dominantes e servindo para reproduzi-los, temos a ideologia. A ideologia surge com a divisão entre trabalho intelectual e manual e se desenvolve em formas cada vez mais complexas. A ideologia na sociedade capitalista se manifesta sob a forma de ciência, filosofia, teologia. Ela é uma sistematização da falsa consciência, ou seja, é um pensamento complexo, sistemático, que dá forma a um conteúdo falso. Ora, a ideologia está intimamente ligada à divisão social do trabalho e são os especialistas na produção de ideias, os ideólogos, que irão produzir e reproduzir a ideologia. A sociedade capitalista é marcada por uma crescente especialização e por criação de técnicos e especialistas em quase tudo. E tais especialistas acabam assumindo a forma de autoridade e isto propicia o que podemos denominar “culto á autoridade”. Algumas pessoas se julgam incapazes de tomar decisões sem consultar um especialista (médico, dentista, psicólogo e cada vez mais, arquitetos, agentes de turismo e coisas do gênero).
Devido ao culto à autoridade e pela desvaloração do saber popular, cria-se nos grupos oprimidos e classes exploradas uma valoração da ideologia e um sentimento de incapacidade de alcançar o saber científico, filosófico, teológico. Assim, o discurso dos especialistas, dos cientistas e outros ideólogos, assumem a aparência de verdade inquestionável (como muitos dizem ingenuamente: “isto já foi comprovado pela ciência”). A popularização da ideologia, o que traz sua desfiguração e simplificação, reforça, pois, o conservadorismo da população. As revistas de vulgarização científica, os meios oligopolistas de comunicação (rádio, televisão, jornais, revistas semanais) e o ensino escolar cumprem este papel. Assim, a ideologia, apesar de sua produção estar restrita no círculo dos ideólogos, possui uma eficácia política que é uma força que garante o consentimento e a conservação da sociedade burguesa.
Por fim, temos as representações cotidianas ilusórias, o reino do imaginário popular. O saber popular, chamado pelos ideólogos de “senso comum”, é formado pelo conjunto das representações cotidianas que os indivíduos possuem da natureza e das relações sociais. Estas representações cotidianas, que se expressam no dia-a-dia da população, podem ser falsas ou verdadeiras. Para algumas ideologias, elas são necessariamente e sempre falsas, o que é uma inversão da realidade. As representações cotidianas – que são as representações não apenas produzidas pelos indivíduos das classes exploradas e grupos oprimidos, mas por todos os indivíduos desta sociedade, inclusive os cientistas que não pensam “cientificamente” sobre tudo e a todo o momento – são predominantemente falsas, especialmente nos setores privilegiados da sociedade (VIANA, 2008). Na realidade concreta, existe nos indivíduos uma mescla de representações cotidianas falsas e verdadeiras, que expressa a contraditoriedade da consciência de classe já discutida por Reich e Gramsci (REICH, 1976; GRAMSCI, 1988). As representações cotidianas ilusórias reforçam o imobilismo, os valores dominantes e assim por diante, também servindo para a reprodução do capitalismo. Elas nascem, em primeiro lugar, das próprias relações sociais existentes, que são “naturalizadas” e “universalizadas”. Quem já não ouviu a frase “a desigualdade existirá para sempre”. Ora, as pessoas que nascem numa sociedade caracterizada pela desigualdade, vivem e envelhecem nesta sociedade, tendem a pensar que isto é “natural” e “universal”: assim é, assim sempre será. Tal opinião fica mais forte ainda quando algum cientista vem para afirmar que existe na natureza uma “luta pela sobrevivência”, onde há uma “seleção natural dos mais aptos” e só estes sobrevivem, tal como afirmou Darwin. Assim, as representações cotidianas também são mobilizadoras, e as que são ilusórias mobilizam no sentido de conservação da sociedade existente. A axiologia, a ideologia e as representações cotidianas ilusórias se reforçam reciprocamente.
No entanto, até agora apenas observamos o papel conservador da cultura, a sua ligação com o poder. É necessário mostrar que isso não é o seu único papel. As classes exploradas e grupos oprimidos trazem em si um conjunto de ideias, valores, representações que realizam uma crítica do capitalismo. Da mesma, forma, grupos políticos, intelectuais dissidentes, movimentos sociais, indivíduos e outros setores da sociedade, também produzem e reproduzem uma cultura contestadora. Obviamente que isso é mais forte em certos setores da sociedade, época, sociedade, mas a cultura não é apenas conservadora, mas também contestadora e isto se revela naqueles indivíduos e grupos que, devido sua posição social, formação cultural, etc., produzem e reproduzem esta contestação.

Juventude, Cultura e Identidade
A discussão sobre cultura e poder, bem como a questão da tradição e memória, é fundamental para analisar a questão da juventude. A juventude aparece, geralmente, como relacionada ao novo, bem como à contestação. A identidade da juventude está ligada a este processo e por isso uma discussão sobre juventude e identidade é útil para nossos propósitos.
A primeira questão a ser respondida é o que significa “identidade”. Não cabe aqui discutir as diversas concepções de identidade (para ver uma síntese de várias concepções, consulte CUCHE, 2002) e sim apresentar uma definição que permita analisar o processo de constituição da identidade da juventude. A maioria dos autores define identidade como “conceito de si” ou “representação de si” (JACQUES, 1998). Assim, a identidade é a autoimagem desenvolvida pelos indivíduos e/ou grupos sociais.
A formação da identidade é um fenômeno social marcado por um “processo de reflexão e observação simultâneas” que atinge a totalidade do universo psíquico e no qual o indivíduo julga a si próprio a partir do julgamento dos outros (ERIKSON, 1987, p. 21). A identidade é formada tendo por base “quadros de referência” (GUATTARI & ROLNIK, 1996), isto é, o indivíduo cria sua identidade num contexto social delimitado. A identidade do indivíduo vai sendo formada através de sua experiência, observação e reflexão e todos estes fenômenos constituem um processo que também é social.
A experiência e a observação são referentes às relações sociais, bem como a reflexão se realiza, também, sobre um material social. O próprio processo de experiência, reflexão e observação é social, pois um indivíduo não observa tudo que lhe cerca ou acontece, mas somente o que ele seleciona de acordo com seus valores, que são constituídos socialmente (VIANA, 2007). Se a formação da identidade é um processo social, então se torna necessário entender o papel do Outro e sua importância neste contexto. A identidade é a autoimagem do indivíduo produzida por ele e para ele, mas também pelos outros e para os outros. O indivíduo, enquanto ser social, forma sua identidade através do seu processo de socialização (BERGER & BERGER, 1978) e a autoimagem que faz de si é, também, um produto social.
Isto também é válido para os grupos sociais, inclusive a juventude. Vários pesquisadores já colocaram que a juventude é uma “construção social” ou da “modernidade” (GROPPO, 2000; MUUSS, 1974; AVANZINI, 1980) ou, então, que é “apenas uma palavra” (BOURDIEU, 1983) e notaram a inexistência da juventude em sociedades pré-capitalistas (ÁRIES, 1986) e a partir dos dados etnográficos (MEAD, 1978) é possível questionar sua existência nas sociedades pré-classistas e indígenas. Para compreender a formação da identidade da juventude, isto é, de sua autoimagem, é necessário, anteriormente, definir este grupo social, revelando o que lhe caracteriza enquanto grupo.
Entre as diversas definições de juventude, há poucas que destacam o seu caráter social. O que predomina na esfera das representações cotidianas, dos meios oligopolistas de comunicação e das ciências naturais é a concepção biologicista ou psicologista. No entanto, já há muito tempo historiadores, antropólogos, sociólogos, entre outros cientistas sociais veem apresentando um amplo material informativo e diversas reflexões e análises que desmentem as concepções biologicistas e psicologistas. Apesar de não haver unanimidade neste grupo sobre a questão da juventude, pelo menos houve um avanço comum na superação dos obstáculos ideológicos e na compreensão de que a juventude é um fenômeno social.
Dentro de uma perspectiva que compreende a juventude como um fenômeno social é preciso encontrar uma definição que permita avançar no processo de análise da identidade da juventude. A definição que servirá de base para a presente análise é a que considera a juventude um “grupo etário composto pelos ‘jovens’, isto é, indivíduos inseridos no processo de ressocialização” (VIANA, 2004). Desta forma, a ressocialização é o que caracteriza a juventude. A ressocialização, ou “socialização secundária”, é um momento na vida dos indivíduos da sociedade moderna na qual eles são preparados para realizarem uma integração completa na sociedade, tanto na esfera do trabalho quanto na esfera das responsabilidades sociais.
A criança é socializada no seio da família, da escola e da comunidade para o convívio social, o civismo, etc., enquanto que o jovem recebe uma ressocialização mais específica, que o prepara para o mercado de trabalho, tendo, pois, um caráter profissionalizante, ensino técnico, superior, etc., o que traz uma das características apontadas como sendo típicas da juventude: a escolha profissional ou vocacional (MUUSS, 1974; SPRANGER, 1970) e para as responsabilidades sociais (casamento, família, vida política). Embora haja diferenças neste processo dependendo da classe social, cultura, etc., esta é a base social e unificadora deste grupo etário (VIANA, 2004).
Sendo assim, este grupo etário é constituído em uma sociedade na qual a passagem da infância para a idade adulta é mediada por um período de formação, mais ou menos longo, no qual algumas instituições serão fundamentais, especialmente a escola (AVANZINI, 1980). Para os jovens das classes trabalhadoras, a passagem pela escola pode ser mais breve e no caso dos setores mais empobrecidos pode ser até mesmo inexistente, e neste caso o processo de ressocialização se dá via trabalho precoce e possui um período mais curto, tal como se vê nos casamentos realizados numa faixa etária menor do que em outros segmentos sociais (SINGER, 1976).
O processo de formação da identidade da juventude é um processo social e, por conseguinte, sua formação é determinada, num primeiro momento, pelo adulto, pelo “Outro”, e não pelos próprios jovens. Somente num segundo momento é que este grupo etário participa ativamente do processo de constituição de sua autoimagem. A compreensão disto pode ser facilitada a partir da recordação da passagem da obra de Simone de Beauvoir em que ela aborda a mulher enquanto “o Outro do Outro”. Ela recorda o filósofo Hegel e a sua dialética do senhor e do escravo:
“O senhor e o escravo estão unidos por uma necessidade econômica recíproca que não liberta o escravo. É que, na relação do senhor com o escravo, o primeiro não põe a necessidade que tem do outro; ele detém o poder de satisfazer essa necessidade e não a mediatiza; ao contrário, o escravo, na dependência, esperança ou medo, interioriza a necessidade que tem do senhor; a urgência da necessidade, ainda que igual em ambos, sempre favorece o opressor contra o oprimido: é o que explica que a libertação da classe proletária, por exemplo, tenha sido tão lenta” (BEAUVOIR, 1988, p.18).
É neste sentido que podemos dizer que a juventude tem sua identidade produzida pelo Outro, que é o adulto. É o Outro que cria o Um:
“Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio” (BEAUVOIR, 1988, p. 16).
Assim, a relação entre opressor e oprimido é a relação do Um com o Outro e por isso o oprimido se torna o Outro do Outro, isto é, cria sua identidade a partir do Outro. No caso específico da juventude, ela é constituída num conjunto de relações sociais instituídas pelos adultos e ganham sua posição social específica devido à ação destes últimos. Para ter esta posição específica e para assumir o papel de adulto posteriormente, o jovem é oprimido e controlado em várias instituições (família, escola, etc.). No entanto, além destas relações sociais concretas existe a esfera da consciência, onde se coloca a questão da identidade, da autoimagem, e de seu processo de formação. O mundo adulto não só impõe um processo de ressocialização, que é a base unificadora e social da juventude, como também uma imagem da juventude, que será o ponto de partida para a criação da autoimagem por parte desta.
A imagem da juventude produzida pelo mundo adulto – expressão dos indivíduos integrados na sociedade capitalista – é aquela produzida pelas diversas ciências, pelos meios oligopolistas de comunicação, pelas representações cotidianas, etc. As ciências modernas assumem uma importância crucial para se compreender a imagem da juventude formada pelo mundo adulto.
“A modernidade traz consigo um processo de cerceamento político, policial, moral, empírico e científico do indivíduo. As ciências médicas e a psicologia buscam uma definição exaustiva, detalhada e objetiva das fases de maturação desse indivíduo, bem como propõem métodos de acompanhamento apropriados a cada fase dessa evolução do indivíduo à maturidade ou idade adulta. Trata-se do fenômeno de ‘naturalização’ e objetivação das faixas de idade pelas técnicas sociais e pelas ciências médicas e humanas, que enfatizou principalmente a infância e a juventude” (GROPPO, 2000, p. 59).
Este autor acrescenta que foi crucial a criação pela psicologia do construto de “adolescência”, realizada nos séculos 19 e 20 (GROPPO, 2000). A adolescência passa a ser vista, inicialmente, como um período de transição da infância para a idade adulta, como se fosse um processo linear e harmonioso, concepção que é substituída pela ideia de que conflitos, desajustes, ambiguidades, são comuns nesta fase da vida. De qualquer forma, a adolescência, no discurso psicológico e médico, bem como no discurso posteriormente desenvolvido por outras ciências (psicanálise, sociologia, etc.), passa a ser vista como uma etapa de transição entre a infância e maturidade, concebida de forma evolucionista-cumulativa. A adolescência, segundo estas concepções, é um período de evolução natural do indivíduo, no qual ele se prepara para ser integrado na sociedade capitalista (GROPPO, 2000).
Não só as ciências modernas contribuíram com este processo de constituição de uma imagem social da juventude, pois o direito e a legislação, entre outras formas de ação estatal, vêm para reforçar isto, criando especificidades no que se refere ao mercado de trabalho, ao processo de educação escolar, ao processo político e também produzindo um conjunto de responsabilidades sociais. Os meios oligopolistas de comunicação também vão ter um papel cada vez mais importante na formação desta imagem, pois não só passa a vulgarizar a produção científica acima descrita como também passa a ser um mecanismo da publicidade no sentido de construir um mercado consumidor específico, a juventude, que passa a consumir produtos específicos (VIANA, 2004). O processo de vulgarização do saber científico através dos meios oligopolistas de comunicação, das escolas, dos profissionais que atuam junto à população (médicos, psicólogos, pedagogos, etc.) vai difundir pela sociedade esta imagem da juventude, que se tornará hegemônica com o passar do tempo, passando a ser reproduzida pelas representações cotidianas, sendo mais um elemento de reforço e constituição desta imagem.
Após esta descrição dos mecanismos de constituição da imagem da juventude feita pelas ciências modernas, pela legislação, pelos meios oligopolistas de comunicação, pelas representações cotidianas, é necessário realizar uma análise crítica dela. Tal como já foi colocado anteriormente, a imagem da juventude produzida pelo mundo adulto é evolucionista-cumulativa (GROPPO, 2000). Ela tem como base uma concepção evolucionista que culmina com o “mito do adulto-padrão” (LAPASSADE, 1975).  Lapassade cita o trabalho de E. Pichon que realiza a crítica da criação de modelo normativo de adulto, tomando como exemplo Jean Piaget, autor que postula uma concepção evolucionista-cumulativa que culmina com um “adulto ideal”, caracterizado, entre outras coisas, por ser convencional e rígido, mecanicista, determinista, materialista e cientificista, bem como não tendo direito de ser finalista (LAPASSADE, 1975). Mas o adulto-padrão de Piaget não se limita a isso:
“É concebido, por outro lado, como tendo uma fixidez de crença, o que, aliás, M. Pierre Janet mostrou bem que ninguém jamais possuiu. Do mesmo modo, sabe definir tudo, capacidade puramente quimérica, porque incompatível com o funcionamento das disciplinas de observação e com a própria estrutura da linguagem... Em matéria de linguagem, o adulto-padrão fabricado por Piaget tem também um dogma que não pode afastar-se: a doutrina saussuriana de ‘o arbitrário do sinal’... Neste terreno especial, apanhamos Piaget no flagrante delito de tomar por definitivo e de integrar ao seu tipo de adulto ideal uma doutrina que a um certo momento reinava numa ciência particular” (PICHON, apud. LAPASSADE, 1975, p. 264-265).
Esta concepção do adulto-padrão toma o jovem como um ser incompleto, um ser transitório que deve chegar ao modelo ideal, sem questionar se tal modelo corresponde à realidade, se é adequado, se é socialmente constituído e, por conseguinte, não sendo universal e nem meta desejável. Assim, a concepção evolucionista-cumulativa do adulto-padrão reproduz o processo das relações sociais tomando o indivíduo adulto e integrado na sociedade moderna, que é uma sociedade repressiva, segundo Freud (1978) e fundada na exploração, segundo Marx (1988), como modelo ideal a ser seguido e concebe aquele que não realiza este caminho de desenvolvimento como sendo “problemático”, “infantil”, etc.
Assim, a imagem da juventude é aquela do indivíduo incompleto que se completa quando se integra totalmente na sociedade (mercado de trabalho, instituições sociais, responsabilidades sociais) e daí a concepção de juventude como mera transição, um período que deve ser ultrapassado e substituído pela maturidade da idade adulta. Este modelo encontra correspondência com o desenvolvimento cronológico e biológico dos indivíduos, e assim se vê confirmado e naturalizado.
A juventude, neste caso, é jogada em determinadas relações sociais, voltadas para sua ressocialização, através de determinadas instituições (escola, associações, etc.) e recebe do mundo adulto uma imagem determinada. É neste contexto que a juventude cria sua autoimagem, sua identidade.
“É neste contexto que ocorre a formação da identidade e dos valores dos jovens, bem como sua luta pela independência. Como os jovens não constituem uma massa amorfa, há a recusa, a crítica e a contestação sob as mais variadas formas. O processo de ressocialização, sendo repressivo e uma antecâmara do modo de vida adulto, é negado, bem como a dependência é negada, mas de forma ambígua, pois sua superação significará a inserção no trabalho alienado e no mundo das obrigações sociais também realizadas sob o signo da alienação, em instituições burocráticas e mediadas pela competição e mercantilização de tudo” (VIANA, 2004, p. 48).
Assim, a autoimagem da juventude é marcada pela ambiguidade derivada de sua posição social e projeto de vida. A juventude cria sua autoimagem através da influência das pressões sociais (ciências modernas, meios oligopolistas de comunicação, Estado, família, representações cotidianas, etc.), mas parte da juventude recusa esta produção externa de identidade e assim se lança à contestação, criando uma identidade diferenciada fundada na rebeldia, na irreverência. No entanto, a juventude carrega, em ambos os casos, com maior ou menor grau, esta ambiguidade na sua própria identidade, em sua autoimagem.
A identidade da juventude, assim, não é exatamente a imagem produzida pelo mundo adulto. No entanto, este também trabalha sobre tal identidade, reinterpretando-a. Esta reinterpretação da identidade da juventude pelo mundo adulto, especialmente pelas ciências modernas, abarca a rebeldia e ambiguidade da juventude, fornecendo-lhe uma naturalização, isto é, coloca nos seus quadros de referência aquilo que tal quadro não consegue explicar e por isso naturaliza os elementos que fogem de sua explicação, através da naturalização da “desnaturalização” contida na rebeldia e ambiguidade dos jovens. A rebeldia e ambiguidade são reinterpretadas como sendo um produto natural da idade, do desenvolvimento biológico, etc.
Mas o que nos interessa aqui é a identidade da juventude e não sua reinterpretação pelo mundo ideológico dos adultos, expressão da cultura conservadora voltada para a reprodução do capitalismo e sua naturalização. A autoimagem do jovem se constrói a partir de suas relações sociais concretas e da ação cotidiana sobre ele dos adultos, das instituições, etc., e do sentimento de pertencimento a um grupo que possui, segundo a ideologia dominante e as representações cotidianas, uma mesma “natureza”. O elemento mais forte para a formação da identidade da juventude é a experiência social dos jovens, que encontram milhares de exemplos que seguem o modelo proposto pelo mundo adulto, e isto produz um sentimento de pertencimento ou uma necessidade de pertencimento por parte dos jovens, pois escapar disso seria “anormalidade” e provocaria um afastamento daqueles indivíduos da mesma faixa etária com os quais se convive e possui relações sociais semelhantes. Assim, a autoimagem da juventude é constituída socialmente, e acaba englobando parcialmente a rebeldia e a contestação, exemplos de “vitalidade” jovem, mas na maioria das vezes interpretadas de acordo com a ótica do mundo ideológico dos adultos, isto é, como um processo de origem biológica, cronológica, etc., ou seja, natural.
Assim, a identidade da juventude é produzida no jogo das relações sociais, mas que pode apresentar rupturas em determinados momentos históricos, no caso das grandes transformações sociais. Além disso, as diferenças no interior da juventude (de classe, cultura, etc.) promovem diferenças neste processo embora não sejam tão significativas para negar o sentimento de pertencimento à juventude, a não ser em casos individuais raros, derivados de uma constituição psíquica particular oriunda de relações sociais também singulares. A identidade da juventude é uma tradução de sua situação social real, interpretada e reinterpretada pelas ideologias, representações cotidianas, meios oligopolistas de comunicação, instituições, etc.
Juventude, Permanência e Ruptura
A relação da juventude com a cultura, a tradição e a memória social é bastante complexa. A juventude, devido à idade, cronologicamente falando, e à ideologia da juventude enquanto “futuro” (adequada/adaptada ao mundo da novidade, das modas, etc.) tende a assumir determinada relação com o mundo da cultura, incluindo a tradição e a memória. A juventude, ao entrar em confronto com as relações sociais existentes (escola, família), já que elas buscam prepará-la de forma repressiva para relações sociais repressivas, tende a negar as tradições, identificadas com os pais, as autoridades, as instituições existentes. Assim, de acordo com os valores atribuídos e constituídos socialmente pela juventude, a tradição é algo a ser negado, embora existam também aspectos das tradições que ela busca preservar. Isto ocorre devido a dois fatores principais: a) as diferenças no interior da própria juventude e b) o resgate de concepções que servem para as lutas juvenis contemporâneas.
A juventude possui vários elementos comuns que a caracteriza, mas também possui várias divisões no seu interior, oriundas da divisão social do trabalho a nível da sociedade em geral. A divisão de classes sociais é o aspecto mais importante e fundamental nesse processo, atingindo o modo de vida dos jovens, criando diferenças importantes entre os indivíduos deste grupo social. As diferenças regionais, religiosas, culturais, espaciais, também influenciam e geram especificidades em diversos segmentos da juventude. A juventude camponesa ou rural em geral, tende, pelo seu próprio modo de vida, a ter uma relação com a tradição que é diferente da juventude operária e burguesa, ambas urbanas e pouco apegadas as tradições populares e rurais, embora mantenha uma relação um pouco diferente com as tradições das elites, valoradas socialmente. A juventude, assim como todos os demais grupos sociais, também se inspira no passado e nas tradições e memória social para resgatar aquilo que lhe interessa na atualidade, tal como hoje se vê no interesse de vários grupos juvenis por Rock and Roll, Raul Seixas, contracultura, anarquismo, etc.
A memória social da juventude abarca um número de lembranças menor do que a dos adultos, mas, no entanto, resgata e seleciona aquilo que em sua época de criança assume um sentido e significado atual. O que no período da infância não tinha muito significado, mas foi vivenciado, pode ser resgatado e valorado, ou aquilo que foi vivido de uma forma, pode ser resgatado sob outra forma.
A memória social da juventude rural está muito mais ligada às tradições populares, sendo, pois, um mundo mais próximo, embora também em renovação e este grupo social tende a ser um dos mais importantes incentivadores dessa renovação. A memória social da juventude urbana, por sua vez, está mais ligada aos meios oligopolistas de comunicação, ao modismo, à novidade.
Neste sentido, abordar a cultura juvenil pressupõe compreender as diferenças sociais no interior da juventude e a hegemonia exercida pelos meios oligopolistas de comunicação. Na cultura juvenil está presente a cultura geral da sociedade, mas também sua cultura específica e assim se mescla tradição e modernidade, o novo e o velho, o passado, o presente e o futuro. A cultura juvenil é uma subdivisão da cultura de determinada sociedade e uma determinada concepção desta. Na cultura juvenil existe uma memória social seletiva, fundada nos valores, sentimentos, etc. da juventude e isto é perpassado por uma divisão, pois se manifesta de forma diferenciada dependendo de qual classe, região, país, religião, etc., este segmento está inserido.
Desta forma, o mais interessante é discutir a posição da juventude diante da cultura em geral e daí analisar a questão da permanência e da ruptura. Existem duas tendências político-culturais na sociedade moderna que contribuem para pensar a questão da permanência e da ruptura no plano cultural (e não só nele, mas é o que aqui enfatizaremos). Uma se caracteriza pelo apego ao passado, às tradições, aos sentimentos. Esta é a tendência do romantismo. A outra se caracteriza pela apologia do novo, do futuro, do progresso. Esta é a tendência iluminista. Estas duas concepções se encontram tanto no mundo da arte e da cultura em geral quanto da ciência, da filosofia e das representações cotidianas.
A concepção romântica do mundo pretende congelar o tempo, conservar as tradições, as relações sociais tradicionais, condenam o progresso, o novo, etc. A recusa do novo é uma das características secundárias desta concepção. O romantismo é predominantemente conservador, mas possui um potencial crítico, que é quando entra em choque com as ideologias do progresso e as apologias da sociedade capitalista. A concepção iluminista, por sua vez, busca superar as tradições, o passado e fazer a apologia do novo, do progresso, da tecnologia, símbolo da inovação. A condenação do “ultrapassado”, do antigo, é uma característica secundária desta concepção. O iluminismo é progressista, mas em sua concepção de progresso, e não possui um grande potencial crítico em relação ao desenvolvimento social contemporâneo, ficando mais ao nível da apologia.
Estas tendências acabam influenciando a juventude, sendo que esta, em sua maioria, tende a se alinhar com a concepção iluminista e apenas alguns de seus segmentos se aproximam do romantismo. Elas também influenciam as concepções científicas, filosóficas, artísticas, etc., na sociedade em geral. No entanto, em uma análise teórica da cultura é preciso superar tanto uma quanto a outra. Uma análise teórica da cultura não é neutra, passiva, e sim engajada em determinada mentalidade e perspectiva. Ela é portadora de valores e sentimentos, mas, no entanto, faz a reflexão, problematização, questionamento dos seus próprios valores e sentimentos, inclusive buscando observar o seu processo de constituição social.
Desta forma, uma análise teórica (ao contrário da ideológica) é crítica. Uma análise teórica da cultura (e do romantismo e do iluminismo) busca revelar suas bases sociais, os interesses, valores, sentimentos, por detrás dela. Ao invés de ser marcada pela neutralidade de valores, é caracterizada por apresentar valores explícitos e refletidos, e por descartar determinados valores a partir de sua compreensão. No entanto, isto depende da escala de valores do indivíduo que faz a análise, pois se a verdade for um valor mais importante para ele do que os sentimentos agradáveis de recordações infantis, então a opção poderá ser tomada de forma consciente. O que a análise teórica permite é, ao invés do indivíduo estar submerso no mundo da cultura de forma acrítica, espontânea, como um peixe n’agua, ele portar uma consciência e capacidade crítica do seu mundo cultural, do qual ele emerge.
Assim, a tradição deve ser observada não como algo “dado”, “estático”, “congelado”, mas algo em constante mudança, convivendo com a permanência. A tradição não pode ser um valor fundamental, pois suas bases sociais são predominantemente conservadoras, embora existam aspectos nelas que são portadoras do novo, da crítica, e de negação da sociedade existente, moderna, capitalista. As relações sociais tradicionais trazem em si alguns elementos desvaloradas pela sociedade moderna justamente por entrar em contradição com ela. As formas de solidariedade, a ausência da tendência acumulativa/aquisitiva (e, portanto, consumista) que por vezes são encontradas na população rural é um exemplo. No entanto, também elementos de autoritarismo, conservadorismo, etc., podem ser encontrados no mesmo espaço. Por isso, as tradições populares devem ser objeto não de apologia ou recusa total, mas sim de resgate dos seus elementos críticos, potencialmente contestadores da sociedade moderna e de crítica de seus elementos conservadores. As tradições populares devem ser compreendidas como manifestações da consciência contraditória.
A modernidade, com a qual a maior parte da juventude se identifica, por sua vez, faz apologia da sociedade moderna e vê a constante mutação, a inovação permanente, dentro dos quadros restritos do capitalismo. Embora alguns setores da juventude consigam ir além da ideologia moderna e suas manifestações culturais, isto é mais a exceção. O pensamento moderno (e sua manifestação nas representações cotidianas) também possui contradições, elementos conservadores e contestadores e é preciso saber identificar suas contradições e o que pode ser resgatado. Obviamente que isto não pode ser feito nem da perspectiva do tradicionalismo nem da perspectiva do modernismo, e sim de uma terceira perspectiva, que rompa com ambos a partir de uma teoria da sociedade moderna.
A juventude não sendo um todo homogêneo, pode se aliar a uma destas tendências. Pode fazer o culto do passado e das tradições ou do futuro, do progresso e suas ilusões, ou então pode realizar a crítica da sociedade existente e de suas posições e opções, abrindo caminho para o que o filósofo Ernst Bloch denominou “consciência antecipadora” (apud BICCA, 1987), isto é, a visão do “ainda-não-existente”, a utopia, base valorativa e sentimental para uma efetiva ruptura com o mundo atual e para a “crítica desapiedada do existente” (MARX, 1979).

Referências

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[1] Sem dúvida, não poderemos aqui fazer uma discussão sobre as várias concepções de cultura existentes em nas ciências humanas, seja na antropologia ou sociologia, devido questão de espaço. Mas existe uma bibliografia abundante sobre isso e nas mais variadas perspectivas (WILLIAMS, 1992; CUCHE, 2002 EAGLETON, 2005; BOTTOMORE, 1970).
* Moeda alemã da época (século 19).
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Publicado em:
VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.

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