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sábado, 5 de janeiro de 2019

PARA COMPREENDER A TEORIA E HISTÓRIA DO WELFARE STATE

Prefácio ao livro: LOPES, Edmar. Welfare State: Teoria e História. Curitiba: CRV, 2018.


PARA COMPREENDER A TEORIA E HISTÓRIA DO WELFARE STATE
Nildo Viana

A obra “Welfare State: Teoria e História”, de Edmar Lopes, é uma recompilação sistemática e ampla da bibliografia existente sobre tal assunto. É uma obra que vem para tapar uma lacuna no caso brasileiro, pois reúne um conjunto de discussões e abordagens sobre o chamado “Estado de bem estar social”, permitindo ao leitor o acesso a inúmeras obras sobre o tema, tanto na perspectiva teórica, quanto na perspectiva histórica. O pesquisador dessa temática terá nessa obra rica fonte bibliográfica, enquanto que professores e estudantes de diversas áreas (Políticas Públicas, Sociologia, Economia, Ciência Política, Serviço Social, História, etc.) terão acesso a obras e concepções que permitem um mapeamento das produções intelectuais a respeito desse importante tema da história política mundial.
Nesse sentido, é uma obra importante e que vem para contribuir com a análise, pesquisa e ensino a respeito das políticas estatais de assistência social e análise do Estado em geral. O autor quase esgota a bibliografia a respeito, embora deixe de lado a perspectiva crítica e radical (expressa pela teoria dos regimes de acumulação de orientação marxista), o que enriqueceria ainda mais a compilação realizada. Sem dúvida, é uma obra interessante e útil para aqueles que trabalham com a temática e deve ganhar merecido destaque tanto no campo da historiografia, quanto da sociologia e ciência política, entre outras áreas.
Se tivéssemos que definir tal obra, diríamos que é uma obra de recompilação. No entanto, usamos esse termo aqui num sentido bem preciso e distinto da linguagem comum. Uma compilação, na linguagem comum, é o ato de “coleção ou reunião de extratos de diversos escritos sobre um assunto” ou um ato de “reunir, coligir textos de autores diversos”. Uma obra de compilação é aquela na qual o autor pouco aparece diretamente (aparece indiretamente com a reunião e seleção de textos e diretamente aparece com o prefácio, notas, etc.), como, por exemplo, um organizador de uma obra como os “escritos sobre educação” de Marx e Engels. Não é o caso da presente obra. É por isso que usamos o termo “recompilação”. O que significa recompilação? Etimologicamente, seria “compilar de novo”. No entanto, para nós, recompilação é quando o autor aparece diretamente através da interpretação e exposição de sua percepção da bibliografia existente sobre determinado tema ou autor. Logo, a compilação é quando o autor seleciona e expõe os textos na íntegra ou através de trechos, pouco escrevendo e aparecendo no texto. A recompilação é um trabalho superior, no qual o autor não apenas seleciona as obras, mas as analisa e reordena de acordo com sua interpretação, objetivos, etc. e fornece o fio condutor, que é a exposição de sua análise desse material. A compilação é descritiva e a recompilação é interpretativa.
Edmar Lopes trabalha com uma grande quantidade de autores, compondo uma extensa bibliografia sobre o que denomina “welfare state”[1]. Sem dúvida, alguns autores ficaram de fora. Não poderia ser de outra forma. É algo praticamente impossível esgotar a bibliografia existente sobre um tema na atualidade. Além disso, toda recompilação é uma seleção. E, nessa forma de seleção, há duas determinações importantes. A primeira é o indivíduo, que é portador de valores, interesses, concepções, etc., que formam sua personalidade (singularidade psíquica). A segunda é a sociedade e o mundo de possibilidades e impossibilidades ela que impõe aos autores. Esse mundo possível é marcado pelo acesso a informações (e a produção e circulação de informações remete, novamente, a um processo social), incluindo a distribuição mundial das ideias e obras.
Vamos discutir brevemente estes aspectos. Iniciaremos colocando o processo social de produção de uma obra de recompilação. Toda recompilação é um processo investigativo e seletivo. É um processo investigativo porque o recompilador precisa realizar uma investigação bibliográfica para descobrir o maior número possível de obras (livros, artigos, etc.) sobre o tema recompilado. A investigação bibliográfica pode ser exaustiva ou delimitada. Uma investigação delimitada ocorre quando o investigador elabora um ou mais critérios que delimitam a quantidade e/ou qualidade. Assim, é possível, devido ao volume muito extenso de obras, delimitar usando critérios espaciais (cidade, país, etc.), temporais (anos, décadas, séculos, etc.), formais (livros, teses, artigos, etc.), de conteúdo (abordagens sociológicas ou antropológicas, marxistas ou funcionalistas, etc.). A delimitação qualitativa difere desta forma quantitativa porque, nesse caso, o corpus é definido a partir de determinadas características demarcadas pelo investigador (que pode ser obras clássicas, determinadas abordagens, etc.).
A investigação exaustiva, tal como no caso do presente livro, busca abarcar o maior número de fontes possíveis. O limite, nesse caso, é a acessibilidade do material, o tempo destinado para a investigação, os idiomas de domínio do investigador, a capacidade financeira de aquisição de obras, etc. É preciso esclarecer que o caráter exaustivo é relativo, a não ser em raras exceções de temas pouco abordados e regionais, e os limites são imposições externas ao pesquisador.
O processo de investigação bibliográfica encerra quando o investigador já tem o conjunto de materiais com os quais vai trabalhar. O encerramento do processo de investigação bibliográfica marca início do processo seletivo. No processo investigativo, como observamos acima, já houve uma pré-seleção. Agora, diante do material reunido, o investigador realizará o processo seletivo. A seleção definirá qual será o corpus de análise extraído do material reunido. Isso pressupõe a leitura da totalidade do material, pois somente após esta é possível selecionar as obras que estão de acordo com os objetivos, temário, entre outros elementos da pesquisa. Sem dúvida, algumas obras não necessitam ser lidas, dependendo do caso, ou seja, quando for explícito em seus elementos (sumário, etc.), que não se encaixa no conjunto que está sendo selecionado.
No entanto, há um processo de “exclusão natural”, no qual as obras que são reiterativas (retomam, resumem ou reproduzem concepções e teorias já desenvolvidas por outros autores) são descartadas, podendo ser utilizadas de forma complementar, bem como as obras problemáticas (de baixa qualidade, com excesso de equívocos), as enganosas (as que podem ter sido pré-selecionada por causa do título, mas cujo conteúdo não é realmente contemplado).
O passo seguinte é a releitura e análise do material selecionado. Um extenso e intenso trabalho de leitura, anotações, síntese, reflexões, ocorre e, uma vez concluído, permite dar o passo seguinte e decisivo: a assimilação e composição do material do investigador, que se encerra com sua exposição, ou seja, com o término da redação da sua própria obra. A assimilação é o momento em que o investigador, após análise e interpretação, elabora a estrutura da sua obra, num momento de seleção (inclusão e exclusão), escolhendo quais obras serão apresentadas e discutidas, quais ganharão maior presença, quais proximidades, junções, semelhanças, serão destacadas, e quais distanciamentos, oposições, antagonismos serão expostos. A composição é um elemento complementar no qual ocorre a definição da ordem e conteúdo dos capítulos. A redação é a forma final que assume a obra concluída (em alguns casos, tal como quando ocorre processo de revisão ou avaliação por outros, ela ainda pode sofrer alterações).
Essa breve digressão sobre a investigação bibliográfica, processo analítico e composição da obra tem dois objetivos. O primeiro é para alertar o leitor para a necessidade de superar as concepções fetichistas daqueles que tomam um livro como algo “dado” ou, pior, possuindo “vida própria”. Em determinados casos concretos, a produção de um livro de recompilação pode não seguir exatamente os passos acima mencionados e da forma como foram expostos, mas alguns elementos básicos, com maior ou menor estruturação, estão presentes em todos os casos. Alguns autores ficam aquém e outros vão além do que aqui foi exposto. Em qualquer caso, houve investigação bibliográfica, processo analítico e composição, sendo na forma ideal ou não.
A consciência do processo de produção de um livro (em geral e no caso particular de uma obra de recompilação) é antifetichista. Marx, ao abordar o “fetichismo da mercadoria”, em O Capital, abriu a possibilidade para a percepção de outras formas de fetichismo. Um livro foi produzido pelo trabalho humano. Destacamos acima o trabalho do autor que, por sua vez, só foi possível graças ao trabalho de inúmeros outros autores (das ideias recompiladas), bem como de diversos outros indivíduos envolvidos em sua edição (editores, revisores, pareceristas, capistas, etc.) e, principalmente, aqueles que materializam as ideias em um objeto material chamado “livro”, os operários gráficos. Assim, um livro é produto do trabalho mental e manual de diversos seres humanos. É um produto social e histórico, pois esse processo de produção ocorre no interior de relações sociais concretas e mediado pela cultura existente. Assim, relações mercantis, burocráticas, estão presentes na produção de um livro, bem como concepções, representações, etc. A realidade das coisas aparentemente mais simples são marcadas por uma enorme complexidade.
Deixemos de lado o processo de produção e passemos para o conteúdo do presente livro. O conteúdo não está separado desse processo de produção, nem sua forma. É possível, por exemplo, questionar o processo seletivo realizado por Edmar Lopes, apesar de sua extensa bibliografia. Da mesma forma, é possível questionar a ausência de autor X ou Y. Alguns poderiam lançar mão de um termo vigente para questionar tal obra, acusando-a de “subjetividade”.
O segundo objetivo foi promover uma discussão sobre a produção social do livro para mostrar que as possíveis ausências não são apenas mera decisão do autor, algo “subjetivo”. Um autor brasileiro dificilmente terá acesso a toda produção mundial sobre o tema, pois não tem acesso a todos os idiomas (francês, inglês, italiano, alemão, chinês, russo, espanhol, entre diversos outros) e nem acesso a todas as obras publicadas no mundo inteiro. Explicamos esse processo quando abordamos a investigação bibliográfica. Assim, é preciso entender as determinações sociais da produção social de um livro de recompilação e como parte delas não são produtos de decisão do autor.
Nesse processo, também há o papel do capital editorial, inclusive das grandes editoras transnacionais, e dos meios oligopolistas de comunicação em geral, que tornam acessíveis e divulgam certas obras, e marginalizam e tornam pouco conhecidas outras. Desta forma, cobrar do autor que ele tenha acesso a tudo seria exigir o impossível e o que ninguém nunca fez e dificilmente fará em certos casos, pela extensão quantitativa enorme da bibliografia sobre determinados temas.
A acusação de “subjetividade” pode se manter, pois, mesmo dentro do que é conhecido, o autor fez escolhas, enfatizou mais certas obras, deixou de lado algumas, etc. Essa é uma crítica limitada. O que é “subjetividade”? A maioria não explica e não define. O uso desse termo é geralmente fundado em indefinição e parece que se remetendo a algo “indefinível”. Aqui reencontramos outra forma de fetichismo. Não existem “subjetividades” andando por aí e com vida própria. O uso do termo “subjetividade” é usado, nesses casos, geralmente em confronto com a “objetividade”, outro termo problemático e fetichista. Marx já havia superado esse problema ao dizer que não existe um “espírito” ao lado dos indivíduos e que a consciência “não é nada mais que o ser consciente” e este são os indivíduos reais, de carne e osso, vivendo em determinada época, nascendo no interior de determinada família, em determinada cidade, pertencendo à determinada classe social e grupos sociais, com determinada corporeidade, etc.
O indivíduo é um ser social singular. Mentalmente ele possui uma singularidade psíquica, o que pode ser chamado de “personalidade”, em linguagem psicológica. A personalidade é constituída socialmente, tendo por base uma determinada corporeidade (sexo, raça, herança genética, etc.) e a forma como ela é tratada na sociedade ou nos lugares específicos onde o indivíduo vive. O discurso sobre “subjetividade” é apenas a versão deformada da percepção desse processo, não compreendendo que um autor possui uma personalidade e que esta, sem dúvida, influencia a produção de suas ideias, mas que ela é produzida socialmente e atua apenas em parte do processo, que, dependendo do caso, é irrelevante. Assim, certos indivíduos, com certas personalidades, poderão ser mais ou menos suscetíveis às pressões sociais, mais ou menos resistentes à censura, mais ou menos adaptados aos modismos, etc. No entanto, essa variação é de grau e não de qualidade[2]. Todas as obras produzidas possuem elementos da personalidade do autor e por isso a acusação só teria sentido se fosse no aspecto quantitativo, ou seja, influência excessiva. Este não é o caso da presente obra e por isso descartamos esses possíveis questionamentos como pseudocríticas e não críticas reais, que são as consistentes e fundamentadas. Claro que existem personalidades que tendem a ir mais para um lado do que para outro, mas não cabe aqui realizar tal análise, pois isso seria focalizar o autor e não a obra.
O nosso foco, a partir de agora, é sobre a obra em si. Não cabe aqui resumir ou analisar a presente obra. Os seus méritos iniciais já foram destacados e um resumo ou análise seria adiantar ao leitor o que ele deve descobrir por conta própria. Vamos apenas destacar alguns aspectos da composição de Edmar Lopes e fazer algumas reflexões sobre o tema da obra.
Edmar Lopes focaliza alguns aspectos do Welfare State, fundamentalmente a questão histórica e a teórica. No plano histórico, o autor aborda a gênese e consolidação do Estado de Bem Estar Social na Europa e suas transformações recentes, bem como a gênese e evolução do sistema de proteção social no Brasil, com seus avanços e problemas. A inserção do Brasil na obra pode ser questionada, no sentido de que aqui nunca existiu um Welfare State, afirmação que pode ser debatida, embora, de nossa perspectiva, seja verdadeira. No entanto, o autor não usa a expressão welfare state e sim “sistema de proteção social” e no capítulo 07 ele faz algumas reflexões sobre essa questão, respondendo afirmativamente à pergunta sobre se houve um tipo de Estado de Bem Estar Social no Brasil.
No plano teórico, o autor discute diversos conceitos e abordagens. Sem dúvida, um conjunto de conceitos são apresentados e vários modelos interpretativos do Welfare State, especificamente em quatro capítulos. E, como era de se esperar, não é difícil ver nos capítulos mais históricos elementos teóricos e vice-versa. No conjunto, Edmar Lopes apresenta vários elementos teóricos e históricos sobre o Welfare State, tal como está no título da obra, contribuindo com uma apresentação de uma extensa bibliografia e um conjunto de abordagens e aspectos historiográficos.
A respeito do tema central da obra, o Welfare State, que preferimos denominar como “Estado integracionista”, observamos que o conjunto dos autores e teses trabalhadas não é suficiente para termos uma compreensão mais profunda desta formação estatal. Claro que isso não é responsabilidade do autor dessa obra e sim do conjunto das produções sobre o que foi aqui denominado Welfare State, pelo menos as obras mais consagradas e influentes, mas que atinge a quase totalidade da produção intelectual sobre essa temática. Isso tem a ver, evidentemente, com escolhas teóricas e metodológicas, bem como com questões extraintelectuais que determinam a produção científica, sem excetuar as idiossincrasias e questões particulares, embora com menor influência nos resultados. Essa constatação, no entanto, só pode ser realizada porque partimos de uma perspectiva crítica e distinta das que são hegemônicas.
Uma das questões que é importante a ressaltar é a concepção de Estado da maioria das abordagens apresentadas. Subjaz, quando não está explícito, uma concepção de Estado “neutro”. O aparato estatal, desde Marx, havia sido percebido como sendo uma “associação da classe dominante para fazer valer os seus interesses”. Essa análise de Marx, reconhecida pelo conjunto daqueles que se autodenominaram “marxistas”, apesar de algumas variações e polêmicas, foi desconsiderada amplamente pela maioria esmagadora da bibliografia sobre o Estado e suas políticas. Assim, torna-se possível separar suas políticas (incluindo as chamadas “sociais”) de sua dinâmica de reprodução e dos interesses dos quais ele é expressão.
O autor cita alguns autores que se autodenominam “marxistas”, como Ernest Mandel, Perry Anderson, entre vários outros. O suposto marxismo destes e outros autores citados é bastante problemático. É perceptível a ausência do método dialético em suas análises. Perry Anderson, em seu texto Balanço do Neoliberalismo, por exemplo, trata de neoliberalismo esquecendo uma das categorias fundamentais da dialética, a historicidade, bem como o primado das relações sociais concretas sobre as ideologias e representações.
O mesmo problema metodológico está presente nas análises do surgimento, desenvolvimento e crise do Estado integracionista. A maioria dos autores realiza uma apresentação meramente descritiva desse processo e não explicativa e os que se lançam no processo explicativo, nem sempre o fazem efetivamente. A emergência do Estado integracionista ocorre a partir de 1945, ou seja, tão logo se encerra a Segunda Guerra Mundial. As crises anteriores, desde as da década de 1910 (com destaque para a Primeira Guerra Mundial e as revoluções proletárias inacabadas na Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, bem como lutas radicalizadas na França, Inglaterra, etc.), passando pelas dificuldades da década de 1920 (que culmina com a crise de 1929) e a ascensão do nazifascismo como solução em alguns países nos anos 1930, temos a Segunda Guerra Mundial e a derrota do eixo nazifascista. As lutas de classes e a força do movimento operário nessas décadas (mesmo em seu recuo nos anos 1920 e 1930, pois era um recuo parcial, especialmente nos países nos quais houve tentativas de revoluções proletárias, enquanto que em outros havia ascensão, como na França nos anos 1930 e na Espanha, com a nova tentativa de revolução proletária inacabada, que vai de 1936 a 1939) e o colaboracionismo de setores políticos e da burguesia, provocou um recuo das tendências mais conservadoras na Europa. Os regimes pós-1945 emergiam sob o signo da reconstrução (com apoio norte-americano) e com os créditos para aqueles que resistiram ao nazifascismo.
O exemplo francês ajuda a entender isso. Quando, em 1940, ocorre a ocupação alemã (nazista), os políticos franceses fazem acordo com os alemães – e são chamados de “colaboracionistas” – mantendo um governo submetido ao domínio alemão. Isso recebeu o apoio de parte da população francesa e do seu setor conservador (o que alguns chamariam de “direita”). A resistência ficou por parte de operários, intelectuais, etc. Uma força de oposição que ganhou grande reconhecimento foi o grupo “Socialismo e Liberdade”, que contava com o filósofo francês Jean-Paul Sartre como figura mais eminente. Após a derrota alemã e a desocupação, o existencialismo, concepção filosófica de Sartre, se torna a concepção hegemônica na França, até a renovação hegemônica do estruturalismo em 1950. Essa hegemonia intelectual e mesmo as posteriores, eram distintas do antigo liberalismo, bem como das concepções totalitárias, ou seja, as ideologias e concepções visivelmente burguesas e conservadoras. Em toda a Europa, a resistência ao nazifascismo nos lugares ocupados foi, fundamentalmente, das forças progressistas (social-democracia, bolchevismo) e das forças revolucionárias (pequenos grupos de jovens, militantes e proletários). A “direita”, inclusive relacionada com o próprio nazifascismo, mas também suas tendências liberais e democratas, saiu desmoralizada a partir do final da guerra e a “esquerda”, especialmente as forças progressistas expressa nos grandes partidos (social-democratas e bolchevistas) é que ganharam reconhecimento e espaço.
Essa foi uma das determinações da emergência do Estado integracionista. Porém, outras determinações existiram, tal como a necessidade de se criar mecanismos reguladores do mercado e da moeda, evitar as crises do capitalismo, aumentar a produtividade, evitar novas tentativas de revoluções proletárias. É por isso que emerge, a partir de 1945, um novo regime de acumulação (alguns denominam “fordista”, “keynesiano”, mas preferimos o termo regime de acumulação conjugado)[3], que promove uma mutação na organização do trabalho, como a hegemonia do fordismo, que é complementado com uma nova forma estatal e novas relações internacionais. Esse processo significa uma ampla mudança no regime de acumulação, que passa a ter como forma estatal o Estado integracionista, que é intervencionista no plano pecuniário (“econômico”) e nas políticas de assistência social, regularizador do processo de produção nos moldes fordistas e incentivador da aquisição de bens de consumo e sistema de crédito que lhe fortalece.
Assim, temos, por um lado, as necessidades da classe capitalista de recuperação e retomada da acumulação e desenvolvimento capitalistas e, por outro, uma situação cultural inusitada, na qual as forças conservadoras e assumidamente pró-capitalistas caíram em descrédito. Isso explica diversos acontecimentos concretos, como a ascensão de Partidos Social-Democratas (ou intitulados “socialistas”), Partidos Comunistas e Partido Trabalhista (no caso inglês), compondo ou mesmo assumindo governos. Eles se integram na política institucional e reproduzem os interesses da classe capitalista (que, por sua vez, assume um discurso mais “progressista”, no caso europeu).
Esse processo só começa a se desfazer com a crise deste regime de acumulação e emergência de um novo regime de acumulação, o atual. A crise do regime de acumulação conjugado tem seu início no final dos anos 1960, com todo um processo de mutação cultural (desde a contracultura e formas mais amenas e menos engajadas politicamente até as novas concepções críticas que emergem tanto no aspecto teórico quanto político, tal como o situacionismo na França e a produção intelectual crítica da época), mudanças sociais e políticas (a juventude como nova força política, a emergência de um movimento estudantil combativo, etc.) até a reemergência das lutas operárias com maior radicalidade (França, Alemanha, Itália, etc.). Esse processo se agrava com a desestabilização do regime de acumulação conjugado e queda da taxa de lucro que ocorre no final da década, gerando certos recuos do Estado integracionista.
Novamente o caso francês é esclarecedor: as novas políticas estatais de precarização do ensino superior na França, especialmente o Plano Fouchet (elaborado por Foucault e outros), foi o estopim para toda uma rebelião estudantil, que já trazia descontentamentos e tinham acesso a uma cultura contestadora (desde as teses de grupos como Socialismo e Barbárie e Internacional Situacionista, passando pelas obras de sociólogos e filósofos como Henri Lefebvre, André Gorz, Sartre e outros, bem como pelo pensamento crítico de outros países, tal como a Escola de Frankfurt), na qual a crítica da vida cotidiana, do consumismo, da chamada “indústria cultural”, se fazia presente. A juventude e seu descontentamento, os trabalhadores e suas demandas, entre outros setores, também apontavam para uma insatisfação crescente na sociedade francesa. A reforma universitária, que apontava para precarização e predominância do tecnicismo, era uma resposta do Estado para as dificuldades da acumulação capitalista. A rebelião estudantil acabou se desenvolvendo e gerando a proposta autogestionária e de transformação radical da sociedade, e os trabalhadores se organizam em movimento grevista (cerca de 10 milhões de operários entraram em greve) e criaram conselhos operários.
Esse processo se reproduziu, com menos radicalidade, em diversos outros países, tal como Alemanha e Itália. Esse momento de ascensão das lutas operárias e estudantis, reforçadas por outros setores da sociedade, apontou para o esgotamento do regime de acumulação conjugado. Apesar da derrota das lutas operárias e estudantis, elas continuaram fortes por mais algum tempo (França, Itália, etc.) e sua derrota posterior gerou as guerrilhas urbanas na Itália e Alemanha, sinal do descolamento entre os militantes e movimento operário. A Revolução Portuguesa de 1974 e a Revolução Polonesa de 1980 foram as últimas expressões dessa resistência. Os anos 1970 foram anos nos quais se tentou preservar o regime de acumulação conjugado, mas aumentando a repressão, a inflação, a dívida externa, etc., como formas de recuperação pecuniária (“econômica”) e política.
Logo foi gestado um novo regime de acumulação que, por sua vez, trouxe uma nova forma estatal. O regime de acumulação integral traz o Estado neoliberal como um dos seus componentes, o que significa a superação do Estado integracionista. Sem dúvida, alguns países tentam manter certos elementos do Estado integracionista e outros até mesmo de forma mais ampla, mas esse se enfraquece paulatinamente em todos os países. O chamado “capitalismo nórdico” seria uma exceção? As suas condições particulares (desde riquezas naturais a paraísos fiscais, como no caso da Suiça) permitem manter certos aspectos do Estado integracionista, mas estes se desfazem e as políticas neoliberais avançam paulatinamente.
Essas afirmações são polêmicas e destoam do que a bibliografia geral e quase total afirma sobre o Estado integracionista. As bases metodológicas e teóricas são distintas e, por conseguinte, as conclusões também. Mas não é o caso de expor uma concepção alternativa às concepções hegemônicas, vigentes e mais conhecidas, e sim fazer o questionamento dos limites de várias abordagens sobre o Welfare State.
A explicação da gênese histórica do Estado integracionista também revela sua essência, sua natureza, e por isso permite perceber onde ele se materializou concretamente e onde não. Sem essa análise histórica e totalizante, é possível enxergar Estado integracionista, ou Welfare State, nos mais variados lugares e épocas. Isso é possível ao se tomar a parte pelo todo, ou, como já dizia Hegel, ver a árvore e perder de vista a floresta.
Para encerrar, uma última e breve reflexão que vai além dos objetivos e intenções da presente obra, mas que torna necessária uma discussão, que é a posição política diante do Estado integracionista. Essa forma estatal foi dominante nos países imperialistas desde que se formou, a partir de 1945 e começou a ser substituído pelo neoliberalismo a partir de 1980 com os governos de Margareth Thatcher (Inglaterra), Ronald Reagan (EUA), Helmutt Kohl (Alemanha). No seu período de existência e dominância, predominavam as concepções apologéticas a seu respeito e, com sua crise e substituição, passou a serem hegemônicas as tendências críticas, neoliberais, sob várias formas. Ele foi uma concessão da burguesia em determinado contexto histórico e deixou de ser necessário para esta, tornando-se, aliás, um obstáculo para a continuidade da acumulação capitalista e por isso foi substituído.
A defesa da volta do Estado integracionista é uma ilusão, pois as novas necessidades da classe capitalista e a dinâmica da acumulação não permitem isso. Mas, mesmo se permitisse, não significa nenhum paraíso na terra. O Estado integracionista cumpria a função de reprodução da acumulação capitalista com certas concessões e para isso reforçou o processo de burocratização da sociedade e criou inúmeros mecanismos para impedir uma transformação social radical e total. A sua existência, por sua vez, só era possível graças à superexploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado. Enquanto fazia concessões aos trabalhadores em certos países, executava uma impiedosa exploração extensiva e intensiva em relação aos trabalhadores da maioria dos países. Logo, mesmo que o Estado neoliberal seja pior, essa é a necessidade e tendência do capitalismo, não há volta atrás e não há como voltar. Isso mais ainda no capitalismo subordinado brasileiro. Por tudo isso, a posição diante do Estado integracionista deve ser de crítica e recusa, tal como também em relação ao Estado neoliberal. É necessário ir além da reprodução do existente para chegar ao novo, ou ao ainda-não-existente, para utilizar terminologia de Ernst Bloch. Olhar para frente, para o futuro, significa superar as oposições e alternativas espaciais, que não saem do lugar, como “direita” e “esquerda”, categorias espaciais transplantadas para a política e que não ultrapassa seu caráter espacial, ou seja, de lugar e não de história e de futuro. O futuro pertence ao futurismo.
Voltando ao presente livro, ele tem o mérito de oferecer ao leitor e pesquisador, um amplo quadro de referências e análises das discussões sobre o Welfare State. Cabe ao leitor e pesquisador saber aproveitar o material aqui apresentado. Isso vai inclusive além das referências e discussões, pois permite ter uma percepção panorâmica de determinados temas, observar as posições mais reconhecidas sobre o tema geral e diversos temas derivados, entre outros aspectos. Enfim, é uma obra útil e necessária. Se existissem obras como estas sobre os diversos temas existentes não existiriam aqueles que se perdem na imensidão de fontes existentes ou outros que ficam desesperados diante da escassez e dificuldade de encontrá-las.




[1] Welfare State é uma denominação em inglês da formação estatal que emerge após a Segunda Guerra Mundial, principalmente na Europa, o chamado “Estado de Bem Estar Social”. Esta formação estatal também foi denominada como “Estado keynesiano”, “Estado integracionista”, “Estado-providência”, entre outros termos.
[2] Claro é que existem aqueles que fogem desse processo por possuírem determinada singularidade psíquica que só pode ser explicada pela análise do seu processo histórico de vida. Nesse caso a diferença pode ser de qualidade e não de quantidade. É o mesmo problema em relação aos valores. Toda obra materializa valores, em maior ou menor grau, mais explícito ou menos explícito, e por isso o único questionamento válido seria a determinados valores, o que revelaria, por seu lado, os valores do crítico.
[3] O regime de acumulação conjugado emerge num momento histórico preciso e com características precisas. A partir deste regime de acumulação, a exploração internacional ganha nova forma, pois ela ocorria principalmente via relações de distribuição e política institucional e, a partir desse momento, com a expansão do capital oligopolista transnacional, passa a atingir o processo de produção e gerar uma nova forma de transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas. Esse processo foi um dos pilares para a possibilidade de expansão de políticas de assistência social e do intervencionismo estatal. O regime de acumulação conjugado é caracterizado pelo predomínio da busca de extração de mais-valor absoluto no capitalismo subordinado e mais-valor relativo no capitalismo imperialista, de forma parte do mais-valor do primeiro é transferido para o segundo. Essa extração de mais-valor absoluto permite uma drenagem enorme de mais-valor, que, via capital oligopolista transnacional, transfere grande parte dele para os países imperialistas.

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