Prefácio ao livro: LOPES, Edmar. Welfare State: Teoria e História. Curitiba: CRV, 2018. |
PARA
COMPREENDER A TEORIA E HISTÓRIA DO WELFARE STATE
Nildo Viana
A obra “Welfare State: Teoria e História”, de
Edmar Lopes, é uma recompilação sistemática e ampla da bibliografia existente
sobre tal assunto. É uma obra que vem para tapar uma lacuna no caso brasileiro,
pois reúne um conjunto de discussões e abordagens sobre o chamado “Estado de
bem estar social”, permitindo ao leitor o acesso a inúmeras obras sobre o tema,
tanto na perspectiva teórica, quanto na perspectiva histórica. O pesquisador dessa
temática terá nessa obra rica fonte bibliográfica, enquanto que professores e
estudantes de diversas áreas (Políticas Públicas, Sociologia, Economia, Ciência
Política, Serviço Social, História, etc.) terão acesso a obras e concepções que
permitem um mapeamento das produções intelectuais a respeito desse importante
tema da história política mundial.
Nesse sentido, é uma obra
importante e que vem para contribuir com a análise, pesquisa e ensino a
respeito das políticas estatais de assistência social e análise do Estado em
geral. O autor quase esgota a bibliografia a respeito, embora deixe de lado a
perspectiva crítica e radical (expressa pela teoria dos regimes de acumulação
de orientação marxista), o que enriqueceria ainda mais a compilação realizada. Sem
dúvida, é uma obra interessante e útil para aqueles que trabalham com a
temática e deve ganhar merecido destaque tanto no campo da historiografia,
quanto da sociologia e ciência política, entre outras áreas.
Se tivéssemos que definir
tal obra, diríamos que é uma obra de recompilação. No entanto, usamos esse
termo aqui num sentido bem preciso e distinto da linguagem comum. Uma compilação,
na linguagem comum, é o ato de “coleção ou reunião de extratos de diversos
escritos sobre um assunto” ou um ato de “reunir, coligir textos de autores
diversos”. Uma obra de compilação é aquela na qual o autor pouco aparece
diretamente (aparece indiretamente com a reunião e seleção de textos e
diretamente aparece com o prefácio, notas, etc.), como, por exemplo, um
organizador de uma obra como os “escritos sobre educação” de Marx e Engels. Não
é o caso da presente obra. É por isso que usamos o termo “recompilação”. O que
significa recompilação? Etimologicamente, seria “compilar de novo”. No entanto,
para nós, recompilação é quando o autor aparece diretamente através da
interpretação e exposição de sua percepção da bibliografia existente sobre
determinado tema ou autor. Logo, a compilação é quando o autor seleciona e
expõe os textos na íntegra ou através de trechos, pouco escrevendo e aparecendo
no texto. A recompilação é um trabalho superior, no qual o autor não apenas
seleciona as obras, mas as analisa e reordena de acordo com sua interpretação,
objetivos, etc. e fornece o fio condutor, que é a exposição de sua análise
desse material. A compilação é descritiva e a recompilação é interpretativa.
Edmar Lopes trabalha com uma grande quantidade de
autores, compondo uma extensa bibliografia sobre o que denomina “welfare state”[1].
Sem dúvida, alguns autores ficaram de fora. Não poderia ser de outra forma. É
algo praticamente impossível esgotar a bibliografia existente sobre um tema na
atualidade. Além disso, toda recompilação é uma seleção. E, nessa forma de
seleção, há duas determinações importantes. A primeira é o indivíduo, que é
portador de valores, interesses, concepções, etc., que formam sua personalidade
(singularidade psíquica). A segunda é a sociedade e o mundo de possibilidades e
impossibilidades ela que impõe aos autores. Esse mundo possível é marcado pelo
acesso a informações (e a produção e circulação de informações remete,
novamente, a um processo social), incluindo a distribuição mundial das ideias e
obras.
Vamos
discutir brevemente estes aspectos. Iniciaremos colocando o processo social de
produção de uma obra de recompilação. Toda recompilação é um processo
investigativo e seletivo. É um processo investigativo porque o recompilador
precisa realizar uma investigação bibliográfica para descobrir o maior número
possível de obras (livros, artigos, etc.) sobre o tema recompilado. A
investigação bibliográfica pode ser exaustiva ou delimitada. Uma investigação
delimitada ocorre quando o investigador elabora um ou mais critérios que
delimitam a quantidade e/ou qualidade. Assim, é possível, devido ao volume
muito extenso de obras, delimitar usando critérios espaciais (cidade, país,
etc.), temporais (anos, décadas, séculos, etc.), formais (livros, teses,
artigos, etc.), de conteúdo (abordagens sociológicas ou antropológicas,
marxistas ou funcionalistas, etc.). A delimitação qualitativa difere desta
forma quantitativa porque, nesse caso, o corpus
é definido a partir de determinadas características demarcadas pelo
investigador (que pode ser obras clássicas, determinadas abordagens, etc.).
A
investigação exaustiva, tal como no caso do presente livro, busca abarcar o
maior número de fontes possíveis. O limite, nesse caso, é a acessibilidade do
material, o tempo destinado para a investigação, os idiomas de domínio do
investigador, a capacidade financeira de aquisição de obras, etc. É preciso
esclarecer que o caráter exaustivo é relativo, a não ser em raras exceções de
temas pouco abordados e regionais, e os limites são imposições externas ao
pesquisador.
O
processo de investigação bibliográfica encerra quando o investigador já tem o
conjunto de materiais com os quais vai trabalhar. O encerramento do processo de
investigação bibliográfica marca início do processo seletivo. No processo
investigativo, como observamos acima, já houve uma pré-seleção. Agora, diante
do material reunido, o investigador realizará o processo seletivo. A seleção
definirá qual será o corpus de
análise extraído do material reunido. Isso pressupõe a leitura da totalidade do
material, pois somente após esta é possível selecionar as obras que estão de
acordo com os objetivos, temário, entre outros elementos da pesquisa. Sem
dúvida, algumas obras não necessitam ser lidas, dependendo do caso, ou seja,
quando for explícito em seus elementos (sumário, etc.), que não se encaixa no
conjunto que está sendo selecionado.
No
entanto, há um processo de “exclusão natural”, no qual as obras que são
reiterativas (retomam, resumem ou reproduzem concepções e teorias já
desenvolvidas por outros autores) são descartadas, podendo ser utilizadas de
forma complementar, bem como as obras problemáticas (de baixa qualidade, com
excesso de equívocos), as enganosas (as que podem ter sido pré-selecionada por
causa do título, mas cujo conteúdo não é realmente contemplado).
O
passo seguinte é a releitura e análise do material selecionado. Um extenso e
intenso trabalho de leitura, anotações, síntese, reflexões, ocorre e, uma vez
concluído, permite dar o passo seguinte e decisivo: a assimilação e composição
do material do investigador, que se encerra com sua exposição, ou seja, com o
término da redação da sua própria obra. A assimilação é o momento em que o
investigador, após análise e interpretação, elabora a estrutura da sua obra,
num momento de seleção (inclusão e exclusão), escolhendo quais obras serão
apresentadas e discutidas, quais ganharão maior presença, quais proximidades, junções,
semelhanças, serão destacadas, e quais distanciamentos, oposições, antagonismos
serão expostos. A composição é um elemento complementar no qual ocorre a
definição da ordem e conteúdo dos capítulos. A redação é a forma final que
assume a obra concluída (em alguns casos, tal como quando ocorre processo de
revisão ou avaliação por outros, ela ainda pode sofrer alterações).
Essa
breve digressão sobre a investigação bibliográfica, processo analítico e
composição da obra tem dois objetivos. O primeiro é para alertar o leitor para
a necessidade de superar as concepções fetichistas daqueles que tomam um livro
como algo “dado” ou, pior, possuindo “vida própria”. Em determinados casos
concretos, a produção de um livro de recompilação pode não seguir exatamente os
passos acima mencionados e da forma como foram expostos, mas alguns elementos
básicos, com maior ou menor estruturação, estão presentes em todos os casos.
Alguns autores ficam aquém e outros vão além do que aqui foi exposto. Em
qualquer caso, houve investigação bibliográfica, processo analítico e
composição, sendo na forma ideal ou não.
A
consciência do processo de produção de um livro (em geral e no caso particular
de uma obra de recompilação) é antifetichista. Marx, ao abordar o “fetichismo
da mercadoria”, em O Capital, abriu a
possibilidade para a percepção de outras formas de fetichismo. Um livro foi
produzido pelo trabalho humano. Destacamos acima o trabalho do autor que, por
sua vez, só foi possível graças ao trabalho de inúmeros outros autores (das
ideias recompiladas), bem como de diversos outros indivíduos envolvidos em sua
edição (editores, revisores, pareceristas, capistas, etc.) e, principalmente,
aqueles que materializam as ideias em um objeto material chamado “livro”, os
operários gráficos. Assim, um livro é produto do trabalho mental e manual de
diversos seres humanos. É um produto social e histórico, pois esse processo de
produção ocorre no interior de relações sociais concretas e mediado pela
cultura existente. Assim, relações mercantis, burocráticas, estão presentes na
produção de um livro, bem como concepções, representações, etc. A realidade das
coisas aparentemente mais simples são marcadas por uma enorme complexidade.
Deixemos
de lado o processo de produção e passemos para o conteúdo do presente livro. O
conteúdo não está separado desse processo de produção, nem sua forma. É
possível, por exemplo, questionar o processo seletivo realizado por Edmar
Lopes, apesar de sua extensa bibliografia. Da mesma forma, é possível
questionar a ausência de autor X ou Y. Alguns poderiam lançar mão de um termo
vigente para questionar tal obra, acusando-a de “subjetividade”.
O
segundo objetivo foi promover uma discussão sobre a produção social do livro
para mostrar que as possíveis ausências não são apenas mera decisão do autor,
algo “subjetivo”. Um autor brasileiro dificilmente terá acesso a toda produção
mundial sobre o tema, pois não tem acesso a todos os idiomas (francês, inglês,
italiano, alemão, chinês, russo, espanhol, entre diversos outros) e nem acesso
a todas as obras publicadas no mundo inteiro. Explicamos esse processo quando
abordamos a investigação bibliográfica. Assim, é preciso entender as
determinações sociais da produção social de um livro de recompilação e como
parte delas não são produtos de decisão do autor.
Nesse
processo, também há o papel do capital editorial, inclusive das grandes
editoras transnacionais, e dos meios oligopolistas de comunicação em geral, que
tornam acessíveis e divulgam certas obras, e marginalizam e tornam pouco
conhecidas outras. Desta forma, cobrar do autor que ele tenha acesso a tudo
seria exigir o impossível e o que ninguém nunca fez e dificilmente fará em
certos casos, pela extensão quantitativa enorme da bibliografia sobre
determinados temas.
A
acusação de “subjetividade” pode se manter, pois, mesmo dentro do que é
conhecido, o autor fez escolhas, enfatizou mais certas obras, deixou de lado
algumas, etc. Essa é uma crítica limitada. O que é “subjetividade”? A maioria
não explica e não define. O uso desse termo é geralmente fundado em indefinição
e parece que se remetendo a algo “indefinível”. Aqui reencontramos outra forma
de fetichismo. Não existem “subjetividades” andando por aí e com vida própria. O
uso do termo “subjetividade” é usado, nesses casos, geralmente em confronto com
a “objetividade”, outro termo problemático e fetichista. Marx já havia superado
esse problema ao dizer que não existe um “espírito” ao lado dos indivíduos e
que a consciência “não é nada mais que o ser consciente” e este são os
indivíduos reais, de carne e osso, vivendo em determinada época, nascendo no
interior de determinada família, em determinada cidade, pertencendo à
determinada classe social e grupos sociais, com determinada corporeidade, etc.
O
indivíduo é um ser social singular. Mentalmente ele possui uma singularidade
psíquica, o que pode ser chamado de “personalidade”, em linguagem psicológica.
A personalidade é constituída socialmente, tendo por base uma determinada
corporeidade (sexo, raça, herança genética, etc.) e a forma como ela é tratada
na sociedade ou nos lugares específicos onde o indivíduo vive. O discurso sobre
“subjetividade” é apenas a versão deformada da percepção desse processo, não
compreendendo que um autor possui uma personalidade e que esta, sem dúvida,
influencia a produção de suas ideias, mas que ela é produzida socialmente e
atua apenas em parte do processo, que, dependendo do caso, é irrelevante.
Assim, certos indivíduos, com certas personalidades, poderão ser mais ou menos suscetíveis
às pressões sociais, mais ou menos resistentes à censura, mais ou menos
adaptados aos modismos, etc. No entanto, essa variação é de grau e não de
qualidade[2].
Todas as obras produzidas possuem elementos da personalidade do autor e por
isso a acusação só teria sentido se fosse no aspecto quantitativo, ou seja,
influência excessiva. Este não é o caso da presente obra e por isso descartamos
esses possíveis questionamentos como pseudocríticas e não críticas reais, que
são as consistentes e fundamentadas. Claro que existem personalidades que
tendem a ir mais para um lado do que para outro, mas não cabe aqui realizar tal
análise, pois isso seria focalizar o autor e não a obra.
O
nosso foco, a partir de agora, é sobre a obra em si. Não cabe aqui resumir ou
analisar a presente obra. Os seus méritos iniciais já foram destacados e um
resumo ou análise seria adiantar ao leitor o que ele deve descobrir por conta
própria. Vamos apenas destacar alguns aspectos da composição de Edmar Lopes e
fazer algumas reflexões sobre o tema da obra.
Edmar
Lopes focaliza alguns aspectos do Welfare State, fundamentalmente a questão
histórica e a teórica. No plano histórico, o autor aborda a gênese e
consolidação do Estado de Bem Estar Social na Europa e suas transformações
recentes, bem como a gênese e evolução do sistema de proteção social no Brasil,
com seus avanços e problemas. A inserção do Brasil na obra pode ser
questionada, no sentido de que aqui nunca existiu um Welfare State, afirmação
que pode ser debatida, embora, de nossa perspectiva, seja verdadeira. No
entanto, o autor não usa a expressão welfare state e sim “sistema de proteção
social” e no capítulo 07 ele faz algumas reflexões sobre essa questão,
respondendo afirmativamente à pergunta sobre se houve um tipo de Estado de Bem
Estar Social no Brasil.
No
plano teórico, o autor discute diversos conceitos e abordagens. Sem dúvida, um
conjunto de conceitos são apresentados e vários modelos interpretativos do
Welfare State, especificamente em quatro capítulos. E, como era de se esperar,
não é difícil ver nos capítulos mais históricos elementos teóricos e
vice-versa. No conjunto, Edmar Lopes apresenta vários elementos teóricos e
históricos sobre o Welfare State, tal como está no título da obra, contribuindo
com uma apresentação de uma extensa bibliografia e um conjunto de abordagens e
aspectos historiográficos.
A
respeito do tema central da obra, o Welfare State, que preferimos denominar
como “Estado integracionista”, observamos que o conjunto dos autores e teses
trabalhadas não é suficiente para termos uma compreensão mais profunda desta
formação estatal. Claro que isso não é responsabilidade do autor dessa obra e
sim do conjunto das produções sobre o que foi aqui denominado Welfare State,
pelo menos as obras mais consagradas e influentes, mas que atinge a quase
totalidade da produção intelectual sobre essa temática. Isso tem a ver,
evidentemente, com escolhas teóricas e metodológicas, bem como com questões
extraintelectuais que determinam a produção científica, sem excetuar as
idiossincrasias e questões particulares, embora com menor influência nos
resultados. Essa constatação, no entanto, só pode ser realizada porque partimos
de uma perspectiva crítica e distinta das que são hegemônicas.
Uma
das questões que é importante a ressaltar é a concepção de Estado da maioria
das abordagens apresentadas. Subjaz, quando não está explícito, uma concepção
de Estado “neutro”. O aparato estatal, desde Marx, havia sido percebido como
sendo uma “associação da classe dominante para fazer valer os seus interesses”.
Essa análise de Marx, reconhecida pelo conjunto daqueles que se autodenominaram
“marxistas”, apesar de algumas variações e polêmicas, foi desconsiderada
amplamente pela maioria esmagadora da bibliografia sobre o Estado e suas
políticas. Assim, torna-se possível separar suas políticas (incluindo as
chamadas “sociais”) de sua dinâmica de reprodução e dos interesses dos quais
ele é expressão.
O
autor cita alguns autores que se autodenominam “marxistas”, como Ernest Mandel,
Perry Anderson, entre vários outros. O suposto marxismo destes e outros autores
citados é bastante problemático. É perceptível a ausência do método dialético
em suas análises. Perry Anderson, em seu texto Balanço do Neoliberalismo, por exemplo, trata de neoliberalismo
esquecendo uma das categorias fundamentais da dialética, a historicidade, bem
como o primado das relações sociais concretas sobre as ideologias e
representações.
O
mesmo problema metodológico está presente nas análises do surgimento,
desenvolvimento e crise do Estado integracionista. A maioria dos autores
realiza uma apresentação meramente descritiva desse processo e não explicativa
e os que se lançam no processo explicativo, nem sempre o fazem efetivamente. A
emergência do Estado integracionista ocorre a partir de 1945, ou seja, tão logo
se encerra a Segunda Guerra Mundial. As crises anteriores, desde as da década
de 1910 (com destaque para a Primeira Guerra Mundial e as revoluções
proletárias inacabadas na Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, bem como lutas
radicalizadas na França, Inglaterra, etc.), passando pelas dificuldades da
década de 1920 (que culmina com a crise de 1929) e a ascensão do nazifascismo
como solução em alguns países nos anos 1930, temos a Segunda Guerra Mundial e a
derrota do eixo nazifascista. As lutas de classes e a força do movimento
operário nessas décadas (mesmo em seu recuo nos anos 1920 e 1930, pois era um
recuo parcial, especialmente nos países nos quais houve tentativas de
revoluções proletárias, enquanto que em outros havia ascensão, como na França
nos anos 1930 e na Espanha, com a nova tentativa de revolução proletária
inacabada, que vai de 1936 a 1939) e o colaboracionismo de setores políticos e
da burguesia, provocou um recuo das tendências mais conservadoras na Europa. Os
regimes pós-1945 emergiam sob o signo da reconstrução (com apoio
norte-americano) e com os créditos para aqueles que resistiram ao nazifascismo.
O
exemplo francês ajuda a entender isso. Quando, em 1940, ocorre a ocupação alemã
(nazista), os políticos franceses fazem acordo com os alemães – e são chamados
de “colaboracionistas” – mantendo um governo submetido ao domínio alemão. Isso
recebeu o apoio de parte da população francesa e do seu setor conservador (o
que alguns chamariam de “direita”). A resistência ficou por parte de operários,
intelectuais, etc. Uma força de oposição que ganhou grande reconhecimento foi o
grupo “Socialismo e Liberdade”, que contava com o filósofo francês Jean-Paul
Sartre como figura mais eminente. Após a derrota alemã e a desocupação, o
existencialismo, concepção filosófica de Sartre, se torna a concepção
hegemônica na França, até a renovação hegemônica do estruturalismo em 1950.
Essa hegemonia intelectual e mesmo as posteriores, eram distintas do antigo
liberalismo, bem como das concepções totalitárias, ou seja, as ideologias e
concepções visivelmente burguesas e conservadoras. Em toda a Europa, a
resistência ao nazifascismo nos lugares ocupados foi, fundamentalmente, das
forças progressistas (social-democracia, bolchevismo) e das forças
revolucionárias (pequenos grupos de jovens, militantes e proletários). A
“direita”, inclusive relacionada com o próprio nazifascismo, mas também suas
tendências liberais e democratas, saiu desmoralizada a partir do final da
guerra e a “esquerda”, especialmente as forças progressistas expressa nos
grandes partidos (social-democratas e bolchevistas) é que ganharam reconhecimento
e espaço.
Essa
foi uma das determinações da emergência do Estado integracionista. Porém,
outras determinações existiram, tal como a necessidade de se criar mecanismos
reguladores do mercado e da moeda, evitar as crises do capitalismo, aumentar a
produtividade, evitar novas tentativas de revoluções proletárias. É por isso
que emerge, a partir de 1945, um novo regime de acumulação (alguns denominam
“fordista”, “keynesiano”, mas preferimos o termo regime de acumulação
conjugado)[3],
que promove uma mutação na organização do trabalho, como a hegemonia do
fordismo, que é complementado com uma nova forma estatal e novas relações
internacionais. Esse processo significa uma ampla mudança no regime de
acumulação, que passa a ter como forma estatal o Estado integracionista, que é
intervencionista no plano pecuniário (“econômico”) e nas políticas de
assistência social, regularizador do processo de produção nos moldes fordistas
e incentivador da aquisição de bens de consumo e sistema de crédito que lhe
fortalece.
Assim,
temos, por um lado, as necessidades da classe capitalista de recuperação e
retomada da acumulação e desenvolvimento capitalistas e, por outro, uma
situação cultural inusitada, na qual as forças conservadoras e assumidamente
pró-capitalistas caíram em descrédito. Isso explica diversos acontecimentos
concretos, como a ascensão de Partidos Social-Democratas (ou intitulados
“socialistas”), Partidos Comunistas e Partido Trabalhista (no caso inglês),
compondo ou mesmo assumindo governos. Eles se integram na política
institucional e reproduzem os interesses da classe capitalista (que, por sua
vez, assume um discurso mais “progressista”, no caso europeu).
Esse
processo só começa a se desfazer com a crise deste regime de acumulação e
emergência de um novo regime de acumulação, o atual. A crise do regime de
acumulação conjugado tem seu início no final dos anos 1960, com todo um
processo de mutação cultural (desde a contracultura e formas mais amenas e
menos engajadas politicamente até as novas concepções críticas que emergem
tanto no aspecto teórico quanto político, tal como o situacionismo na França e
a produção intelectual crítica da época), mudanças sociais e políticas (a
juventude como nova força política, a emergência de um movimento estudantil
combativo, etc.) até a reemergência das lutas operárias com maior radicalidade
(França, Alemanha, Itália, etc.). Esse processo se agrava com a
desestabilização do regime de acumulação conjugado e queda da taxa de lucro que
ocorre no final da década, gerando certos recuos do Estado integracionista.
Novamente
o caso francês é esclarecedor: as novas políticas estatais de precarização do
ensino superior na França, especialmente o Plano Fouchet (elaborado por
Foucault e outros), foi o estopim para toda uma rebelião estudantil, que já
trazia descontentamentos e tinham acesso a uma cultura contestadora (desde as
teses de grupos como Socialismo e Barbárie e Internacional Situacionista,
passando pelas obras de sociólogos e filósofos como Henri Lefebvre, André Gorz,
Sartre e outros, bem como pelo pensamento crítico de outros países, tal como a
Escola de Frankfurt), na qual a crítica da vida cotidiana, do consumismo, da
chamada “indústria cultural”, se fazia presente. A juventude e seu
descontentamento, os trabalhadores e suas demandas, entre outros setores,
também apontavam para uma insatisfação crescente na sociedade francesa. A
reforma universitária, que apontava para precarização e predominância do
tecnicismo, era uma resposta do Estado para as dificuldades da acumulação
capitalista. A rebelião estudantil acabou se desenvolvendo e gerando a proposta
autogestionária e de transformação radical da sociedade, e os trabalhadores se
organizam em movimento grevista (cerca de 10 milhões de operários entraram em
greve) e criaram conselhos operários.
Esse
processo se reproduziu, com menos radicalidade, em diversos outros países, tal
como Alemanha e Itália. Esse momento de ascensão das lutas operárias e
estudantis, reforçadas por outros setores da sociedade, apontou para o
esgotamento do regime de acumulação conjugado. Apesar da derrota das lutas
operárias e estudantis, elas continuaram fortes por mais algum tempo (França,
Itália, etc.) e sua derrota posterior gerou as guerrilhas urbanas na
Itália e Alemanha, sinal do descolamento entre os militantes e movimento
operário. A Revolução Portuguesa de 1974 e a Revolução Polonesa de 1980 foram
as últimas expressões dessa resistência. Os anos 1970 foram anos nos quais se
tentou preservar o regime de acumulação conjugado, mas aumentando a repressão,
a inflação, a dívida externa, etc., como formas de recuperação pecuniária
(“econômica”) e política.
Logo
foi gestado um novo regime de acumulação que, por sua vez, trouxe uma nova
forma estatal. O regime de acumulação integral traz o Estado neoliberal como um
dos seus componentes, o que significa a superação do Estado integracionista.
Sem dúvida, alguns países tentam manter certos elementos do Estado
integracionista e outros até mesmo de forma mais ampla, mas esse se enfraquece paulatinamente
em todos os países. O chamado “capitalismo nórdico” seria uma exceção? As suas
condições particulares (desde riquezas naturais a paraísos fiscais, como no
caso da Suiça) permitem manter certos aspectos do Estado integracionista, mas
estes se desfazem e as políticas neoliberais avançam paulatinamente.
Essas
afirmações são polêmicas e destoam do que a bibliografia geral e quase total
afirma sobre o Estado integracionista. As bases metodológicas e teóricas são
distintas e, por conseguinte, as conclusões também. Mas não é o caso de expor
uma concepção alternativa às concepções hegemônicas, vigentes e mais
conhecidas, e sim fazer o questionamento dos limites de várias abordagens sobre
o Welfare State.
A
explicação da gênese histórica do Estado integracionista também revela sua
essência, sua natureza, e por isso permite perceber onde ele se materializou
concretamente e onde não. Sem essa análise histórica e totalizante, é possível
enxergar Estado integracionista, ou Welfare State, nos mais variados lugares e
épocas. Isso é possível ao se tomar a parte pelo todo, ou, como já dizia Hegel,
ver a árvore e perder de vista a floresta.
Para
encerrar, uma última e breve reflexão que vai além dos objetivos e intenções da
presente obra, mas que torna necessária uma discussão, que é a posição política
diante do Estado integracionista. Essa forma estatal foi dominante nos países
imperialistas desde que se formou, a partir de 1945 e começou a ser substituído
pelo neoliberalismo a partir de 1980 com os governos de Margareth Thatcher
(Inglaterra), Ronald Reagan (EUA), Helmutt Kohl (Alemanha). No seu período de
existência e dominância, predominavam as concepções apologéticas a seu respeito
e, com sua crise e substituição, passou a serem hegemônicas as tendências
críticas, neoliberais, sob várias formas. Ele foi uma concessão da burguesia em
determinado contexto histórico e deixou de ser necessário para esta,
tornando-se, aliás, um obstáculo para a continuidade da acumulação capitalista
e por isso foi substituído.
A
defesa da volta do Estado integracionista é uma ilusão, pois as novas
necessidades da classe capitalista e a dinâmica da acumulação não permitem
isso. Mas, mesmo se permitisse, não significa nenhum paraíso na terra. O Estado
integracionista cumpria a função de reprodução da acumulação capitalista com
certas concessões e para isso reforçou o processo de burocratização da sociedade
e criou inúmeros mecanismos para impedir uma transformação social radical e
total. A sua existência, por sua vez, só era possível graças à superexploração
dos trabalhadores do capitalismo subordinado. Enquanto fazia concessões aos
trabalhadores em certos países, executava uma impiedosa exploração extensiva e
intensiva em relação aos trabalhadores da maioria dos países. Logo, mesmo que o
Estado neoliberal seja pior, essa é a necessidade e tendência do capitalismo,
não há volta atrás e não há como voltar. Isso mais ainda no capitalismo
subordinado brasileiro. Por tudo isso, a posição diante do Estado
integracionista deve ser de crítica e recusa, tal como também em relação ao
Estado neoliberal. É necessário ir além da reprodução do existente para chegar
ao novo, ou ao ainda-não-existente,
para utilizar terminologia de Ernst Bloch. Olhar para frente, para o futuro,
significa superar as oposições e alternativas espaciais, que não saem do lugar,
como “direita” e “esquerda”, categorias espaciais transplantadas para a
política e que não ultrapassa seu caráter espacial, ou seja, de lugar e não de
história e de futuro. O futuro pertence ao futurismo.
Voltando
ao presente livro, ele tem o mérito de oferecer ao leitor e pesquisador, um
amplo quadro de referências e análises das discussões sobre o Welfare State.
Cabe ao leitor e pesquisador saber aproveitar o material aqui apresentado. Isso
vai inclusive além das referências e discussões, pois permite ter uma percepção
panorâmica de determinados temas, observar as posições mais reconhecidas sobre
o tema geral e diversos temas derivados, entre outros aspectos. Enfim, é uma
obra útil e necessária. Se existissem obras como estas sobre os diversos temas
existentes não existiriam aqueles que se perdem na imensidão de fontes
existentes ou outros que ficam desesperados diante da escassez e dificuldade de
encontrá-las.
[1] Welfare State é uma
denominação em inglês da formação estatal que emerge após a Segunda Guerra
Mundial, principalmente na Europa, o chamado “Estado de Bem Estar Social”. Esta
formação estatal também foi denominada como “Estado keynesiano”, “Estado
integracionista”, “Estado-providência”, entre outros termos.
[2] Claro é que existem
aqueles que fogem desse processo por possuírem determinada singularidade
psíquica que só pode ser explicada pela análise do seu processo histórico de
vida. Nesse caso a diferença pode ser de qualidade e não de quantidade. É o
mesmo problema em relação aos valores. Toda obra materializa valores, em maior
ou menor grau, mais explícito ou menos explícito, e por isso o único
questionamento válido seria a determinados valores, o que revelaria, por seu
lado, os valores do crítico.
[3] O regime de acumulação
conjugado emerge num momento histórico preciso e com características precisas.
A partir deste regime de acumulação, a exploração internacional ganha nova
forma, pois ela ocorria principalmente via relações de distribuição e política
institucional e, a partir desse momento, com a expansão do capital oligopolista
transnacional, passa a atingir o processo de produção e gerar uma nova forma de
transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países
capitalistas imperialistas. Esse processo foi um dos pilares para a
possibilidade de expansão de políticas de assistência social e do
intervencionismo estatal. O regime de acumulação conjugado é caracterizado pelo
predomínio da busca de extração de mais-valor absoluto no capitalismo
subordinado e mais-valor relativo no capitalismo imperialista, de forma parte
do mais-valor do primeiro é transferido para o segundo. Essa extração de
mais-valor absoluto permite uma drenagem enorme de mais-valor, que, via capital
oligopolista transnacional, transfere grande parte dele para os países
imperialistas.
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