MOVIMENTOS
SOCIAIS E PARTIDOS POLÍTICOS
Os movimentos sociais não podem ser compreendidos fora da
totalidade da sociedade capitalista. A sua compreensão pressupõe compreender o
seu processo de formação e suas relações e determinações. Os movimentos sociais
possuem múltiplas relações na sociedade civil e uma das mais importantes, no
sentido de lhe fornecer explicação, é a sua relação com os partidos políticos. Este
é um tema pouco analisado numa perspectiva teórica. O nosso objetivo é abordar
a relação entre partidos políticos e movimentos sociais e analisar um dos seus
elementos fundamentais, que é o aparelhamento. A dinâmica do aparelhamento é
algo a ser tematizado e que traz vários elementos para a compreensão da
história dos movimentos sociais.
Partidos Políticos, Interesses e Movimentos
Sociais
A análise da relação de dois fenômenos sociais pressupõe uma
compreensão de ambos em sua especificidade. Nesse sentido, discutir a relação
entre partidos políticos e movimentos sociais pressupõe uma compreensão do
significado desses fenômenos sociais. Os partidos políticos surgem no século 19
e os movimentos sociais começam a se esboçar no final desse século. Ambos são
fenômenos que nascem com a sociedade moderna.
Os partidos políticos receberam inúmeras abordagens e
pesquisas. Diversos autores, no âmbito das ciências humanas, tal como a
sociologia, ciência política, história, entre outras, abordaram os partidos ou
determinadas organizações partidárias (MICHELS, 1981; DUVERGER, 1982; VIANA,
2014; CERRONI, 1982; WEBER, 1993)[1]. O surgimento dos partidos
políticos ocorreu na sociedade civil burguesa incipiente do século 19, tendo
duas fontes básicas: os clubes formados principalmente por indivíduos da classe
burguesa e as associações operárias. A origem dos partidos conservadores
(conservantistas, republicanos, liberais, etc.) se encontra na primeira forma
organizativa acima citada e a dos partidos social-democratas se encontra na
segunda forma. A partir da organização da democracia representativa, que emerge
com a transição do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação
intensivo, ou seja, a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo
oligopolista, temos a emergência dos partidos políticos e sua
formalização/burocratização[2].
Os partidos políticos realizam, aparentemente, a função mediadora
entre sociedade civil e Estado, via representação política. Esse processo é,
por sua vez, organizado pelo aparato estatal via criação dos processos
legislativos, eleitorais, parlamentos, etc. Os partidos políticos são
constrangidos, tanto pelo aparato estatal quanto por seus próprios interesses,
a criarem uma máquina organizativa, burocrática. A formação dos partidos
políticos significa, simultaneamente, a burocratização das formas organizativas
anteriores, que é acompanhada também por sua mercantilização. É por isso que
tanto os partidos conservadores quanto os progressistas se tornam organizações
burocráticas, apesar das diferenças entre ambos.
O caráter burocrático dos partidos conservadores não traz
nenhuma estranheza, mas isso ocorre no caso dos partidos progressistas. No
fundo, a questão é que a força da burocracia é diferente em ambos os casos. Os
partidos conservadores são organizações burocráticas, mas trata-se de uma
burocracia moderada e inteiramente subordinada à burguesia. No caso dos partidos
progressistas, especialmente os que se denominam “social-democratas”,
“comunistas”, “socialistas”, “operários”, dos “trabalhadores”, trata-se de uma
burocracia relativamente autonomizada e que busca maior autonomização. A
burocratização é o objetivo fundamental dos partidos progressistas e é um
objetivo secundário nos partidos conservadores.
Isso remete ao problema da classe burocrática. A burocracia
é uma classe social (VIANA, 2018; VIANA, 2015a) e possui diversas frações e
divisões internas. A burocracia tem o controle como atividade fixa derivada de
sua posição na divisão social do trabalho (VIANA, 2018; VIANA, 2015a). Nós
podemos dividir a burocracia por suas frações: burocracia estatal, burocracia
empresarial, burocracia universitária, burocracia eclesiástica, burocracia
partidária, burocracia sindical, etc. E podemos realizar subdivisões: a
burocracia estatal é dividida em uma burocracia estatutária (que é permanente,
pois seu meio de acesso é concurso público) e uma burocracia governamental (cujo
meio de acesso é via eleições ou nomeação). Essa divisão, no entanto, não
esgota a complexidade, pois existem outras divisões. Dentre elas destacaríamos
apenas dois exemplos: a divisão entre os estratos de renda e a que ocorre na
posição de poder dentro de determinada organização burocrática. Por estratos de
renda, que é meramente quantitativa e delimitada apenas no âmbito salarial,
temos a alta burocracia, a média burocracia e a baixa burocracia. No plano da
posição de poder no interior de uma organização burocrática, podemos observar a
existência de uma burocracia superior e inferior (que podem ter divisões e
subdivisões, por sua vez).
Aqui nos interessa uma fração específica da burocracia, a
partidária. Os partidos políticos são organizações burocráticas criadas no
capitalismo e cuja função é controlar a participação individual no processo
eleitoral e democracia representativa e, uma vez existindo, passa a gerar uma
nova fração da classe burocrática, cujo interesse fundamental é sua reprodução
ampliada e a conquista do poder estatal. Assim, a burocracia partidária efetiva
um processo de controle dentro dos partidos políticos. No caso dos partidos
conservadores (direita), o que predomina é geralmente a alta burocracia, mais
estruturalmente subordinada à burguesia, tanto no interior do partido quanto no
conjunto da sociedade. Nos partidos progressistas (esquerda), há o predomínio
da média ou baixa burocracia (a baixa burocracia é mais forte nos progressistas
extremistas, como no caso dos partidos bolchevistas e a média burocracia tende
a ser mais forte nos progressistas moderados, como ocorre nos partidos
social-democratas). A burocracia partidária é mais forte e com maior capacidade
dirigente nos partidos progressistas, pois a ausência relativa da burguesia e
sua maior autonomia possibilitam isso.
Quais são os interesses dos partidos políticos? Os
interesses dos partidos é o daqueles que o fazem existir, especialmente
daqueles que tomam as decisões no seu interior: a burocracia. E o interesse da
burocracia é burocratizar, ou seja, intensificar o controle (interno e externo)
e aumentar quantitativamente a burocracia (interna e externa). Aqui já temos um
elemento fundamental para entender a relação entre partidos e movimentos
sociais. Mas antes de entrar nisso, precisamos discutir os movimentos sociais.
Os movimentos sociais, por sua vez, são movimentos de grupos
sociais que geram mobilização a partir de determinada situação social que
produz insatisfação social, senso de pertencimento e objetivos (VIANA, 2016).
Sem dúvida, existem diversas outras definições de movimentos sociais, mas são,
geralmente, muito amplas e em muitos casos geram confusão com diversos outros
fenômenos sociais, como partidos, classes, manifestações, protestos, etc.
(COSTA, 2016; VIANA, 2016) ou são apenas a generalização de um caso de um
movimento social (às vezes uma organização de um movimento social) e que não se
sustenta na análise de outros casos. O movimento social é o conjunto das
organizações, concepções, tendências, etc., que forma o todo que é o movimento.
Assim, quando tratamos de movimento estudantil, estamos englobando todas as
organizações estudantis (no caso brasileiro, União Nacional dos Estudantes,
Uniões estaduais, diretórios centrais de estudantes, centros acadêmicos, associações
de moradores de casa de estudantes, grêmios e diversos outros), concepções
(ideologias, representações cotidianas, doutrinas, etc., que existem no
interior das organizações ou nos meios estudantis), tendências (conservadores,
progressistas, revolucionários).
Os movimentos sociais nascem a partir de outra lógica, distinta,
da dos partidos políticos, mas com o processo crescente de mercantilização e
burocratização, acaba se envolvendo na dinâmica da reprodução do capitalismo e
se submetem à hegemonia burguesa. Os movimentos sociais geram, como uma de suas
principais ramificações, as organizações mobilizadoras, que são tendencialmente
mais atingidas pela mercantilização e burocratização. Essas organizações
mobilizadoras são as que se aproximam mais dos partidos políticos, seja por
iniciativa destes, seja por iniciativa das próprias organizações.
Nesse contexto, a relação entre partidos políticos e
movimentos sociais é marcada, fundamentalmente, pelo aparelhamento. Porém,
existem outras formas de relação entre ambos. Vamos abordar, rapidamente, estas
outras formas para depois tratarmos do aparelhamento. Os partidos políticos,
uma vez existindo, atuam sobre a sociedade civil sob várias formas: propaganda
partidária (quando o partido é mais fortemente programático, também realiza
propaganda ideológica, ou seja, da ideologia defendida por ele), busca de
votos, busca de apoio ou trabalho em conjunto (por exemplo, apoio para
manifestações e petições públicas), etc. Além disso, os diversos partidos
políticos possuem integrantes que atuam individualmente na sociedade civil,
alguns participando de movimentos sociais, manifestações, etc. Nesses casos,
temos a atuação dos indivíduos através do proselitismo, mais ou menos intenso,
de acordo com as características individuais de cada pessoa[3].
Os movimentos sociais, por sua vez, especialmente as
organizações mobilizadoras, efetivam uma ação de pressão sobre os partidos
políticos, para que defendam suas reivindicações ou objetivos. Esse processo
ocorre através de diversas iniciativas. Uma delas é quando ativistas de
movimentos sociais buscam trazer as questões de seu movimento social (a partir
de uma determinação posição no interior do movimento social, pois, como vimos,
eles são bem variados internamente, especialmente os progressistas) para o
partido, pois este tem um peso na sociedade civil (por menor que seja,
dependendo de qual é) e pode, se for mais forte, ter influência na produção de
leis e outros processos que pode beneficiar determinadas ramificações do
movimento[4]. Assim, temos também um
proselitismo dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos e a
pressão exercida sobre eles, sob várias formas (propaganda, proselitismo,
constrangimento, etc.). Existem casos nos quais algumas ramificações dos
movimentos sociais se relacionam de forma diferente com os partidos, algumas
adotando o apartidarismo e outras o antipartidarismo. O apartidarismo ocorre em
ramificações dos movimentos sociais que não se posicionam e/ou não apoiam
partidos ou simplesmente não aceitam posições partidárias no seu interior. A
antipartidarismo expressa a posição de algumas ramificações que combatem os
partidos políticos em geral, sendo geralmente as tendências revolucionárias no
seu interior.
A Dinâmica do Aparelhamento Partidário dos
Movimentos Sociais
A forma principal de relacionamento entre partido e
movimentos sociais é através do aparelhamento. Os partidos políticos
progressistas (mais conhecidos como de “esquerda”) buscam transformar
determinadas ramificações (organizações, setores, etc.) dos movimentos sociais
em seus aparelhos. Um aparelho significa, no sentido comum do termo, um instrumento
ou conjunto de peças organizadas para um determinado fim. Um aparelho
partidário, por sua vez, significa um instrumento para reproduzir os objetivos
do partido. Nesse sentido, os aparelhos dos partidos são órgãos auxiliares, em
sua luta pelo poder político, seja pela via eleitoral ou insurrecional. Os
setores dos movimentos sociais aparelhados se tornam “correias de transmissão”[5] dos partidos e acabam se
submetendo ao papel de apoio eleitoral ou burocrático dos mesmos. Esse processo
possui uma dinâmica marcada por um conjunto de procedimentos e mecanismos que
apontam para entender a prática partidária em relação aos movimentos sociais que,
uma vez concretizada, expressa o aparelhamento de ramificações dos movimentos
sociais pelos partidos políticos[6].
Para entender melhor o processo de aparelhamento é preciso
entender o que é aparelhado, as formas do aparelhamento, os seus mecanismos, a
razão disso ocorrer e suas consequências. Um movimento social não pode ser
aparelhado por um partido político em seu conjunto. O que pode ser aparelhado
são ramificações do mesmo. Assim, o movimento de luta por moradia pode ter uma
ou outra ramificação aparelhada por um ou outro partido, mas não o movimento
inteiro, bem como o feminino, negro, estudantil ou qualquer outro movimento. As
formas do aparelhamento são variadas. O aparelhamento pode ser parcial ou
total, temporário ou permanente, entre outras possibilidades. O aparelhamento
parcial é quando uma determinada ramificação (ou, mais especificamente, uma
organização mobilizadora) é aparelhada pela força que o partido possui
internamente, mas havendo forças dissidentes no seu interior. Se as lideranças
são do partido político (ou simpatizantes influenciados diretamente por seus
membros ou, ainda, aderentes não formais), mas existem dissidentes ou
indiferentes ao partido no seu interior, então é um aparelhamento parcial. Esse
é o caso do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, aparelhado pelo PT –
Partido dos Trabalhadores (IGLESIAS, 2015). O
aparelhamento total é quando a direção da organização mobilizadora é aparelhada
pelo partido, sendo que apenas integrantes do partido, simpatizantes, aderentes
não formais e pessoas influenciáveis sem maior autonomia, são da direção da
ramificação. Esse é o caso da UNE em alguns momentos históricos, que foi
aparelhada pelo PCdoB – Partido Comunista do Brasil (TELES, 2018).
O aparelhamento temporário é aquele que ocorre quando é
parcial, pois a correlação de forças internas pode determinar a sua passagem
para aparelhamento de outro partido ou a cessação do aparelhamento. Esse é o
caso dos DCEs – Diretórios Centrais dos Estudantes – de certas universidades,
na qual concorrem várias chapas – cada uma representando um partido e algumas
chamadas “independentes” ou anarquistas, autogestionárias, autonomistas, etc. –
e se a chapa de um partido ganha, durante o mandato (temporariamente, portanto)
se torna aparelho do partido, mas na eleição seguinte pode perder e ceder o
aparelho a outro partido ou a nenhum (caso vença uma chapa apartidária ou
antipartidária). O aparelhamento permanente ocorre quando a ramificação inteira
é do partido político, ou seja, foi criada por ele e para ele. Esse é o caso do
Núcleo Negro Socialista, criado por tendências internas do PT[7].
Mais importante é compreender os mecanismos de
aparelhamento. Os principais mecanismos de aparelhamento são: forjar lideranças
(do partido) no interior das ramificações a serem aparelhadas, conquistar
simpatizantes e aderentes informais, criar organizações mobilizadoras
vinculadas a um movimento social, ganhar eleições e compor a direção de uma
organização mobilizadora, e, por último, a infiltração.
Para forjar lideranças do partido no interior de
determinadas ramificações é preciso usar velhos ativistas e tentar criar novos
em determinado movimento social. No caso do movimento estudantil, por exemplo,
os filiados do partido são incentivados a participar das organizações estudantis
e tomar conta delas, mas nem todos tem a experiência e dedicação necessárias.
Somente alguns conseguem efetivar isso. É nesse sentido que se torna necessário
que os mais antigos busquem assumir a liderança e que busquem aumentar o número
de filiados para que se tornem novas lideranças, bem como simpatizantes e
aderentes informais. É nesse contexto que surge o que alguns denominam
“estudantes profissionais”, ou seja, líderes experientes que não terminam seus
cursos para continuar liderando. O PCdoB, por exemplo, desenvolveu essa prática
em várias oportunidades, inclusive através de transferências de estudantes
líderes antigos de uma universidade para outra, visando reforçar determinada
disputa em lugares mais difíceis. Essas lideranças, uma vez que garantam a
direção da organização, concretizam o seu aparelhamento. A conquista de
simpatizantes e aderentes informais é um mecanismo geralmente auxiliar ao de
forjar lideranças. Isso é realizado através de conversas para recrutamento para
o partido, convite para compor chapas eleitorais, oferecimento de cargos, etc.
Eles se tornam, assim, um reforço para as lideranças existentes e para o
aparelhamento.
Outro mecanismo de aparelhamento é ganhar eleições e/ou
compor a direção de uma organização mobilizadora. No caso do movimento
estudantil, é bastante comum a ideia de ganhar eleições (em todos os níveis,
desde o grêmio estudantil de uma escola secundarista, passando por UEEs, CAs,
DCEs, até chegar à UNE) em organizações mobilizadoras e assim garantir sua direção.
No entanto, em alguns casos, não há exatamente um processo eleitoral, e sim
processo de indicação ou acordo entre forças políticas, o que pode ser
conquistado também pelo partido, dependendo da conjuntura.
A infiltração é outro modo de realizar o aparelhamento, mas
num caso em que a organização mobilizadora já é aparelhada por outro partido ou
é autônoma. Nesse caso, a estratégia é infiltrar ativistas para disputar o
poder internamente. Se houver eleições, é possível lançar uma chapa
oposicionista visando ganhar e realizar o aparelhamento.
A razão do aparelhamento é o interesse do partido político.
Os partidos políticos, como organização burocrática, especialmente os
progressistas, possuem a função de burocratizar, o que significa aumentar a
quantidade de cargos e organizações burocráticas derivadas e aumentar o
controle (interno e externo). No caso da burocracia partidária, isso ocorre ao
lado do seu objetivo de conquista do aparato estatal e, para tanto, precisa se
fortalecer na sociedade civil, conquistando apoios, eleitores, etc., e uma das
formas de se conseguir isso é aparelhando ramificações dos movimentos sociais.
As consequências do aparelhamento de ramificações de
movimentos sociais variam com o grau de domínio partidário no seu interior. O
aparelhamento incide sobre as lideranças e o domínio sobre o conjunto da
ramificação ou organização. Nos casos de um aparelhamento parcial ou total,
isso significa a perda de autonomia desta ramificação. Esse é um domínio
parcial. Essa perda de autonomia pode ser vista nos casos anteriormente
citados, do MST e UNE. Nos casos de domínio total, o que ocorre é o abandono do
caráter de ramificação de um movimento social, tornando-se organização
burocrática a serviço do partido. No seu discurso pode até ainda afirmar que é
uma ramificação de um movimento social, mas isso é uma farsa. Esse é o caso da
Ação da Mulher Trabalhista, que é, no fundo, uma organização do PDT – Partido
Democrático Trabalhista, que não tem nenhuma autonomia, sendo uma seção do
partido e não uma ramificação aparelhada do movimento feminino.
No caso de domínio parcial, o partido que aparelha a
ramificação também garante a hegemonia de suas concepções (doutrinas,
ideologias, correntes de opinião, etc.) não só na organização que se apossa,
mas também através dela realiza sua difusão para outras ramificações. Ao lado
da ação do partido no conjunto da sociedade civil e propaganda política e
eleitoral via meios de comunicação, consegue, através das ramificações de
alguns movimentos sociais, aumentar sua influência, inclusive pelo fato de
parecer algo que brota dos próprios grupos sociais de base dos movimentos.
Uma outra consequência é a corrupção de indivíduos, bem como
o uso de ramificações de movimentos sociais (e falando em nome do movimento
social) como trampolim político por parte de indivíduos oportunistas. E basta
ver o horário eleitoral gratuito e ouvir o discurso de candidatos que falam de
grupo sociais ou movimento social do qual nunca tiveram proximidade com suas
lutas, para perceber isso. Isso gera também um processo de formação de
lideranças oportunistas e aprendizes de burocratas. O exemplo clássico aqui é
novamente o movimento estudantil, que gera lideranças que posteriormente se
tornam candidatos e burocratas partidários, sendo quase que o início da
carreira de político profissional[8].
O aparelhamento se torna ainda pior quando o partido que o
faz chega ao governo, pois assim o une com a cooptação estatal. A cooptação dos
movimentos sociais é um tema bastante abordado (VIANA, 2016; DRUCK, 2006;
IGLESIAS, 2015; OFFE, 1996; ALBERONI, 1991; VIANA, 2017), mas o aparelhamento
já é pouco discutido. A diferença entre cooptação e aparelhamento é que, no
primeiro caso, se troca benefícios por apoio (VIANA, 2017) e, no segundo, uma
organização toma posse de outra. Dessa diferença fundamental, derivam outras. A
cooptação é um aliciamento em troca de benefícios (diretamente para os
indivíduos ou organizações), que pode ser de indivíduos (isolados, dentro de
organizações ou, em casos raros, do conjunto da organização mobilizadora), e a
segunda é o domínio de uma organização, que se torna um aparelho do partido. A
cooptação pode ser individual, o aparelhamento é sempre organizacional. A
cooptação é sempre em troca de benefícios, o aparelhamento pode ser também por
convencimento doutrinário ou ideológico. A cooptação pode ser indireta, o
aparelhamento é sempre direto. A cooptação busca apoio e o aparelhamento gera
correias de transmissão.
Quando um partido político que efetiva aparelhamento chega
ao governo federal (ou mesmo antes, em outras instâncias, mas em menor grau),
ele torna as ramificações aparelhadas em aparelhos sublocados, ou seja, sua
posse passa a ser da burocracia governamental e da burocracia partidária, que
se torna um intermediário. Esse foi o caso do MST – Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra e diversas outras organizações (de movimentos sociais ou não,
incluindo sindicatos e centrais sindicais) durante os governos petistas no
Brasil de 2003 em diante (IGLESIAS, 2015).
A principal consequência do aparelhamento é a influência que
isso acaba tendo no movimento social como um todo. Um grande número de
organizações mobilizadoras aparelhadas, ou uma organização de grande
importância (como o caso da UNE) num movimento social, pode gerar não apenas o
apoio eleitoral ou político geral das organizações aparelhadas, mas também sua
hegemonia no interior do movimento social. As ramificações aparelhadas acabam
influenciando as não aparelhadas e o movimento social como um todo. E isso
significa transformar o objetivo do movimento social em objetivos eleitorais e
partidários (ou, em alguns casos, governamentais).
Considerações finais
O breve texto que aqui apresentamos tratou da relação entre
movimentos sociais e partidos políticos, com foco no aparelhamento, que é o
elemento principal e mais constante nessa relação. Sem dúvida, existem outras
possibilidades, tal como determinada organização mobilizadora (ou conjunto de
organizações) se transformar em partido político. Esse foi o caso dos partidos
verdes originados em ramificações do movimento ecológico. Essa relação também é
variável dependendo da conjuntura, força dos partidos progressistas, etc. Em
épocas de ditadura, quando os partidos estão proibidos ou apenas existem os
oficiais, o aparelhamento é praticamente inexistente e a autonomia dos
movimentos sociais muito maior (TELLES, 1987).
O aparelhamento partidário dos movimentos sociais é pouco
estudado e a razão disso se encontra nos vínculos de setores da
intelectualidade com os partidos políticos progressistas, o que torna inviável
dizer a verdade nesse assunto. De qualquer forma, é um tema fundamental na
discussão sobre os movimentos sociais e precisa de aprofundamentos e análises
de casos concretos.
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Funcionalismo e da Natureza dos Partidos. Petrópolis: Vozes, 1993.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Goiás (UFG); Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e
Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (USP).
[1] Além dos pesquisadores,
ativistas e integrantes de partidos também fizeram reflexões sobre tais
organizações, mas, no entanto, sob uma perspectiva normativa sobre qual é a
forma ideal de partido (LÊNIN, 1975; LÊNIN, 1978; GRAMSCI, 1988; STÁLIN, 1982).
[2] Sobre regimes de acumulação
cf. Viana (2009), Orio (2014), Viana (2015), Braga (2018).
[3] No sentido comum do termo,
o proselitismo é o empenho em tentar converter outros indivíduos para uma causa,
doutrina, ideologia, partido ou religião. O proselitismo vai assumir forma
distinta dependendo de qual causa, doutrina, partido, etc. se tentar conquistar
adesão, beirando ao fanatismo ou usando uma forma agressiva ou insistente em
certos casos.
[4] Esse beneficiamento pode
ser para a organização ou para o objetivo do movimento ou organização, e,
portanto, pode ser algo que realmente atinja o movimento social ou apenas
interesses outros gerados a partir dele.
[5] Stálin (1982) já colocava
esse processo ao colocar que as organizações da sociedade civil deveriam ser
correias de transmissão do partido comunista.
[6] A análise aqui se
fundamenta na observação relacional, o que é bem distinto do empiricismo. A
observação relacional (VIANA, 2015) pode ser uma técnica de pesquisa auxiliar
ou uma técnica principal. Aqui é a técnica principal. A observação relacional
pode ser espontânea ou planejada. A espontânea é o conjunto de observações de
um determinado pesquisador durante sua história de vida ou momentos específicos
e a planejada é realizada com a intenção de unir material informativo sobre
determinado fenômeno e com o uso do caderno de anotações e outros procedimentos
complementares. Ambas são realizadas através da percepção do fenômeno
pesquisado e sua relação com outros processos sociais e inserindo os acontecimentos
na totalidade da sociedade. Aqui utilizamos a observação relacional espontânea,
pois a maioria dos fenômenos aqui identificados foram observados pessoalmente
ou via meios de comunicação ou documentos. A observação relacional foi
reforçada por leituras e obras que tratam do assunto.
[7] No início, eram grupos
trotskistas que depois formaram a Convergência Socialista que ficou como
tendência dentro do PT por alguns anos, até ser expulsa e formar, junto com
outras organizações, o PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores – Unificado
(SANTOS, 2005). O Núcleo Negro Socialista, por sua vez, desembocou, com o
desenvolvimento histórico, no MNU – Movimento Negro Unificado, já aparelhado
por outro partido, mas a primeira organização era um aparelho permanente da
Convergência Socialista.
[8] O político profissional é
aquele que vive da política, para utilizar definição do sociólogo Max Weber
(1971).
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