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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

MOVIMENTOS SOCIAIS E PARTIDOS POLÍTICOS



MOVIMENTOS SOCIAIS E PARTIDOS POLÍTICOS

Nildo Viana*




Os movimentos sociais não podem ser compreendidos fora da totalidade da sociedade capitalista. A sua compreensão pressupõe compreender o seu processo de formação e suas relações e determinações. Os movimentos sociais possuem múltiplas relações na sociedade civil e uma das mais importantes, no sentido de lhe fornecer explicação, é a sua relação com os partidos políticos. Este é um tema pouco analisado numa perspectiva teórica. O nosso objetivo é abordar a relação entre partidos políticos e movimentos sociais e analisar um dos seus elementos fundamentais, que é o aparelhamento. A dinâmica do aparelhamento é algo a ser tematizado e que traz vários elementos para a compreensão da história dos movimentos sociais.
Partidos Políticos, Interesses e Movimentos Sociais
A análise da relação de dois fenômenos sociais pressupõe uma compreensão de ambos em sua especificidade. Nesse sentido, discutir a relação entre partidos políticos e movimentos sociais pressupõe uma compreensão do significado desses fenômenos sociais. Os partidos políticos surgem no século 19 e os movimentos sociais começam a se esboçar no final desse século. Ambos são fenômenos que nascem com a sociedade moderna.
Os partidos políticos receberam inúmeras abordagens e pesquisas. Diversos autores, no âmbito das ciências humanas, tal como a sociologia, ciência política, história, entre outras, abordaram os partidos ou determinadas organizações partidárias (MICHELS, 1981; DUVERGER, 1982; VIANA, 2014; CERRONI, 1982; WEBER, 1993)[1]. O surgimento dos partidos políticos ocorreu na sociedade civil burguesa incipiente do século 19, tendo duas fontes básicas: os clubes formados principalmente por indivíduos da classe burguesa e as associações operárias. A origem dos partidos conservadores (conservantistas, republicanos, liberais, etc.) se encontra na primeira forma organizativa acima citada e a dos partidos social-democratas se encontra na segunda forma. A partir da organização da democracia representativa, que emerge com a transição do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo, ou seja, a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo oligopolista, temos a emergência dos partidos políticos e sua formalização/burocratização[2].
Os partidos políticos realizam, aparentemente, a função mediadora entre sociedade civil e Estado, via representação política. Esse processo é, por sua vez, organizado pelo aparato estatal via criação dos processos legislativos, eleitorais, parlamentos, etc. Os partidos políticos são constrangidos, tanto pelo aparato estatal quanto por seus próprios interesses, a criarem uma máquina organizativa, burocrática. A formação dos partidos políticos significa, simultaneamente, a burocratização das formas organizativas anteriores, que é acompanhada também por sua mercantilização. É por isso que tanto os partidos conservadores quanto os progressistas se tornam organizações burocráticas, apesar das diferenças entre ambos.
O caráter burocrático dos partidos conservadores não traz nenhuma estranheza, mas isso ocorre no caso dos partidos progressistas. No fundo, a questão é que a força da burocracia é diferente em ambos os casos. Os partidos conservadores são organizações burocráticas, mas trata-se de uma burocracia moderada e inteiramente subordinada à burguesia. No caso dos partidos progressistas, especialmente os que se denominam “social-democratas”, “comunistas”, “socialistas”, “operários”, dos “trabalhadores”, trata-se de uma burocracia relativamente autonomizada e que busca maior autonomização. A burocratização é o objetivo fundamental dos partidos progressistas e é um objetivo secundário nos partidos conservadores.
Isso remete ao problema da classe burocrática. A burocracia é uma classe social (VIANA, 2018; VIANA, 2015a) e possui diversas frações e divisões internas. A burocracia tem o controle como atividade fixa derivada de sua posição na divisão social do trabalho (VIANA, 2018; VIANA, 2015a). Nós podemos dividir a burocracia por suas frações: burocracia estatal, burocracia empresarial, burocracia universitária, burocracia eclesiástica, burocracia partidária, burocracia sindical, etc. E podemos realizar subdivisões: a burocracia estatal é dividida em uma burocracia estatutária (que é permanente, pois seu meio de acesso é concurso público) e uma burocracia governamental (cujo meio de acesso é via eleições ou nomeação). Essa divisão, no entanto, não esgota a complexidade, pois existem outras divisões. Dentre elas destacaríamos apenas dois exemplos: a divisão entre os estratos de renda e a que ocorre na posição de poder dentro de determinada organização burocrática. Por estratos de renda, que é meramente quantitativa e delimitada apenas no âmbito salarial, temos a alta burocracia, a média burocracia e a baixa burocracia. No plano da posição de poder no interior de uma organização burocrática, podemos observar a existência de uma burocracia superior e inferior (que podem ter divisões e subdivisões, por sua vez).
Aqui nos interessa uma fração específica da burocracia, a partidária. Os partidos políticos são organizações burocráticas criadas no capitalismo e cuja função é controlar a participação individual no processo eleitoral e democracia representativa e, uma vez existindo, passa a gerar uma nova fração da classe burocrática, cujo interesse fundamental é sua reprodução ampliada e a conquista do poder estatal. Assim, a burocracia partidária efetiva um processo de controle dentro dos partidos políticos. No caso dos partidos conservadores (direita), o que predomina é geralmente a alta burocracia, mais estruturalmente subordinada à burguesia, tanto no interior do partido quanto no conjunto da sociedade. Nos partidos progressistas (esquerda), há o predomínio da média ou baixa burocracia (a baixa burocracia é mais forte nos progressistas extremistas, como no caso dos partidos bolchevistas e a média burocracia tende a ser mais forte nos progressistas moderados, como ocorre nos partidos social-democratas). A burocracia partidária é mais forte e com maior capacidade dirigente nos partidos progressistas, pois a ausência relativa da burguesia e sua maior autonomia possibilitam isso.
Quais são os interesses dos partidos políticos? Os interesses dos partidos é o daqueles que o fazem existir, especialmente daqueles que tomam as decisões no seu interior: a burocracia. E o interesse da burocracia é burocratizar, ou seja, intensificar o controle (interno e externo) e aumentar quantitativamente a burocracia (interna e externa). Aqui já temos um elemento fundamental para entender a relação entre partidos e movimentos sociais. Mas antes de entrar nisso, precisamos discutir os movimentos sociais.
Os movimentos sociais, por sua vez, são movimentos de grupos sociais que geram mobilização a partir de determinada situação social que produz insatisfação social, senso de pertencimento e objetivos (VIANA, 2016). Sem dúvida, existem diversas outras definições de movimentos sociais, mas são, geralmente, muito amplas e em muitos casos geram confusão com diversos outros fenômenos sociais, como partidos, classes, manifestações, protestos, etc. (COSTA, 2016; VIANA, 2016) ou são apenas a generalização de um caso de um movimento social (às vezes uma organização de um movimento social) e que não se sustenta na análise de outros casos. O movimento social é o conjunto das organizações, concepções, tendências, etc., que forma o todo que é o movimento. Assim, quando tratamos de movimento estudantil, estamos englobando todas as organizações estudantis (no caso brasileiro, União Nacional dos Estudantes, Uniões estaduais, diretórios centrais de estudantes, centros acadêmicos, associações de moradores de casa de estudantes, grêmios e diversos outros), concepções (ideologias, representações cotidianas, doutrinas, etc., que existem no interior das organizações ou nos meios estudantis), tendências (conservadores, progressistas, revolucionários).
Os movimentos sociais nascem a partir de outra lógica, distinta, da dos partidos políticos, mas com o processo crescente de mercantilização e burocratização, acaba se envolvendo na dinâmica da reprodução do capitalismo e se submetem à hegemonia burguesa. Os movimentos sociais geram, como uma de suas principais ramificações, as organizações mobilizadoras, que são tendencialmente mais atingidas pela mercantilização e burocratização. Essas organizações mobilizadoras são as que se aproximam mais dos partidos políticos, seja por iniciativa destes, seja por iniciativa das próprias organizações.
Nesse contexto, a relação entre partidos políticos e movimentos sociais é marcada, fundamentalmente, pelo aparelhamento. Porém, existem outras formas de relação entre ambos. Vamos abordar, rapidamente, estas outras formas para depois tratarmos do aparelhamento. Os partidos políticos, uma vez existindo, atuam sobre a sociedade civil sob várias formas: propaganda partidária (quando o partido é mais fortemente programático, também realiza propaganda ideológica, ou seja, da ideologia defendida por ele), busca de votos, busca de apoio ou trabalho em conjunto (por exemplo, apoio para manifestações e petições públicas), etc. Além disso, os diversos partidos políticos possuem integrantes que atuam individualmente na sociedade civil, alguns participando de movimentos sociais, manifestações, etc. Nesses casos, temos a atuação dos indivíduos através do proselitismo, mais ou menos intenso, de acordo com as características individuais de cada pessoa[3].
Os movimentos sociais, por sua vez, especialmente as organizações mobilizadoras, efetivam uma ação de pressão sobre os partidos políticos, para que defendam suas reivindicações ou objetivos. Esse processo ocorre através de diversas iniciativas. Uma delas é quando ativistas de movimentos sociais buscam trazer as questões de seu movimento social (a partir de uma determinação posição no interior do movimento social, pois, como vimos, eles são bem variados internamente, especialmente os progressistas) para o partido, pois este tem um peso na sociedade civil (por menor que seja, dependendo de qual é) e pode, se for mais forte, ter influência na produção de leis e outros processos que pode beneficiar determinadas ramificações do movimento[4]. Assim, temos também um proselitismo dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos e a pressão exercida sobre eles, sob várias formas (propaganda, proselitismo, constrangimento, etc.). Existem casos nos quais algumas ramificações dos movimentos sociais se relacionam de forma diferente com os partidos, algumas adotando o apartidarismo e outras o antipartidarismo. O apartidarismo ocorre em ramificações dos movimentos sociais que não se posicionam e/ou não apoiam partidos ou simplesmente não aceitam posições partidárias no seu interior. A antipartidarismo expressa a posição de algumas ramificações que combatem os partidos políticos em geral, sendo geralmente as tendências revolucionárias no seu interior.
A Dinâmica do Aparelhamento Partidário dos Movimentos Sociais
A forma principal de relacionamento entre partido e movimentos sociais é através do aparelhamento. Os partidos políticos progressistas (mais conhecidos como de “esquerda”) buscam transformar determinadas ramificações (organizações, setores, etc.) dos movimentos sociais em seus aparelhos. Um aparelho significa, no sentido comum do termo, um instrumento ou conjunto de peças organizadas para um determinado fim. Um aparelho partidário, por sua vez, significa um instrumento para reproduzir os objetivos do partido. Nesse sentido, os aparelhos dos partidos são órgãos auxiliares, em sua luta pelo poder político, seja pela via eleitoral ou insurrecional. Os setores dos movimentos sociais aparelhados se tornam “correias de transmissão”[5] dos partidos e acabam se submetendo ao papel de apoio eleitoral ou burocrático dos mesmos. Esse processo possui uma dinâmica marcada por um conjunto de procedimentos e mecanismos que apontam para entender a prática partidária em relação aos movimentos sociais que, uma vez concretizada, expressa o aparelhamento de ramificações dos movimentos sociais pelos partidos políticos[6].
Para entender melhor o processo de aparelhamento é preciso entender o que é aparelhado, as formas do aparelhamento, os seus mecanismos, a razão disso ocorrer e suas consequências. Um movimento social não pode ser aparelhado por um partido político em seu conjunto. O que pode ser aparelhado são ramificações do mesmo. Assim, o movimento de luta por moradia pode ter uma ou outra ramificação aparelhada por um ou outro partido, mas não o movimento inteiro, bem como o feminino, negro, estudantil ou qualquer outro movimento. As formas do aparelhamento são variadas. O aparelhamento pode ser parcial ou total, temporário ou permanente, entre outras possibilidades. O aparelhamento parcial é quando uma determinada ramificação (ou, mais especificamente, uma organização mobilizadora) é aparelhada pela força que o partido possui internamente, mas havendo forças dissidentes no seu interior. Se as lideranças são do partido político (ou simpatizantes influenciados diretamente por seus membros ou, ainda, aderentes não formais), mas existem dissidentes ou indiferentes ao partido no seu interior, então é um aparelhamento parcial. Esse é o caso do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, aparelhado pelo PT – Partido dos Trabalhadores (IGLESIAS, 2015). O aparelhamento total é quando a direção da organização mobilizadora é aparelhada pelo partido, sendo que apenas integrantes do partido, simpatizantes, aderentes não formais e pessoas influenciáveis sem maior autonomia, são da direção da ramificação. Esse é o caso da UNE em alguns momentos históricos, que foi aparelhada pelo PCdoB – Partido Comunista do Brasil (TELES, 2018).
O aparelhamento temporário é aquele que ocorre quando é parcial, pois a correlação de forças internas pode determinar a sua passagem para aparelhamento de outro partido ou a cessação do aparelhamento. Esse é o caso dos DCEs – Diretórios Centrais dos Estudantes – de certas universidades, na qual concorrem várias chapas – cada uma representando um partido e algumas chamadas “independentes” ou anarquistas, autogestionárias, autonomistas, etc. – e se a chapa de um partido ganha, durante o mandato (temporariamente, portanto) se torna aparelho do partido, mas na eleição seguinte pode perder e ceder o aparelho a outro partido ou a nenhum (caso vença uma chapa apartidária ou antipartidária). O aparelhamento permanente ocorre quando a ramificação inteira é do partido político, ou seja, foi criada por ele e para ele. Esse é o caso do Núcleo Negro Socialista, criado por tendências internas do PT[7].
Mais importante é compreender os mecanismos de aparelhamento. Os principais mecanismos de aparelhamento são: forjar lideranças (do partido) no interior das ramificações a serem aparelhadas, conquistar simpatizantes e aderentes informais, criar organizações mobilizadoras vinculadas a um movimento social, ganhar eleições e compor a direção de uma organização mobilizadora, e, por último, a infiltração.
Para forjar lideranças do partido no interior de determinadas ramificações é preciso usar velhos ativistas e tentar criar novos em determinado movimento social. No caso do movimento estudantil, por exemplo, os filiados do partido são incentivados a participar das organizações estudantis e tomar conta delas, mas nem todos tem a experiência e dedicação necessárias. Somente alguns conseguem efetivar isso. É nesse sentido que se torna necessário que os mais antigos busquem assumir a liderança e que busquem aumentar o número de filiados para que se tornem novas lideranças, bem como simpatizantes e aderentes informais. É nesse contexto que surge o que alguns denominam “estudantes profissionais”, ou seja, líderes experientes que não terminam seus cursos para continuar liderando. O PCdoB, por exemplo, desenvolveu essa prática em várias oportunidades, inclusive através de transferências de estudantes líderes antigos de uma universidade para outra, visando reforçar determinada disputa em lugares mais difíceis. Essas lideranças, uma vez que garantam a direção da organização, concretizam o seu aparelhamento. A conquista de simpatizantes e aderentes informais é um mecanismo geralmente auxiliar ao de forjar lideranças. Isso é realizado através de conversas para recrutamento para o partido, convite para compor chapas eleitorais, oferecimento de cargos, etc. Eles se tornam, assim, um reforço para as lideranças existentes e para o aparelhamento.
Outro mecanismo de aparelhamento é ganhar eleições e/ou compor a direção de uma organização mobilizadora. No caso do movimento estudantil, é bastante comum a ideia de ganhar eleições (em todos os níveis, desde o grêmio estudantil de uma escola secundarista, passando por UEEs, CAs, DCEs, até chegar à UNE) em organizações mobilizadoras e assim garantir sua direção. No entanto, em alguns casos, não há exatamente um processo eleitoral, e sim processo de indicação ou acordo entre forças políticas, o que pode ser conquistado também pelo partido, dependendo da conjuntura.
A infiltração é outro modo de realizar o aparelhamento, mas num caso em que a organização mobilizadora já é aparelhada por outro partido ou é autônoma. Nesse caso, a estratégia é infiltrar ativistas para disputar o poder internamente. Se houver eleições, é possível lançar uma chapa oposicionista visando ganhar e realizar o aparelhamento.
A razão do aparelhamento é o interesse do partido político. Os partidos políticos, como organização burocrática, especialmente os progressistas, possuem a função de burocratizar, o que significa aumentar a quantidade de cargos e organizações burocráticas derivadas e aumentar o controle (interno e externo). No caso da burocracia partidária, isso ocorre ao lado do seu objetivo de conquista do aparato estatal e, para tanto, precisa se fortalecer na sociedade civil, conquistando apoios, eleitores, etc., e uma das formas de se conseguir isso é aparelhando ramificações dos movimentos sociais.
As consequências do aparelhamento de ramificações de movimentos sociais variam com o grau de domínio partidário no seu interior. O aparelhamento incide sobre as lideranças e o domínio sobre o conjunto da ramificação ou organização. Nos casos de um aparelhamento parcial ou total, isso significa a perda de autonomia desta ramificação. Esse é um domínio parcial. Essa perda de autonomia pode ser vista nos casos anteriormente citados, do MST e UNE. Nos casos de domínio total, o que ocorre é o abandono do caráter de ramificação de um movimento social, tornando-se organização burocrática a serviço do partido. No seu discurso pode até ainda afirmar que é uma ramificação de um movimento social, mas isso é uma farsa. Esse é o caso da Ação da Mulher Trabalhista, que é, no fundo, uma organização do PDT – Partido Democrático Trabalhista, que não tem nenhuma autonomia, sendo uma seção do partido e não uma ramificação aparelhada do movimento feminino.
No caso de domínio parcial, o partido que aparelha a ramificação também garante a hegemonia de suas concepções (doutrinas, ideologias, correntes de opinião, etc.) não só na organização que se apossa, mas também através dela realiza sua difusão para outras ramificações. Ao lado da ação do partido no conjunto da sociedade civil e propaganda política e eleitoral via meios de comunicação, consegue, através das ramificações de alguns movimentos sociais, aumentar sua influência, inclusive pelo fato de parecer algo que brota dos próprios grupos sociais de base dos movimentos.
Uma outra consequência é a corrupção de indivíduos, bem como o uso de ramificações de movimentos sociais (e falando em nome do movimento social) como trampolim político por parte de indivíduos oportunistas. E basta ver o horário eleitoral gratuito e ouvir o discurso de candidatos que falam de grupo sociais ou movimento social do qual nunca tiveram proximidade com suas lutas, para perceber isso. Isso gera também um processo de formação de lideranças oportunistas e aprendizes de burocratas. O exemplo clássico aqui é novamente o movimento estudantil, que gera lideranças que posteriormente se tornam candidatos e burocratas partidários, sendo quase que o início da carreira de político profissional[8].
O aparelhamento se torna ainda pior quando o partido que o faz chega ao governo, pois assim o une com a cooptação estatal. A cooptação dos movimentos sociais é um tema bastante abordado (VIANA, 2016; DRUCK, 2006; IGLESIAS, 2015; OFFE, 1996; ALBERONI, 1991; VIANA, 2017), mas o aparelhamento já é pouco discutido. A diferença entre cooptação e aparelhamento é que, no primeiro caso, se troca benefícios por apoio (VIANA, 2017) e, no segundo, uma organização toma posse de outra. Dessa diferença fundamental, derivam outras. A cooptação é um aliciamento em troca de benefícios (diretamente para os indivíduos ou organizações), que pode ser de indivíduos (isolados, dentro de organizações ou, em casos raros, do conjunto da organização mobilizadora), e a segunda é o domínio de uma organização, que se torna um aparelho do partido. A cooptação pode ser individual, o aparelhamento é sempre organizacional. A cooptação é sempre em troca de benefícios, o aparelhamento pode ser também por convencimento doutrinário ou ideológico. A cooptação pode ser indireta, o aparelhamento é sempre direto. A cooptação busca apoio e o aparelhamento gera correias de transmissão.
Quando um partido político que efetiva aparelhamento chega ao governo federal (ou mesmo antes, em outras instâncias, mas em menor grau), ele torna as ramificações aparelhadas em aparelhos sublocados, ou seja, sua posse passa a ser da burocracia governamental e da burocracia partidária, que se torna um intermediário. Esse foi o caso do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e diversas outras organizações (de movimentos sociais ou não, incluindo sindicatos e centrais sindicais) durante os governos petistas no Brasil de 2003 em diante (IGLESIAS, 2015).
A principal consequência do aparelhamento é a influência que isso acaba tendo no movimento social como um todo. Um grande número de organizações mobilizadoras aparelhadas, ou uma organização de grande importância (como o caso da UNE) num movimento social, pode gerar não apenas o apoio eleitoral ou político geral das organizações aparelhadas, mas também sua hegemonia no interior do movimento social. As ramificações aparelhadas acabam influenciando as não aparelhadas e o movimento social como um todo. E isso significa transformar o objetivo do movimento social em objetivos eleitorais e partidários (ou, em alguns casos, governamentais).
Considerações finais
O breve texto que aqui apresentamos tratou da relação entre movimentos sociais e partidos políticos, com foco no aparelhamento, que é o elemento principal e mais constante nessa relação. Sem dúvida, existem outras possibilidades, tal como determinada organização mobilizadora (ou conjunto de organizações) se transformar em partido político. Esse foi o caso dos partidos verdes originados em ramificações do movimento ecológico. Essa relação também é variável dependendo da conjuntura, força dos partidos progressistas, etc. Em épocas de ditadura, quando os partidos estão proibidos ou apenas existem os oficiais, o aparelhamento é praticamente inexistente e a autonomia dos movimentos sociais muito maior (TELLES, 1987).
O aparelhamento partidário dos movimentos sociais é pouco estudado e a razão disso se encontra nos vínculos de setores da intelectualidade com os partidos políticos progressistas, o que torna inviável dizer a verdade nesse assunto. De qualquer forma, é um tema fundamental na discussão sobre os movimentos sociais e precisa de aprofundamentos e análises de casos concretos.

Referências

ALBERONI, Francesco. Gênese. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

BRAGA, Lisandro. A Teoria do Regime de Acumulação Integral. In: MARQUES, Edmilson e MAIA, Lucas (orgs.). Nildo Viana: Dialética e Contemporaneidade. Lisboa: Chiado, 2018.

CERRONI, Umberto. Teoria do Partido Político. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

COSTA, Leon. Movimentos Sociais, Protestos e Manifestações Públicas. In: VIANA, Nildo (org.). Movimentos Sociais: Questões Teóricas e Conceituais. Goiânia: Edições Redelp, 2016.

DRUCK, Graça. Os Sindicatos, os Movimentos Sociais e o Governo Lula: Cooptação e Resistência. OSAL, Observatorio Social de America Latina, CLACSO, Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, Buenos Aires, Ano VI, num. 19. julho. 2006.

DUVERGER, Maurice. Os Partidos Políticos. Brasília: Edunb, 1982.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

IGLESIAS, Esteban. Da Colonização da Sociedade Civil às Tensões entre Partidos no Governo e Movimentos Sociais. Sociologia em Rede. Ano 5, num. 05, jan./jun. de 2015.

LÊNIN, W. Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978.

LENINE, W. Partido Proletário de Novo Tipo. Lisboa: Avante, 1975.

MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1981.

OFFE, Claus. Partidos Políticos y Nuevos Movimientos Sociales. Madrid: Editorial Sistema, 1996.

ORIO, Mateus. O Desenvolvimento Capitalista na Sucessão de Regimes de Acumulação. Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia. Vol. 02, nº 09, Jan. 2014.

SANTOS, Gevanilda. Comentários. In: IANNI, Octávio et al. O Negro e o Socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

STÁLIN, Joseph. Fundamentos do Leninismo. São Paulo: Global, 1982.

TELES, Gabriel. A UNE e sua dinâmica relacional com o Governo Lula (2003-2011). Dissertação de Mestrado. Goiânia: Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFG, 2018.

TELLES, Vera. Movimentos Sociais: Reflexões sobre as Experiências dos anos 70. In: SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo. Uma Revolução no Cotidiano? Os Novos Movimentos sociais na América do Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987.

VIANA, Nildo. A Pesquisa em Representações Cotidianas. Lisboa: Chiado, 2015b.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Lisboa: Chiado, 2018.

VIANA, Nildo. Burocracia: Forma Organizacional e Classe Social. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 03, jan./jun. 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/9jviana3/297 Acessado em: 31/13/2015a.

VIANA, Nildo. Estado e Movimentos Sociais: Efeitos Colaterais e Dinâmica Relacional. Revista Café com Sociologia. V. 6, N. 3, Ago./Dez. 2017. Disponível em: https://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/902/pdf acessado em: 31/12/2017.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos. Brasília: Kíron, 2014b.

VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Prismas, 2016.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

WEBER, Max. Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada. Crítica Política do Funcionalismo e da Natureza dos Partidos. Petrópolis: Vozes, 1993.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG); Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (USP).
[1] Além dos pesquisadores, ativistas e integrantes de partidos também fizeram reflexões sobre tais organizações, mas, no entanto, sob uma perspectiva normativa sobre qual é a forma ideal de partido (LÊNIN, 1975; LÊNIN, 1978; GRAMSCI, 1988; STÁLIN, 1982).
[2] Sobre regimes de acumulação cf. Viana (2009), Orio (2014), Viana (2015), Braga (2018).
[3] No sentido comum do termo, o proselitismo é o empenho em tentar converter outros indivíduos para uma causa, doutrina, ideologia, partido ou religião. O proselitismo vai assumir forma distinta dependendo de qual causa, doutrina, partido, etc. se tentar conquistar adesão, beirando ao fanatismo ou usando uma forma agressiva ou insistente em certos casos.
[4] Esse beneficiamento pode ser para a organização ou para o objetivo do movimento ou organização, e, portanto, pode ser algo que realmente atinja o movimento social ou apenas interesses outros gerados a partir dele.
[5] Stálin (1982) já colocava esse processo ao colocar que as organizações da sociedade civil deveriam ser correias de transmissão do partido comunista.
[6] A análise aqui se fundamenta na observação relacional, o que é bem distinto do empiricismo. A observação relacional (VIANA, 2015) pode ser uma técnica de pesquisa auxiliar ou uma técnica principal. Aqui é a técnica principal. A observação relacional pode ser espontânea ou planejada. A espontânea é o conjunto de observações de um determinado pesquisador durante sua história de vida ou momentos específicos e a planejada é realizada com a intenção de unir material informativo sobre determinado fenômeno e com o uso do caderno de anotações e outros procedimentos complementares. Ambas são realizadas através da percepção do fenômeno pesquisado e sua relação com outros processos sociais e inserindo os acontecimentos na totalidade da sociedade. Aqui utilizamos a observação relacional espontânea, pois a maioria dos fenômenos aqui identificados foram observados pessoalmente ou via meios de comunicação ou documentos. A observação relacional foi reforçada por leituras e obras que tratam do assunto.
[7] No início, eram grupos trotskistas que depois formaram a Convergência Socialista que ficou como tendência dentro do PT por alguns anos, até ser expulsa e formar, junto com outras organizações, o PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores – Unificado (SANTOS, 2005). O Núcleo Negro Socialista, por sua vez, desembocou, com o desenvolvimento histórico, no MNU – Movimento Negro Unificado, já aparelhado por outro partido, mas a primeira organização era um aparelho permanente da Convergência Socialista.
[8] O político profissional é aquele que vive da política, para utilizar definição do sociólogo Max Weber (1971).

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