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segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

REGIMES DE ACUMULAÇÃO, GERAÇÕES E JUVENTUDE


Juventude: Anos 1960

REGIMES DE ACUMULAÇÃO, GERAÇÕES E JUVENTUDE


 Nildo Viana

A questão da juventude já foi discutida sob diversas formas. Uma das formas mais interessantes é a que discute a relação entre geração e juventude e uma das mais populares é a que focaliza o “conflito de gerações”. Porém, o conceito de gerações e seu uso para a análise da juventude só tem sentido se inseridos na realidade concreta, na totalidade das relações sociais e não sob a forma metafísica. Assim, o nosso objetivo é discutir o conceito de geração inserido na realidade concreta e a partir disso observar sua utilidade para análise da juventude.
Gerações e História
O problema da relação entre gerações e história já foi abordado por uma diversidade de pensadores. Sem dúvida, para alguns é o problema principal da história da humanidade; enquanto que para outros, a maioria, é algo insignificante e que nada ajuda a explicar o processo histórico[1]. Não podemos remeter ao extenso material bibliográfico a respeito dessa questão e por isso apresentaremos apenas a nossa concepção dessa relação, passo importante para o desenvolvimento de nosso argumento. A história não é nada mais do que uma sucessão de diversas gerações, tal como colocaram Marx e Engels (1992):
“A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma delas explorando os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhes foram transmitidas pelas gerações precedentes; por este motivo, cada geração continua, por um lado, o modo de atividade que lhe foi transmitido mas em circunstâncias radicalmente transformadas e, por outro, modifica as antigas circunstâncias dedicando-se a uma atividade radicalmente diferente” (MARX e ENGELS, 1992, p. 75).
O que Marx e Engels colocam aqui é que a história é a sucessão de gerações. Porém, não é o mero processo geracional que em si caracteriza a história, pois tal sucessão ocorre a partir das forças produtivas existentes herdadas das gerações anteriores e que são modificadas pela geração atual. Assim, a nova geração reproduz o modo de atividade (mais tarde Marx utilizará o conceito de modo de produção, que é essencial em sua concepção de história) da geração anterior, mas em condições diferentes e as modifica, produzindo uma atividade radicalmente diferente, ou seja, produzindo novo modo de produção. Esse processo Marx irá detalhar em outras partes de sua obra como uma sucessão de modos de produção. Porém, as gerações não foram definidas por Marx e por isso se percebe uma certa relação com modos de produção, o que é correto pensando em determinado conceito de geração, abrangendo verdadeiras épocas históricas. No entanto, o mais comum é pensar a geração em termos de tempos mais curtos, tal como 15 anos (ORTEGA y GASSET, 1968) ou 30 anos (COMTE, apud. FEIXA e LECCARDI, 2010). A concepção de Marx trata de gerações históricas, cuja duração é muito maior. A concepção de Comte (e outros) é das gerações etárias e, nesse sentido, colocam outro tipo de questão, não se tratando de mudanças radicais na sociedade, alterações de modos de produção e de tudo que lhe acompanha.
Porém, esse tipo de concepção é abstrato-metafísica. Trata-se mais de um processo formal e classificatório do que uma conceituação. Isto é visível no fato de que esses autores não apresentam nenhum critério concreto para se colocar a duração de uma geração. Não é muito útil pensar em termos de 30 anos, pois assim a geração de 1901-1930 seria uma e a geração de 1931-1960 outra, bem como a de 1961-1990 outra. Ou, em termos de Ortega y Gasset, 1901-1915; 1916-1930; etc. São demarcações classificatórias e arbitrárias (mesmo porque, ao invés de iniciar em 1901, qualquer outro pode iniciar em 1902 ou qualquer outro ano), e entre a geração que nasceu em 1915 e a que nasceu em 1916 há muito pouco diferença.
Muito mais profícua é a concepção de Karl Mannheim. Segundo ele, “uma geração é determinada pelo modo como certos modelos de experiência e pensamento tendem a ser trazidos à existência pelos dados naturais da transição de uma geração para outra” (MANNHEIM, 1980, p. 137). O fenômeno geracional, segundo ele, expressa uma espécie particular de similaridade de posição, composta por grupos de idade inseridos num processo histórico-social. Porém, ainda resta delimitar o período que poderia justificar a similaridade de posição destes grupos de idade, já que até aqui se trata de “localização de geração”, segundo expressão de Mannheim.
“Para partilharmos da mesma localização de geração, isto é, passivamente sofrermos ou ativamente usarmos as capacidades e privilégios de uma localização de geração, devemos ter nascido dentro da mesma região histórica e cultural. Mas a geração como realidade vai precisar de mais do que uma mera co-presença em tal região histórica e social. É necessário um outro nexo concreto para que a geração se constitua como realidade. Este nexo adicional pode ser descrito como uma participação num destino comum” (MANNHEIM, 1980, p. 152).
Mannheim delimita, então, a geração como uma realidade, através da ideia de desestabilização, de mudança. A localização de geração tende a gerar, em determinado contexto sócio-histórico, a geração como realidade, que é “quando se cria um laço concreto entre os membros de uma geração pelo fato de estarem todos expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de dinâmica de desestabilização” (MANNHEIM, 1980, p. 153). Porém, isto não afeta uma geração em sua totalidade da mesma forma e daí emerge mais um termo mannheimiano, o de unidades de geração:
“Fazem parte da mesma geração real os jovens que experimentam os mesmos problemas históricos concretos; e constituem unidades de geração separadas aqueles grupos que dentro da mesma geração real trabalham o material da sua experiência comum de modos específicos diferentes” (MANNHEIM, 1980, p. 154).
As unidades de geração são grupos distintos dentro de uma mesma geração e Mannheim cita os liberais e os conservadores em certos contextos históricos. Os dados mentais são importantes, mas Mannheim destaca o que denominou “forças formativas” os elementos essenciais para dar origem a uma unidade de geração, aliadas a “atitudes integrativas fundamentais”.  Esses elementos também são muito importantes nos casos de afastamento das tradições. Dentro de uma geração podem existir até unidades antagônicas.  Um elo mais concreto é colocado quando existe um paralelismo de resposta entre seus membros.
Esse processo é geralmente produzido por um grupo concreto[2] ao invés de serem criadas espontaneamente. Este gera novas atitudes que produz “o estímulo mútuo numa unidade” que “inflama os participantes”. “Uma vez assim desenvolvidas, estas atitudes e tendências formativas podem desligar-se dos grupos concretos que lhes deram origem e exercer apelo à força congregadora sobre uma área mais ampla” (MANNHEIM, 1980, p. 157-158).
A mudança social é um elemento fundamental para o desenvolvimento das potencialidades da localização de geração, e prova disso são as comunidades mais estáticas como a rural. Há, nesse processo, a criação de um “estilo de geração”, uma “enteléquia de geração”. A velocidade da mudança pode criar maiores oportunidades de criação de enteléquias próprias ou, se for muito acelerada, gerar uma destruição mútua das enteléquias embrionárias. Quando ocorre isso, as gerações mais novas ligam-se às gerações anteriores.
Esta análise de Mannheim é uma das mais importantes sobre a questão das gerações e abre espaço para novas discussões e desdobramentos. Um dos méritos de Mannheim é distinguir entre localização de geração e geração real, embora isso seja um tanto quanto confuso, principalmente porque ele elabora sua concepção de geração tendo por base uma analogia com a ideia de classe social – uma realidade radicalmente distinta. Isso gera problemas analíticos que necessitam ser superados. De qualquer forma, há uma diferença entre a geração etária (ou seja, delimitada por sua situação de um grupo cuja idade é aproximada, ou seja, de um mesmo período histórico) e da geração uniformizada[3] por compartilhar relações sociais, experiências históricas semelhantes, incluindo a cultura de uma determinada época. Esta última, inclusive e geralmente, é produto da ação de outros setores em seu processo de formação, socialização e ressocialização (infância e juventude), tais como Estado, escola, meios de comunicação, discurso científico, partidos, etc.[4] No entanto, isto não é realizado sem conflitos, pois as gerações etárias são várias e cada uma delas é subdividida (o que ele denomina “unidades de geração”), formando distintas conformidades geracionais. A questão é que, indo além da abordagem de Mannheim, essas conformidades geracionais possuem bases mais amplas do que ele pensa.
As classes sociais são elementos fundamentais nesse processo. As gerações mais antigas (que num determinado momento é composta pelos idosos e adultos) possuem distintas conformidades geracionais, embora convivendo com algumas características em comum. As gerações mais novas (que, na mesma época, convive com as anteriores) possuem, também, elementos em comum, mas também distintas conformidades geracionais (derivadas das demais divisões sociais, especialmente, mas não unicamente, a de classe). As primeiras são predominantes, tanto pelo poder financeiro, controle das instituições, etc., sendo uma determinada conformidade geracional dominante, que é justamente a da classe dominante. Por conseguinte, a conformidade geracional das gerações mais novas é, hegemonicamente, a formada pela conformidade geracional das mais antigas, porém, havendo um conflito devido ao processo de socialização e ressocialização ser repressivo e coercitivo (VIANA, 2004; VIANA, 2011; VIANA, 2010), o que gera divergências no interior daqueles que são pertencentes às classes privilegiadas.
No entanto, na abordagem de Mannheim ainda falta outro elemento. A sua abordagem da distinção entre as gerações coloca, abstratamente, a questão da mudança social para a diferenciação de uma geração para outra, mas não o tipo de mudança que possibilita isso. Essa lacuna precisa ser preenchida e o conceito de regime de acumulação permite realizar essa tarefa, tal como mostraremos adiante.
Regimes de Acumulação e Gerações
As gerações marcam mudanças de pensamento e comportamento na população. Como o problema das gerações se manifesta no capitalismo, então é preciso entender tais mudanças. As gerações etárias são aquelas marcadas por pessoas do mesmo grupo de idade e em todo período histórico específico no capitalismo coexistem os idosos, os adultos, os jovens e as crianças, delimitando sempre quatro gerações etárias. Existe uma geração, a composta pelos adultos, mas que incluem indivíduos idosos e alguns jovens, que possui uma supremacia social, por sua posição social nas instituições, mas não todos e sim os especialmente das classes privilegiadas. Daí o mito do adulto-padrão, tão bem descrito por Georges Lapassade (1975) e que é um elemento fundamental para entender a situação da juventude no desenvolvimento histórico do capitalismo (VIANA, 2004).
A questão fundamental, no entanto, é entender a constituição social de gerações uniformizadas, o que remete para o processo histórico do capitalismo. A periodização do capitalismo baseada na teoria dos regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2003), supera a mera classificação arbitrária ou unilateral desenvolvida por algumas ideologias (VIANA, 2009). Os regimes de acumulação são formas estabilizadas de lutas de classes, que se organizam em torno de uma determinada forma assumida pelo processo de valorização (organização do trabalho), formação estatal e relações internacionais. Esse conjunto relativamente estável manifesta a supremacia de classe da burguesia derivada de determinada relação com o proletariado. Assim, o capitalismo atravessou várias fases e em cada uma há um determinado regime de acumulação.
A duração de um regime de acumulação pode ser mais longa ou mais curta, pois isso depende de suas características e processo de luta de classes no seu interior. Essa forma estabilizada de luta de classes convive com irrupções mais radicais de tais lutas, que buscam ultrapassá-las, reorganizá-las. Na história do capitalismo, podemos trabalhar com a seguinte sucessão de regimes de acumulação: acumulação primitiva (século 16 a 18), acumulação extensiva (século 18 até parte do século 19), acumulação intensiva (do final do século 19 até meados do século 20), acumulação intensivo-extensiva ou conjugada (após 1945 até 1980), acumulação integral (de 1980 até hoje).
A cada regime de acumulação, temos, portanto, mudanças no processo de produção, na formação estatal burguesa e nas relações internacionais e isto, por sua vez, geram um conjunto de mudanças na produção intelectual (científica, artística, filosófica, etc.), tecnológica, nos costumes, nas instituições, no mercado consumidor, etc. Aqui é necessário compreender a combinação entre permanência e mudança: os aspectos essenciais do capitalismo permanecem, o que muda é sua forma, o que não é algo desprovido de importância. Essas mutações do capitalismo promovem mudanças drásticas no comportamento, ideologias, lutas sociais, instituições, etc. É aqui que reside a chave explicativa das distintas gerações uniformizadas. Aqui se encontra a ideia de mudança social apresentada por Mannheim, e, ao mesmo tempo, a substituição das abstratas “forças formativas” por mutações do capitalismo sob a forma de sucessão de regimes de acumulação.
Assim, a cada regime de acumulação há a tendência a existir uma geração uniformizada hegemônica nas quatro gerações etárias coexistentes (crianças, jovens, adultos, idosos). Obviamente que a existência de uma geração uniformizada hegemônica implica na de outras, não-hegemônicas[5], com maior ou menor importância dependendo do regime de acumulação, das lutas sociais, etc. Assim, podemos dizer que a geração jovem dos anos após 1945 é que passa a ter um grau de uniformização maior em relação às gerações jovens anteriores. É aí que emerge, efetivamente, a juventude (VIANA, 2004). Essa uniformização da juventude cria modos de comportamento e pensamento, um ethos juvenil, que será dominante e só será posto em xeque a partir da crise do regime de acumulação conjugado no final dos anos 1960. Nessa época, ocorrem lutas autônomas que desembocam, em alguns casos, em lutas revolucionárias, autogestionárias (VIANA, 2011). É nesse contexto que a geração uniformizada hegemônica passa de majoritária para minoritária. O inverso ocorre com a tendência não hegemônica, que passa a ser a maioria.
Porém, a adesão momentânea à tendência minoritária, tornando-a majoritária, se esvanece tão logo o movimento que lhe deu vida recua ou é derrotado, voltando à “normalidade” anterior. Isso não ocorre sem nenhuma mudança, pois a geração uniformizada hegemônica retorna a ser majoritária, mas sofre mutações, tendo que incorporar aspectos ou elementos da geração provisoriamente hegemônica e se adequar às mudanças sociais ocorridas após este período. Esse foi o caso da juventude no final dos anos 1960. A crise do regime de acumulação e a radicalização das lutas sociais fez emergir uma contestação que inverteu a relação de forças e uma vez derrotada acabou havendo um retorno à velha hegemonia, enfraquecida, mas ainda hegemônica.
A base dessa hegemonia de uma geração uniformizada é a mutação do regime de acumulação, que produz não somente uma nova forma de organização do trabalho, Estado e relações internacionais, mas também mudanças gerais em toda a sociedade, tal como nos costumes, pensamento, valores, instituições, sem, no entanto, romper com os elementos essenciais do capitalismo, tanto no modo de produção quanto nas formas de regularização (“superestrutura”). Logo, uma geração não é uma reunião de indivíduos marcados por um grande evento ou vários deles (ROLLEMBERG, 1999), obviamente que uma passagem de um regime de acumulação para outro ocorre com a existência de diversos eventos, mas não são eles em si mesmos e sim o que os gera que possui importância. Os indivíduos que nascem ou estão com pouca idade na época de emergência de um novo regime de acumulação acabam sendo intensamente marcados por ela e por isso constituem uma geração.
Em síntese, no capitalismo, as gerações uniformizadas (bem como as conformidades geracionais) são produtos dos regimes de acumulação. Sem dúvida, essa constituição capitalista das gerações não é aleatória, estão ligadas não somente às mudanças geradas no regime de acumulação e em tudo que modifica a partir dele, como também a partir das lutas, resistências, etc., inclusive da criação de tradições geracionais (a conformidade geracional da juventude não-hegemônica de uma época pode se inspirar na do regime anterior, mesmo que os próprios indivíduos que agora já são adultos já tenham renegado o seu passado).
Acumulação integral e juventude hoje
No caso específico da juventude, um grupo etário caracterizado por estar submetido a um processo repressivo e coercitivo de ressocialização (VIANA, 2004), o que temos é a emergência de uma nova geração jovem uniformizada. A expressão “uniformizada” é bem clara: é padronizada e sugere justamente uma refutação de sua pretensa liberdade[6]. A juventude é constituída socialmente (VIANA, 2004) e embora existam tendências não-hegemonicas, elas também são uniformizadas, são produtos histórico-sociais. Sem dúvida, a juventude uniformizada em determinado regime de acumulação que é hegemônica é aquela que reproduz o que o Estado, as instituições, etc., exigem delas e as não-hegemonicas mesclam elementos disso com outras tendências e apenas um setor muito marginal fica com um distanciamento mais forte dessa posição hegemônica.
Mesmo a ala mais radical da juventude é manifestação de uma conformidade geracional e não algo livre e fora da época que, por algum motivo, teria a liberdade de escolher ser o que é, sendo que isto está vedado para todos numa sociedade capitalista. A potencialidade da juventude, especialmente dos setores oriundos das classes exploradas – a juventude das classes privilegiadas está mais sujeita às modas, estilos, etc. embora com maior acesso às produções intelectuais, mas com preocupações mais do grupo etário de forma isolada ou então preocupações tipicamente burguesas, com mescla de rebeldia e recusa de seu processo de ressocialização –, para romper com as relações sociais existentes é real e assume formas diferentes em setores diferentes e maior radicalidade em certas conformidades mais que em outras.
A juventude atual é a constituída pelo regime de acumulação integral e por isso sua data de emergência começa em torno dos anos 1970 – época onde se começa a esboçar o novo regime de acumulação – e principalmente nos anos 1980 e início dos anos 1990 (o que varia de país para país, o que não anula as influências internacionais). Os jovens que nasceram nos anos 1970, mas principalmente nos anos 1980 e 1990 são os primeiros integrantes jovens da geração hedonista emergente.
O regime de acumulação integral gera uma juventude vinculada às mudanças sociais do capitalismo. Essas mutações do capitalismo marcam um aumento da exploração em geral e também do desemprego, miséria, criminalidade, conflitos. Ao lado disso, novas formas de cooptação e novas ideologias emergem, além da necessidade constante de reprodução ampliada do mercado consumidor (VIANA, 2009). No plano cultural e ideológico, o que mais afeta parte da juventude das classes privilegiadas são as novas modas, concepções/ideologias, ação dos meios oligopolistas de comunicação, etc. Isso articula a juventude como mercado consumidor e como manifestação cultural.
As gerações anteriores, já influenciadas pelas novas ideologias emergentes a partir da década de 1970, em especial o pós-estruturalismo em suas várias formas de manifestação, produzem e reproduzem estas concepções e assim repassam para a juventude em seu processo de ressocialização as concepções hegemônicas, o que contribui para a produção de uma geração uniformizada, pois a juventude das classes privilegiadas influencia e é modelo para grande parte da juventude pertencente a outras classes sociais.
O capital e os meios oligopolistas de comunicação buscam ampliar o consumo juvenil e para isso produzem novos produtos e reproduzem produtos antigos. Inclusive se busca dividir a juventude em nichos de mercado para vendagem de produtos, gerando um mercado consumidor “infanto-juvenil”, vegetariano, homossexual, etc. A criação de identidades e movimentos sociais identitários reforça esse processo de constituição social de nichos de mercado, que atinge de forma mais poderosa a juventude. O exemplo da música revela aspectos que queremos destacar. A juventude e sua ligação com a rebeldia geram também determinados vínculos culturais e identitários, entre eles a sua predisposição ao novo (sobre o caráter e o alcance da novidade em questão, deixamos de lado, pois no fundo é renovação apenas formal e limitada, mas que cria modas, tendências, identidades), o que a faz cativa da produção capitalista de mercadorias culturais.
A música é um exemplo disso. O Rock and Roll é um produto capitalista que busca manifestar rebeldia, seja meramente na aparência (roupas, gestos, símbolos, etc.), seja em conteúdo relativamente crítico – assumindo várias formas dependendo do vínculo e concepções, valores, etc., de quem o produz. Assim, os jovens não buscam conhecer a história da música em sua totalidade (poucos querem saber, por exemplo, no caso brasileiro, da história do samba ou do frevo) e sim a história do Rock e recuperam ícones do passado e escolhem uma linha de desenvolvimento para mostrar suas preferências e identidade. Aparentemente isso é uma escolha livre e racional, mas, no fundo, revela um processo social de produção. Esse processo só seria realmente livre e racional se houvesse um processo de reflexão crítica que inclusive reconhecesse que o próprio gosto e preferências é um produto histórico social e que a possível singularidade individual nesse processo está ligada ao processo histórico de vida do indivíduo que faz tal reflexão. Porém, o rock, principalmente em algumas de suas manifestações, está ligado a um setor mais contestador da juventude, o que não ocorre com aqueles que preferem outros gêneros musicais, tal como a música eletrônica. A música é, ao mesmo tempo, mercadoria para consumo e valor cultural, criador de vínculos e identidades. O processo de criação de identidade juvenil ou de “subculturas juvenis”, como alguns dizem, ocorre via mercado de música popular direcionado para a juventude (HORMIGOS e CABELLO, 2004).
Porém, existem outras conformidades geracionais da juventude, devido à classe social, vínculos institucionais (partidos, igrejas, etc.). O aumento do desemprego e pobreza tende a constituir uma conformidade geracional mais tendente à rebelião e revolta. Aqui se trata principalmente da juventude proletária e, mais intensamente, lumpemproletária (VIANA, 2004), que, em momentos históricos como este, fundado num regime de acumulação que intensifica o processo de exploração e empobrecimento, aumenta o potencial contestador sob suas formas menos refletidas e organizadas, que, no entanto, abrem espaço para processos posteriores mais organizados.
Nos setores mais conservadores, ocorre um processo de reproduzir a tendência capitalista de buscar valorar a participação, nas mais diversas instâncias da vida social: político-institucional (o discurso da “cidadania”, voluntariado, “amigos da escola”), trabalho e educação (toyotismo e trabalho em equipe, empreendedorismo, envolvimento, inteligência emocional, etc.). O neoliberalismo e a responsabilização da sociedade civil para compensar seu recuo com políticas de assistência social, que fomenta ONGs e outras iniciativas.
Esse “participacionismo” é hegemônico discursivamente. No entanto, ele é vinculado e reforçado por ideologias aparentemente progressistas que, no fundo, postulam uma integração na sociedade capitalista. O Estado neoliberal e suas políticas paliativas de assistência social, aliado ao processo de constituição de uma suposta oposição microrreformista – inspirada em ideologias como as de Foucault (1989) e Guattari (1981) – na qual cada grupo luta por suas demandas próprias, abandonando o reformismo socialdemocrata, o vanguardismo leninista e o projeto revolucionário marxista ou anarquista, que conquista vantagens competitivas no interior do capitalismo ao invés de questionar sua própria situação e o que a gera.
Nesse contexto, uma conformidade geracional juvenil torna-se hegemônica. Trata-se de uma camada conservadora, hedonista, tal como os yuppies, mas não se limitando a eles e a jovens oriundos das classes privilegiadas. O pós-estruturalismo (ciências humanas e filosofia) e o pós-vanguardismo (artes) se tornam hegemônicos e reforçam as bases conservadoras e hedonistas. A competição crescente reforça esse processo e o “participacionismo” (e o pragmatismo que lhe acompanha) tende a se expandir em certos setores além dos dominantes, devido influência da juventude das classes privilegiadas sobre a das classes exploradas.
A ideologia da “geração y”, usada para abordar características superficiais e sem maiores análises, reforça tal tendência. O acesso à tecnologia produz uma geração jovem mais próxima do mundo tecnológico e com mais acesso à informação. O consumismo, inclusive de aparelhos tecnológicos, é outra característica proeminente[7]. Porém, com menor formação intelectual, pois o conjunto de informações acessíveis é geralmente superficial e sem possuir ferramentas intelectuais para interpretá-las e analisá-las, o que gera uma tendência a um dogmatismo superficialista, transformando representações cotidianas aparentemente estruturadas em dogmas, na qual relativismo e verdades estabelecidas se unem sem perceber sua contradição intrínseca. Isso proporciona a possibilidade de ondas que vão e vem, não somente os modismos, mas também protestos, posições, etc., aumentando a volatilidade da juventude.
Uma outra conformidade geracional juvenil, não-dominante, mas com presença relativamente forte em certos setores da sociedade, assume posição relativamente progressista, mas fundada em um ecletismo ou criação de estilos de vida e fundação de identidade cultural. Ela realiza uma contestação limitada e parcial da sociedade. Os mesmos problemas da conformidade geracional dominante se reafirmam, tal como hedonismo, relativismo ou ecletismo, etc.
A formação de grupos identitários (alguns chamam “tribos urbanas” ou “geração T”) se insere nessa realidade, e dependendo de qual grupo com afastamento mais intenso da conformidade geracional dominante. Sem dúvida, os setores da juventude das classes exploradas (proletários e lumpemproletários) são influenciados por tais concepções, mas devido sua posição social de forma diferenciada e em alguns outros aspectos, isso ocorre em menor escala.
Alguns não chegam a sofrer influência por ter pouco acesso ao processo cultural e ideológico que veicula tal influência, a não ser pelos meios oligopolistas de comunicação. Um setor dissidente e mais politizado também mantém maior distanciamento, embora isso seja relativo. Se apegam ao anarquismo, conselhismo, situacionismo, mas não escapam, em muitos casos, das influências das ideologias dominantes, tal como o pós-estruturalismo. Outros ainda sustentam o discurso bolchevista e trotskista, mas sem grande autonomia e estando ligado às burocracias partidárias e sindicais.
Nesse contexto, é necessário entender que um dos fenômenos mais importantes com a geração jovem que emerge a partir dos anos 1980-1990 é sua relação com as gerações anteriores. Foram estas que legaram o mundo em que ela se formou e dirigiu seu processo de formação, educação. E é essa que realiza, posteriormente, sua interpretação e comanda a sociedade em que vive. Assim, a juventude e a rebeldia que a acompanha em muitos casos são produtos sociais e históricos e somente a percepção de sua constituição social e historicidade é que permite ter um processo de autonomização mais amplo e não ilusório.
Porém, isto é dificultado devido à vigência intelectual de ideologias dominantes, do processo educacional escolar, meios oligopolistas de comunicação, e, principalmente, a tendência de reproduzir as relações sociais concretas através do processo de naturalização. A naturalização é um fenômeno comum realizado pelas representações cotidianas (“senso comum”) e reproduzido pelas ideologias (sistemas de pensamento ilusório) e sempre realizaram esse processo com o capitalismo. Porém, a cada regime de acumulação e mutação do capitalismo ocorre um processo de criação ideológica e de representações cotidianas que buscam naturalizar as mudanças e apresentá-las como eternas e estágio final da história[8].
Esse processo é mais poderoso no caso das gerações nascidas um pouco antes ou durante a formação e consolidação de um regime de acumulação. As gerações anteriores ainda podem ter ceticismo ou criticidade por ter observado outras relações, ideologias e representações que também pareciam expressar algo natural e eterno que chegou ao fim, mas o “espírito da época” tende a ser mais forte em todos os casos e, no plano da ideologia, que é produzida por indivíduos das classes privilegiadas, ele reina absoluto, embora sob formas distintas.
Assim, a geração juvenil uniformizada dos pós-1970 é um produto social e histórico específico, distinta das gerações anteriores e expressando as necessidades de reprodução do capitalismo na sua atual fase. A conformidade geracional juvenil dominante, pragmática e hedonista, revela o caráter conservador da juventude atual. Em oposição a ela existe uma conformidade geracional juvenil dissidente, que resgata as tradições revolucionárias do passado (marxismo, anarquismo, lutas históricas como as do maio de 1968, situacionismo, etc.), mas, no entanto, realiza uma mescla entre elas e os valores, representações, modismos e até mesmo elementos das ideologias dominantes em seu discurso e prática. Uma terceira conformidade geracional é a composta por jovens das classes desprivilegiadas e possui influências das demais, mas também possui especificidades e maior ligação com questões concretas e cotidianas, sem, no entanto, maior compreensão teórica das relações e lutas sociais. Em certos momentos, de mobilização e protestos, as duas últimas tendem a se influenciar reciprocamente.
Nesse contexto, para quem nasce na época das ideologias da globalização e do culturalismo, bem como da internet, tende a naturalizar a realidade existente a partir de uma percepção superficial da mesma e isso é ainda mais forte para aqueles que nascem após a consolidação do regime de acumulação integral. Porém, a percepção da historicidade, tanto do capitalismo quanto do atual regime de acumulação, é algo dificultado. É por isso que muitas vezes ocorre negação do regime de acumulação (em sua aparência ou aspectos, como neoliberalismo, “globalização”, etc.) sem negação do capitalismo ou negação deste a partir das ideologias do regime de acumulação integral (pós-estruturalismo e outras ideologias variadas). A juventude atual fica, assim, no dilema de recusar sua condição juvenil devido ao processo de ressocialização repressivo e coercitivo no contexto de uma sociedade marcada por um processo de exploração crescente e que apresenta rachaduras em diversos locais de seu edifício, mas que mantém uma força poderosa ao nível ideológico, discursivo e cultural. Esse dilema, no entanto, não pode ser resolvido apenas pela juventude e aí a luta de classes é fundamental para definir as posições e mutações nas lutas juvenis na contemporaneidade.

Referências

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.
FEIXA, Carles e LACCARDI, Carmem. “O conceito de geração nas teorias sobre juventude”. Revista Sociedade e Estado. Vol. 25, Número 2, Maio/Agosto de 2010.
FEIXA, Carles. “A Geração XX. Teorias sobre la Juventud en la Era Contemporanea”. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud. Vol. 4, Nº. 2, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1989.
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HORMIGOS, Jaime e CABELLO, Antonio M. “La construcción de la identidad juvenil a través de la música”. Res, nº 4, 2004.
LAPASSADE, Georges. A Entrada na Vida. Lisboa: Edições 70, 1975.
MANHEIMM, Karl. Sociologia do Conhecimento. Vol. 2. Lisboa: Rés, 1980.
MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 2002.
ORTEGA Y GASSET, J. “La idea de las generaciones”, El tema de nuestro tiempo, Obras completas, Vol. 3, Madrid: Revista de Occidente, 1968.
ROLLEMBERG, Denise. “Exílio. Refazendo Identidades”. Revista da Associação Brasileira de História Oral. Rio de Janeiro: no 02, junho de 1999.
VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. “Juventude, Contestação e Autogestão”. Anais do II Simpósio Nacional de Ciências Sociais: Subalternidade, trânsitos e cenários. Goiânia, UFG, 2011.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.
PORTUONDO, José A. La Historia y las Generaciones. Habana: Letras Cubanas, 1981.



[1] Um breve resumo de algumas das principais concepções sobre as gerações e seu papel na história pode ser consultado em: Portuondo (1981).
[2] Para Mannheim, grupos concretos são grupos com objetivos específicos, tais como a família, a seita, a tribo, e a geração não tem esse processo, pois sua ligação é mais uma situação social, compartilhar experiências e determinada cultura.
[3] Obviamente que as crianças e os jovens, por sua condição social, formam gerações com maior homogeneidade em sua uniformização.
[4] Claro que esse processo vale para o caso do capitalismo, sociedade na qual as mudanças sociais são mais velozes e se cria gerações diferenciadas.
[5] Ortega y Gasset percebeu parcialmente esse processo, pois ressaltou a marginalidade de tendências divergentes e como podem ser mal ou não compreendidas (ORTEGA y GASSET, 1968), embora tenha colocado isso no seu quadro restrito de análise das gerações.
[6] O desejo de liberdade, devido às necessidades radicais de indivíduos submetidos a um processo de ressocialização, é comum na juventude, mas não é algo concretizado e sim um projeto, e confundir o desejo e a realidade é cair na ilusão de liberdade, o que dificulta a luta pela liberdade real. Além disso, o próprio desejo de liberdade é manipulado pelos meios oligopolistas de comunicação e outras formas, desviando da liberdade autêntica para uma pseudoliberdade do mercado e da oposição manipulada, geralmente “espetacular” (DEBORD, 1997) e “mercantil”. A união entre juventude e liberdade é um processo ideológico que tem uma base real, a relativa autonomia dos jovens (principalmente das classes privilegiadas) em relação ao trabalho e responsabilidades sociais (VIANA, 2004), mas é ilusória e se desvanece tão logo encerra o seu período de escolarização anterior à entrada no mercado de trabalho e responsabilidades sociais.
[7] Daí as teses da “geração X” ou “geração R” (Feixa, 2006).
[8] Basta recordar Fukuyama (o suposto fim da história, que fez furor no início dos anos 1990 e hoje já está esquecido) e a ideologia da globalização para observar esta tendência em sua forma mais cristalina, bem como as ideologias da moda, tão passageiras quanto o regime de acumulação que está em sua base (VIANA, 2009).
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Publicado em:
VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.

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