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domingo, 9 de agosto de 2015

QUEM SÃO OS INVASORES? A CRÍTICA AO MARCARTISMO EM “VAMPIROS DE ALMAS”


QUEM SÃO OS INVASORES?
A CRÍTICA AO MARCARTISMO EM “VAMPIROS DE ALMAS”

Nildo Viana*

Os filmes de ficção científica que mostram alienígenas tomando conta de corpos humanos através de vagens tem toda uma história que remete ao tema do conformismo e do comunismo, levantando várias polêmicas sobre a interpretação destes filmes. Afinal, qual é a mensagem que estes filmes repassam? Trata-se de temor da “ameaça comunista”? Trata-se de crítica ao conformismo da sociedade norte-americana? Ou é mera ficção sem nenhuma pretensão de repassar mensagens políticas ou sociais? É isto que abordaremos a partir da referência aos filmes sobre invasões extraterrestres via vagens ou favas que tomam conta dos corpos e almas das vítimas quando estas dormem.
O primeiro filme da série foi o mais polêmico de todos. O filme Invasion of the Body Snatchers, dirigido por Don Siegel (no Brasil ficou conhecido como “Vampiros de Almas”) e que estreou em 1956 recebeu as mais variadas interpretações[1]. As duas interpretações mais conhecidas remetem ao contexto histórico no qual o filme foi produzido: Guerra Fria e macartismo. No contexto da guerra fria, surgiram inúmeros filmes de terror e ficção científica que tematizavam o perigo da invasão por alienígenas ou monstros, e a interpretação dominante é que manifestavam o temor norte-americano em relação à ameaça soviética. Assim, alguns pensam que tal filme é apenas mais um exemplo, com suas especificidades, deste tipo de manifestação cultural paranóica. O filme, assim, tematizaria o temor do comunismo.
Outros interpretam como o seu avesso, ou seja, como uma contestação do macartismo dominante na época. O senador Joseph McCarthy foi o impulsionador deste movimento que se caracterizou pela “caça às bruxas” no cinema americano (e não apenas no cinema), perseguindo a todos que eram suspeitos de serem comunistas, incentivando a delação e provocando desemprego e até mesmo suicídio de diretores, atores e roteiristas. Até cineastas famosos como Charles Chaplin e Joseph Losey, humanistas e que faziam crítica social em seus filmes, foram constrangidos a abandonar os Estados Unidos, devido à atribuição de “comunismo” a todo mundo que não fosse conformista. Losey, inclusive, produziu um filme ficcional que foi uma das mais bem feitas críticas ao macartismo, O Menino dos Cabelos Verdes (EUA, 1948). Para alguns intérpretes, o filme de Don Siegel revelava a paranoia norte-americana, a perseguição e o conformismo reinante do macartismo repetido pelos alienígenas. Em ambas as interpretações, saber quem são os invasores significa saber que mensagem o filme passa: se os invasores alienígenas são comunistas, então o filme é anticomunista, se são conformistas e conservadores ou “marcartistas”, então o filme é antimarcartista.
Há outras interpretações menos conhecidas. Uma delas coloca que se trata de uma crítica geral ao conformismo, e isto vale tanto para a União Soviética quanto para os Estados Unidos. Contudo, estas interpretações são problemáticas, pois em muitos casos é mais uma atribuição de significado do que uma análise profunda do filme. O processo de interpretação não é realizado a partir de um método que possibilita uma abordagem mais precisa da mensagem do filme, ou seja, seu significado original. Assim, muitos confundem atribuição de significado com o significado original do filme e isso significa produzir uma concepção falsa do filme, uma interpretação equivocada (Viana, 2012).
Estas interpretações deixam de lado uma análise da totalidade do universo ficcional em questão e observam o contexto social de forma superficial, além de não levar em conta o que quem produziu queria dizer. Em primeiro lugar, é necessário possuir informações sobre o processo de produção do filme. O roteiro do filme, sua ideia original, não tinha a introdução e conclusão que é vista em sua versão final, que mostra um narrador preocupado no início e o fim da narração no final, confirmada por um acidente que mostrava diversas “vagens esquisitas”. A ideia de colocar tal moldura não foi do diretor e nem do produtor e sim graças à pressão dos representantes do capital cinematográfico, no caso o Allied Artists Pictures, para retirar o “pessimismo” da mensagem (no final original, os alienígenas dominavam tudo e a mensagem era “você será o próximo”).
Isto significaria um domínio total dos alienígenas e a emergência de uma sociedade totalmente desumanizada, insensível, pois a falta de sentimentos era uma das principais características dos invasores, além da delação, perseguição, busca de conformismo, etc. Os representantes dos alienígenas são psiquiatras, policiais, cientistas. Os primeiros a perceber a mudanças são crianças e mulheres, os mais sensíveis que percebem mais rapidamente a insensibilidade e frieza reinante. O casal apaixonado acaba sendo os últimos resistentes em uma pequena cidade do interior, mas a personagem Becky Driscoll dorme e também se transforma em alienígena e após não conseguir convencer o médico Miles Bennell, o delata. A delação é sempre feita com o dedo indicador apontado, feição modificada e um grito que chama atenção de todos. Estes elementos, sem dúvida, lembram o macartismo, muito mais que o comunismo, embora no capitalismo de Estado da União Soviética (vulgo “socialismo real”) procedimentos semelhantes fossem utilizados, com exceção da delação incentivada e cotidiana até por colegas de trabalho.
A desumanização da condenação de todos que são diferentes, inclusive humanistas (o caso de Chaplin, que não era comunista e tinha preocupações sociais manifestadas em seus filmes) mostra que o filme, de acordo com seu universo ficcional, dificilmente poderia ser interpretado com sendo anticomunista. Assim, o filme estaria muito mais próximo de uma mensagem antimarcartista ou anticonformista do que anticomunista. O contexto social era marcado pelo macartismo e pela perseguição no cinema americano, o que torna bem mais provável que o filme seja antimarcartista. Qualquer cineasta na época vivia neste clima cultural e sofrendo a possibilidade de ser a próxima vítima. Aliás, na cena final original o único personagem ainda humano afirma: “o próximo será você!”[2].
Para realizar uma interpretação correta do filme é importante analisar a equipe de produção, principalmente diretor e roteirista, e suas intenções, conflitos, etc. (Viana, 2012; Viana, 2009). O autor do livro que deu origem ao filme afirma que não queria passar nenhuma mensagem (como se isso fosse possível) e que os responsáveis pelo filme manifestaram que queriam repassar uma mensagem que não estava no livro dele e que isso foi seguido fielmente, com exceção da cena inicial e final. O produtor era Walter Wanger, conhecido por suas preocupações sociais, sendo que foi produtor de No Tempo das Diligências, dirigido por John Ford, faroeste de forte caráter crítico, e Eu Quero Viver, cuja mensagem era contra a pena de morte.
O diretor Don Siegel durante muito tempo não se manifestou sobre o filme, mas depois algumas observações dele foram apresentadas por alguns pesquisadores. Ele é acusado por alguns de ser “direitista” (Geada, 1978), embora não haja, geralmente, fundamentação nessa afirmação, a não ser um ou outro filme, em geral mal interpretado, a começar por Vampiros de Almas ou então por sua oposição às “autoridades irracionais” e, por conseguinte, ser provavelmente desfavorável ao capitalismo estatal da antiga União Soviética[3] e seu regime ditatorial. O documentário de crítica a Hitler, que ele produziu em 1945, e mais alguns filmes e análises, mostram que essas interpretações são problemáticas. Uma afirmação dele, no entanto, deixa claro seu distanciamento em relação ao marcartismo:
As pessoas são vagens. Muitos dos meus colegas são, certamente, vagens. Eles não têm sentimentos. Eles existem, respiram, dormem. Ser uma vagem significa que você não tem paixão, raiva e a centelha deixou você ... Claro, há um motivo muito forte para se tornar uma vagem. Essas vagens, ao livrar da dor, problemas de saúde e distúrbios mentais, estão, em certo sentido, fazendo o bem. Contudo, deixa o mundo muito maçante, mas que, por sinal, é o mundo que vive dentro da maioria de nós. É o mesmo que as pessoas agradecerem a entrada no exército ou na prisão. Ocorre uma arregimentação, uma ausência de tomadas de decisões a partir de sua própria mente. As pessoas estão se tornando vegetais. Eu não sei qual é a resposta, exceto a consciência disso. É isso que faz um filme como Invasion of the Body Snatchers importante (apud. Whitehead, 2012).
Porém, existem outros elementos extrafílmicos que colocam em evidência que não se trata de um filme macartista: um dos roteiristas do mesmo esteve presente na lista negra de Hollywood e foi membro do Partido Comunista Americano, Richard Collins. Dificilmente se poderia sustentar que um membro do Partido Comunista e perseguido pelo macartismo estaria fazendo um roteiro anticomunista e marcartista. Inclusive nos créditos do filme seu nome não aparece, o que é sintomático do processo de perseguição. O outro roteirista, Daniel Mainwaring, também esteve na lista negra do macartismo e tinha concepções políticas à esquerda. Ele foi roteirista de um filme de título interessante, Intolerância (1950), do diretor Joseph Losey, expulso dos Estados Unidos tal como Chaplin e que produziu outra ficção de crítica ao macartismo dois anos depois, já citada, O Menino dos Cabelos Verdes. Da mesma forma, seria improvável que ele fizesse um filme macartista e, por conseguinte, anticomunista e ele mesmo refuta isso (Whitehead, 2012).
Em síntese, o produtor, o diretor, os roteiristas, não eram simpatizantes e sim opositores ao macartismo (uma forma de autoridade irracional, como diria Siegel). Por isso, a interpretação do filme como sendo macartista não é correta e é mais uma atribuição de significado com pretensão de ser uma interpretação e tem a seu favor relação com o momento histórico de forma mecânica, pois não basta saber do contexto histórico no qual o filme é produzido e sim a perspectiva de quem produz o mesmo (Viana, 2012; Viana, 2009). Desta forma, é inquestionável que se trata de um filme anticonformista e que de forma alguma pode ser entendido como macartista. Da mesma forma, não é um filme antissoviético, a não ser no sentido vago de se considerar que o regime ditatorial russo era conformista e comandado por autoridades irracionais e, portanto, encaixando na crítica geral do conformismo, desumanização e insensibilidade reinantes. Isso significa, também, que não pode ser considerado anticomunista no sentido de ser antimarxista ou na concepção de comunismo de Marx e de todos aqueles que lutam por uma nova sociedade, fundada na igualdade e liberdade, algo bastante distinto do capitalismo estatal que vigorou na antiga URSS[4].
Este filme, no entanto, teve vários remakes. A primeira refilmagem foi a de 1978, com o mesmo título em inglês e que recebeu no Brasil o nome de Invasores de Corpos (Philip Kaufman, EUA, 1978). A história, ao invés de se passar na cidadezinha de Santa Mira, como na primeira versão, é transferida para San Francisco. Outra refilmagem apareceu em 1993, com o título resumido de Body Snatchers (Abel Ferrara, Invasores de Corpos, EUA, 1993), que foi seguida por The Invasion (Invasores, EUA, 2007) e, por fim, outra versão em 2007, Invasion Of The Pod People (Invasores de Almas, EUA, 2007). A mensagem contida no primeiro filme é alterada nos demais, sendo que, no último caso, se torna o seu inverso, se torna anticomunista (num sentido mais amplo do que ser antissoviético). Os alienígenas propõem sociedade sem ricos e pobres, sem melhores e piores, livre manifestação das pulsões sexuais, uma “utopia”, como coloca um personagem.
Enfim, o tema da invasão alienígena como metáfora política está presente em todos estes filmes, porém, sob formas diferentes. Por isso, além da análise do universo ficcional presente em cada um, é necessário analisar o contexto social e histórico no qual foram produzidos e o seu processo de produção. Porém, de uma forma ou de outra, todos estes filmes colocam “invasores” alienígenas que tomam conta dos corpos e almas e a questão principal é saber quem são os invasores, pois aí sim saberemos qual mensagem estes filmes quiseram repassar.
Referências
CUNHAL, Álvaro. O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista. Lisboa: Edições Avante! 1971.

GEADA, Eduardo. Cinema e Transfiguração. Lisboa: Horizonte, 1978.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

VIANA, Nildo. A Concepção Materialista da História do Cinema. Porto Alegre: Asterisco, 2009.

VIANA, Nildo. Cinema e Mensagem. Análise e Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.

WHITEHEAD, John. W. Invasion of the body snatchers
a tale for our times
.
Disponível em http://www.gadflyonline.com/11-26-01/film-snatchers.html Acessado em 04/10/2012.




*             Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG e Doutor em Sociologia/UnB.
[1] Algumas totalmente sem sentido, tais como a que o relaciona com “símbolo de doenças contagiosas” ou medo dos “mistérios da natureza” (Whitehead, 2012).
[2] Inclusive, nesse momento histórico, qualquer crítica social no cinema deveria assumir a forma metafórica, o que faz com que filmes de ficção científica e terror fossem as mais prováveis formas de manifestação (Whitehead, 2012). Em todo regime político ditatorial ou autoritário isso ocorre. Basta ver o caso brasileiro que fez emergir diversas músicas de forte criatividade e caráter metafórico contra o regime por não poder se expressar de forma mais direta, caso bastante comum em relação ao caso americano do período do macartismo.
[3] Aqui se trata da velha interpretação pró-soviética de que todo mundo que é (era) contra a União Soviética é “direitista” ou “pequeno-burguês”, como já colocava o líder do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal (1971), e que incluía até Marcuse e outros nesse rótulo.
[4] A afirmação de Siegel, por exemplo, é bem semelhante à crítica que Marx faz da alienação, relação social na qual alguns seres humanos são controlados por outros (proletários pelos capitalistas) e suas consequências, entre elas o fetichismo e a desumanização. Segundo Marx: “chegamos à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento – enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal” (Marx, 1983, p. 68).
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Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. Quem São os Invasores? A Crítica ao Marcartismo em "Vampiros de Almas". Revista Espaço Livre, vol. 07, num. 14, jul./dez. 2012.

https://www.academia.edu/6936422/Quem_S%C3%A3o_os_Invasores_A_Cr%C3%ADtica_ao_Marcartismo_em_Vampiros_de_Almas_

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