MARX E A ESFERA CIENTÍFICA
Nildo Viana
Resumo:
O presente artigo discute a
contribuição de Karl Marx para pensar a esfera científica. A teoria da esfera
científica focaliza o que outros denominam “comunidade científica” ou “campo
científico”, tendo como fontes inspiradoras Weber, Bourdieu e principalmente
Karl Marx, que lança as bases teórico-metodológicas e algumas reflexões diretas
sobre a produção científica e seus produtores. Partindo das passagens que Marx
realiza em sua discussão sobre a subesfera econômica, colocando as divisões de
concepções e práticas no seu interior, bem como a recepção negativa de sua obra
no interior da mesma, observamos que ele contribui e avança mais do que outros
que focalizaram a questão da esfera científica especificamente, por partir da
perspectiva do proletariado e do método dialético.
Palavras-chave: Esfera Científica;
Subesfera Econômica; Marx.
A esfera científica é uma das esferas sociais existentes,
que manifestam determinada divisão do trabalho intelectual na sociedade
capitalista, e é constituída pelos cientistas, uma fração da classe
intelectual. A teoria da esfera científica resgata elementos das obras de Weber
(1971) e Bourdieu (1994), e, ao mesmo tempo, realiza sua crítica e superação,
tendo no pensamento de Marx a sua base teórico-metodológica. Contudo, além da
contribuição teórico-metodológica de Marx, expressa no método dialético,
materialismo histórico, teoria do capitalismo, teoria da ideologia, etc.,
existem textos em que este autor trata diretamente de questões relativas à
esfera científica, sem mencionar este conceito e trabalhar uma teoria completa
sobre o assunto. Nesse sentido, resgatar as referências de Marx a respeito do
que denominamos esfera científica se torna fundamental e ajuda a esclarecer
suas contribuições diretas para a reconstituição mental desse fenômeno e seu
pioneirismo intelectual ao já abordar elementos fundamentais para sua
compreensão. Essas referências diretas estão em diversas obras, em algumas mais
desenvolvidas, e abrem amplas perspectivas críticas e analíticas que já apontam
para uma presciência da esfera científica.
O conceito de esfera científica remete a uma teoria das
esferas sociais[1]
que expressam elementos da sociedade capitalista derivados da ampliação da
divisão social do trabalho. As esferas sociais são partes do que Marx denominou
“superestrutura”, ou formas sociais, que derivam do modo de produção capitalista
e se caracterizam por expressar um processo de especialização (geração de
atividades especializadas, constituindo os especialistas na produção cultural e
subdivisões internas). Essa especialização gera a classe intelectual, enquanto
responsáveis pela produção cultural na sociedade moderna, e suas subdivisões,
novas formas de especialização, gerando as esferas sociais[2],
tais como a artística, jurídica, científica, etc. (e com o desenvolvimento do
capitalismo acaba ampliando sua subdivisão interna, pois a esfera artística tem
a subesfera musical, teatral, literária, quadrinística, cinematográfica, etc.,
para citar apenas um exemplo).
Essas esferas sociais geram um conjunto de elementos
definidores, que não poderemos desenvolver aqui, que são seus processos
específicos de organização, produção, formação, bem como dinâmica interna de
relações entre os indivíduos concretos e reais que as fazem existir, bem como
segmentos que realizam uma disputa interna intimamente relacionada com a
posição diante da sociedade, manifestando interesses de classes e valores,
representações, etc. Esses elementos não poderão ser desenvolvidos aqui, mas
são importantes para entender que as esferas sociais são formas sociais
derivadas do modo de produção capitalista e marcadas pela especialização,
gerando especificidades, agentes especializados e processos sociais internos e
de relação específica com o conjunto da sociedade.
Essas esferas sociais são formas de concretização da divisão
do trabalho intelectual e possuem subdivisões, entre elas, a esfera científica.
A esfera científica é formada pelos cientistas e é o que foi chamado por alguns
de “comunidade científica”, “esfera intelectual”, “campo científico”. Ela é
constituída pelos cientistas, indivíduos reais e concretos, cuja atividade
atribuída a eles na divisão do trabalho intelectual é a produção cultural
específica de ciência (independente de sua qualidade) e elementos necessários
para sua produção e reprodução. Ela constitui uma forma específica de
organização, formação, produção e dinâmica interna, apesar de compartilhar
vários elementos em comum com as demais esferas. Já se produziu muito material
(teórico e/ou informativo) sobre isso, usando outros termos ou focalizando
algum aspecto específico. O nosso objetivo aqui é ver como Marx tratou diretamente
a questão da esfera científica, mesmo sem usar tal expressão, pois ela vai além
de muitas outras abordagens da mesma, tal como buscaremos fundamentar a seguir.
Marx não desenvolveu textos mais amplos sobre a esfera
científica e nem usou este termo ou outros semelhantes, mas, apesar disso, tem,
devido sua base teórico-metodológica, uma contribuição muito mais profunda do
que outros pensadores nesse caso[3]. Além
dos textos em que ele efetua uma crítica das ideologias e dos ideólogos, tal
como se observa em A Ideologia Alemã, A
Sagrada Família, A Miséria da Filosofia, entre outras, ele faz diversas
referências ao processo de produção científica. O nosso objetivo é destacar os
textos fundamentais dele sobre o que denominamos esfera científica e isso é mais
perceptível em seu prefácio de O Capital.
Apesar disso, ele, na mesma obra, faz diversas afirmações a respeito da
economia política, bem como sobre ciência em geral, que são as principais
referências para nossa análise.
O primeiro elemento é entender o que Marx concebia como
ciência. Marx iniciou sua produção intelectual na área de direito, por vontade
dos pais, mas logo se transferiu para a filosofia[4].
Os seus primeiros escritos ocorrem no contexto de um estudante de filosofia,
especialmente sua tese de doutorado, A
Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro. Estes e outros textos
filosóficos antecedem o seu desenvolvimento e ruptura com sua “consciência
filosófica”. É com a sua aproximação com as questões políticas e sociais, tal
como a questão do roubo de lenha por camponeses, é que ele começa a estudar a
economia política, o que ele acrescenta aos seus estudos filosóficos e
políticos (socialismo da época). Ao escrever o texto Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ele inaugura
o materialismo histórico em sua forma inicial e sintética. Ele ainda não se
desvencilha da filosofia, mas nos textos posteriores, tal como em A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1991),
entre outras, ele vai se afastando cada vez mais do pensamento filosófico
(VIANA, 2000; MARCUSE, 1978; KORSCH, 1977).
Contudo, isso não significa, como alguns deduzem, que ele se
tornou um “cientista”[5].
No fundo, ele preservou vários aspectos da filosofia, em sua versão hegeliana e
feuerbachiana, mas ao mesmo tempo realizando a sua crítica[6].
Essa ruptura com a filosofia não significou a adesão à ciência. Nesse sentido,
é fundamental perceber que ao mesmo tempo que ele se desvencilha da filosofia,
ele não faz, como muitos outros, uma adesão à ciência e sim a crítica desta. É
por isso que suas obras estão sempre acompanhadas da palavra “crítica” (e cujo
início é justamente o texto Introdução à
Crítica da Filosofia Política de Hegel). O Capital tinha como subtítulo Crítica
da Economia Política. Não se trata, como era comum na época, de “manual de
economia política”, “introdução à economia política”, etc. Marx não era um
economista e nem um “cientista” no sentido moderno, e burguês, como já dizia
Korsch (1977), do termo. A sua concepção de crítica, no entanto, não era apenas
negativa, pois ela era acompanhada pela teoria.
É possível analisar uma certa ambiguidade de Marx no que se
refere ao uso do termo “ciência”. Algumas vezes ele usa esse termo, outras
vezes o recusa. Ele usou o termo ao utilizar a expressão “socialismo
científico” (retirado de Proudhon) e em algumas outras passagens. No entanto, a
sua concepção de ciência, ou seja, quando ele nomeia sua própria produção com
este termo, ele não pensa no sentido comum da palavra. Korsch (1983) apresenta
uma explicação desse processo ao esclarecer que Marx usava este termo em sua
forma positiva a partir da concepção hegeliana. Para Hegel, a ciência é um
saber totalizante que expressa a realidade e que em Marx teria a precondição de
expressar o proletariado.
Nesse sentido, a expressão ciência nada tem a ver com o que
se cristalizou como sua definição, que remete a neutralidade, objetividade,
empirismo, especialização, etc. Ele não buscou fundar uma ciência particular,
como muitos faziam na época, que era o período de surgimento das ciências
humanas e sim uma teoria mais ampla que ele considerava que deveria englobar a
natureza e a sociedade, embora seu foco tenha sido nesta. A sua produção
intelectual não se limitou ao âmbito restrito de uma ciência particular e por
isso não só desenvolveu o método dialético, como estruturou uma teoria da
história e uma teoria do capitalismo, além de diversos aspetos derivados em
ambos os casos.
Mas é no prefácio de O
Capital que ele desenvolverá sua análise mais interessante da dinâmica
interna da esfera científica através de sua manifestação concreta na subesfera econômica.
Nesses prefácios ele aponta a relação entre luta de classes e produção
científica, desenvolvimento capitalista e economia política e, por último,
diferentes manifestações ideológicas que expressam ideologias e ideólogos
diferentes. O fio condutor da análise é a relação entre o economista e
desenvolvimento capitalista, luta de classes e produção científica. No Prefácio à Primeira Edição, Marx coloca a
questão do interesse privado:
No
campo da Economia Política, a livre pesquisa científica depara-se não só com o
mesmo inimigo que em todos os outros campos. A natureza peculiar do material
que ela aborda chama ao campo de batalha as paixões mais violentas, mesquinhas
e odiosas do coração humano, as fúrias do interesse privado (MARX, 1988, p. 19).
Nesse trecho, Marx realiza uma delimitação: “campo da
economia política”, ou seja, nesse setor específico e especializado de produção
intelectual, o que nos chamamos subesfera econômica. Essa percepção é
acompanhada por uma oposição entre “livre pesquisa científica”[7] e
seu inimigo, “as fúrias do interesse privado”. Essa luta cultural que opõe
“livre pesquisa científica” e “as fúrias do interesse privado” ocorre em “todos
os outros campos”, ou seja, em todos os setores da produção intelectual, todas
as esferas sociais. Essa oposição se manifesta em todos os lugares, mas a
“natureza peculiar” do tema, o modo de produção capitalista, chama, para o
“campo de batalha”, as “paixões mais violentas, mesquinhas e odiosas”. O
interesse privado é, especialmente, o interesse mercantil: “a Igreja Anglicana
da Inglaterra, por exemplo, perdoaria antes o ataque a 38 de seus 39 artigos de
fé do que a 1/39 de suas rendas monetárias” (MARX, 1988, p. 19).
Marx aponta que esse processo está relacionado com a luta de
classes e, mais especificamente, com a vitória das revoluções burguesas. A
economia política clássica se produz antes desse processo de deterioração da
produção intelectual da classe burguesa que se torna conservadora com o
processo revolucionário e sua ascensão à posição de classe dominante. David
Ricardo é o último grande representante da economia política num momento em que
a luta entre burguesia e proletariado não estava suficientemente desenvolvida.
O seu
último grande representante, Ricardo, toma afinal conscientemente, como ponto
de partida de suas pesquisas, a contradição dos interesses de classe, do
salário e do lucro, do lucro e da renda da terra, considerando, ingenuamente,
essa contradição como uma lei natural da sociedade. Com isso, a ciência
burguesa da economia havia, porém, chegado aos seus limites intransponíveis.
David Ricardo seria, ao lado de Adam Smith, um clássico da
economia política, apesar de não ultrapassar os limites intransponíveis para
quem parte de uma perspectiva burguesa. O momento histórico posterior,
1820-1830, no entanto, faz emergir um processo de expansão e vulgarização da
obra de Ricardo, bem como a luta contra a velha escola. Algumas polêmicas de
interesse e outros detalhes seriam explicados pelas circunstâncias da época.
Por
um lado, a grande indústria mesma apenas começava a sair da sua infância, o que
se comprova pelo fato de que só com a crise de 1825 ela inaugura o ciclo
periódico de as vida moderna. Por outro lado, a luta de classes entre capital e
trabalho ficou restrita a segundo plano, politicamente por meio da contenda
entre os governos e interesses feudais agrupados em torno da Santa Aliança e a
massa popular conduzida pela burguesia; economicamente por meio da disputa do
capital industrial com a propriedade aristocrática da terra, que se escondia,
na França, atrás da oposição entre minifúndio e latifúndio e que, na
Inglaterra, irrompeu abertamente desde as leis do trigo. Nesse período, a
literatura sobre Economia Política lembra, na Inglaterra, o período de
tempestuoso avanço econômico ocorrido na França depois da morte do Dr. Quesnay,
mas apenas como crise que se tornou, de uma vez por todas, decisiva (MARX,
1988, p. 23).
Esse é um segundo período da economia política inglesa, que,
no entanto, é semelhante ao que se desenvolveu no pensamento econômico na
França. A economia clássica de Adam Smith e David Ricardo se desenvolveu numa
época em que a luta de classes entre burguesia e proletariado era secundária
diante da luta entre a primeira e a classe latifundiária. Após 1820 isso começa
a se alterar e as revoluções burguesas completam um ciclo, abrindo nova fase do
desenvolvimento da economia política:
A
burguesia tinha conquistado o poder político na França e Inglaterra. A partir
de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez
mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia
científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era
ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo
ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a
espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou a má
consciência e a má intenção da apologética. No entanto, mesmos os importunos
tratadozinhos que a Anti-Com-Law-League chefiada pelos industrialistas Cobden e
Bright, lançava aos quatro ventos, possuíam, se não um interesse científico, ao
menos histórico por sua polêmica contra a aristocracia fundiária. Desde Sir
Robert Peel, também este último esporão crítico foi extraído da economia vulgar
pela legislação livre-cambista (MARX, 1988, p. 23).
Marx coloca que a burguesia, ao se tornar classe dominante,
faz a economia política recuar, substituindo a “pesquisa desinteressada” e
“imparcial” pela “espadacharia mercenária”. A luta de classes entre burguesia e
nobreza culmina com a vitória da primeira e isso significa que a pesquisa agora
é feita de acordo com seus interesses de classe. Desta forma, surge a economia
política vulgar. Obviamente que quando Marx diz que a pesquisa desinteressada e
imparcial foi substituída pela apologia, isso está no contexto da emergência do
interesse privado e do poder do dinheiro, transformando os economistas vulgares
em mercenários. Assim, como colocamos em outro lugar (VIANA, 2014a) não se
trata de uma suposta imparcialidade ou desinteresse de classe e sim pessoal, o
que antes ele havia chamado “interesse privado”. Os economistas se tornam cada
vez mais atrelados aos capitalistas e dependentes do seu dinheiro. Isso é parte
do processo de mercantilização que toma conta da sociabilidade capitalista de
forma cada vez mais ampla e intensa, atingindo as esferas sociais, apesar de
Marx não explicitar ou enfatizar isso.
Essa nova fase da economia política expressa a nova situação
da luta de classes. A economia política vulgar toma o lugar da clássica. Thomas
Malthus era um dos seus principais representantes. Mas uma outra tendência
também emergiu:
A
revolução continental de 1848 também repercutiu na Inglaterra. Homens que ainda
pretendiam ter algum significado científico e que queriam ser algo mais do que
meros sofistas e sicofantas das classes dominantes procuravam sintonizar a
Economia Política do capital com as reivindicações não mais ignoráveis do
proletariado. Daí surge um sincretismo desprovido de espírito, cujo melhor
representante é Stuart Mill (MARX, 1988, p. 23).
A partir de 1848 emerge a economia política eclética. Isso
se reproduz também na Alemanha. Contudo, nesse país as coisas ocorrem
diferentemente. O desenvolvimento incipiente do modo de produção capitalista
nesse país tornava difícil o desenvolvimento da economia política, além do que,
devido ao fato de que na França e Inglaterra já havia assumido o caráter de um
confronto de classe, então acabou sendo impossibilitado. Assim, dois grupos se
formaram na Alemanha, importando suas ideias da Inglaterra:
Nessas
circunstâncias seus porta-vozes dividiram-se em dois grupos. Uns, astutos,
ambiciosos e pragmáticos, juntaram-se sob a bandeira de Bastiat, o mais
superficial e, por isso mesmo, o mais bem-sucedido representante da economia
apologética vulgar; outros, ciosos da catedrática dignidade de sua ciência,
seguiram J. St. Mill na tentativa de reconciliar o irreconciliável. Assim como
na época clássica da economia burguesa, também na época da sua decadência os
alemães permaneceram meros discípulos, repetidores e imitadores, mascates
modernos do grande atacado estrangeiro (MARX, 1988, p. 24).
Aqui Marx explica o atraso e subordinação da economia
política na Alemanha devido ao seu capitalismo retardatário em relação ao
capitalismo inglês e francês. E opõe duas tendências: a apologética e eclética.
A apologética é vinculada diretamente ao capital, é composta por “mercenários”
e “ambiciosos”, enquanto que a eclética já visa algum reconhecimento
científico. Além disso, a primeira representa o capital e a segunda também,
através de um ecletismo que apenas discursivamente representa uma conciliação
do inconciliável.
Essa análise da subesfera econômica nos ajuda a entender
alguns aspectos da esfera científica. Marx distingue entre os clássicos, os
ecléticos e os vulgares. Sem dúvida, essas posturas são perceptíveis na classe
intelectual em geral e se manifestam, obviamente, nas esferas sociais e
subesferas. É o caso daqueles que podem ser considerados hegemônicos,
dissidentes e venais, respectivamente[8]. Os
hegemônicos são aqueles que são o que Bourdieu (1994) denominou “dominantes” no
campo científico e os dissidentes os que ele denominou “dominados”. No entanto,
Bourdieu deixa de lado outros segmentos das esferas sociais, como os venais e
Marx, cerca de um século antes, já havia identificado. No entanto, Marx supera
Bourdieu ao perceber mais uma possibilidade, tal como se pode perceber nesse
trecho:
O
desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía a possibilidade
de qualquer desenvolvimento original da economia burguesa, mas não a sua
crítica. À medida que tal crítica representa, além disso, uma classe, ela só
pode representar a classe cuja missão é a derrubada do modo de produção
capitalista e a abolição final das classes – o proletariado (MARX, 1988, p. 24).
Essa outra tendência é que denominamos intelectuais
engajados. Esses seriam aqueles que representam a crítica revolucionária que é
realizada a partir da perspectiva do proletariado. Em Bourdieu, só existem os
dominantes e dominados que estão em luta concorrencial pela autoridade
científica. Em Marx, existem aqueles que estão preocupados com isso (clássicos
e ecléticos) e os vendidos (vulgares), mas também a crítica que mostra outra
possibilidade, tal como ele mesmo faz. Marx é representante dessa tendência
crítico-revolucionária e complexifica ainda mais as disputas nas esferas
sociais e subesferas, bem como as diversas posturas na classe intelectual. No
período em que Marx escreveu, ainda não existiam um grande contingente de
intelectuais ambíguos, muito menos na economia política e aqueles que poderiam
ser considerados “amadores” ainda não eram identificados como distintos dos
demais, mesmo porque a própria economia política ainda estava em formação como
subesfera.
Desta forma, Marx contribui com a compreensão da esfera
científica e mais especificamente a subesfera econômica, ao delimitar a
existência de quatro tendências no seu interior, duas mais integradas, uma mais
subordinada ao capital e outra, mais externa, expressando o proletariado. Além
disso, ele relaciona a formação e desenvolvimento da subesfera econômica com o
desenvolvimento capitalista, a luta de classes e as formas ideológicas de cada
postura intelectual. Nesse sentido, a sociologia da ciência de Bourdieu está
muito aquém da teoria de Marx.
Marx também contribui com a percepção de algumas formas de
luta cultural e competição dentro da subesfera econômica, mas que também se
manifesta e reproduz na esfera científica. Ele coloca seu depoimento através da
forma como usaram um mecanismo competitivo muito comum contra ele mesmo: o
silenciamento e a crítica.
Os
porta-vozes eruditos e não eruditos da burguesia alemã procuraram primeiro
aniquilar O Capital por meio do
silêncio, como tinham conseguido fazer com meus escritos anteriores. À medida
que essa tática já não correspondia às circunstâncias da época, passaram a
redigir, pretextando criticar meu livro, instruções “para tranquilizar a
consciência burguesa”, mas encontraram na imprensa operária – vejam-se, por
exemplo, os artigos de Joseph Dietzgen no Voksstaat
– lutadores de maior porte, aos quais estão devendo resposta até hoje (MARX,
1988, p. 24).
Aqui Marx revela alguns dos principais mecanismos de
competição na esfera científica: o silenciamento e a crítica. Geralmente se
lança a mão do primeiro. Uma vez que isso em muitos casos não funciona, então
se usa o segundo, a crítica[9].
Contudo, hoje isso é um pouco diferenciado, pois junto ou após o silenciamento,
vem a pseudocrítica, para, somente posteriormente, haver a crítica. O
silenciamento é fazer de conta que a obra, teoria, análise, não existe ou não
merece comentário. O que fizeram com Marx repetiram exaustivamente na
competição na esfera científica e em suas subesferas. O segundo procedimento, a
pseudocrítica, é apenas desqualificação desqualificada, adjetivos pejorativos, e
nada de mais profundo ou mesmo que demandasse leitura ou reflexão. Esse
procedimento vai se desenvolver em período histórico posterior. Na época de
Marx, o que ocorreu foi, após o silêncio, a crítica. Contudo, a crítica foi
rebatida e assim perdeu sua força. No caso de Marx não se tratava de competição
na subesfera econômica e sim luta de classes, pois os economistas,
“representantes ideológicos da burguesia” (MARX, 1989) tinham que combater a
perspectiva do proletariado expressa em O
Capital e também rebater a crítica que este fez aos mesmos ou seus
semelhantes.
O Capital realiza
uma crítica ao modo de produção capitalista e às ideologias produzidas pela
economia política e por isso os economistas tinha que combater tal obra e seu
autor. Isso, no entanto, provoca o texto de posfácio escrito por Marx, que, em
sua anticrítica, acaba criticando não apenas os produtos (ideologias) da
subesfera econômica, mas ela mesma com suas divisões (clássicos, ecléticos e
vulgares), suas ligações diretas com o capital, seus interesses. O que Marx
revela é que os clássicos avançaram o máximo que poderiam partindo de sua
consciência burguesa, os ecléticos não conseguiram avançar e os vulgares não
saiam da apologia do capital. Os clássicos e ecléticos tinha interesses
privados ligados à sua posição de economistas, interesses de indivíduos da esfera
científica e da subesfera econômica, enquanto que os vulgares tinham interesses
tão-somente financeiros, por isso totalmente no terreno da apologia ao capital.
A crítica, no caso de Marx, não é um mecanismo de competição
e sim uma necessidade de superação do modo de produção capitalista e das
ideologias que contribuem com sua reprodução. Ela é uma estratégia de luta, ou
seja, parte da luta cultural efetivada por Marx contra as ideologias e cultura
burguesa. Da mesma forma, a razão do silenciamento e da crítica, é, por um
lado, um mecanismo de competição e uma luta cultural da burguesia e classes
auxiliares contra uma obra de crítica ao modo de produção capitalista.
Obviamente que, temos, num caso, um compromisso com a emancipação humana e luta
proletária, de Marx, e noutro um compromisso com a dominação burguesa. A obra
com seu caráter crítico, o silenciamento, a crítica burguesa, a resposta à
crítica, é luta cultural entre burguesia e proletariado via seus representantes
intelectuais.
No caso de Marx, obviamente que há a satisfação da
realização de uma obra de grande importância e qualidade, o que faz parte de
sua luta cultural, e o desejo de reconhecimento disso, afinal, a práxis, como
atividade teleológica consciente, que constituiu O Capital, significa autorrealização e autorreconhecimento na obra.
Ao contrário do trabalho alienado, na qual o indivíduo não controla o seu
trabalho e o resultado do seu trabalho, há o estranhamento e a insatisfação
diante do objeto produzido. Nesse sentido, como Marx não participa diretamente
da subesfera econômica, então seu único interesse pessoal era o reconhecimento
do trabalho realizado. Do lado dos críticos burgueses, o interesse pessoal é
usar o ataque contra Marx para poder ganhar mais espaço na subesfera econômica,
agradar os financiadores, tranquilizar sua consciência burguesa diante do
desmascaramento da ideologia realizado pelo autor da obra.
No reino da aparência, parece que a luta é a mesma e tem os
mesmos objetivos, o que é apenas não conseguir ir além do aparente ou
compartilhar com o que manifesta o mundo das aparências. Esse é o caso de
Bourdieu (1994), para quem só vê dominantes e dominados em luta concorrencial e
até compara a oposição entre Einstein e Poincaré com a de Marx e Durkheim, algo
sem sentido, porquanto Einstein não era tão revolucionário no aspecto político,
mas principalmente porque ele realmente era integrado na subesfera física, renomado
mundialmente. A única semelhança seria no aspecto político, mas mesmo nesse
havia muitas diferenças entre Marx e Einstein. O último, professor, cientista
renomado na subesfera e esfera científica, Prêmio Nobel, estava muito distante
da postura de Marx e por isso a comparação é destituída de sentido. Da mesma
forma, Marx não realiza nenhuma competição com Durkheim, que, aliás, nem
produzia quando ele era vivo. Durkheim, por sua vez, se opunha a Marx, por dois
motivos: um teórico-metodológico, a influência de Marx na sociologia nascente,
e outro político, a defesa do capitalismo em contraposição ao comunismo. Esse
último aspecto, o político, fica ausente nas análises de Bourdieu e acaba
reduzindo apenas a luta competitiva dentro da esfera científica, um empobrecimento
da realidade concreta que é mais rica que o modelo dos campos do sociólogo
francês.
Em síntese, Marx contribui para analisar a esfera científica
principalmente com sua análise da subesfera econômica. Ao colocar os problemas
dessa subesfera e apresentar sua situação marginal e mecanismos de competição
abre caminho para analisar a esfera científica não através do seu isolamento
fantástico, tal como fazem alguns ideólogos e de certa forma Bourdieu, e sim
relacionando-a com o desenvolvimento capitalista, as lutas de classes, os
interesses (privados e/ou de classes), sua dinâmica interna, ou seja, uma
percepção muito mais ampla e realizada por alguém que não tinha ela como foco
analítico. E isso apenas coloca, mais uma vez, que a perspectiva de classe é
fundamental para o desenvolvimento ou emperramento da consciência.
Referências
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Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
JACOBY,
Russell. Os Últimos Intelectuais: A
Cultura Americana na Era da Academia. São Paulo: Trajetória Cultural:
Edusp, 1990.
KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona, Ariel, 1983.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
MARCUSE, Herbert.
Razão e Revolução. Hegel e o Advento
da Teoria Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARX,
Karl e ENGELS,
Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 1991.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre Arte e Literatura. São Paulo: Global,
1986.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1989.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. A
Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. 2ª edição,
Porto Alegre: Zouk, 2011.
VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra. Goiânia:
Edições Germinal, 2000.
VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 4ª
edição, Rio de Janeiro: Zagodoni, 2014a.
VIANA, Nildo. Intelectuais Venais e
Axiologia. Revista Axionomia
(GPDS/UFG). Vol. 01, num. 01, jan./jun. de 2014b.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
WRIGHT MILLS, C. A Imaginação
Sociológica. 6ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
[1]
Sobre esses conceitos e teorias, é possível consultar, em breve, as obras no
prelo As Esferas Sociais e A Esfera Científica, na qual são
desenvolvidos de forma detalhada e aprofundada.
[2]
Nesse sentido, aqui fica claro uma das distinções entre nossa abordagem e as de
Weber e Bourdieu, que pensam as “esferas” ou “campos” como divisões
especializadas dentro da sociedade que não são apenas delimitadas às formas
sociais (superestrutura), e por isso podem falar em “esfera econômica” e “campo
econômico”, respectivamente, o que é um equívoco, pois de acordo com as “leis
gerais” que eles atribuem às esferas ou campos, certas relações sociais, tais
como as existentes no modo de produção capitalista, não se encaixam e são
radicalmente distintas. O mesmo vale, inclusive, para outros elementos da
divisão social do trabalho, como o chamado “campo esportivo”, na expressão de
Bourdieu, que realmente se localiza nas formas sociais e não no modo de produção
capitalista, mas não expressa produção intelectual, não sendo uma esfera
social, já que sua organização e dinâmica diferem radicalmente. O problema,
principalmente no caso de Bourdieu, por ser algo mais desenvolvido, é ao invés
de desenvolver conceitos para expressar a realidade (em sua complexidade e daí
a proliferação de conceitos numa sociedade extremamente complexa que eleva a
divisão social do trabalho a níveis nunca atingidos por outras formas de
sociedade), acaba encaixando ela em modelos construídos sem se atentar para as
diferenças existentes concretamente.
[3]
Esse é o mesmo caso do que ocorre no que se refere à esfera artística, na qual
apesar de não dedicar nenhum estudo específico sobre a mesma, acaba
contribuindo mais do que outros que escrevem densas e volumosas obras a este respeito
(cf. VIANA, 2011), em seus escritos esporádicos sobre arte (MARX e ENGELS,
1986).
[4] A
filosofia, para nós, é uma forma de saber distinto da ciência (VIANA, 2000). No
entanto, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, ela cada vez mais é
subordinada à ciência. Assim como na sociedade feudal ela foi subordinada à
teologia, no capitalismo é subordinada à ciência. Além dessa subordinação à
ciência que ocorre no plano intelectual, isso também ocorre no plano institucional,
e por isso não a consideramos uma esfera social e sim uma subesfera da esfera
científica. No entanto, é preciso estar atento para o fato de que esse processo
de subordinação da filosofia à ciência ocorreu após um período de autonomização
da mesma. A burguesia nascente, para combater a nobreza e a teologia, lançou
mão das ciências nascentes (as naturais, no início, e depois as humanas) e da
filosofia, gerando uma certa autonomia para esta que pode ser identificada do
período do renascimento até o iluminismo. Após as revoluções burguesas, a
filosofia é abandonada e subordinada, pois além do campo das ciências naturais
já bastante desenvolvido nessa época, neste momento nascem as ciências humanas.
No momento em que Marx estuda filosofia na universidade, era a época na qual as
ciências humanas estavam emergindo e a filosofia perdendo cada vez mais espaço,
só que no caso alemão, onde Marx se encontrava, por ser um país capitalista
retardatário, ela ainda tinha uma força considerável.
[5]
Esse é o caso de Althusser e suas interpretações ideológicas do pensamento de
Marx.
[6] A
crítica da filosofia em Marx não se resume apenas ao fato dos filósofos se
limitarem a interpretar a realidade ao invés de buscar transformá-la, pois há
outro elemento que ele recusa na filosofia que é os sistemas especulativos que
elas produzem. Isso é tão correto que ele irá constituir seu conceito de
ideologia ao criticar os filósofos neohegelianos e somente depois no caso dos
cientistas.
[7]
Aqui o termo científico está num sentido positivo, ou seja, na perspectiva de
Marx.
[8]
Para uma análise dos venais, veja Viana (2014b). Além destas posturas
intelectuais, identificamos mais três: ambíguos, engajados e amadores (VIANA,
2014b).
[9]
Nesse caso, Marx antecedeu as observações de Wright Mills e Russel Jacoby
(WRIGHT MILLS, 1982; JACOBY, 1990).
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Artigo originalmente publicado:
VIANA, Nildo. Marx e a Esfera Científica. Revista Espaço Livre, vol. 09, num. 18, jul./dez. 2014.
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