AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS COMO FORMA DE ARTE
Nildo Viana*
Resumo:
O
presente artigo aborda as histórias em quadrinhos como forma de arte. A partir
de uma concepção não-elitista de arte e de uma discussão teórico e conceitual
sobre o significa da arte, entendida como expressão figurativa da realidade, o
autor demonstra que as histórias em quadrinhos possuem o mesmo caráter que as
demais produções artísticas, o que se revela em seu universo ficcional, bem
como discute questões derivadas. A conclusão final é a de que as histórias em
quadrinhos são uma forma de arte específica e que somente numa concepção
elitista o seu caráter artístico seria questionado.
Palavras-chave:
Arte, histórias em quadrinhos, forma de arte, universo ficcional, expressão
figurativa da realidade.
Abstract:
This article discusses the
comics as an art form. From a non-elitist conception of art and a theoretical
and conceptual discussion about the meaning of art, understood as figurative
expression of reality, the author demonstrates that the comics have the same
character as other artistic productions, which reveals itself in its fictional
universe, as well as discuss matters arising. The final conclusion is that
comics are a specific form of art and that only an elitist conception its
artistic character would be questioned.
Keywords: art, comics, art
form, fictional universe, figurative expression of reality.
A arte é compreendida por muitos
como algo “sublime”, como expressão da beleza, da criatividade, entre outras
possibilidades interpretativas. As grandes obras de arte seriam produtos de
gênios, como Mozart, Leonardo Da Vinci, Bertolt Brecht, Balzac, entre outros.
Nesse sentido, o que é considerado “arte” é algo raro, distinto das capacidades
comuns ou medianas da maioria dos indivíduos. Essa concepção revela um caráter
elitista e problemático que passa a classificar como arte apenas algumas
manifestações culturais, excluindo outras, seja por sua forma ou pelo seu
conteúdo.
É isso que explica que o cinema
e as histórias em quadrinhos foram consideradas, por muito tempo e isso ainda
encontra defensores até hoje, como não sendo arte, bem como também elucida a
desclassificação como arte de determinadas manifestações musicais (as músicas
“bregas”, por exemplo), entre outros exemplos. O nosso objetivo aqui é
justamente apresentar uma concepção distinta de arte e, por conseguinte, oposta
a respeito do caráter das histórias em quadrinhos (e do cinema), defendendo a
tese de que elas são uma forma de arte, o que nos leva a discutir o conceito de
arte e forma de arte, entre outros aspectos, para demonstrar as razões pelas
quais defendemos essa ideia.
Arte e Esfera Artística
O que é a arte? Essa é uma pergunta
difícil de ser respondida, sendo que muitos não conseguiram encontrar uma
resposta e alguns tentaram, com maior ou menor sucesso. Não apresentaremos as
diversas concepções de arte existentes, pois isso não seria muito proveitoso.
Apenas destacamos que as representações ilusórias sobre a arte, concebendo-a
como algo “sublime”, “superior” ou como um mundo fechado em si mesmo, são
problemáticas e elitistas. No fundo, revelam o fetichismo da arte já criticado
pelo sociólogo Bourdieu (1996) e por outros (VIANA, 2007a).
A arte é uma produção humana e, portanto, é algo
bastante comum, prosaico, um produto histórico e social. Não tem nada de
sublime ou superior, podendo ser bastante pobre e inferior. Obviamente que a
concepção elitista da arte reconhece como tal apenas as grandes obras e por
isso afirmar que ela pode ser pobre e inferior pode parecer estranho. No
entanto, mesmo as grandes obras podem ser bem “pequenas” e medíocres, pois sua
grandiosidade não é algo dado e acima dos interesses, valores, concepções,
daqueles que assim as avaliam.
A resolução desse problema só
pode ocorrer através de uma definição do que é arte. Obviamente que podemos
partir das grandes obras de arte, tal como um quadro de Picasso, uma música de Beethoven,
uma peça de Moliére, para realizar tal definição. Contudo, porque tais obras
seriam “grandes”? E por qual motivo um conto do Zé da Silva não poderia ser
considerado “grande”? A própria ideia de “grandes obras” já é problemática em
si e ao colocá-las como “grande” significa que existe o “pequeno” e que a
diferença não é de substância e sim de forma, grau ou quantidade. Essas
distinções revelam valores. Estes valores são ligados a uma concepção elitista
de arte. São os valores dominantes, seja da esfera artística ou dos setores
intelectualizados da sociedade. Estes valores reproduzem as relações sociais
existentes e, portanto são manifestações axiológicas (VIANA, 2007b). Desta
forma, a definição de arte deve englobar tanto o que se considera “grande” como
o que se considera “pequeno”, tanto o bom quanto o ruim.
A arte é expressão figurativa da
realidade (VIANA, 2007a), ou seja, uma criação fictícia de uma realidade
paralela ao mundo realmente existente. Essa concepção de arte engloba tanto as
grandes como as pequenas obras de arte, desde que expressem figurativamente a
realidade. E essa realidade que é expressa nas obras de arte é a sociedade em
seu conjunto, aspectos dela, ou a realidade dos sentimentos, desejos, valores,
do indivíduo, mesmo sua intimidade e inconsciente, que a produz. Sendo assim,
qualquer poesia, peça teatral, conto, música, pintura, entre outras manifestações
artísticas, são obras de arte.
A diferença entre as diversas
músicas, peças teatrais, obras literárias, entre outras manifestações
artísticas, são entendidas não com uma divisão entre “arte” e “não arte” e sim
entre arte de qualidade ou sem qualidade, sendo que isto remete a diversas
outras questões, inclusive de valores (VIANA, 2007b). Nesse sentido, os livros
de literatura de Paulo Coelho são obras de arte, da mesma forma que os livros
de Lima Barreto, Kafka, Flaubert, entre milhares de outros, bem como as poesias
de autodidatas, como as de Enes da Cunha Teles. O que pode distingui-las é a
avaliação das mesmas, que são marcadas por valores, alguns supervalorando as
formas, outros o conteúdo, outros integrandos ambos os elementos.
No fundo a recusa em considerar
arte aquilo que não é produzido pelos especialistas na produção artística, os
indivíduos da esfera artística, os artistas, é um primeiro equívoco a ser
superado. A esfera artística, que segundo Marx e outros (MARX e ENGELS, 1986;
VIANA, 2007a; BOURDIEU, 1996), surgiu na sociedade capitalista, graças à
expansão da divisão social do trabalho, coloca uma oposição entre iniciados e
leigos, que busca se afirmar através do monopólio da produção artística, o que
é algo sem sentido ou com sentido apenas para os indivíduos desta esfera, de
acordo com seus valores, interesses, concepções. Para produzir arte não precisa
ser artista profissional, os artistas amadores produzem arte e muitas vezes de
alta qualidade, enquanto que muitos profissionais produzem arte, muitas vezes,
de baixa qualidade.
Outra diferença gerada pela
constituição da esfera artística é expressa nas divisões internas, nas quais os
que são hegemônicos buscam desqualificar os não hegemônicos, por um lado, e
também pela hierarquia constituída no seu interior. Mas aqui nos interessa uma
outra divisão no interior da esfera artística. Trata-se da divisão existente entre
as subesferas, sendo que cada uma delas manifesta distintas formas de arte[1].
Assim, a esfera artística possui
diversas subesferas, entre as quais a subesfera musical, teatral, literária,
etc., que é expressa, na produção artística, pelas formas de arte (música,
teatro, literatura, etc.) e, que, obviamente, também possuem subdivisões internas,
algo comum na sociedade capitalista. Cada subesfera busca se autovalorar e
colocar-se como acima das demais subesferas[2].
Esse processo de autovaloração é acompanhado pela desvaloração das demais
formas de arte, que são a manifestação de outras subesferas[3].
Isso significa que a arte é algo
comum e que qualquer ser humano é capaz de produzir, basta usar sua imaginação,
sua criatividade. O resultado, a obra de arte concreta, pode ser de alta
qualidade ou de baixa qualidade, mas isso depende de diversas determinações e a
sua avaliação está ligada a determinados valores, sendo que o tecnicismo e
formalismo são dominantes nos agentes da esfera artística, mas não em outros
setores da população. Nesse sentido, ao entender que a essência da arte está em
expressar de forma figurativa a realidade, não somente temos uma definição e
delimitação, como também podemos distinguir as formas de arte, que realizam tal
expressão de forma diferenciada e que, na sociedade capitalista, são produtos
de indivíduos especializados de uma subesfera social.
Nesse sentido, todo produto
cultural que realiza uma expressão figurativa da realidade é arte. A questão da
qualidade é outra discussão e remete para uma avaliação das obras de arte em
cada caso concreto e com base em determinadas concepções e valores. Não é nosso
objetivo discutir a questão da qualidade das obras de arte aqui e em todas as
formas de arte é possível encontrar diferenças qualitativas.
As histórias em quadrinhos como forma de arte
A partir dessa concepção de arte
não há nenhuma dúvida que as histórias em quadrinhos são uma das formas de
arte. As histórias em quadrinhos realizam uma expressão figurativa da
realidade, usando os diversos recursos que possui, tal como as imagens,
diálogos, balões, quadros, onomatopeias, etc., e criam um universo ficcional.
Ou seja, tal como qualquer outra obra de arte, cria uma realidade paralela,
ficcional, expressando figurativamente a realidade. A forma como faz isso a
distingue de outras formas de arte, mas realizar tal expressão figurativa é
algo que ela compartilha com todas as demais e a caracteriza como produção
artística.
Esses universos ficcionais podem ser mais simples
ou mais complexos. A turma da Mônica, em sua versão infantil, é simples,
enquanto que Tio Patinhas é mais complexo um pouco e os super-heróis da Marvel
são ainda mais complexos e assim podemos observar diversas formas de
manifestação de histórias em quadrinhos, desde as tiras de jornais até os
álbuns de luxo, desde histórias curtas e infantis até complexas histórias
envolvendo diversos personagens e exigindo uma reflexão para seu entendimento
mais adequado. Uma tira de jornal com quatro quadros não se compara a um algum
de luxo de duzentas páginas, pois a diferença não só quantitativa como também
na extensão e complexidade do universo ficcional é mais que visível. Nesse
processo, há diferenciações também por gênero, público-alvo, valores dos
produtores, posições políticas, estilo, entre inúmeras outras. A diferença por
gênero aponta para a existência de uma grande diversidade, como o da aventura,
superaventura, humor, terror, etc. Existem histórias em quadrinhos para o
público infantil, adulto, entre outros. Esses exemplos apenas mostram algumas
das variedades na produção quadrinística.
O universo ficcional criado pelas
histórias em quadrinhos possuem elementos comuns com outras formas de arte e,
inclusive, existem adaptações e influências recíprocas. Em alguns casos existe
maior dificuldade de adaptação, tal como os super-heróis das histórias em
quadrinhos que em suas primeiras tentativas de adaptação cinematográfica
deixaram muito a desejar pela dificuldade de produzir algo semelhante ao que
era visível nas revistas em quadrinhos, o que só foi superado com o
desenvolvimento tecnológico que permitiu reproduzir ambientes, cenas e ações
com maior proximidade com a versão original. O universo ficcional das histórias
em quadrinhos são produtos culturais como os demais e por ser uma expressão
figurativa da realidade, é uma forma de manifestação artística.
Esses universos ficcionais são
os mais variados e cada criador ou equipe de criação/reprodução criam uma
realidade paralela, um outro mundo, ao lado do nosso mundo social, natural e
concreto, que, no entanto, o reproduz. Ao ver o fantástico mundo dos
super-heróis da Marvel Comics, com a existência não somente do planeta terra em
sua face visível e que conhecemos, alterado com a inserção de seres
superpoderosos que aqui passam a habitar (Capitão América, Homem-Aranha, Homem
de Ferro, Demolidor, e inúmeros outros, sem esquecer os supervilões), mas
milhares de outros mundos, como Asgard, do Poderoso Thor; Atlântida, o mundo
submarino do príncipe Namor; o mundo subterrâneo do vilão O Toupeira; o Olimpo
dos deuses gregos, diversos planetas e dimensões, incluindo o Planeta Vivo; ou mesmo
o mundo microcósmico onde, por exemplo, o Incrível Hulk teve aventuras.
Esses exemplos mostram a
complexidade e riqueza do chamado “universo Marvel”, mas é apenas um entre os
diversos universos ficcionais produzidos nas histórias em quadrinhos. Essas
realidades paralelas, por mais fantásticas que sejam, estão expressando a nova
realidade, seja dos desejos, intenções, sentimentos, inconsciente, dos seres
humanos que as produzem, seja da sociedade ou de aspectos dela, ou da natureza.
As histórias em quadrinhos, como toda obra de arte, é uma expressão da
realidade, que não a retrata, mas através da figuração a recria. Esse recriar é
um processo característico de toda produção artística, manifestação da
criatividade, onde se recria o mundo gerando outro mundo, através da figuração,
da ficção. Esse processo de criação é recriação, no qual dois mundos se
encontram, o real e o ficcional, sendo o primeiro gerador do segundo e este
reprodutor do primeiro. São distintos e, ao mesmo tempo, iguais.
Vigostky (2014) afirma que a
imaginação trabalha com a realidade para criar um mundo imaginário, pois ela é
sua matéria-prima. Um indivíduo só pode imaginar um centauro por existirem
seres humanos e cavalos e assim ele pode uni-los, em sua imaginação, os dois
formando uma terceira imagem: o corpo de um cavalo com o pescoço e o rosto de
um homem. O Hulk só foi criado por que existiu milhares de seres reais e outros
seres fictícios anteriores (como Frankenstein), que inspiraram Stan Lee quando
este o criou. O real, no entanto, não está presente apenas como matéria-prima e
fonte de inspiração, pois também se manifesta sob outras formas no conjunto da
produção ficcional. O Hulk expressa a realidade da preocupação com o ser humano
num mundo científico-tecnológico, dominado pela ciência e sua possível
desumanização, além de diversas outras coisas. Da mesma forma, o Capitão
América só foi criado por existir os Estados Unidos, a bandeira deste país, a
Segunda Guerra Mundial, a necessidade de heróis, entre outros aspectos da época
de sua criação (VIANA, 2005), bem como os valores, sentimentos, concepções e
representações dos envolvidos em sua criação (Joe Simon e Jack Kirby). A história
dos super-heróis comprova justamente esse seu caráter intimamente ligado à
realidade social na qual emergem (VIANA, 2011).
Essa forma de arte possui não
somente características próprias que expressam a maneira como expressam a
realidade figurativamente, como também, como produto social e histórico do
capitalismo, também acaba sendo um produto do trabalho artístico especializado,
criando a subesfera quadrinística. Ela também acaba criando uma hierarquia
entre os produtores, os hegemônicos, bem como outros setores que vão se
desenvolvendo. Tal como o cinema, a produção quadrinística tende a ser uma produção
coletiva e marcada por uma divisão interna do trabalho. Contudo, diferentemente
do cinema, é possível com muito mais facilidade a produção individual. Sem
dúvida, as produções dominadas pelo capital editorial, as grandes revistas em
quadrinhos de circulação internacional (e em grande parte as de circulação
nacional) são produzidas por equipes e não por um indivíduo. O desenvolvimento
capitalista dificulta a existência da produção individual e um autor de
histórias em quadrinhos pode, numa evolução posterior, usar uma equipe e ter o
seu nome como o grande produtor, apesar da produção ser coletiva, como é o caso
de Maurício de Souza, no Brasil, e Al Capp, nos Estados Unidos[4].
Mas, tanto em um caso quanto em outro, trata-se de obras de arte, cuja qualidade
varia, mas nem por isso deixa de ser algo artístico.
É preciso, no entanto,
distinguir forma e conteúdo. O conteúdo das histórias em quadrinhos são
expressões figurativas da realidade, cuja forma mantém uma unidade, que é o uso
do desenho e diversos outros recursos derivados e complementares. No entanto, é
possível separar esta forma do conteúdo. Assim, os quadrinhos, como forma, se
separa das histórias, do conteúdo. É como ocorre no caso de propagandas e
outros usos, não-ficcionais, dos mesmos recursos formais das histórias em
quadrinhos. Isso também ocorre em outras formas de arte, como a música ou o
cinema. Na música, os jingles de campanhas eleitorais não tem nada de
ficcional, é mera propaganda. Da mesma forma, o documentário usa os recursos
cinematográficos, mas não produz ficção.
Desta forma, quando utilizamos o
termo “quadrinhos”, ele significa o uso dos recursos formais das histórias em
quadrinhos sem a produção de uma expressão figurativa da realidade, não sendo,
pois, obras de arte. Por isso é necessário distinguir quadrinhos e histórias em
quadrinhos, sendo que os primeiros são cópias do segundo, mas apenas no nível
formal, e o segundo é obra de arte, ou seja, unidade entre forma e conteúdo[5].
Existem também formas mistas, que usam também a ficção para se tornar mais
atrativo ao público, mas podemos considerar como formas degeneradas de arte,
pois o conteúdo está corrompido (e geralmente empobrecido) pela intenção de
propaganda ou outra qualquer que vincula a interesses financeiros e políticos diretamente.
Assim, as histórias em
quadrinhos são uma forma de arte que compartilha o elemento essencial de toda
obra artística, ser uma expressão figurativa da realidade, e possui uma
especificidade que se encontra na forma como realiza isso, através de um
“enredo organizado de forma sequencial e utilizando diversos recursos, sendo
que o desenho (imagens) é o aspecto formal fundamental e os demais são
complementares” (VIANA, 2013, p. 46). Sem o enredo, que o caracteriza como
forma específica de universo ficcional, não se trata de histórias em
quadrinhos, podendo ser uma charge, quadrinhos (no sentido acima delimitado),
caricatura, etc. É uma forma de arte como as demais e somente numa concepção
elitista se poderia querer questionar seu caráter artístico ou então a partir
de outras definições de arte, que podem ser tão problemáticas quando o elitismo
defendido por outros.
Considerações Finais
Logo, ao contrário das
concepções elitistas de arte, as histórias em quadrinhos não podem ser
excluídas do mundo artístico. Obviamente que a competição entre as subesferas
podem gerar concepções que irão considerá-las não-arte ou “arte inferior”, mas
isto apenas expressa algumas das características da esfera artística, a sua
subdivisão e competição interna.
As histórias em quadrinhos
seriam uma forma de arte “inferior”? A resposta só pode ser negativa, pois os
valores por detrás dessa concepção são evidentes. Sem dúvida, existem histórias
em quadrinhos de má qualidade, assim como existem obras musicais,
cinematográficas, literárias, etc. que padecem do mesmo mal. Contudo, existem
histórias em quadrinhos de alta qualidade (e isso partindo de várias concepções
de qualidade), algumas são excelentes no aspecto formal, outras em seu conteúdo
(tanto que pode ter um caráter crítico quanto apenas por complexidade). O
personagem Ferdinando, de Al Capp, por exemplo, demonstra uma qualidade em seu
universo ficcional que pode ser percebido não só na construção dos personagens
e complexidade das estórias (não de todas, obviamente), quanto na crítica
social efetivada através das mesmas (VIANA, 2013). Os Super-Heróis da Image
Comics demonstram traços que formalmente são muito superiores às de outras
produções, em que pese em seu conteúdo deixe a desejar em comparação com a
Marvel ou a DC Comics.
Em síntese, as histórias em
quadrinhos são uma forma de arte e possui sua especificidade e ao mesmo tempo
compartilha o caráter artístico com as demais formas artísticas, não tendo nada
de inferior. Isso não significa que as pessoas devam, necessariamente, gostar e
admirar as histórias em quadrinhos, assim como qualquer forma de arte, pois
considerá-las forma de arte não significa cair no fetichismo da arte, são
produtos culturais, históricos, sociais, cuja valoração ou desvaloração, o
gosto, as preferências, não tem nada de natural ou imanente.
As histórias em quadrinhos podem
ser de alta ou baixa qualidade, pode ser um produto que contribui com a
emancipação humana ou para a reprodução de um mundo desumano. Isso não é algo
da essência dos quadrinhos e sim expressão de suas várias formas de
manifestação concreta e por isso somente analisando casos concretos é que se
pode fazer tal avaliação. Independente da qualidade, as histórias em quadrinhos
são uma forma de arte, assim com a pior música não deixa de ser música e,
portanto, obra de arte.
Referências
BOTTOMORE, Tom. Introdução à Sociologia. 3a edição, Rio de Janeiro,
Zahar, 1970.
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
DELLA VOLPE, Galvano. As Linguagens Artísticas. In: PEREIRA, Wilcon
(org.). Della Volpe. Col. Grandes
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1980.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Sobre Literatura e Arte. 4a
edição, São Paulo, Global, 1986.
VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e
a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007a.
VIANA, Nildo. Breve História dos Super-Heróis. In: REBLIN, Iuri e VIANA, Nildo (orgs.). Super-Heróis,
Cultura e Sociedade. Aproximações Multidisciplinares Sobre o Mundo dos Quadrinhos.
São Paulo: Ideias e Letras, 2011.
VIANA, Nildo. Heróis e
Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 205.
VIANA, Nildo. Os
Valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007b.
VIANA, Nildo. Quadrinhos
e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro:
Azougue, 2013.
VIANA, Nildo. Sobre as Ciências
Sociais. Estudos – Revista da
Universidade Católica de Goiás. Vol. 27, no 04,
out./dez.2000.
VIGOTSKY, Lev. Imaginação e Arte
na Infância. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2014.
* Sociólogo e filósofo; Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de
Brasília; Pós-Doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo.
[1]
Essa divisão é expressa por Galvano Della Volpe (1980) como “linguagens
artísticas”. Contudo, a concepção de que existem diversas “linguagens
artísticas” acaba sendo ideológica, no sentido de que cai num formalismo que se
autonomiza, criando um fetichismo que inverte a realidade. A ideia de formas de
arte mantém a percepção da unidade, são formas de algo concreto, que possuem
sua especificidade e ao mesmo tempo elementos que perpassam todas elas e que
não possuem autonomia absoluta ou uma lógica própria imanente e a diferenciação
ocorre dentro de uma unidade. Isso vale tanto para os produtos culturais quanto
para as relações sociais entre aqueles que realizam sua produção, isto é, tanto
para a subesfera quanto para a forma de arte.
[2]
Aqui, quando colocamos “a esfera” ou “a subesfera”, não estamos caindo numa
concepção fetichista e sim colocando que os indivíduos reais e concretos, que
agem e produzem representações e concepções, é que realizam isso, segundo a
perspectiva do grupo e posição de que partem, não existindo nenhuma entidade
abstrata e acima dos seres humanos de carne e osso.
[3]
O mesmo ocorre no caso da esfera científica e isso é amplamente reconhecido,
pois as subesferas geram valores, interesses, etc. no interior de uma sociedade
competitiva e é por isso que há uma disputa entre as subesferas científicas e
que cada uma busca ser considerada a mais importante e superior às demais,
gerando inclusive os determinismos e “imperialismo”, tal como a sociologia, por
exemplo, é acusada (BOTTOMORE, 1970; VIANA, 2000).
[4]
Al Capp iniciou sua carreira como colaborador, sem receber os créditos, de
outro quadrinista (Ham Fischer, criador de Joe Paloka) e o acusou de usá-lo
como “desenhista-fantasma” (o que depois gerou polêmica, falsificação e
suicídio de Fischer). Depois iniciou sua carreira autônoma e após alguns anos e
sucesso, passou a ter trabalhos produzidos coletivamente e foi acusado também
de usar desenhistas-fantasma (VIANA, 2013).
[5]
Essa distinção passou desapercebida ao escrever o livro “Quadrinhos e Crítica
Social” (VIANA, 2013), cujo título correto seria: Histórias em Quadrinhos e Crítica Social, o que será feito em
futuras edições.
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