A GREVE COMO DIREITO COLETIVO DOS
TRABALHADORES
Nildo Viana
A greve já foi
considerada ilegal e depois foi legalizada com ressalvas. Ela se tornou um
“direito subjetivo do trabalhador” e por isso pode ser deflagrada em diversas
situações. As greves, além dos limites legais (pois a legalização não significa
liberalização e sim regulamentação), também passam a ser vítimas das ideologias
jurídicas e do legalismo que busca atrelar o direito, a legitimidade, a
possibilidade, ou pelo menos a legalidade, ao Estado ou outras organizações
burocráticas, especialmente os sindicatos. Esse processo se torna tão forte que
até setores da esquerda ou da pseudoesquerda assumem esse discurso. O nosso
objetivo aqui é distinguir a perspectiva proletária da perspectiva burguesa da
greve e revelar o caráter ideológico e conservador expresso no legalismo e na
própria ideia da greve como direito subjetivo do trabalhador.
As ideologias jurídicas
e o legalismo são expressões da perspectiva burguesa, revelando, por
conseguinte, os valores, concepções, sentimentos, interesses, da classe
capitalista (e, geralmente, de suas classes auxiliares, especialmente a
burocracia). No caso dos movimentos grevistas, é isso que ocorre
contemporaneamente, com a tese de que a greve é um direito subjetivo do
trabalhador. Não vamos entrar aqui no debate e nas diversas discussões sobre
direito objetivo e direitos subjetivos e nem apresentar seu caráter ideológico.
Desde já fica entendido que tal distinção é uma produção do direito burguês e
expresso por ideologias jurídicas burguesas[1].
Apenas partiremos de
algumas definições para desenvolver nossa análise, sem grandes reflexões sobre
elas. Partimos da definição de direito objetivo como o direito positivo
(formal, abstrato, manifesto nas leis) e de direito subjetivo como direito
individual (justificado pelo apelo ao interesse individual, ou vontade
individual, ou ambos os casos). Essa linguagem é problemática, mas não vamos
aqui tratar disso, porquanto não é nosso objetivo. Obviamente que aqui se opõe
“Estado” e “indivíduo”, sendo o primeiro o representante da sociedade civil[2] ou
da “vontade da população”, sendo, pois “legítimo”. É um direito que tem força
de lei e é, como alguns dizem, “coativo”, ou uma imposição. O direito
subjetivo, por sua vez, é, no interior dessa coação anterior, a liberdade que o
indivíduo possui de concretizar ou não tal direito. Assim, o direito objetivo
constitui uma obrigação e o direito subjetivo constitui uma decisão individual
dentro das possibilidades permitidas pelo primeiro. O direito estatal
(“objetivo”) é coação e o direito individual (“subjetivo”) é uma opção (dentro
dessa coação).
Diante dessa concepção
burguesa de direito é que se coloca a questão da greve. Esta vem sendo
compreendida como “direito subjetivo do trabalhador”. Essa é uma concepção
burguesa de greve e, por conseguinte, não somente embasada em uma ideologia
jurídica burguesa como também servindo aos interesses do capital contra os
interesses dos trabalhadores. A razão disso se encontra, nesse caso específico
(embora não somente nele, mas este é o nosso foco), no fato de se fundamentar
numa dicotomia entre direito estatal e direito individual, entre coação e
opção, que remete ao Estado e ao indivíduo e não às classes sociais ou
categorias profissionais. Assim, o Estado e os indivíduos possuem direitos, um
normativo e outro optativo, com a proeminência do primeiro sobre o segundo,
enquanto que os coletivos (classes sociais, categorias profissionais, etc.)
estão submetidos ao primeiro e não possuem poder sobre os segundos. Nesse
contexto, há uma hierarquia na qual o Estado tem a primazia, depois o indivíduo
e por último os coletivos, que é uma concepção liberal-burguesa, pois o
“aparato privado do capital”[3] ou
o “capitalista coletivo ideal”[4]
domina a sociedade, respeitando as liberdades individuais, que devem se
submeter ao direito estatal, mas não ao direito coletivo.
Esse é o caso da greve.
Num movimento grevista, o direito de greve é considerado como “direito
subjetivo do trabalhador”, ou seja, do indivíduo, é opcional. Quem decide pela
greve é o coletivo, a assembleia dos trabalhadores. Contudo, este direito
coletivo não tem ascendência sobre os indivíduos, pois só exerce o indivíduo
que quiser. A greve pode ser deflagrada se estiver de acordo com o direito
estatal (“objetivo”) e não tem como garantir que os indivíduos da categoria
entrem em greve ou não. O indivíduo pode se colocar contra a greve não somente
antes e durante a assembleia, divulgando sua concepção e votando contra, mas
também após, simplesmente optando por não participar da greve.
Isso entra em visível
contraste com a democracia representativa burguesa. Para esta, o voto da
maioria eleitoral (que não é a maioria da população, pois alguns não podem
votar por questão de idade e para muitos é facultativo, sem falar nos votos
nulos e brancos) elege governos, parlamentares, etc., que o indivíduo e
coletivos devem acatar. Ninguém tem o “direito subjetivo” de não aceitar o
presidente eleito e seus atos. Da mesma forma, ninguém tem o direito de recusar
o ato de votar, a não ser que isso seja permitido pelo Estado em sua
legislação. Logo, nesta instância, a decisão da maioria eleitoral é
obrigatória.
No caso da decisão da
maioria numa assembleia de trabalhadores, ela pode ser desrespeitada em nome do
direito subjetivo do trabalhador. Este é um direito subjetivo, logo, opcional,
do indivíduo e ele entra em greve se quiser. Ele não pode ser constrangido a
entrar em greve, apesar da decisão da maioria pela mesma. Essa é uma concepção
individualista, liberal e burguesa. Isso se deve ao fato de que se abstrai as
relações de poder existente na sociedade. A decisão da maioria só é unilateral
e coativa quando não entra em contradição com o poder estatal e, portanto, com
os interesses do capital. Se um plebiscito realizado pelo governo decide pelo
desarmamento da população, não há opção individual, ela ganha força de lei e descumprir
a lei é crime passível de punição. Agora, se em uma assembleia de trabalhadores
a maioria decide pela greve, não é coativa, não gera lei e nem seu
descumprimento é crime. Obviamente que isso permite a não adesão à greve por
parte daqueles que perderam a votação na assembleia. Isso justifica e legitima
a figura do “fura-greve”.
A decisão da maioria
eleitoral constrange o indivíduo a aceitá-la, mas a decisão da maioria numa
assembleia de trabalhadores não constrange os indivíduos a aceitá-la. Um indivíduo
não pode dizer que não aceita o governo eleito, alegando “direito subjetivo”,
mas um fura-greve pode fazê-lo. O
movimento contrário, no entanto, é impossível, pois se a assembleia decide pela não realização da greve, ou seja, a
decisão da maioria é contra a greve, o indivíduo não pode alegar o seu “direito
subjetivo de trabalhador” e paralisar suas atividades. Se fizer isso será
penalizado, pois não estaria em greve e sim deixando de trabalhar, podendo ser
demitido por justa causa. A decisão da maioria vale quando ela está de acordo
com os interesses dos governos ou dos capitalistas, tendo poder coativo, mas
quando está contra, é apenas “direito subjetivo”. Por conseguinte, uma greve
não pode ser considerada um “direito subjetivo do trabalhador”. Ele deve ser
considerado um direito coletivo dos trabalhadores em conjunto e, portanto,
acima das escolhas individuais após a decisão da maioria ter sido tomada. O
indivíduo pode escolher ser contra, votar contra, mas depois de deflagrada a
greve – o que não impede ele de continuar contra e votar contra em nova
assembleia – não pode não aderir ao movimento grevista. Para usar terminologia
ideológica, “subjetivamente” ele pode ser contra a greve, mas “objetivamente”,
depois de deflagrada, não pode ser. Por isso a greve não pode ser compreendida
como “direito subjetivo do trabalhador” individual e sim como direito coletivo dos trabalhadores.
Obviamente que isto é palco de lutas sociais, disputas jurídicas e políticas.
Contudo, de qualquer forma, não é aceitável defender essa posição e é
necessário lutar contra ela.
Obviamente o direito
serve para reproduzir a sociedade capitalista e para regularizar as relações
sociais existente, incluindo as relações de trabalho[5].
Logo, ele não serve para transformar a sociedade. No entanto, ele pode abrir
lacunas e servir para se realizar certas lutas e criar uma correlação de forças
favorável à transformação social, o que não quer dizer que ela pode ocorrer
através dele. A questão é que a luta por questões imediatas (a redução ou não
aumento da jornada de trabalho, por exemplo) e específicas (contra o trabalho
infantil ou salários inferiores para mulheres) podem ocorrer na esfera
jurídica, mas não as lutas gerais e essenciais (a instituição de uma sociedade
autogerida, por exemplo, não pode ser conquistada pela via jurídica e sim
contra ela). Por conseguinte, numa luta de um setor explorado pelo capital, tal
como os trabalhadores metalúrgicos, a luta pela legalidade da greve é importante,
pois faz parte das lutas imediatas e garante maior eficácia para ela. Nesse
sentido, lutar pela alteração da legislação trabalhista e inserir o direito de
greve como coletivo é fundamental (o que inclusive gera maior participação,
pois aqueles que são contra são constrangidos a participar pelo menos da
assembleia para tentar impedir a deflagração da greve, o que aumenta sua
legitimidade, bem como o confronto de ideias e esclarecimento das razões da
greve).
Mas o mais importante é
não só lutar pela mudança na legislação trabalhista nesse sentido e sim lutar
pela hegemonia da ideia de que a greve é um direito
coletivo dos trabalhadores independente da legislação. Aqui é uma luta no
campo das ideias e da ética. A ética libertária não recua diante da legalidade
e nem considera o direito como algo a ser acatado, pois ele é coercitivo e está
de acordo com interesses dominantes (que são antagônicos aos interesses da
imensa maioria), que são os interesses da classe dominante. Assim, no nível
discursivo é necessário recusar a ideia de que a greve é um “direito subjetivo
do trabalhador” e apontar no seu lugar como um direito coletivo dos
trabalhadores. E, ao mesmo tempo em que busca transformar essa concepção em
realidade legal, não espera isso acontecer para colocá-lo em prática. É
necessário recusar o legalismo e exigir que esse direito coletivo seja
praticado desde agora.
Nesse sentido, é também
necessário pensar uma nova concepção de direito. O direito, na perspectiva do
proletariado, deve ser entendido como imperativo
categórico: “age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a
agir seja uma lei universal”[6].
Indo além de Kant, podemos dizer que o imperativo categórico é algo que é
simultaneamente necessário e justo, e que, por conseguinte, possui legitimidade
(independente ou contra a legalidade) e se constitui, então, como compromisso. O que é necessário e justo
é um imperativo, pois manifesta algo que é indispensável para os indivíduos ou
grupos e cuja realização não comete nenhuma injustiça, ao contrário, é a
realização da justiça. Sendo assim, também deve ser um compromisso, ou seja, é
algo categórico. Logo, a greve é um direito para os trabalhadores, é necessário
e justo e, portanto, está acima da legalidade, e uma vez deflagrada, é um
compromisso de todos. A recusa individual desse compromisso significa que o
indivíduo não considera a greve necessária e justa, o que pode ser feito
discursivamente antes, durante e depois da assembleia, mas não praticamente. Se
o fizer, isso é condenável eticamente e por isso os piquetes são legítimos,
assim como a crítica aos fura-greves[7].
Mas se ele não considera a greve necessária e justa, então porque deveria
manter o compromisso? A manutenção do compromisso se deve a duas questões: a) a
consideração de um indivíduo segundo a qual a greve não seria necessária e
justa é sua posição individual que pode ser exposta, defendida e votada, mas
uma vez derrotada pela opinião da maioria, então deve ser acatada pelo
indivíduo, que pode continuar se opondo discursivamente; b) o indivíduo tem um
compromisso com o coletivo[8] e,
por conseguinte, com a decisão coletiva, pois o que está em jogo não é apenas o
destino individual[9]
(suas preocupações, seus valores, seus objetivos e interesses) e sim o destino
coletivo, de um grupo, classe ou categoria profissional.
Por fim, é preciso
entender a relação entre movimento grevista e sindicatos. A greve é um direto
coletivo dos trabalhadores e está acima das burocracias sindicais. Em sua época
de nascimento, os sindicatos eram ilegais e produtos das lutas proletárias. Através
dessas mesmas lutas, eles foram legalizados e transformados em organizações
burocráticas através da ação estatal. O Estado produziu uma legislação voltada
para seu controle e outros processos sociais[10]
que transformaram, paulatinamente, em organismos não dos trabalhadores e sim
servindo ao interesse do capital e dos governos. Os sindicatos, produtos das
lutas operárias, se tornaram agentes do capital e dos governos, contra os
próprios trabalhadores[11].
É por isso que a legalidade das greves foi atrelada aos sindicatos, uma
estratégia do estado capitalista no sentido de controlar o movimento grevista.
É por isso também que emergem as chamadas greves selvagens[12],
ou seja, greves “não oficiais”, “não legais”, feita de forma independente e até
contra os sindicatos. Essas greves surgem devido ao fato dos sindicatos se
oporem sistematicamente aos movimentos grevistas e evitá-las de qualquer forma.
Como a legalidade está atrelada aos sindicatos, então as greves são
sistematicamente boicotadas pelos “representantes dos trabalhadores” e o
processo de exploração, salários baixos, péssimas condições de trabalho, entre
outros elementos, criam uma situação de insatisfação que não são contempladas
pelos sindicatos e por isso os trabalhadores deflagram greves sem apoio ou
contra a vontade dos sindicatos, sendo que em muitos casos em confronto com
eles. É por isso que os sindicatos[13]
temem as assembleias de trabalhadores e fazem de tudo para impedir o
desencadeamento de greves.
Nesse sentido, as
greves selvagens não são legais, mas são legítimas e um direito coletivo dos
trabalhadores. A greve selvagem é um imperativo categórico e principal forma de
luta dos trabalhadores por seus interesses imediatos e também pelos seus
interesses históricos[14].
As greves reivindicativas explodem a todo momento e, em certos períodos
históricos, marcados por crises financeiras, ações governamentais impopulares e
prejudiciais aos trabalhadores, intensificação da repressão, se avolumam e
contagiam a sociedade. Elas são marcadas por reivindicações dos trabalhadores,
geralmente salário e condições de trabalho, mas incluem inúmeras outras
questões e podem adquirir um caráter político e de solidariedade com outras
lutas de outros setores da sociedade. O caso mais exemplar disso são as greves
realizadas contra punições e perseguição (até mesmo prisão em alguns casos) de
indivíduos grevistas após o encerramento de uma greve (o que significa que
governos incompetentes – e autoritários – são muito propensos a criar motivo
para mais greves...). As greves revolucionárias já visam uma transformação
social radical e que podem trazer no seu bojo um conjunto de reivindicações,
mas que não se colocam dentro da possibilidade de atendimento no interior da
sociedade capitalista. Essas ocorrem em períodos históricos de radicalização
das lutas de classes, no qual emerge uma cultura contestadora e um processo de
mobilização popular mais amplo, integrando diversas categorias, grupos, etc.
Essas duas formas de
greves selvagens são legítimas e um direito coletivo dos trabalhadores. Aqui se
coloca novamente a questão da legalidade. A disputa intelectual em torno disso
revela uma luta de classes no plano cultural. As greves nasceram como ilegais e
sua “legalização” significa sua “regularização” pelo Estado. Contudo, as greves
não surgem ao acaso e abstratamente. Elas ocorrem em relações sociais reais, na
qual se deparam, por um lado, os empregadores e, por outro, os empregados. De
um lado, as empresas, o capital, com seu interesse em lucro e reprodução
ampliada. Por outro lado, os trabalhadores, interessados em melhores condições
de vida. Pode ser também um conflito entre governos e funcionários públicos, no
qual o interesse do primeiro é a manutenção do poder e da “governabilidade”, o
que significa expressar os interesses do capital e sua reprodução ampliada, o
que significa busca de estabilidade política/financeira e repressão dos
movimentos sociais e oposição em geral, inseparável de seu interesse eleitoral
de manutenção no governo. De outro lado, os funcionários públicos com suas
necessidades e reivindicações, que, em determinados momentos históricos, podem
ter seus direitos adquiridos no passado atacados, bem como serem vítimas de
defasagem salarial, entre outros problemas.
O sindicato aparece
como o mediador desse conflito e diz estar do lado dos trabalhadores, mas, no
fundo, expressa os interesses do capital ou dos governos[15]. É
por isso que a greve selvagem emerge historicamente. As greves legalizadas são
as controladas pelos sindicatos que, por sua vez, são controlados pelo Estado
(direta e/ou indiretamente). Elas são palco de disputas, pois somente quando há
forte descontentamento e pressão por parte dos trabalhadores é que elas são
deflagradas, muitas vezes a contragosto dos sindicatos e a partir de suas
derrotas nas assembleias. Inclusive vem se tornando cada vez mais comum que a
organização da greve não seja realizada pelos sindicatos e sim por “comitês de
greve” compostos em sua maioria por não membros da direção sindical e também
não sindicalizados.
A greve, quando surge,
expressa uma ruptura. No marco legal e comum da sociedade capitalista, a
relação entre capital e trabalho (o que vale também para o governo quando é
empregador) é regularizada pelo contrato de trabalho. É o contrato que coloca o
papel de cada um nas relações de trabalho e tudo que é derivado delas.
Obviamente, como os interesses são antagônicos, então há conflitos e quando
estes assumem um caráter coletivo (ou seja, ultrapassa a resistência individual
e pequenas formas coletivas de confronto), torna-se necessário a negociação.
Claro que tal nome já significa uma imposição capitalista, pois “negociar”
(cujo um dos sentidos da palavra é “comercializar”) é uma expressão que coloca
os limites da relação entre capital e trabalho: o que se pode fazer é, nos marcos
do contrato estabelecido e das leis instituídas, negociar o preço do valor da
força de trabalho e outras reivindicações. O sindicato é o responsável para
fazer tal negociação para os trabalhadores. Contudo, não somente o contrato
estabelecido e as leis instituídas beneficiam o capital, como ele detém o poder
dentro da empresa, pode demitir ou simplesmente não atender as reivindicações,
já que nada o obriga a isso, e o sindicato está atrelado a ele e/ou ao estado,
com raras exceções, então é uma relação desigual. A negociação é algo
extremamente limitada e que em raríssimas vezes promove algum acordo que
atende, mesmo que parcialmente, as reivindicações dos trabalhadores.
É por isso que a greve
é uma ruptura, pois ela é o elemento em que as forças desiguais se tornam menos
desiguais, na qual os trabalhadores adquirem um poder de pressão maior. Por
isso eram ilegais e quando são legalizadas passam a ter que cumprir diversas
exigências que visam inviabilizá-las. Da mesma forma, as greves selvagens são
uma ruptura que reassume o mesmo caráter anterior e acrescenta o fato de romper
também com os sindicatos. Por conseguinte, a tentativa estatal de regularizar
as greves é uma forma de buscar romper com sua eficácia e justificar legalmente
a repressão (financeira, policial, etc.) e alterar a correlação de forças em
favor do capital. Por conseguinte, o legalismo é algo que somente se sustenta a
partir da perspectiva burguesa.
As greves reivindicativas
são um direito coletivo da classe trabalhadora e das categorias profissionais
que lançam mão delas e são legítimas, são um imperativo categórico e para tanto
não usa nem o discurso ideológico, nem a legalidade ou os valores dominantes
para se afirmar, pois isso significa a sua aniquilação. Obviamente que no
embate, as forças mais indecisas e sem coragem, precisam e querem a legalidade[16].
Então a luta deve ser travada tanto no processo discursivo no sentido de
explicar a situação, quando também na reivindicação de legalização da greve
independente de sindicatos e outras exigências burocráticas. Ou seja, a busca
de uma legalização da não regularização, o que é obviamente contrário aos
interesses do capital e será combatido por ele, faz parte da luta, mas não é
seu elemento fundamental.
As greves
revolucionárias são um direito coletivo da classe trabalhadora e da mesma forma
são um imperativo categórico e uma ruptura com a sociedade capitalista. As
greves revolucionárias, no entanto, só ocorrem em épocas de radicalização das
lutas de classes e não buscam reformas e reivindicações políticas dentro da
ordem capitalista e a ruptura com o capitalismo, buscando uma transformação
total e radical do conjunto das relações sociais[17].
Obviamente que isto não pode ocorrer dentro dos marcos legais da sociedade
capitalista.
O caráter de ruptura do
movimento grevista mostra que ela deve ser compreendida antes de tudo como
direito coletivo dos trabalhadores no sentido aludido anteriormente de ser um imperativo
categórico. Sendo assim, não é algo que deva estar preso às ideologias
jurídicas e ao marcos legais. A questão legal é secundária e apenas parte da
luta pelos efeitos negativos que exercem sobre as mentes dos trabalhadores e
por isso é necessário esclarecer que a greve deve ser entendida como forma de
luta e não como negociação ordinária entre empregadores e empregados. Quando há
a recusa por parte do capital e dos governos em negociar, a greve é um recurso
para constrangê-los a negociar e por isso não pode ser realizada apenas com a
autorização deles. Obviamente que as ameaças e tentativas de punições podem
ocorrer, mas o movimento deve estar preparado para criar estratégias de defesa,
resistência e ações, inclusive realizando novo movimento grevista e buscando
apoio de outros setores da sociedade, no sentido de impedir que isso enfraqueça
o movimento.
Por fim, é fundamental
entender que a greve não pode ser compreendida através de uma concepção
legalista e nem como “direito subjetivo do trabalhador” e sim como direito
coletivo dos trabalhadores e um imperativo categórico que produz a principal
forma de luta emancipadora na sociedade moderna, sendo um esboço de novas
relações sociais, abrindo espaço para a solidariedade dos trabalhadores em
lugar da competição cotidiana, novas ideias e novas formas de auto-organização
(do comitê de greve até os conselhos operários). Desta forma, o vínculo entre
greve e processo de transformação radical da sociedade está explícito não
apenas nos objetivos (que se manifesta plenamente nas greves gerais e greves
revolucionárias), mas nela mesma, pois ela esboça novas relações sociais,
formas de auto-organização, desenvolvimento de novos valores e da consciência
revolucionária e substitui o trabalho alienado (heterogerido) por uma atividade
autogerida. A greve, nesse sentido, é um elemento fundamental para a
humanização do mundo.
[1] Para uma crítica a essa divisão,
cf. Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa:
Estampa, 1989.
[2] É por isso que Miaille coloca
que se refere à oposição entre indivíduo e sociedade.
[3] Viana,
Nildo. Estado, Democracia e Cidadania.
A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé,
2003.
[4] Engels,
Friedrich. Do Socialismo Utópico ao
Científico. Rio de Janeiro: Global, 1982.
[5] “(...) O direito se caracteriza
por ser uma forma de regularização das relações sociais através de normas e
sentenças e que por isso possui um caráter normativo que se fundamenta num código
escrito. Ele existe graças aos agentes e meios (tribunal, por exemplo) que lhe
fornecem sua materialidade e criam as ideologias jurídicas, que são a
autoconsciência (falsa, neste caso) de sua existência. Mas o direito é, também
e principalmente, expressão das relações de produção, ou seja, das lutas de
classes. A regularização que ele busca efetivar através das normas e sentenças
é restringida e limitada pelo modo de produção dominante e por isso se pode
dizer que o direito possui uma autonomia relativa e não uma autonomia absoluta.
Mas o que interessa ressaltar aqui é que as características do direito (o
caráter normativo, ideológico, relativamente autônomo e determinado pelas
relações de produção) são consideradas aspectos componentes desta forma específica
de relação social. O direito só existe através do Estado e é por isso que, tal
como este, ele defende geralmente sua autonomia e neutralidade em relação aos
conflitos de classe, buscando, assim, garantir sua legitimidade” (Viana, Nildo. “Direito do Trabalho,
Legislação Trabalhista e Inspeção do Trabalho”. Revista Guanicuns, v. 03-04, p. 63-85, 2006, p. 67-68).
[6] Kant, apud. Vázquez, Adolfo S. Ética. 8ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p.
168).
[7] Obviamente que existem casos
concretos em que nem sempre o fura-greve o faz por livre e espontânea vontade,
sendo pressionado individualmente e, nesses casos, o coletivo em greve deve
saber agir de forma distinta. E é preciso ficar claro que o fura-greve é aquele
que se recusa a entrar em greve após a decisão da maioria e não quem discorda
da greve.
[8] Em associações voluntárias, como
grupos políticos, a discordância pode gerar ruptura, ou seja, afastamento no
qual o indivíduo deixa de pertencer ao coletivo, ou por vontade própria ou por
vontade coletiva. No caso de associações involuntárias, como uma categoria
profissional, a situação é diferente e é o caso que tratamos no presente texto.
[9] As greves reivindicativas
manifestam interesses coletivos de determinado setor da classe trabalhadora e
as greves revolucionárias manifestam os interesses coletivos da classe em seu
conjunto. Nesse último caso, o compromisso com o coletivo – que é a classe
trabalhadora – é um compromisso com a emancipação humana e por isso é também
interesse individual de todos os indivíduos, pois mesmo os indivíduos das
classes privilegiadas estão aprisionados no mundo concentracionário formado
pelo capitalismo, que produz não apenas exploração, dominação e várias formas
de opressão, mas também miséria psíquica, sexual, cultural e impede o
desenvolvimento das potencialidades humanas, é uma sociedade desumana e por
isso somente as pessoas com alto grau de desumanização que, tendo certas
informações e acesso a determinadas teorias, poderão ir contra ao processo de
transformação radical das relações sociais.
[10] A contribuição sindical
obrigatória é um dos elementos de corrupção e criação de interesses próprios
por parte dos dirigentes sindicais. O dinheiro é uma necessidade para qualquer
atividade no interior do capitalismo, já que tudo é transformado em mercadoria
(logo, tem valor de troca e para ser adquirida é preciso necessário possuir
moeda, “meio de troca universal”, como já dizia Marx) e isso vale para todos
aqueles que se opõe ao capitalismo. As lutas operárias do século 19 tinham
consciência disso e por isso colocavam a necessidade de recursos financeiros
para sindicatos e candidatos trabalhadores ao parlamento (essa é a origem da
remuneração dos políticos profissionais), mas logo se tornou fonte de corrupção
e, ao lado das atividades burocráticas especializadas distintas e distantes das
práticas de trabalho cotidiano dos trabalhadores, criam interesses, disputas,
etc., para fazer parte da burocracia sindical e ter seus privilégios. Na sociedade
capitalista, onde a mercantilização, burocratização e competição se tornam as
bases da sociabilidade, emerge, a partir desta, uma mentalidade burguesa (que é
a mentalidade dominante e que atinge todas as classes sociais), ou seja,
mercantil, burocrática e competitiva, tais instituições são integradas na dinâmica
da reprodução do capitalismo e desviam de seus objetivos originais (a
transformação social, a defesa dos interesses dos trabalhadores) que podem
ainda existir apenas no nível discursivo. Aqui se manifesta a divisão antevista
de forma magistral pelo sociólogo das organizações, Amitai Etzioni, entre
“objetivo real” e “objetivo declarado” das organizações (Etzioni, Amitai. Organizações
Modernas. 7ª edição, São Paulo: Pioneira, 1984), no qual muitas organizações
declaram possuir um objetivo (representar os interesses dos trabalhadores) e,
no fundo, possuem outros, tal como no caso de partidos, cujo objetivo real é
conquistar o poder estatal e seus privilégios (cf. Viana, Nildo. O que
São Partidos Políticos. Goiânia: Edições Germinal, 2003). Por isso tais
organizações são fontes de corrupção e ao invés de expressar os interesses dos
trabalhadores (tantos os imediatos como os que são a longo prazo, ou seja,
tanto as reivindicações dentro do capitalismo quanto a luta pela transformação
social) manifesta, no fundo, seus interesses próprios, que, no caso dos
sindicatos, são os interesses da burocracia sindical (ou seja, os dirigentes
sindicais e não o conjunto dos sindicalizados, muitos tão distantes do
sindicato quanto o planeta terra está longe da lua...).
[11] A análise
crítica dos sindicatos já vem sendo realizado há muitas décadas e com o passar
do tempo, com o maior processo de burocratização dos sindicatos, mais se tornou
visível e objeto de estudos o seu papel conservador. Desde o sociólogo Robert
Michels e a militante Rosa Luxemburgo, já na década de 1910, passando pelas
análises de Anton Pannekoek (veja: Pannekoek,
Anton. Partidos, Sindicatos e Conselhos
Operários. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011; Viana,
Nildo. “Anton Pannekoek e a Questão Sindical”. In: Braga, Lisandro e Viana,
Nildo (orgs.). Pannekoek e a Questão da Organização.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2011) até obras mais recentes, incluindo a tese do
“capitalismo sindical” (sindicatos que compram empresas e extraem mais-valor
dos trabalhadores) de João Bernardo (Bernardo,
João. Capital, Sindicatos e Gestores.
São Paulo: Vértice, 19), o papel dos sindicatos foi demonstrado, bem como sua
integração crescente com o capital. Marx já havia alertado que o papel dos
sindicatos era apenas negociar o valor da força de trabalho e que, portanto,
não eram organizações revolucionárias, para isso seria necessário outra forma
de organização, a associação (Marx, K. e Engels, F. Sindicalismo. São Paulo: Ched, 1980). Contudo, com
esse processo, até esse papel foi pervertido, pois tal negociação já não é
feita a partir da posição dos trabalhadores e sim do capital ou dos governos.
Isso é tão visível que até a chamada “esquerda oficial” não teve como deixar de
apresentar o vínculo indissolúvel entre sindicatos e capital (veja: Trotski, L. Escritos Sobre Sindicato. São Paulo:
Kairós, 1978.).
[12] Existe uma
bibliografia de textos analíticos sobre as greves selvagens, nas quais se
destacam o livro já citado de Pannekoek e também o livro de Rauol Vaneigen, que
escreveu um livro usando um pseudônimo: RATGEB. Da Greve Selvagem à Autogestão Generalizada. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1974.
[13] Sem dúvida, os sindicatos não
são todos iguais, embora sejam todos parecidos. O sindicalismo conservador,
ligado a governos, sempre age assim. Os sindicatos ligados aos partidos
socialdemocratas (ditos “socialistas”, “dos trabalhadores”, ou qualquer outro
nome) agem da mesma forma e fazem isso com mais força ainda quanto estão
aquartelados no poder estatal e o oportunismo se torna comum (querer greve em
locais em que são oposição ao governo e evitá-la nos locais em que são
situação, apesar das condições de trabalho e demais aspectos serem os mesmos,
pois o objetivo é meramente eleitoral). Além desses existem os pequenos
sindicatos (e alguns não tão pequenos) ligados a uma burocracia sindical e
partidária mais radicalizada assumem posição mais favorável aos movimentos
grevistas, mas sempre disputando os aparelhos sindicais e querendo vantagens
eleitorais nesse processo. A burocracia como classe social tem vários estratos
e tais partidos e sindicatos são formados por setores burocráticos que estão
abaixo na hierarquia social e por isso possuem maior radicalidade e se filia a
ideologias supostamente “revolucionárias”, tal como o trotskismo. Obviamente
que aqui distinguimos entre direção sindical, a burocracia, e os
sindicalizados, assim como reconhecemos que alguns indivíduos – e não poucos –
são bem intencionados e acreditam que a luta sindical e o sindicalismo estão do
lado dos trabalhadores. Contudo, invertendo a ordem da frase de Marx, assim
como não se julga uma época de transformação social pela consciência que ela
tem de si, da mesma forma não se julga um indivíduo pela consciência que de si
mesmo (Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política.
São Paulo: Martins Fontes, 1983).
[14] No caso do movimento operário,
as greves assumem geralmente um processo que é de paralisação seguida por
ocupação e, posteriormente e num momento de maior radicalidade, de ocupação
ativa, na qual os trabalhadores não somente tomam o local de produção, mas
passam a produzir e gerir o processo de produção como um todo, ou seja, iniciam
um processo de autogestão da produção.
[15] As raras exceções são quando se
trata de sindicatos de partidos oposicionistas e setores radicalizados da
burocracia sindical ou partidária. Nesse
contexto, os interesses eleitorais ou de busca pelo “pequeno poder” (conquistar
o sindicato, por exemplo) é uma motivação para apoiar um movimento grevista e
que, nesse caso, coincidem com os
interesses dos trabalhadores. Mas é preciso destacar que aqui se trata de coincidência e não unidade de interesses.
[16] Existem indivíduos que mantém
essa posição não por indecisão ou falta de coragem, ou, ainda por falta de
informações e saber, mas sim por conservadorismo mesmo. São os homens sem
ideais, os medíocres, como coloca Ingenieros: “Os homens sem ideais são incapazes
de resistir às armadilhas de riquezas materiais semeadas em seu caminho. Quando
cedem à tentação são cevados, como as feras que conhecem o sabor do sangue
humano. Pelo fato de pensar sempre conforme a cabeça da sociedade, o
domesticado é a escora mais segura de todos os preconceitos políticos,
religiosos, morais e sociais. Gil Blas está sempre com as mãos inchadas de
aplaudir os superiores e com a arma afiada para agredir o rebelde que anuncia
uma heresia. A imitação e a intolerância são as cores de sua insígnia, cujo
respeito exige de todos.” (Ingenieros,
José. O Homem Medíocre. Curitiba:
Chaim, s/d, p. 127).
[17] Obviamente que a radicalidade de
uma revolução social encontra como obstáculo intelectual para sua compreensão o
fato dos indivíduos da nossa sociedade possuir dificuldade de pensar outra
sociedade, assim como no feudalismo alguém defender uma outra forma de
sociedade, como o capitalismo, seria visto como loucura, pois seria algo
inimaginável. É por isso que a maioria esmagadora das propostas de outra
sociedade (dando-lhe o nome de “comunista”, “socialista”, ou qualquer outro)
não passa de uma confusa proposta de um “capitalismo reformado”, buscando
alterar elementos dentro do capitalismo ao invés de construir uma sociedade
radicalmente diferente, tal como aqueles que pensam em “distribuição de renda”,
“estatização”, etc. sem romper com a produção de mais-valor e tudo que é
derivado disso. Esse é o caso da União Soviética e países semelhantes, que
constituíram um capitalismo de Estado ao invés de uma sociedade socialista. Sobre
a teoria do capitalismo de Estado existe uma abundante bibliografia (que
aparece nos anos 1920 com Miasnikov e outros dissidentes na Rússia, os
comunistas de conselhos como Otto Rühle, Karl Korsch, etc., Rodolfo Mondolfo, Sylvia
Pankhurst, e posteriormente Bordiga, trotskistas dissidentes como Toni Cliff e
Max Schatman, maoistas como Charles Bettellheim, grupos autonomistas e até
stalinistas, obviamente que cada um colocando em uma época distinta o
surgimento do capitalismo estatal) que não poderei apresentar em sua totalidade
aqui, mas que tem em Pannekoek no livro já citado uma referência e outras podem
ser vistas em meu artigo sobre este tema: Viana,
Nildo. “O Capitalismo de Estado da URSS”. Revista
Ruptura, ano 01, num. 01, maio de 1993.
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