ESPONTANEIDADE E LIBERDADE
Nildo
Viana
Na atual fase do capitalismo, comandado pelo regime de
acumulação integral, emerge a supremacia valorativa do hedonismo acompanhado
por um neoindividualismo que acabam confundindo espontaneidade com liberdade.
Nesse contexto, adquire importância distinguir estes dois termos numa
perspectiva humanista revolucionária, mesmo porque tais concepções acabam
invadindo as tendências esquerdistas, pois elas são, em grande parte, produto
da época.
O ponto fundamental é entender a diferença entre
espontaneidade e liberdade. A compreensão disso é mais fácil a partir da
análise do indivíduo. Um indivíduo espontâneo não é, necessariamente, um
indivíduo livre. Os exemplos mais extremos deixam isso mais claro: um psicopata
é extremamente espontâneo ao cometer um assassinato, bem como um fanático
religioso ao pregar o evangelho nas ruas do centro da cidade. Mas qualquer
analista crítico percebe que tais práticas são realizadas espontaneamente, mas
não livremente, pois eles estão presos em seu universo psíquico desequilibrado.
A espontaneidade é uma ação cuja iniciativa é realizada pelo
próprio indivíduo (ou grupo). Uma criança nascida em família religiosa e que é
ensinada a rezar diariamente e constrangida a fazê-lo, a partir de certa idade
o fará por conta própria. Freud (1974) e a psicanálise já explicaram esse
fenômeno e o nomearam: introjeção[1]. A
socialização e a ressocialização dos indivíduos, bem como manifestações
concretas nesse processo (traumas, atos de violência, etc.) e o conjunto das
relações sociais (incluindo a cultura) geram hábitos, manias, vícios, desejos
(sexuais, afetivos, de consumo, etc.), ações que aparentemente brotam do
indivíduo em sua autenticidade, mas no fundo é produto social e psíquico.
Essa espontaneidade que é manifestação de introjeção ou
desequilíbrio psíquico, nada tem a ver com liberdade. Confundir espontaneidade
com liberdade é algo extremamente útil para quem detém o poder, pois pode ceder
cada vez mais espaço para a realização da espontaneidade em detrimento da
liberdade.
O que é a liberdade? Segundo Hegel (1995), é a consciência
da necessidade[2].
Essa é uma concepção ainda restrita, mas traz dois conceitos fundamentais para
entender a liberdade: consciência e necessidade. A liberdade pressupõe
consciência, razão, reflexão. Obviamente que isso não significa defender a
ideia de que o ser humano se define por ser um “animal racional”, pois isto
seria unilateral. Ele é um ser práxico,
ou seja, que coloca uma finalidade consciente, um projeto, em suas atividades.
No entanto, ele não faz isso individualmente e sim socialmente. Por isso ele é
também um ser social.
Nesse contexto, é possível perceber que o ser humano ainda é
um “animal”, por mais que queira se afastar da natureza, pois ele tem um corpo
e este tem necessidades[3].
As necessidades orgânicas estão na base da constituição das necessidades
especificamente humanas: a socialidade
e a práxis (VIANA, 2007; MARX e
ENGELS, 1991), elementos complementares e inseparáveis.
Assim, poderíamos dizer que a liberdade é a concretização
das necessidades humanas, que são as necessidades básicas (orgânicas), a
socialidade e a práxis. A sua emergência significa um processo de humanização e
este transforma as necessidades orgânicas que também são humanizadas. A
liberdade é autotélica, ou seja, é práxis fundada na associação que visa sua
realização e das necessidades orgânicas.
Não precisamos aqui recordar que este é um processo
histórico tendencial que foi relativamente interrompido pela emergência da
sociedade de classes e da alienação, tal como Marx (1983) demonstrou, o que
gerou a degradação do trabalho e da socialidade e, por conseguinte, da vida em
sua totalidade, incluindo as necessidades básicas (algumas atingindo certos
indivíduos, por seu pertencimento de classe, tal como a fome, outras a todos
sob forma de satisfação desumanizada).
Voltemos, no entanto, ao nosso foco de análise. A liberdade
é a manifestação da natureza humana, sua realização, ou seja, é expressão da
socialidade e da práxis, ou para utilizar um neologismo, da “praxidade”. Logo, a liberdade não é
“consciência da necessidade”, como em Hegel, e sim sua concretização, no
sentido de materialização (satisfação) das necessidades humanas, da praxidade, que expressa a liberdade
(práxis) coletiva (socialidade)[4] da
humanidade. Isto pressupõe a satisfação das necessidades orgânicas, agora sob
forma humanizada e verdadeiramente livre.
A espontaneidade é a manifestação irrefletida dos desejos e
necessidades (autênticas ou não)[5]
dos indivíduos. A espontaneidade, apesar de ser irrefletida, pode a posteriori, ser justificada e
legitimada por representações cotidianas, doutrinas, ideologias, etc. Se um
indivíduo pratica espontaneamente a zoofilia, manifesta espontaneidade. A
motivação pode ser desequilíbrio psíquico ou impossibilidade de satisfação de
necessidades autênticas de forma humanizada. No entanto, se posteriormente ele
escreve um tratado sobre zoofilia realizando sua naturalização, ele manifesta a
produção intelectual de justificativa e legitimação de sua espontaneidade, o
que significa que ela se tornará “refletida”, mas será ilusória. Esse processo
ocorre cotidianamente, mas sob forma pouco refletida, e a psicanálise nomeou
tal fenômeno como racionalização. Nesse caso há a produção de uma
espontaneidade coisificada[6].
Por conseguinte, o elogio da espontaneidade no capitalismo reforça o processo
de coisificação ao invés de humanização.
Isso também se manifesta no plano político da luta de
classes e dos grupos sociais. A espontaneidade das classes trabalhadoras se
expressa através de ações e reivindicações imediatas e pouco refletidas e são
fundamentais para a autonomização e passagem para posteriores lutas
revolucionárias. No entanto, é necessário reconhecer que tal espontaneidade é
uma reação à determinada situação que não significa práxis, tendo, pois, que ser superada. A espontaneidade coletiva é
diferente da individual, pois no primeiro caso temos ações coletivas geradas
por uma situação social determinada e no segundo caso atos individuais gerados
pela história de vida dos indivíduos (e sua cristalização no universo psíquico
dos mesmos).
Se no indivíduo ocorre a passagem da espontaneidade para
autonomia, isso também ocorre no nível das classes e grupos. A autonomia é um
passo adiante em relação à espontaneidade (autêntica)[7],
pois significa não apenas “iniciativa própria”[8],
mas também recusa de submissão às outras instâncias (no caso individual:
violência cultural, etc.; no caso de classe: recusa de partidos e sindicatos,
etc.). O espontâneo é algo que surge do próprio indivíduo ou grupo (que pode
ser, e geralmente é, gerado por elementos externos) e o autônomo é algo que
surge do próprio indivíduo ou grupo com a vantagem de recusar as instituições
burocráticas e pressões sociais (aqui apenas o desequilíbrio psíquico e
elementos introjetados podem permanecer). A espontaneidade é geralmente uma
iniciativa própria em determinado contexto marcado por uma história de vida e
formação psíquica dos indivíduos e/ou por determinada situação social
(pertencimento de classe, condições de vida, conjuntura política, etc.).
A autonomia, portanto, é um avanço e abre espaço para a práxis, o que significa que a
espontaneidade deve ser superada, seja para gerar autonomização ou diretamente práxis. A autonomia, portanto, está
entre a espontaneidade e a práxis, a liberdade. Mas, por não ser ainda práxis,
é outro momento que deve ser superado. A conquista da autodeterminação, da
práxis, se faz superando a espontaneidade e a autonomia.
Determinadas manifestações espontâneas são meras formas de
manifestar a reprodução ou consequências da sociedade existente[9].
No caso individual isso é quase que absoluto. Isso também ocorre com
determinados grupos e classes. Nos casos em que a espontaneidade é recusa não
coisificada, então ela é limitada, mas ponto de partida para a passagem para a
autonomia ou práxis. A liberdade, por outro lado, se manifesta marginalmente,
como práxis individual, e que deve se generalizar para se concretizar, tornando-se
liberdade coletiva e individual, sendo a primeira condição da segunda.
Desta forma, a espontaneidade está muito longe da liberdade.
Até mesmo no sentido mais restrito de liberdade, tal como apontado por Bloch e
Fromm, a “liberdade de”, que significa “estar livre de algo”, é algo mais amplo
do que espontaneidade. Um outro elemento que não pode ser esquecido é que a
liberdade individual não pode se concretizar plenamente sem a liberdade
coletiva. Em uma sociedade de classes, fundada na exploração e na dominação,
não é possível um indivíduo, por mais rico, inteligente, poderoso que seja, ser
plenamente livre. Nas sociedades de classes a socialidade é degradada, bem como
o trabalho, que é alienado. No capitalismo, a socialidade é perpassada por
conflitos (de classes), competição (e tudo que é derivado disso: inveja, ciúme,
possessividade, egoísmo, utilitarismo, individualismo, etc.) e o trabalho e
conjunto das atividades humanas são ao invés de realização das potencialidades
humanas (criatividade, desenvolvimento das energias físicas e mentais)
tornam-se ações controladas por outros visando garantir a exploração e a
dominação, sendo negação delas, mortificação e desumanização.
A transformação social, na qual a socialidade supere os
conflitos e a competição, substituídos pela solidariedade, bem como a superação
do trabalho alienado e alienação generalizada e sua substituição pela práxis,
significa a liberdade coletiva, o que permite a liberdade individual, do
indivíduo livremente associado com os demais indivíduos e generalizando a
práxis. Essa é a utopia que precisa ser concretizada, é uma necessidade humana,
e somente pode existir numa sociedade autogerida. Qualquer coisa que se oponha
a esse processo de libertação humana, mesmo que falando em seu nome, é um obstáculo
a ser superado. Todas as ideologias e concepções hedonistas e
neoindividualistas atuais têm como fundamento o culto da espontaneidade
coisificada e por isso este culto necessita ser superado, pois é um dos
obstáculos para a emancipação humana.
Referências
ENGELS,
Friedrich. Anti-Dühring. 3ª edição,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
FREUD,
Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego. In:Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Vol. 18, Rio de Janeiro: Imago, 1974.
PIAGET,
Jean. Psicologia da Criança. 11a
edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1995.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo, Hucitec, 1991.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. 8ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar,
1983.
MORAES FILHO,
Evaristo (org.). Simmel. São Paulo:
Ática, 1983.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo
Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo.
Práxis, Alienação e Consciência. In: A
Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital.
Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
[1]
Alguns ideólogos, como Jean Piaget, buscam encontrar aí, na época em que a
criança passa a reproduzir por contra própria o que ela introjetou da
sociedade, como “autonomia” (VIANA, 2000; PIAGET, 1990). Trata-se,
evidentemente, de uma ideologia que inverte a realidade e que entra em visível
contradição com as descobertas psicanalíticas.
[2] A
concepção hegeliana de liberdade é complexa e aponta para a relação entre
consciência e liberdade, mas vai além do liberalismo e coloca sua concretização
no Estado enquanto ético-universal.“Foi Hegel o primeiro que soube expor de um
modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a liberdade
não é outra coisa senão a convicção da necessidade” (ENGELS, 1990, p. 95). Marx
supera Hegel mostrando que somente a “indivíduos livremente associados”, com a
abolição do Estado, é que se pode realizar a liberdade.
[3]O
cristianismo é a forma religiosa que manifesta isso mais claramente ao pensar a
“vida após a morte”, que é a ruptura completa com o mundo animal, o “espírito
puro”, que não come, não tem sexo, etc.
[4]
Aqui não usamos sociabilidade por que este conceito ganha um significado mais
restrito ao expressar outro fenômeno social (VIANA, 2008) e “associação”, por
este ser mais amplo. O termo “socialidade”, usado por Simmel (1983) com outro
significado e na tradução portuguesa (que poderia ter utilizado outro termo e
os tradutores colocam isso explicitamente), nos parece mais adequado para
expressar o significado que queremos repassar, o caráter social do ser humano,
sendo que ele só existe no interior das relações sociais e necessita delas
tanto para a sobrevivência quando por razões psíquicas e somente assim é um ser
humano e se humaniza. O ser humano é um ser social, ou seja, integrado na
sociedade, partilhando isso como necessidade e realidade, seja sob a forma
humanizada ou desumanizada. A socialidade é o vínculo do ser humano com os
demais, o que, inexistindo, gera a loucura, o suicídio ou a infelicidade. Por é
isso é uma necessidade psíquica (alguns diriam “existencial”) do ser humano.
[5]É
preciso recordar que além das necessidades primárias (orgânicas) e secundárias
(especificamente humanas, a socialidade e a práxis), historicamente se produz
novas necessidades, que podemos chamar terciárias, que podem estar coerentes
com as necessidades radicais (primárias e secundárias) ou não. No primeiro
caso, elas são autênticas e expressam uma continuidade do processo de
humanização e no segundo caso são inautênticas e expressam uma negação da
essência humana e humanização.
[6]Coisificada
quer dizer transformada em “coisa”, algo autônomo, com vida própria e não sendo
produto social e histórico. Nesse caso, espontaneidade coisificada significa a
transformação da espontaneidade em algo dotado de vida própria e sem ter raízes
sociais e históricas, gerando um isolamento fantástico que ganha autonomia e se
realiza por conta própria. Sem dúvida, essa autonomização só ocorre no reino da
ideologia e não na realidade concreta.
[7] No
caso de uma espontaneidade inautêntica, ou seja, que não manifesta as
necessidades radicais dos seres humanos, mas geradas por sua negação
(alienação, repressão, recalcamento, etc.), então é uma autonomia que aprofunda
esse processo de inautenticidade e desumanização.
[8]
Iniciativa própria no sentido anteriormente definido, ou seja, por conta
própria, mas que é determinado exteriormente.
[9]A
sociedade capitalista, por exemplo, gera pessoas egoístas, competitivas,
invejosas, etc., de acordo com a sociabilidade moderna e seu processo de
reprodução (competição, burocratização e mercantilização), elementos de
reprodução dessa sociedade (VIANA, 2008). A prostituição, por exemplo, é
consequência dessa sociedade e sua existência pode gerar a espontaneidade
inautêntica manifesta no suposto desejo de se submeter ao processo de
mercantilização do corpo. Isso, obviamente, manifesta opressão sexual numa
sociedade que mercantiliza tudo. Muitas prostitutas negam a prostituição e
reconhecem seu caráter alienado, uma atividade que é meio para satisfação de
outras necessidades, enquanto outras afirmam que isso é algo que realmente
desejam espontaneamente. Isso manifesta uma espontaneidade coisificada (ou
desequilíbrio psíquico, em determinados casos). Por isso, quando a ideologia
liberal vem para defender a tese de que cada um faz o que quiser com seu corpo
(é sua “propriedade privada”, sua “mercadoria”) apenas legitima, nesse caso, a
opressão e mercantilização do corpo dessas mulheres.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Espontaneidade e Liberdade. Revista Posição. Ano 02, vol. 02, num. 06, jan./jun. 2015.
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