Proletariado e Dialética
Nildo Viana
A relação entre dialética e proletariado é bastante complexa. Na verdade, a formação e desenvolvimento de uma classe social é acompanhada pelo desenvolvimento de sua consciência e de suas formas culturais complexas. No caso das classes revolucionárias, a sua formação e desenvolvimento é acompanhada pela formação e desenvolvimento de sua consciência de classe concreta e passagem para a consciência de classe revolucionária, o que implica, em determinados contextos, na constituição de representantes intelectuais que produzem pensamento complexo (ciência, filosofia, teologia, teoria), que expressa seus interesses de classe. A burguesia, ao se formar e desenvolver, vai produzindo suas representações, concepções, criando os seus representantes intelectuais, que vão dando forma a um pensamento complexo que expressa seus interesses, e assim forma toda uma cultura burguesa que vai se tornando cada vez mais forte até se tornar hegemônica. Devido suas necessidades de luta contra a classe dominante anterior, a burguesia acaba tendo que assumir uma posição cultural crítica e que, por isso, atinge o auge de momentos de verdade que pode assumir a consciência burguesa, tal como se revela na filosofia de Hegel e em menor grau em outras concepções filosóficas (iluminismo, etc.).
Porém, há uma diferença essencial entre burguesia e proletariado, pois a primeira é uma classe proprietária que vai se fortalecendo paulatinamente com a expansão do capital (ou seja, surge e se desenvolve "economicamente", tendo, portanto, uma força crescente no plano da produção material e por isso logo se fortalece também no plano da produção cultural, antes de tomar o poder estatal). O proletariado, ao se formar e desenvolver, também produz suas representações e representantes intelectuais e estes dão forma a um pensamento complexo e busca fortalecer o mesmo, mas, por não ser uma classe proprietária e que não tem como se consolidar na esfera da produção antes da revolução social, então tem limites nesse processo. No caso do proletariado, não é na propriedade que se encontra a possibilidade da emancipação (e esse é o erro de todos os cooperativistas, solidaristas, "utópicos" e demais "românticos", que pensam na aquisição de propriedade para fortalecer o proletariado, inclusive esquecendo a força devastadora do capital e do Estado e da hegemonia cultural burguesa), mesmo porque a sociedade que se encontra em seu projeto emancipatório não é fundada na propriedade e sim na autogestão generalizada, o que pressupõe domínio dos seres humanos associados sobre o meio ambiente e as forças criadas por eles próprios, tal como as organizações, a produção, etc. A gênese do capitalismo foi encontrada no movimento do capital, a gênese do comunismo se encontra no processo de autoemancipação, na práxis - atividade teleológica consciente.
Assim, essa gênese do comunismo não é apenas idealismo voluntarista, onde basta leitura e raciocínio para aderir a tal práxis. Esta práxis tem raízes concretas, só é possível a partir de determinadas relações sociais concretas e isto é que permite a emergência de uma classe revolucionária com essa potencialidade, o proletariado. Esta potencialidade tem que se desenvolver e realizar. Este desenvolvimento seria espontâneo e desembocaria facilmente na realização do comunismo (e aqui é onde alguns autonomistas tropeçam, inclusive passando por cima de toda uma ampla gama de experiências históricas) desde que não houvesse uma classe antagônica com enorme poder para tentar frear e impedir o desencadeamento da revolução proletária e um conjunto de classes auxiliares para lhe ajudar nesse processo. Assim, o proletariado tem a potencialidade e a tendência de realizar o comunismo e, por conseguinte, de desenvolver uma consciência revolucionária, muito mais radical e profunda do que toda a produção cultural burguesa, incluindo as suas produções mais elevadas, historicamente falando. É interesse de classe do proletariado chegar à verdade, realizar a transformação social e descobrir todos os véus que cobrem a realidade.
Porém, isso também não brota automaticamente. Não é um processo imediato. Por dois motivos principais: a burguesia e suas classes auxiliares produziram milhares de representações e ideologias que ofuscam uma consciência correta da realidade e ainda a sociabilidade capitalista, cotidianidade e interesses imediatos dificultam uma radicalização dos indivíduos proletários. A classe dominante criou inúmeros obstáculos intelectuais para o avanço da consciência humana, tais como ideologias, crenças (na ciência e cientificidade, por exemplo), métodos, disciplinas, ilusões (estatísticas, entre outras), que são obstáculos a serem superados. Por isso, um dos elementos fundamentais para a emancipação humana é a luta cultural contra tudo isso. Aos indivíduos proletários em sua maioria, faltam as ferramentas intelectuais, bem como informações, tempo, etc., para poder desenvolver sua consciência revolucionária e efetivar uma luta cultural poderosa que possa destruir a cultura burguesa. No entanto, a partir de certo momento histórico, alguns indivíduos proletários e indivíduos de outras classes que se identificam com o proletariado (seus interesses históricos de emancipação e não com indivíduos reais de carne e osso que podem, e muitas vezes são, ser conservadores). Esses indivíduos, seja por condição de classe ou por condições pessoais excepcionais, possuem acesso a informação, tempo, ferramentas intelectuais, etc., e por isso podem produzir uma consciência revolucionária e desenvolver uma luta cultural a favor da emancipação humana.
Dentro desta luta, está o próprio desenvolvimento de novas ferramentas intelectuais, distintas e antagônicas às produzidas pela burguesia e suas classes auxiliares, possibilitando uma práxis revolucionária. É assim que surge os representantes intelectuais do proletariado e suas formas mais desenvolvidas de consciência (marxismo, anarquismo) e suas ferramentas intelectuais (materialismo histórico-dialético), que não surge como algo pronto e acabado, mas que tem algumas expressões mais desenvolvidas e elaboradas, tal como a dialética em Marx. Esse processo é o mesmo que Marx colocou entre a união do "coração" (proletariado) e a "cabeça" (filosofia), embora seja necessário a crítica da filosofia, assim como da ciência, devido seus vínculos indissolúveis e íntimos com a sociedade burguesa, mas hoje podemos, inclusive devido ao caráter inacabado destas ferramentas, substituir a filosofia e a ciência pela teoria.
Uma vez que o proletariado é uma força revolucionária potencial e existem centellhas de cultura revolucionária, então é necessário realizar a fusão entre ambos, e este é o papel da luta cultural, que é um reforço da luta espontânea do proletariado no sentido de sua emancipação. A dialética, portanto, é produto da existência e luta do proletariado. Sua elaboração se deu principalmente através da obra de Karl Marx - e, de forma independente, por Dietzgen, como disse o próprio Marx (e foi esquecido devido ao leninismo e acusação de idealismo atribuído a ele), e posteriormente teve desenvolvimentos em Labriola, Korsch, Lukács, etc.
A dialética desenvolvida por Marx não foi produto apenas dos estudos filosóficos deste, de sua erudição e conhecimento sobre a filosofia hegeliana, feuerbachiana, etc., bem como da economia política inglesa e socialismo romântico francês. Se assim fosse, todos que conhecessem a filosofia hegeliana teriam produzido a dialética materialista ou todos os eruditos como Marx (ou seja, que conheciam a economia política inglesa e o socialismo francês) teriam feito o mesmo. Isso só foi possível porque em Marx houve a fusão entre o "coração" e a "cabeça", sendo primeiro o motor do segundo, como já dizia Feuerbach. Devido seu processo histórico e singular de vida, Marx se tornou um revolucionário intimamente ligado ao proletariado e por isso pode produzir ideias revolucionárias. A sua erudição, também parte de seu processo histórico de vida particular, lhe permitiu manifestar os sentimentos, valores, interesses históricos, do proletariado, de forma aprofundada e altamente elaborada, como poucos depois se aproximariam.
Não se trata de genialidade e sim processos de vida que promovem uma síntese singular que expressa algo mais profundo, sendo que inúmeros outros, antes, durante e depois também contribuíram, de forma mais ou menos profunda e mesmo os menos profundos contribuíram com Marx ao alertar, tocar em questões não percebidas, etc. Isto quer dizer que o momento histórico (veja o papel da Comuna de Paris na produção de Marx), as lutas do proletariado, etc., são fundamentais, e que isso, aliado a quem realmente tem uma posição revolucionária-proletária (o que pressupõe valores, sentimentos, etc.), como era o caso de Marx, permitiu a elaboração da dialética materialista.
Nenhum indivíduo, por mais "estudioso", "pesquisador", dominar técnicas, métodos, etc. se torna um elaborador de uma teoria revolucionária, é preciso mais que isso, o fundamental, no fundo, encontra-se na mentalidade de tal indivíduo, incluindo seus valores, sentimentos, interesses, etc., e é isso que permite, inclusive, se superar, entender sua própria situação histórica e social, os limites impostos, sua própria história, etc. Claro que em grau maior ou menor, depedendo do indivíduo e de sua situação. Porém, a questão fundamental é o compromisso com a emancipação humana que tem muito mais a ver com valores e sentimentos do que com domínio racional, embora esse atue sobre aqueles e também seja fundamental. Assim, é possível que pelo estudo e pesquisa alguém chegue a se tornar revolucionário, mas isso somente se os seus valores e sentimentos não obliterarem isso, se já tiver pelo menos uma fagulha de sentimentos e valores humanistas, etc. Finalizando: a elaboração da dialética materialista é possível por uma síntese entre determinado indíviduo com determinado projeto de vida e interesses de classe do proletariado na emancipação humana.
Isso explica a relação entre dialética e proletariado. Também explica que ninguém "escolhe" a dialética arbitrariamente. Para escolhê-la tem que haver um conjunto de determinações (determinados interesses, valores, sentimentos, etc.) e dentre estas determinações, informações e saber sobre o que realmente a dialética é (saber distinguir a dialética marxista da positivista de Engels e do leninismo), do que realmente Marx produziu e significou, de sua distinção em relação ao leninismo e derivados, bem como em relação à social-democracia. Pois muitas pessoas que apontam para a emancipação humana de forma verdadeira e sincera, por falta de informações e deformações do marxismo, podem muito bem chegar a condená-lo e evitá-lo (esse, infelizmente, é o caso de anarquistas, que, devido a isso e a um apego excessivo a determinadas ideias em detrimento de um projeto emancipatório, buscam "alternativas" metodológicas e de análise do capitalismo em relação a Marx). Ou seja, é necessário a fusão entre "cabeça" e "coração", isoladamente, nenhum dos dois chega a uma posição revolucionária. Por isso, alguns tendem para a dialética, mas se não a conhecessem ou possuem uma imagem negativa dela (ou equivocada, a dialética positivista), então a abandonam).
Antes devo esclarecer que para utilizar o método dialético é necessário partir da perspectiva do proletariado (o que remete à questão dos valores, sentimentos, etc., acima aludidos). A questão é que partindo de outra perspectiva (valores, sentimentos, etc., que não os correspondentes ao proletariado, ou seja, ao projeto de emancipação humana) é possível deformar a dialética (veja o bolchevismo) ou mesmo remetendo a uma compreensão mais ou menos adequada da mesma, não usar adequadamente na análise, pois outras determinações estarão atuando (valores, sentimentos, etc., ou seja, a própria perspectiva, bem como falta de informações sobre o fenômeno analisado, etc.). Então, o que ocorre geralmente é que quando se parte de outra perspectiva, se chega a uma compreensão equivocada do método, a um uso problemático, dele, etc., ou seja, o resultado sempre tende a ser diferente. A importância do método não é "científica" ou meramente instrumental, é teórico-política e só existe para quem parte da perspectiva do proletariado. Por isso a dialética é, como coloca Korsch, "crítico-revolucionária", ou não é...
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