O Pensamento Político de Rousseau
Nildo Viana*
Rousseau é um dos grandes nomes da filosofia política. Sua obra O Contrato Social, ao lado de outras de
valor filosófico semelhante, apresenta um dos momentos mais importantes da
filosofia de sua época e se encontra no bojo das concepções iluministas que
exerceram influência no processo da Revolução Francesa.
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, a 28 de julho de 1712. De origem
humilde, teve dificuldades para se manter durante grande parte de sua vida.
Encontrou alguns auxílios e conseguiu a partir dos prêmios com as obras Discurso Sobre as Ciências e as Artes
(1971), de 1750, e Discurso Sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1989), de 1753, certo
sucesso e estabilidade. Mas o lançamento de O
Contrato Social provocou a sua perseguição e expulsão da França. Já no
final de sua vida consegue novamente uma certa estabilidade e morre em 1778.
A obra de Rousseau é produzida num período pré-revolucionário. Sem
dúvida, Rousseau contribuiu para o desencadeamento da Revolução Burguesa na
França, mesmo que, do ponto de vista dele, a contragosto. Ele, inclusive, pode
ser considerado um representante do que Pernoud denominou “burguesia
filosófica”:
“A burguesia
exerceu naturalmente uma influência muito grande sobre o movimento ideológico
desde o século 16 ao século 18. Não só pelo lugar preponderante que então ocupa
na vida do país, como pela sua instrução, está inteiramente indicada para se
tornar a classe dirigente no domínio do pensamento, como o era na vida
econômica. O seu apogeu situa-se, na segunda metade do século 18, com o
desenvolvimento de uma filosofia original de que se descobrem com facilidade as
origens e a evolução nas épocas anteriores e na qual se manifestam os traços característicos
e as preocupações do burguês francês” (Pernoud, 1986, p. 109).
O iluminismo expressa a formação de uma nova filosofia, que recupera da
filosofia antiga o fôlego para elaborar uma nova concepção de mundo, adequada à
nova realidade, aos novos interesses de uma classe social ascendente, a
burguesia. O iluminismo irá se contrapor às ideologias de cunho feudal e ao seu
mundo decadente, qualificando-o como “idade das trevas”, oposto ao novo período
em formação, o da “idade das luzes”, que não é nada mais do que expressão de
interesses de classes que produzem uma nova visão da história (Viana, 1999).
No interior da filosofia da ilustração, no entanto, temos um nome que se
diferencia dos demais: Jean-Jacques Rousseau. Alguns tentam enquadrá-lo como mais
um filósofo iluminista e outros o tratam como um “estranho” no ninho do
iluminismo. Se o iluminismo manifestou uma primeira versão da concepção de
mundo burguesa na esfera filosófica abordando as questões sociais, então
naturalmente Rousseau deveria ser um representante da burguesia, tal como os
outros.
No entanto, são visíveis as diferenças entre ele e os demais iluministas.
Rousseau era um representante do romantismo e assim não se encaixava no
racionalismo do iluminismo. Sua concepção política também não era idêntica a
dos iluministas, pois se tinha elementos em comum com o liberalismo, também
possuía elementos diferentes, alguns até mesmo antagônicos. Rousseau, então,
era um representante da burguesia, mas diferente. Também estava inserido no
mundo da filosofia da ilustração e até participou do projeto coletivo da Enciclopédia,
mas nem por isso se furtou a embates com os iluministas, principalmente
Voltaire.
“Voltaire foi
o astro mais importante de uma constelação numerosa e condensada: os ‘Enciclopedistas’.
Rousseau viveu só e, só, foi combatido. Chegou até, como se verá, a chocar-se,
nos seus combates, com o ódio dos enciclopedistas, que refutava moralmente e
que socialmente ultrapassava. Voltaire e seus subordinados, Diderot,
d´Alambert, d´Holbach, Helvetius, constituíram o lado negativo do espírito
novo, encarniçado na destruição da velha sociedade, dos seus preconceitos e dos
seus abusos: forma os campeões da livre razão crítica e irônica. Rousseau
representa, sozinho, o lado construtor, a afirmação da nova fé: é o anunciador
da República” (Rolland, 1951, p. 11-12).
A diferença entre Rousseau e Voltaire é exemplificada no romantismo do
primeiro e do iluminismo do segundo, uma rivalidade entre o coração e o
espírito, segundo a expressão de Endore (1965). O bom selvagem de Rousseau
provocava a ironia de Voltaire que dizia: lendo Rousseau dá vontade de voltar a
andar de quatro patas, bem como a outra ironia, exposta em Cândido, Ou o Otimismo, onde há um país onde os “bons selvagens”
são canibais (Voltaire, 1984; Viana, 1999).
Segundo Marx (1989), a relação entre um representante intelectual de uma
classe social e a classe que ele representa se encontra no fato dele apontar
para os mesmos problemas e soluções intelectuais que a classe representada
aponta na prática, na vida. Rousseau focalizou a questão política e se limitou
a esta esfera, tratando pouco do processo chamado “econômico”, tal como no caso
de suas reflexões sobre a Polônia (Rousseau, 1982), apontando para um
igualitarismo no regime de propriedade. Ele condena as grandes propriedades mas
não a propriedade. Rousseau não consegue ultrapassar os limites da consciência
burguesa, romper com a defesa da propriedade, mas também não faz apologia da burguesia
e da nobreza, pois realiza a crítica das grandes propriedades. Por isso alguns
qualificam Rousseau como ideólogo da pequena-burguesia, um defensor da pequena
propriedade.
No entanto, a pequena-burguesia não possui um projeto alternativo de
sociedade, e sua posição de classe não permite propor a abolição da propriedade
privada. A pequena-burguesia é uma fração de classe da burguesia, em clara
desvantagem e buscando, individualmente, se tornar parte do seleto clube da
grande burguesia e, coletivamente, se proteger da voracidade destruidora do
grande capital, que realiza a centralização e concentração da riqueza
destruindo os pequenos proprietários
(Marx, 1988). Sendo assim, todo ideólogo pequeno-burguês é representante da
burguesia e não ultrapassa os limites da consciência burguesa. Rousseau se
encontra neste caso e devido ao seu processo histórico de vida, que não cabe
aqui analisar pormenorizadamente, acabou revelando ambigüidades que por vezes o
aproximava do liberalismo, mas em outros momentos o afastava, permitindo sua
aproximação com ideais libertários, bem como caindo no reformismo
pequeno-burguês, entre outras aproximações. Enquanto os demais filósofos da
ilustração estavam afastados das ambigüidades e defendiam os interesses de classe
da burguesia, Rousseau carregava em si tais ambigüidades e assim se
diferenciava dos iluministas, não somente no que se refere ao campo político e
econômico, mas também em outras esferas, tal como seu romantismo oposto ao
racionalismo dos seus contemporâneos.
Após sua morte, a obra rousseauniana herdada pela humanidade foi
interpretada sob formas diferenciadas. Alguns qualificam Rousseau como
precursor do fascismo, outros dizem que ele é um liberal, alguns o definem como
um democrata radical e há até aqueles que dizem que ele é um antecessor da
teoria da autogestão social. Estas interpretações diferenciadas e por vezes
antagônicas, são possíveis graças às ambigüidades apontadas acima. Existem
intérpretes que ao invés de tomar a totalidade da obra de um autor para
compreendê-la, preferem selecionar uma parte dela e interpretar todo o resto à
sua luz, e esta parte selecionada e isolada permitem interpretações diferentes,
antagônicas e extremamente infiéis ao espírito da obra. No presente trabalho
buscamos trilhar um caminho diferente. Iremos focalizar sua obra O Contrato Social, na qual se apresenta
de forma mais desenvolvida o pensamento político de Rousseau. Isto, no entanto,
será acompanhado por referências a outras obras deste pensador, quando for
necessário.
Rousseau busca em sua obra O
Contrato Social refletir sobre a possibilidade de existência de uma ordem
que mantenha a administração legítima e segura que leve em consideração,
simultaneamente, os homens como são e as leis como podem ser. O objetivo de
Rousseau é unir a justiça e a utilidade. A problemática de Rousseau é clara: é
possível uma administração legítima e segura que respeite os homens como são e
as leis como podem ser? Ou seja, a base deve ser os “homens como são” e “as
leis como podem ser”.
São estas reflexões que servem de fundamento para o seu pensamento
político. Ele se revela como uma concepção política democrática e para ele a
democracia se baseia na associação dos homens e se torna legítima através do
contrato que eles contraem entre si. Iremos desenvolver isto mais aprofundadamente
a seguir.
Rousseau diz que o homem nasceu livre, mas em todo lugar se encontra
aprisionado. Como o homem livre se torna escravo? Rousseau diz ignorar esta
mutação. No entanto, se lermos o Discurso
sobre a Origem e a Desigualdade entre os Homens, teremos a resposta a esta
questão, que Rousseau não quis fornecer novamente. É por isso que alguns irão
colocar que Rousseau abandonou a preocupação com a origem da desigualdade e
passa a tomá-la como “fato social dado” (Antero, 1978). Rousseau, ao abordar a
origem da desigualdade, afirma que é preciso estudar o que é natural e não o
que é corrompido. N´O Contrato Social,
ele estuda o corrompido, o homem tornado escravo, e no Discurso sobre a Desigualdade, analisar o homem natural, livre, e o
seu processo de corrupção, a partir do surgimento da propriedade privada.
A tese de que abandonou a questão da origem da desigualdade é refutada
também pela história do livro O Contrato
Social, que poucos sabem ter tido duas versões, uma fazendo uma ponte entre
o Discurso da Desigualdade e ele.
“Temos duas
versões de O Contrato Social. A primeira, que só foi publicada no final
do século 19, parece ter sido redigida por volta de 1758. Não oferecem
diferenças doutrinais importantes. Rousseau modificou a ordem das duas
primeiras partes para torná-las mais coerentes. A primeira começava com a sociedade
geral do gênero humano (cap. 2), que
fazia a ligação entre o Discurso e O
Contrato Social. Esse capítulo suprimido
cede lugar na versão definitiva a uma polêmica contra as doutrinas adversas. A
questão da soberania é passada para o segundo livro. Rousseau refaz o capítulo
da religião civil que era demasiado
polêmico na primeira versão. Termina o terceiro livro esboçado e, fiel a seus
primeiros amores, introduz um quarto capítulo sobre a ‘polícia’ romana, para
mostrar como funciona ‘o conselho de duzentos mil homens’” (Burgelin, 2001, p.
XX)
A origem da desigualdade reside na transição da violência para o direito,
na subjugação da natureza pela lei (Rousseau, 1989). A origem da propriedade
marca a origem da desigualdade. O primeiro homem, diz Rousseau, que cercou um
terreno e afirmou ser dele este pedaço de terra, foi o fundador da sociedade
civil. Caso alguém tivesse contestado este homem, arrancado as estacas e
declarado ser ele um impostor, teria evitado muitas guerras, mortes, crimes,
misérias.
Mas a idéia de propriedade que está na base da ação deste primeiro homem
e na dos que deram consentimento a ela, não se formou repentinamente, mas
através de um longo processo histórico do desenvolvimento da indústria e outros
progressos, gerando muitas idéias que culminaram na idéia de propriedade. O
consentimento assume grande importância no processo de surgimento da
propriedade privada, pois é ele que permite o consenso. Este consentimento
assume a forma de um pacto social, de um contrato social, objeto de análise de O Contrato Social.
Assim, Rousseau não ignora como houve a mutação do homem, que deixa de
ser livre para se tornar escravo. Em O
Contrato Social, Rousseau diz ignorar tal processo de mutação e suas
causas, mas diz não ignorar o que a torna legítima. O que torna legítimo a
escravidão humana? As convenções, responde Rousseau. Assim, a mutação do homem
de ser livre para escravo se encontra no longo processo histórico que culmina
com o surgimento da propriedade privada e o consentimento fornecido pelos
homens, formando as convenções, o pacto social. O que legitima isto, objeto de
análise em O Contrato Social, é
justamente estas convenções, isto é, a origem e a legitimação são as mesmas. A
origem da desigualdade se encontra no “consentimento”, nas “convenções” e é
justamente este consentimento e estas convenções que torna legítima a
desigualdade. No início temos o consentimento e este, uma vez doado, legitima a
desigualdade.
Mas antes de tratar destas convenções Rousseau critica posições
diferentes sobre esta questão da legitimação. Para Rousseau, o homem não se
submete ao Estado por causa de uma autoridade natural ou por causa da força. A
idéia da autoridade natural se baseia, geralmente, no modelo da família e da
autoridade paterna, tal como em Aristóteles. Rousseau refuta esta tese da
seguinte forma: a família é a mais antiga e natural das sociedades. Os filhos,
no entanto, só se prendem aos pais quando deles necessitam para sua
conservação. Ao cessar esta necessidade, perde-se o “liame natural”. Os filhos
se tornam isentos a obediência que devem ao pai e estes isentos em relação aos
cuidados com os filhos. Pai e filhos, neste caso, se tornam novamente
independentes. A união entre eles, quando permanece, não é mais natural e sim
voluntária. A família se mantém apenas devido à convenção.
Esta liberdade do homem é produto de sua própria natureza. Ele,
primeiramente, cuida de sua própria conservação e quando atinge a idade da
razão passa a ser o senhor de si mesmo. A família é, por isso, o modelo
primeiro da sociedade política. A única diferença é que, na família, o amor do
pai é sua própria retribuição enquanto que no Estado ele é substituído pelo
prazer de mandar. Rousseau retoma aqui reflexões contidas no Discurso Sobre Economia Política, no
qual afirma que a autoridade paternal se fundamenta na natureza e a autoridade
política na convenção (Rousseau, 1996).
Rousseau diz que a força também não é suficiente para legitimar tal
situação, pois aqueles que são coagidos pela força poderão utilizá-la a seu
favor. Segundo Rousseau, a força do mais forte nunca é eterna, e assim ninguém
será sempre o senhor. Para isto ocorrer seria necessária a transformação de sua
força em direito e obediência em dever.
A partir destas reflexões Rousseau conclui que nem a autoridade natural
nem a força produzem qualquer direito ou autoridade legítima sobre os homens. O
fundamento da legitimidade é outro e Rousseau dirá que este é o consenso.
Rousseau continua sua exposição analisando a afirmação de Grotius (1583-1654)
na qual este sustenta a tese de que um homem pode alienar sua liberdade e
tornar-se escravo de um senhor, porque o povo não poderia fazê-lo? Rousseau diz
que alienar é dar ou vender e quando um homem “aliena” sua liberdade não se dá,
mas vende-se pela subsistência. Mas como um povo não tem sua subsistência doada
pelo Rei, ao contrário, é ele que produz a subsistência daquele, então não há
motivo para tal alienação. Poder-se-ia argumentar que o rei assegura a tranqüilidade
civil. Entretanto, é ele que declara a guerra e lança o povo nesta disputa
sangrenta. A tranqüilidade civil e a guerra nacional aniquilam com as vantagens
oferecidas pelo Rei ao povo, pois o que é oferecido de positivo na primeira é
negado pela realização da segunda. Neste caso, o povo não teria nenhum motivo
para se dar e somente os “loucos” se dão gratuitamente.
Rousseau argumenta que antes de um povo dar-se a um rei, ele já é povo e
essa doação é, ela mesma, uma deliberação pública. Portanto, é necessário
examinar antes de tudo o ato no qual o povo é povo, pois é este o ato fundador
que serve de fundamento para a sociedade. Este ato é a “convenção anterior” e é
ela que funda todas as demais convenções. Nas eleições se vê a minoria se
submeter à maioria, mas não se vê a obrigação de submissão. Esta só pode ter
sido garantida por uma convenção anterior e, nesse caso, pelo menos, houve
unanimidade.
Qual é essa “convenção anterior”? De onde ela surgiu? Rousseau busca encontrá-la
no mesmo lugar onde Hobbes encontrou o fundamento do absolutismo e Locke o
fundamento do liberalismo: no Estado de Natureza. Rousseau supõe que, em um
determinado momento, os obstáculos prejudiciais à manutenção de tal Estado os levariam
a mudar o seu modo de vida. Acontece que Rousseau se limita a suposições e não
esclarece que tipo de obstáculos seria esses. Em A Origem da Desigualdade Rousseau colocou isto em outros termos,
apontando de forma mais aprofundada a passagem do Estado Natural para a
sociedade civil.
Os homens, segundo Rousseau, não podem engendrar novas forças, mas apenas
orientar e unir as já existentes e, através da agregação, reunir um conjunto de
forças que levam à formação de uma unidade. Mas não haveria uma contradição
entre o indivíduo e o todo? Rousseau diz que é preciso encontrar uma forma de associação
na qual seja protegidos a pessoa e seus bens pela coletividade e por uma união
na qual cada indivíduo se une a todos e obedece apenas a si mesmo, ficando tão livre
quanto antes de se associar.
Para isso ocorrer, ou seja, para se fundar uma associação onde os bens e
as pessoas são defendidos e isto é reconhecido por todos, é necessário se
submeter a um contrato. A solução encontrada é, portanto, o contrato social. A convenção
anterior a que se referia Rousseau é o contrato social e este significa o
consenso que sem ele de nada adiantaria a força.
A própria natureza do ato determina as suas cláusulas. Por isso, quaisquer
modificações poderiam torná-las vãs e sem nenhum efeito. Elas são reconhecidas
em todos os lugares e são as mesmas em todas as partes, mesmo que não sejam
expressas de maneira formal. Quando se viola esse pacto social volta-se ao
Estado de natureza com sua liberdade natural e, simultaneamente, em troca perde
a liberdade convencional conquistada.
Quais são essas cláusulas? Rousseau diz que tais cláusulas se resumem em
uma só e esta se caracteriza por ser uma alienação total do indivíduo, com seus
direitos, à comunidade inteira. Segundo Rousseau, se cada um se der
completamente, isto é uma condição geral de todos e sendo assim ninguém se
interessa em torná-la onerosa para os demais. Cada um dando-se a todos, não se
dá a ninguém. Este ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto
por todos os votos da assembléia, isto é, por toda a coletividade, e assim se
forma uma “unidade” entre os associados, que formam o seu “eu comum”. Essa
pessoa pública é chamada de “corpo político” e seus membros são chamados de
Estado – quando passivo – e soberano – quando ativo – e, ainda potência –
quando comparado aos seus semelhantes -, sendo que seus associados são chamados
“cidadãos” – quando são participantes da autoridade soberana – e súditos – quando
submetidos às leis do Estado.
O soberano sendo formado tão só pelos particulares que o compõe não visa
um interesse contrário ao deles. Por isso, ele não precisa de nenhuma garantia
face aos súditos. O mesmo não ocorre com os súditos em relação ao soberano, a
quem ninguém executaria seus compromissos caso ele não encontrasse meios de
assegurar a fidelidade de seus súditos. Se cada indivíduo possui uma vontade
particular que pode ser contrária à vontade geral e, seu interesse particular
pode ser diferente do interesse comum, isto poderá levar o indivíduo a se opor
à vontade geral. Considerando que para ele será mais benéfico esta atitude.
Rousseau diz que um súdito considerando a pessoa moral que constitui o Estado
como um ente de razão, que não é um homem, e por isso poderá querer desfrutar
dos direitos de cidadão sem querer desempenhar os deveres de súdito. Isso,
certamente, levaria à ruína do corpo político.
Rousseau apresenta aqui afirmações que parecem contraditórias. Em
primeiro lugar, afirma que o soberano é formado pelos particulares e por isso
não possui interesses contrários aos deles. Daí ele não precisar de nenhuma
garantia em relação aos súditos. Mas os súditos, ao contrário, possuem
interesses próprios e particulares que podem se contrapor à vontade geral –
expressa pelo soberano. Por isso, cabe ao soberano assegurar meios de conseguir
a fidelidade dos seus súditos. Estes poderão querer desfrutar de seus direitos
sem cumprir com os seus deveres. Em suma: o soberano não apresenta perigo aos
particulares, aos súditos, mas estes representam um perigo para o soberano. Mas
também foi afirmado que o soberano não apresenta perigo por não ter interesse
contrário ao dos súditos e, sendo assim, por que os súditos seriam uma ameaça
ao soberano? Simplesmente porque o soberano representa a vontade geral e é
neste sentido que ele não apresenta interesse contrário ao dos súditos mas
estes, ao expressarem seus interesses particulares, poderão contradizer o
interesse comum e com isso romper o pacto social. Isso desfaz a aparência de contradição.
A vontade geral não ameaça as vontades particulares mas estas ameaçam aquela,
ou melhor, podem ameaçar em determinados casos.
É somente a vontade geral que poderá dirigir as forças do Estado de
acordo com a finalidade de sua instituição, que é o interesse comum. Se a
oposição de interesses particulares tornou o estabelecimento das sociedades uma
necessidade, foi o acordo originado nestes mesmos interesses que o tornaram
possível. É somente com base nesse interesse comum que uma sociedade pode ser
governada. A soberania é o exercício da vontade geral e em nenhuma hipótese
pode se alienar. O soberano é um ser coletivo e por isso só pode ser
representado por si mesmo, pois, se o poder pode ser transmitido, a vontade não
o pode.
Se o povo promete apenas obedecer, dissolve-se e “desde que há um senhor, não há mais soberano”. As ordens de chefes
podem ser consideradas vontades gerais desde que o soberano, livre para tanto,
não se oponha a elas.
Disto isto, chega-se à conclusão de que a vontade geral é sempre certa e
tende sempre à utilidade pública. Mas isto não quer dizer que as deliberações
do povo apresentem sempre a mesma exatidão, pois há sempre o desejo de se
realizar o próprio bem mas nem sempre se sabe onde ele se encontra. O povo não
pode ser corrompido mas pode ser enganado e somente neste caso ele desejará o
que é mau.
Rousseau busca definir vontade geral: “há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade
geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado
e não passa de uma soma de vontades particulares. Quando se retiram, porém,
dessas mesmas vontades, ao a-mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente,
resta, como soma das diferenças, a vontade geral” (Rousseau, 1987, p. 46-47).
A vontade geral existe na forma de um livre acordo entre os homens e a
soberania é uma atribuição inalienável do povo. O corpo político deve expressar
a força e a vontade, assim como a alma humana. A vontade é o poder legislativo
e a força o poder executivo. O poder legislativo pertence ao povo e só pode pertencer
a ele. O corpo político precisa também de um agente específico que execute as
decisões da vontade geral e é esta a razão do governo, do poder executivo.
Rousseau ao mesmo tempo que pergunta “que
será, pois, o governo”, responde: “é
um corpo intermediário entre os súditos e o soberano para sua mútua
correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade,
tanto civil como política” (Rousseau, 1987, p. 74).
Rousseau apresenta sua concepção sobre as várias formas de governo e
sobre suas partes e funções. As regras da democracia, bem como seu
funcionamento, também são apresentadas de forma detalhada, mas podemos dizer
que o fundamento do pensamento político de Rousseau foi exposto aqui. O
pensamento político de Rousseau funda-se na idéia do contrato social que
institui a vontade geral. Para Rousseau, quanto menos se relacionam a vontade
geral e as vontades particulares (que, segundo ele, são equivalentes à lei e
aos costumes, respectivamente) mais deverá aumentar o uso da força repressora.
Essa instituição da vontade geral na construção rousseauniana do contrato
social apresenta-se como ponto de partida para a democracia tornar-se uma
realidade. A oposição vontade geral/vontades particulares demonstra
simplesmente toda a dificuldade encontrada por Rousseau em fundamentar
filosoficamente sua concepção política democrática. Essa dificuldade cria
diversas possibilidades de interpretação da obra de Rousseau, mas uma coisa é
clara: sua intenção era dar fundamentação a uma concepção radical de
democracia. Entretanto, as noções utilizadas e a forma extremamente abstrata de
tratar do tema levou-o a algumas ambigüidades e tornou a intencionalidade uma
realização discutível e as inúmeras interpretações de seu pensamento, algumas antagônicas,
demonstram isso.
Consideramos que Rousseau expressa, fundamentalmente, uma preocupação com
a democracia fundamentada na proteção das pessoas e dos bens (e, nesse sentido,
se aproxima de Locke e seu liberalismo). Cabe ao povo instituir um contrato que
preserve as pessoas e os bens. Este contrato expressa a vontade geral – o
conceito fundamental utilizado por Rousseau – que às vezes se contrapõe às
vontades particulares e às vezes é seu complemento ou fundamento. Essa “vontade
geral” uma vez instituída pode ser considerada as leis que regem a sociedade e
cabe ao governo apenas executá-las. O governo, nesse caso, apenas representa a
vontade particular. Aí encontramos a defesa da democracia como instrumento de
defesa da vontade geral.
Esta “defesa” do “instrumento de defesa” tem como objetivo assegurar o
contrato social, apresentado como expressão da vontade geral que busca
regularizar a vida social com respeito aos bens e às pessoas. O compromisso
democrático se mantém graças ao contrato social e, devido a isto, se mantém as
liberdades individuais e a propriedade.
As vontades particulares, ao contrário do que se pode supor, não são
negadas pela vontade geral mas estão, em parte, incluídas nela. A democracia
instaura a unidade entre vontade geral e vontades particulares, embora esta
unidade nunca seja total, e expressa o contrato social – a convenção das
convenções – e limitando o poder do Estado, pois a vontade geral é objeto do
poder legislativo que, na teoria de Rousseau, é uma atribuição do povo. Assim,
embora próximo ao liberalismo, a concepção política de Rousseau se diferencia
do liberalismo em alguns aspectos e assim inaugura uma nova concepção, a
democrática, que é um irmão gêmeo do liberalismo, mas mais generoso e ambíguo.
Rousseau conseguiu realizar os objetivos apresentados no início d´O Contrato Social? Lembremos seu
objetivo: descobrir se existe a possibilidade de uma “administração legítima e
segura” respeitando os “homens como são” e “as leis como podem ser”. Em
primeiro lugar, a pergunta sobre a possibilidade de um governo legítimo deixa
implícito que os governos realmente existentes não são legítimos. Sem dúvida,
para Rousseau, os regimes políticos vigentes não são legítimos (Alves, 1983).
Daí O Contrato Social não ser uma
análise de uma realidade empírica e sim, partindo dela e de sua negação
(inclusive com exemplos empíricos, tal como se vê no Livro III de O Contrato Social, abordando as formas
de governo) construir um projeto político que se fundamenta na legitimidade.
Se não existe um governo legítimo, então é preciso discutir a
possibilidade de sua existência futura. Mas isto de acordo com o princípio de tomar
os homens como são e as leis como podem ser. O que significa “tomar os homens
como são”? Trata-se aqui dos homens livres e não corrompidos do Estado Natural
ou dos homens escravizados e corrompidos da civilização? A base de Rousseau,
neste caso, é empírica: trata-se dos homens escravizados, com suas propriedades
individuais e “vontades particulares”, tal como se vê em toda a construção de O Contrato Social, que busca conciliar
estas vontades particulares da sociedade civil com a “vontade geral”. Esta
última nos remete ao segundo ponto: as leis como podem ser (e não “como são"). Partindo do pressuposto da
não-legitimidade dos regimes políticos existentes, Rousseau tenta encontrar nas
leis uma fonte de legitimação do governo. A figura do soberano é a fonte de legitimação
encontrada por Rousseau. O governo é legítimo quando respeita e deixa
manifestar as vontades particulares (os homens desiguais e proprietários
individuais da sociedade civil) e manifesta a vontade geral, o soberano, que
produz uma igualdade jurídica.
Portanto, Rousseau elabora uma concepção democrática que se fundamenta no
contrato social – na vontade geral – e limita a força do poder executivo (mero
representante da vontade geral), abrindo, assim, uma nova etapa na história das
idéias políticas. Rousseau irá inspirar e influenciar inúmeros pensadores que
irão radicalizar sua posição democrática e sua crítica à propriedade privada,
tal como o pensamento socialista que irá se desenvolver no século seguinte.
No entanto, a obra de Rousseau será recebida tanto por entusiastas quanto
por críticos ferozes e será interpretada das mais variadas formas. Apesar disso,
as reflexões sobre política de Rousseau revelam uma rica análise da sociedade e
ainda merece interpretações mais aprofundadas. De qualquer forma, é preciso
contextualizar Rousseau para compreender um de seus principais problemas
analíticos. A obra de Rousseau surge antes do surgimento das ciências humanas e
do marxismo, estando inserida dentro de um contexto histórico marcado pela
expansão das ciências naturais e pela análise da sociedade sendo realizada
pelos filósofos no interior do discurso filosófico. A filosofia política deste
período, tal como se vê em Hobbes, Locke, entre outros, buscam resolver os
problemas históricos da origem através da especulação, bem como buscam
fundamentar o existente ou suas reformas na abstração metafísica (Viana, 2000).
A origem do Estado, da desigualdade, etc. não é procurada na história concreta
e sim na especulação racional.
Outro problema da abordagem de Rousseau reside na sua concepção, pouco
compreendida, de que o Estado é a manifestação da origem da desigualdade e ao
mesmo tempo sua legitimação e perpetuação, através da soberania popular. O
soberano é o controle do povo sobre o governo. Mas a especulação de Rousseau
enxerga a desigualdade na sociedade civil, as vontades particulares em
conflito, e toma o Estado como árbitro, legítimo ou ilegítimo, deste conflito e
propõe a fundação de um governo legítimo que consiga representar a vontade do
povo, esquecendo-se de que este não pode ter uma vontade geral, pois é
perpassado por interesses antagônicos. Para Rousseau, tais interesses
particulares não impossibilitam a manifestação da vontade geral, justamente por
não enxergar o antagonismo neles mas apenas diferenças, que, retirando os
a-mais e os a-menos, produz uma vontade geral. Esta posição, criticada por
Marx, não percebe que o Estado, existe para sancionar e reproduzir a
desigualdade e que sua base não é o povo em geral mas sim aqueles que detém a
propriedade privada dos meios de produção. O Estado, segundo Marx, anula a
propriedade privada, mas ficticiamente:
“Não obstante,
a anulação política da propriedade privada, ao contrário e longe de destruir a
propriedade privada, a pressupõe. O Estado anula, a seu modo, as diferenças de
nascimento, de status social, de cultura, e de ocupação, ao declarar o
nascimento, o status social, a cultura e a ocupação como diferenças não
políticas, ao proclamar todo o membro do povo, sem atender a estas diferenças,
coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os
elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado
deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto
é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua
natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só
existe sob tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua
generalidade em contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1978, p. 25).
Ao não perceber isto, Rousseau fica preso na idéia de que aquele que
nasce da desigualdade e legitima ela, poderá produzir alguma igualdade, a
jurídica-política, esquecendo-se de sua base desigual. Ao propor a limitação
das grandes propriedades (Rousseau, 1982), ele tenta resolver esta questão mas tal
resolução não tem nenhuma possibilidade prática de se efetivar e caso
ocorresse, o movimento do capital, com sua dinâmica centralizadora e
concentradora, o aboliria. Mas Rousseau não ultrapassava os marcos da abstração
metafísica e por isso não pode compreender as relações sociais capitalistas,
bem como o desenvolvimento insuficiente da produção capitalista em sua época,
ao lado da formação também insuficiente da classe operária, não pôde
ultrapassar os limites de uma consciência crítica que não consegue vislumbrar o
novo, uma real superação da sociedade de sua época, pois faltava o processo de
atuação dos agentes sociais desta transformação.
Assim, a conclusão final de nosso trabalho é que o pensamento político de
Rousseau é datado e somente no contexto sócio-histórico no qual foi produzido é
possível compreendê-lo de forma mais profunda e é isto que explica algumas de
suas limitações. Além e apesar disso, Rousseau apresenta algumas reflexões
inaugurais sobre a questão política que contribuíram com o desenvolvimento de uma
visão crítica da política, desenvolvida posteriormente por outros pensadores e
foi justamente o fato dele ter se destacado na sua concepção política,
assumindo uma posição muito mais crítica do que os liberais, que lhe permitiu
inspirar ideais contestadores.
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Publicado
originalmente em:
VIANA, Nildo. O Pensamento
Político de Rousseau. In: BARBOSA, Walmir (org.). Estado e Poder Político - Do Pragmatismo Político à Ideia de Contrato
Social. Goiânia: Editora da UCG, 2005, v. 02, p. 147-170.
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