GÊNESE E SIGNIFICADO DA
RELIGIÃO
SEGUNDO BAKUNIN
Nildo Viana
Resumo: O artigo aborda a concepção de religião em
Mikhail Bakunin, pensador anarquista, objetivando mostrar como ele entendia a
gênese e significado do fenômeno religioso. Para tanto, se utiliza as obras nas
quais ele analisou o fenômeno religioso e se observa que ela está intimamente
ligada às influências positivistas em seu pensamento e sua concepção de
natureza humana. A concepção de que a origem da religião está relacionada com a
faculdade de abstrair acaba sendo o fundamento de sua posição diante da
religião e do seu significado político, bem como, de forma derivado, em relação
ao Estado.
Palavras-chave: Religião, Abstração, Bakunin,
Anarquismo, Positivismo.
Abstract
The article discusses the concept of religion in
Mikhail Bakunin, anarchist thinker, aiming to show how he understood the
genesis and meaning of religious phenomena. Therefore, it uses the works in
which he analyzed the religious phenomenon and notes that it is closely linked
to the positivist influences on his thinking and his conception of human
nature. The idea that the origin of religion is related to the ability to
abstract ends up being the foundation of their position on religion and its
political significance, as well
as derivative, in relation to the State.
Key words: Religion; abstraction; Bakunin; anarchism;
positivism.
Um dos temas fundamentais dos escritos de Bakunin é a
questão religiosa. A abordagem sobre a questão da religião em Bakunin tem dois
elementos fundamentais: um é o problema da origem da religião e o outro é o seu
significado político. O nosso objetivo aqui é discutir a concepção de Bakunin a
respeito destas duas problemáticas. A concepção de religião em Bakunin remete outros
pensadores que foram fontes inspiradoras para ele, tais como Proudhon, Feuerbach
e Comte e, em menor grau, Hegel, Marx, Mazzini e outros.
As análises mais desenvolvidas sobre religião realizadas por
Bakunin se encontram em três textos, posteriormente publicados como livros: Federalismo, Socialismo e Antiteologismo (1867);
Considerações Filosóficas sobre o
Fantasma Divino, Sobre o Mundo Real e sobre o Homem (data desconhecida); Deus e o Estado (publicado em 1882). Há
uma polêmica a respeito do segundo texto, que segundo alguns seria um apêndice
ao primeiro e segundo outros ao terceiro (DIAZ, 1977). Contudo, consideramos
que não existem fortes contradições e alterações entre os três textos e por
isso abordaremos todos como sendo uma unidade.
Bakunin e a Origem da Religião
A primeira questão que Bakunin se coloca é a origem da
religião. O nosso ponto de partida é a concepção que ele tem sobre a relação
entre pensamento racional e religião. Ele afirma que para um pensamento
racional a religião é um absurdo. Tendo em vista tal afirmação, então é
necessário explicar como tal absurdo pode existir. A explicação de Bakunin para
a origem religião remete ao processo de desenvolvimento histórico da
humanidade, no qual ele identifica três condições essenciais: “1º) a animalidade humana; 2º) o pensamento;
3º) a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia social e privada;
à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade” (BAKUNIN, 1988, p. 7).
É nessa passagem que encontramos os elementos fundamentais
da explicação de Bakunin a respeito da origem da religião. Ele faz questão de
ressaltar a origem animal do ser humano. O indivíduo humano tem as mesmas
determinações que qualquer animal. O ser humano emerge da animalidade através
de uma negação que é composta por duas partes fundamentais, a faculdade de pensar
e a necessidade de se revoltar (BAKUNIN, 1988, p. 9).
A origem da religião se encontra nessa capacidade humana de
abstrair, a faculdade de pensar. Bakunin não se opõe ao pensar e nem se coloca
no campo contrário ao desenvolvimento do saber. A faculdade de pensar é uma
característica e conquista humana. Segundo ele:
Essa faculdade de abstração, fonte de todos nossos
conhecimentos e de todas nossas ideias, é, pois, também, como se vê, a única
causa de todas as emancipações humanas. Porém, o primeiro despertar dessa
faculdade que não é outra que a razão, não produz imediatamente a liberdade.
Quando começa a agir no homem, ao desprender-se lentamente dos limites de sua
instintividade animal se manifesta primeiramente não como uma reflexão
racional, que tem consciência e conhecimento de sua atividade própria, mas sob
a forma de uma reflexão imaginária ou da desrazão, e, como tal, não liberta
gradualmente o homem da escravidão natural que lhe rodeia em seu berço mas para
jogá-lo de imediato sobre o peso de uma escravidão mil vezes mais dura e mais
terrível ainda: a da religião (BAKUNIN, 1977a, p. 114).
Assim, a origem da religião está na faculdade de abstrair em
sua primeira forma de aparição. Ela não nasce completa, nasce no interior de um
ser em desenvolvimento e que precisa desenvolver a reflexão a partir de suas
condições de existência. Tanto a faculdade de pensar quanto a faculdade da
vontade são absolutamente formais, “não
implicam necessariamente e sempre a uma a verdade e à outra o bem”
(BAKUNIN, 1977b, p. 213).
No entanto, resta saber por qual motivo a faculdade de
abstrair aparece sob a forma de fetichismo ao invés da forma racional. Isso
ocorre através da passagem da animalidade para a humanidade, ou seja, o
desenvolvimento progressivo do homem que vai superando sua condição animal e
substituindo a escravidão animal pela escravidão divina (BAKUNIN, 1988). A
religião emerge como fetichismo, a “religião do medo”. Essa é a primeira manifestação
humana do sentimento de dependência absoluta, que se mescla com o terror
instintivo existente em toda vida animal, diante da onipotência da natureza
(BAKUNIN, 1977b).
Tudo isso constitui, para cada animal, um conjunto de
condições de existência, um caráter, uma natureza, e eu estaria quase tentado a
dizer um culto particular, porque nos animais, em todos os seres vivos,
encontrareis uma espécie de adoração da natureza, mescla de temor e de alegria,
de esperança e de inquietação – a alegria de viver e o temor da morte – que, enquanto
sentimento, se parece muito com a religião humana. A invocação e a oração mesma
não faltam. Considerando o cachorro domesticado, implorando por uma carícia,
uma olhada do dono: não é a imagem do homem ajoelhado e com um começo de
reflexão que a experiência desenvolveu nele, a onipotência natural que lhe deixa
obcecado com seu amo, o mesmo que o crente projeta em seu deus (BAKUNIN, 1977b,
p. 243).
O homem, então, sai da animalidade e produz o pensamento,
mas este num primeiro momento é desrazão, assumindo a forma de fetichismo, uma
abstração. Essa abstração, no entanto, é, num primeiro momento, absoluta. É o abstractum absoluto (ARVON, 1975). É a
ideia de Deus. Aqui se revela a inspiração de Feuerbach. Para este filósofo, o
homem criou Deus à sua imagem e semelhança e não o contrário, como diz a
religião. Ele inverte a fórmula religiosa dizendo que o homem não é a criatura
e sim o criador e deus não é o criador e sim a criatura. Os povos primitivos
criaram essa imagem invertida e se imaginaram criaturas (BAKUNIN, 1988).
Esse processo, no entanto, revela novamente a influência de
Feuerbach, para o qual, o enriquecimento do céu significa o empobrecimento da
terra, ou, como diz o jovem Marx, também influenciado por ele, “quanto mais o homem se fia em Deus, menos
tem de si mesmo” (MARX, 1983). O que significa dizer que deus é o abstractum absoluto? O próprio Bakunin
responde isso em uma de suas passagens:
Todas as religiões, com seus deuses, seus semideuses e
seus profetas, seus messias e seus santos, foram criadas pela fantasia crédula
do homem, que ainda não alcançou o pleno desenvolvimento e a plena possessão de
suas faculdades intelectuais. Em consequência, o céu religioso nada mais é do
que uma miragem onde o homem, exaltado pela ignorância e pela fé, encontra sua
própria imagem, mas ampliada e invertida, isto é, divinizada. A história das
religiões, a do nascimento, da grandeza e da decadência dos deuses que se
sucederam na crença humana, não é nada mais do que o desenvolvimento da
inteligência e da consciência coletivas dos homens. À medida que, em sua marcha
historicamente progressiva, eles descobriam, seja neles próprios, seja na
natureza exterior, uma força, uma qualidade, ou mesmo um grande defeito
qualquer, eles os atribuíam a seus deuses após tê-los exagerado, ampliado
desmedidamente, como o fazem habitualmente as crianças, por um ato de sua fantasia
religiosa. Graças a esta modéstia e a esta piedosa generosidade dos homens,
crentes e crédulos, o céu se enriqueceu com os despojos da terra, e, por
consequência necessária, quanto mais o céu se tornava rico, mais a humanidade e
a terra se tornavam miseráveis. Uma vez instalada a divindade, ela foi
naturalmente proclamada a causa, a razão, o árbitro e o distribuidor absoluto
de todas as coisas: o mundo não foi mais nada, ela foi tudo; e o homem; e o
homem, seu verdadeiro criador, após tê-la tirado do nada sem o saber,
ajoelhou-se diante dela, adorou-a e se proclamou sua criatura e seu escravo
(BAKUNIN, 1988, p. 24).
Isso gerou o aniquilamento da humanidade em favor da
divindade, Deus se tornou tudo e o homem nada. Ele se tornou o absoluto[1].
Uma abstração que se torna absoluta, o abstractum
absoluto segundo expressão de Arvon (1975). Assim, a absolutização de deus
gera a nadificação do ser humano. Se deus é tudo, o homem não é nada. A ideia
de Bakunin é restituir a realidade dessa relação, colocando o homem como o
criador e deus como a criatura e nesse processo defender a sua revolta, a sua
liberdade. Bakunin, tendo em vista esse objetivo, avança no sentido de refutar
as teses que buscam naturalizar a religião.
Aliás, hoje isso reaparece através de supostos “cientistas”
nos dias de hoje, a mesma tese, apelando para sua existência universal ou
natureza humana. Bakunin já havia respondido a isso no século 19. Ele afirma
que a “unanimidade imponente”, segundo alguns ideólogos (Joseph de Maistre,
Giuseppe Mazzini), é mais importante que as descobertas e demonstrações da
ciência. O argumento deles é que o consentimento geral e adoção universal
sempre foram consideradas como “prova suficiente
e irrecusável de sua verdade” (BAKUNIN, 1988). Isso significaria uma
necessidade inerente à natureza humana, já que se encontra em todos os povos
passados e presentes. As exceções seriam, nessa concepção, anomalias ou
monstros.
Bakunin refuta tal concepção da seguinte forma: a
universalidade de um erro apenas mostra a semelhança existente na natureza
humana, em qualquer contexto e que esse erro é algo historicamente necessário
no desenvolvimento da espécie humana. A questão é explicar como a maioria da
humanidade ainda aceita tal erro. Segundo Bakunin, o argumento da
universalidade não se sustenta, pois nada é mais universal e antigo do que o
absurdo, enquanto que a verdade e a justiça são as mais jovens criações
humanas. A perseguição aos que proclamaram a primazia da verdade, como Galileu
e Copérnico, explica o processo histórico constante de supremacia da mentira
sobre a verdade.
O Significado da Religião
Nesse contexto, torna-se fundamental, segundo Bakunin,
descobrir o motivo da permanência desse erro, dessas crenças antigas. É nesse
contexto que Bakunin passa a tratar do significado da religião na sociedade moderna.
A sua concepção remonta a tese de Augusto Comte () conhecida com “lei dos três
estados”, segundo a qual a humanidade teria passado da teologia para a
metafísica até chegar ao estado positivo, racional (BAKUNIN, 1977b). Contudo,
Bakunin considera que tais estágios não são superados em sua totalidade e sim
parcialmente e por isso eles coexistem e o pensamento teológico e o metafísico
se reproduzem contemporaneamente, apesar de já haver desenvolvido uma filosofia
materialista e positivista, um estágio superior do pensamento humano, apesar
dos limites do positivismo[2]. A
permanência da religião é assim explicada por Bakunin:
Que a crença em Deus, criador, ordenador, juiz,
senhor, amaldiçoador, salvador e benfeitor do mundo, tenha se conservado no
povo, e sobretudo nas populações rurais, muito mais do que no proletariado das
cidades, nada mais natural. O povo, infelizmente, é ainda muito ignorante e
mantido na ignorância pelos esforços sistemáticos de todos os governos que
consideram isso, com muita razão, como uma das condições sociais de seu próprio
poder. Esmagado por seu trabalho quotidiano, privado do lazer, de comércio
intelectual, de leitura, enfim, de quase todos os meios e de uma boa parte dos
estímulos que desenvolvem a reflexão nos homens, o povo aceita, na maioria das
vezes, sem crítica e em bloco, as tradições religiosas. Elas o envolvem desde a
primeira idade, em todas as circunstâncias de sua vida, artificialmente
mantidas em seu seio por uma multidão de corruptores oficiais de todos os
tipos, padres e leigos, elas se transformam entre eles em um tipo de hábito
mental, frequentemente mais poderoso do que seu bom senso natural (BAKUNIN,
1988, p. 15).
Assim, a manutenção das crenças religiosas tem sua fonte na
ignorância do povo, sendo que esta é mantida pelos esforços dos governos e
corruptores oficiais. A reprodução da religião serve para a reprodução da
dominação. Esse é o seu significado mais profundo. O povo, privado de tudo, tem
apenas três meios para fugir disso tudo: o cabaré, a igreja e a revolução
social, sendo os dois primeiros ilusórios.
As massas populares estão, assim, submetidas à igreja e à
religião. Contudo, não é apenas o povo que está submetido à fé religiosa.
Bakunin cita também outros que se relacionam diferentemente com a religião. Ele
cita uma “categoria de pessoas” que fingem crer em Deus: homens de Estado,
padres, monarcas, homens de guerra, financistas públicos e privados, soldados,
policiais, carcereiros, carrascos, advogados, economistas, exploradores da
humanidade, funcionários de todos os tipos, capitalistas, aproveitadores,
empresários, entre outros. Estes repetiriam o dito de Voltaire: “Se Deus não existisse seria preciso
inventá-lo” (BAKUNIN, 1988). A conclusão é que estes fingem crer em Deus
para manter a dominação, usando a religião como “válvula de escape”, “é
preciso de uma religião para o povo”.
Mas, além das massas e desses que fingem a crença em
Deus, existem outros, representados por pessoas honestas mas fracas, que são
demasiado inteligentes para aceitar os dogmas do cristianismo, mas não tem
coragem de recusá-lo completamente e somente o negando a retalho. Assim,
criticam os detalhes mais absurdos, rejeitam os milagres, mas reproduzem o
absurdo principal que é a existência de Deus. São almas incertas, doentes,
desorientadas na civilização atual, não pertencendo nem ao presente nem ao
futuro, pálidos fantasmas eternamente suspensos entre o céu e a terra, e
ocupando, entre a política burguesa e o socialismo do proletariado,
absolutamente a mesma posição. Elas não sentem força para pensar até o fim, nem
para querer, nem para se decidir, e perdem seu tempo e sua ocupação
esforçando-se sempre em conciliar o inconciliável (BAKUNIN, 1988, p. 17).
Tais pessoas, “muito doentes”, são os socialistas burgueses,
com os quais “nenhuma discussão é
possível com elas” (BAKUNIN, 1988, p. 17). Porém, além dos ignorantes
(massas populares), dos fingidos (dominantes) e dos doentes (socialistas
burgueses), existe um pequeno número de pessoas ilustres, tais como Mazzini,
Michelet, Quinet, Stuart Mill, entre outros. Em relação a estes, é difícil
duvidar de sua boa fé, saúde vigorosa e força de espírito, entre outros elogios
direcionados para eles por Bakunin. Contudo, esses pensadores são adversários
do materialismo e do socialismo. Apesar de seus méritos intelectuais, nenhum
deles conseguiu resolver, do ponto de vista filosófico, o problema do salto
mortal do divino mundo espiritual para o mundo material.
Esses homens ilustres são os idealistas, pessoas sábias e
marcadas por um amor sincero pelo bem da espécie humana e que por isso denunciam
os crimes da religião. Apresentam em seu lugar uma outra concepção de Deus, bem
distinto dos deuses que existiram na história da humanidade, sendo um Deus
positivo. Eles buscam contraditoriamente querer Deus e querer a humanidade,
colocando junto o que está separado e é negação um do outro. Se existe Deus, o
homem é escravo, pois se ele é absoluto, o homem não é nada. Ao mesmo tempo,
esses homens ilustres, segundo Bakunin, parecem não perceber essa contradição
entre Deus e liberdade humana. Eles valoram a liberdade, mas pensam nela apenas
quando ao lado de outra palavra: autoridade. A autoridade dos idealistas e acabam
remetendo a Deus novamente. Assim, o idealismo recupera a autoridade de Deus
através dos seus representantes.
Sendo assim, a discussão sobre a religião também remete ao
problema da autoridade. É nesse contexto que Bakunin discute a existência de
uma autoridade natural, composta pelas leis da natureza, à qual não resta
alternativa senão seguir. Bakunin afirma que não rejeita toda autoridade.
Quando se trata de botas, é necessário consultar um sapateiro, quando se trata
de uma ferrovia ou um canal, busca-se um engenheiro ou arquiteto. Para um saber
técnico e especializado, ele busca o cientista particular em questão. As leis
da natureza existem e de nada adianta querer evitá-las. A liberdade consiste em
obedecer estas leis. É nesse sentido que Bakunin coloca que respeita os
cientistas por sua inteligência, caráter e saber. Isso desde que não haja
imposição por parte deles e por isso é necessário controle e crítica, pois essa
aceitação é livre. Daí, nestas questões, consultar não apenas, mas várias para
comparar as opiniões e escolher a mais justa, não reconhecendo nenhuma
autoridade como infalível.
Nesse sentido, a autoridade científica existe por seus
méritos e isso garante o seu respeito, com liberdade de crítica e controle a
partir da razão, o que evita a fé cega. Por conseguinte, obedecer à legislação
produzida pelos sábios das academias científicas é algo que sufocaria e
embruteceria, pois a vida é mais que a ciência. Bakunin critica a ideia de
autoridade absoluta da ciência, dizendo que só tal coisa só seria aceitável se
for determinada por sua própria razão. Assim, Bakunin recusa todas as
concepções religiosas e semirreligiosas e coloca que só existe uma solução para
isso: a revolução social (BAKUNIN, 1988)[3].
Retomando a concepção inicialmente apresentada por Bakunin
sobre a história da humanidade, o ser humano sai da animalidade e desenvolve o
pensamento, que em sua primeira forma gera a religião, e a revolta. Com o
desenvolvimento história, o erro religioso permanece apenas nas massas
ignorantes, bem como naqueles que possuem interesse nele, os fingidos, os
doentes e, por último, os idealistas. A solução para isso é a revolta, tal como
fez Satã, metaforicamente falando. Desta forma, a faculdade de pensar, que gera
a ciência, sua forma superior, não pode conter a revolta, a liberdade. No caso
da religião, ela é expressão de uma faculdade de pensar, de abstrair, sob forma
ainda primitiva, e só é preservada na sociedade moderna por causa dos
interesses dos dominantes, sendo que eles buscam preservar a ignorâncias das
massas.
Considerações Finais
Esta é, resumidamente, a concepção de religião em Bakunin:
um produto da faculdade de abstração que permanece devido a condições sociais
precisas e ambas precisam ser abolidas. O vínculo dessa concepção com o pensamento
político de Bakunin é evidente e está presente em suas obras. O foco aqui foi a
questão da religião em Bakunin, por isso a questão política foi relegada a
segundo plano.
O Estado, segundo Bakunin, é também uma abstração e só
sobrevive graças aos interesses dos dominantes. A abolição da religião e a
abolição do Estado significa a superação de duas abstrações e fim da dominação,
a religiosa e a política. Deus e o Estado estão unidos, assim como ateísmo e
revolução social (ARVON, 1975). É por isso que é possível a abolição imediata
de Deus e do Estado (ARVON, 1975; VIANA, 2011). O Abstractum Absoluto representado por Deus justifica e legitima
todas as formas de autoridade (ligadas ao poder e não como produto da razão
livre). Arvon encontra um idealismo nessa posição e cita o texto de Bakunin, Resposta de um Internacional a Mazzini,
para explicar o idealismo de Bakunin:
Há um fato que seria digno de reflexão profunda pelos
nossos adversários platônicos: como é possível explicar que, geralmente, os
teóricos do materialismo se mostram mais amplamente idealistas, na prática, que
eles mesmos? No fundo, nada existe de mais lógico nem mais natural que
semelhante realidade. Todo desenvolvimento implica, de certa forma, à negação
do ponto de partida; pois bem, os teóricos materialistas partem da concepção da
matéria para chegar ao quê? À ideia; enquanto que os idealistas, partindo da
ideia pura, absoluta, e repetindo sempre de novo o antigo mito do pecado
original, que não é senão a expressão simbólica de seu melancólico destino,
voltam a cair eternamente, tanto na teoria quanto na prática, na matéria, da
qual jamais conseguiram se libertar. E em que matéria! Brutal, imóvel,
estúpida, criada por sua própria imaginação, com o seu alter ego, ou como o
reflexo de seu eu ideal (apud. ARVON, 1975, p. 82).
O argumento é que os materialistas começam com a matéria e
terminam na ideia e os idealistas o contrário. Claro que aqui não se trata de
discutir o materialismo de Bakunin e sua fonte de inspiração, o materialismo
burguês do século 18[4], e
nem como, partindo de uma tal concepção, só pode chegar ao voluntarismo. O que
nos interessa aqui é a recusa da religião e sua semelhança com a recusa do
Estado, pois a superação de ambos se dá com essa dupla recusa. A abolição da
religião é uma necessidade e passa pela abolição do Estado[5]. A
liberdade seria o processo de libertação, a revolta como parte da natureza
humana que se realiza através do pensamento. Da matéria à ideia, tendo como
motor a revolta em sua união com a ciência ou a razão. A superação do abstractum absoluto que é o Estado
pressupõe a superação de sua fonte divina, a religião.
Toda essa percepção da religião tem como fonte de inspiração
o positivismo, o materialismo burguês e uma determinada concepção de natureza
humana, apresentada inicialmente. As relações sociais concretas e a história da
humanidade é apenas o pano de fundo, no qual se realiza esse processo de
dominação. A rígida oposição entre dominantes e dominados, aos invés das
classes e suas lutas em toda sua complexidade, é o que expressa Bakunin. A
dimensão utópica da religião não aparece nem como vislumbre em sua concepção de
religião, nem os seus usos pelas classes exploradas.
Sem dúvida, a concepção de religião em Bakunin tem muitos
elementos interessantes e verdadeiros, apesar de alguns elementos necessários ficarem
ausentes para sua compreensão mais ampla, tal como as “dicotomias existenciais”,
para utilizar expressão de Erich Fromm, entre outros problemas, além de uma
certa intransigência com a religião em bloco, algo gerado por sua superestimação
do papel da religião na reprodução da sociedade existente. Isso, no entanto,
não retira a contribuição que ele realiza ao debate sobre a religião e o seu
caráter predominantemente conservador.
Referências
ARVON, Henri. Bakunin: Absoluto y Revolución.
Barcelona: Herder, 1975.
COMTE, Augusto.
BAKUNIN, Mikhail. Consideraciones
Filosóficas sobre el Fantasma Divino, sobre el Mundo Real e sobre el Hombre. In:
Obras de Bakunin. Vol. 03, Madrid:
Ediciones Júcar, 1977b.
BAKUNIN, Mikhail.
Deus e o Estado. São Paulo: Cortez,
1988.
BAKUNIN, Mikhail. Federalismo,
Socialismo y Antiteologismo. In: Obras
de Bakunin. Vol. 03, Madrid: Ediciones Júcar, 1977a.
DÍAZ, Carlos. Presentación.
Consideraciones sobre las “Consideraciones”. In: BAKUNIN, Mikhail. Obras de Bakunin. Vol. 03, Madrid:
Ediciones Júcar, 1977b.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 3ª edição, Rio de
Janeiro: Zahar, 1983.
[1] “Deus é, pois, a abstração absoluta, é o
próprio produto do pensamento humano que, como potência abstrativa, tendo
superado todos os seres conhecidos, todos os mundos existentes e libertado por
isso mesmo de todo conteúdo real, tornando-se nada mais que o mundo absoluto, se
coloca ante si mesmo, sem reconhecer-se, contudo, nessa sublime nudez, como o ser único e supremo” (BAKUNIN, 1977a, p.
119).
[2]
Bakunin segue algumas ideias de Comte e do positivismo e só o recusa no âmbito
da discussão política e alguns elementos relacionados. A solução positivista é
negada por Bakunin, especialmente a do governo dos cientistas (BAKUNIN, 1988).
[3]
Existem alguns aspectos derivados disso (incluindo a questão da “ciência
racional” e “propaganda pelo socialismo”) e para desenvolver isso seria
necessário discutir sua concepção de materialismo, ciência, revolução social, etc.,
o que não é possível, por questão de espaço e ficará para outra oportunidade.
[4]
A este respeito é possível consultar Korsch (1977) e Pannekoek (19).
[5]
Concepção distinta da apresentada pelo marxismo. Para Marx, houve a crítica da
religião, bem como sua superação, é mais o resultado da transformação social
total (“econômica”, “política”, etc.), ocorrendo naturalmente e Pannekoek
também observava que a luta socialista é contra o modo de produção capitalista
e não contra a religião e nem busca lutar pelo ateísmo contra a religião
(PANNEKOEK, 2014).
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Publicado originalmente em:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/26584/15135
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Publicado originalmente em:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/26584/15135
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