Rádio Germinal

RÁDIO GERMINAL, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. Para iniciar clique em seta e para pausar clique em quadrado. Para acessar a Rádio Germinal, clique aqui.

sábado, 4 de março de 2017

A Concepção Marxista das Classes Sociais


A Concepção Marxista das Classes Sociais
Nildo Viana



Um dos conceitos fundamentais da teoria marxista é o de classes sociais. Apesar disso, é um dos menos compreendidos e que recebeu menos contribuição e desenvolvimento depois de Marx. Isso gera uma dificuldade para a teoria marxista e abre espaço para deformações, incompreensões e simplificações. Geralmente, a solução encontrada é complementar a concepção de Marx com uma breve definição de Lênin (apenas um parágrafo de um panfleto que demonstra desconhecer a teoria das classes de Marx) e passa-se a tomar esta última como grande referência e assim nada se compreende do conceito de classes sociais em seu sentido original e autêntico.

O presente artigo é apenas uma síntese de uma outra obra que analisou mais extensamente e profundamente o conceito de classes sociais em Marx, apresentando os aspectos fundamentais. No presente artigo, evitamos efetivar o processo fundamentar nossos argumentos na obra deste autor – o que exigiria toda uma discussão conceitual, análise do processo de formação dos conceitos, citações confirmadoras e esclarecimentos, que seria o espaço de um livro e não de um artigo. Assim, aqui não nos preocupamos em demonstrar que trata-se de uma interpretação correta de Marx, mas tão-somente apresentá-la, pois tal demonstração foi realizada em outro lugar[1].

O conceito de classes sociais em Marx remete a diversos outros conceitos, característicos do materialismo histórico, entre os quais modo de produção, relações de produção, divisão social do trabalho, modo de vida, interesses, luta de classes, entre outros. Sem dúvida, aqui abordamos o conceito geral de classes sociais, isto é, a abordagem das classes sociais em todas as sociedades de classes[2]. Em cada sociedade específica, teremos uma forma de exploração específica, relações de produção específicas, classes sociais específicas, etc.[3] Nesse sentido, vamos expor os conceitos fundamentais do materialismo histórico para trabalhar o conceito de classes sociais e depois realizaremos a exposição dos conceitos específicos para analisar as classes sociais específicas do capitalismo.

O primeiro e fundamental conceito é o de modo de produção. O modo de produção é o modo como os seres humanos produzem e reproduzem os meios de sobrevivência (meios de produção, condições para isso, e meios de consumo). Sem o processo de produção não há como haver a sobrevivência humana e ela é um momento fundamental e determinante na vida social. A teoria de Marx aponta justamente para isso, isto é, a questão da primazia do modo de produção sobre as demais relações sociais. E entenda-se por “demais relações sociais” não só que existem tais relações como também que o próprio modo de produção é um conjunto de relações sociais. O aspecto fundamental e que caracteriza/determina um modo de produção são as relações de produção.

O modo de produção é constituído por determinadas relações de produção e forças produtivas. As forças produtivas são tanto os meios materiais para se realizar o processo de produção (os meios de produção), quanto a capacidade produtiva da força de trabalho em determinado estágio de desenvolvimento e características e habilidades necessárias para realizar a produção no contexto de tais relações e demais condições para a realização do processo de produção. As relações de produção são relações sociais entre os seres humanos no processo de produção, ou seja, como eles se relacionam no processo de trabalho, no processo de acesso aos meios de produção, no processo de distribuição dos produtos, etc., formando um conjunto de relações sociais.

Pois bem, nesse nível genérico, não há nenhuma referência a classes sociais. Isto é correto, no sentido de que todas as sociedades possuem um modo de produção (sem o qual não seria possível a reprodução humana), mas nem todas possuem classes sociais. Daí a divisão entre sociedades sem classes e sociedades de classes. As sociedades que existiram durante a chamada “pré-história” não eram sociedades de classes. Esta surge num determinado momento histórico. Não é objetivo aqui discutir a origem das sociedades de classes e nem suas formas de existência, mas tão-somente deixar claro que as tais sociedades não existiram sempre, tiveram uma origem histórica, e assumiram várias formas e que há a tendência e possibilidade de serem superadas por uma nova e mais desenvolvida sociedade sem classes, o que Marx denominou “comunismo” ou “livre associação dos produtores”, ou, ainda, “autogoverno dos produtores”.

Uma vez esclarecido isso, temos que demonstrar que as relações de produção nas sociedades de classes são radicalmente diferentes das existentes nas demais. Elas se constituem como relações de exploração, relações de classes sociais. Ocorre, porém, que numa sociedade determinada, podem existir diversas formas de relações de produção. Em todas elas, no entanto, existem relações de produção dominantes, que constituem o modo de produção dominante[4]. Aqui é que temos a base para compreender a teoria das classes sociais em Marx. Nas relações de produção dominantes se constituem as duas classes sociais fundamentais, a classe produtora e a classe exploradora. Sem dúvida, podem existir outras classes exploradoras e produtoras/exploradas, mas isto depende de cada caso concreto. As duas classes fundamentais não são as únicas. Elas são as classes do modo de produção dominante, mas existem as classes dos modos de produção subordinados e aquelas constituídas nas formas sociais (as formas de regularização das relações sociais ou “superestrutura”).
Marx não denominou as duas principais classes como fundamentais, a não ser em breve passagens, bem como não produziu termos para denominar as demais classes, embora, fez certas referências a casos específicos, tal como quando usou o termo classes improdutivas (MARX, 1983)[5], ao tratar do caso de determinadas classes no capitalismo. Porém, antes de colocar em evidência a questão das diferentes classes sociais, é necessário analisar o que são as classes sociais. O conceito de relações de produção dominantes nos remete para as classes fundamentais, mas também para a divisão social do trabalho na sociedade. As relações de produção dominantes expressam a divisão social do trabalho entre a classe exploradora e explorada, mas existem, em épocas de transição, relações de produção antigas em decadência, o que remete a classes sociais em decadência (no caso da transição do feudalismo para o capitalismo, as classes decadentes foram a nobreza, o clero e os servos, que deixaram de existir com o passar do tempo e consolidação do modo de produção capitalista); novas relações de produção subordinadas às dominantes, o que constitui outras classes sociais (no caso do capitalismo, camponeses, artesãos, etc.), e as classes sociais que existem para garantir a reprodução das relações de produção dominantes (Estado e demais instituições, e aqueles que executam o trabalho de repressão, legitimação ideológica, etc., das relações de produção dominantes e demais relações sociais), incluindo o contingente que é marginalizado na divisão social do trabalho, a classe dos marginais[6].

Essa divisão social do trabalho é constituída pelas relações de produção dominantes, que é sua determinação fundamental. Aqui temos então os conceitos fundamentais de relações de produção dominantes e divisão social do trabalho que inclui relações de produção subordinadas e atividades sociais improdutivas em geral, “superestruturais”, bem como aqueles que estão fora ou nas margens da divisão social do trabalho. Através desses conceitos fica mais fácil compreender o conceito de classes sociais. Apesar de expressar vários conceitos (relações de produção dominantes, relações de produção subordinadas, divisão social do trabalho, modo de vida, interesses, oposição e luta), eles estão, na realidade, unificados, pois estão intimamente relacionados e são determinações uns dos outros. Segundo Marx,

Essa fixação da atividade social, essa consolidação do nosso próprio produto social em uma força objetiva que nos domina, escapando ao nosso controle, contrariando nossas expectativas, reduzindo a nada nossos cálculos, é até hoje um dos momentos capitais no desenvolvimento histórico (MARX e ENGELS, 1982, p. 29).

As classes sociais são formadas por um conjunto de indivíduos que possuem em comum atividades fixadas pela divisão social do trabalho, que geram modos de vida particulares de cada classe. Esse modo de vida comum, constituído pela posição da classe na divisão social do trabalho, gera interesses comuns e também oposição/luta comum contra as outras classes. Assim, temos os seguintes elementos que este conjunto de indivíduos possui em comum e que caracterizam uma classe: modo de vida, interesses e oposição a outras classes. Contudo, não se pode reduzir uma classe social a apenas isto, pois existem outros grupos sociais que possuem modos de vida comum, interesses comuns e se opõem a outros grupos. É preciso compreender que tais características comuns dos indivíduos pertencem a uma classe é determinada pela divisão social do trabalho e esta, por sua vez, pelo conjunto das relações de produção, essencialmente pelas relações de produção dominantes, pelo modo de produção dominante. É por isso que podemos distinguir as classes pela sua posição na divisão social do trabalho, sendo que nas relações de produção dominantes se constituem as duas classes fundamentais e nas demais relações de produção outras classes e nas formas sociais (a chamada “superestrutura”) outras classes, e, ainda, aqueles que estão marginalizados na divisão social do trabalho.

Assim, partimos da determinação fundamental (relações de produção dominantes, que constituem as duas classes fundamentais) para a divisão social do trabalho que constitui as demais classes. Essas classes não-fundamentais, ao serem constituídas, possuem modos de vida, interesses e oposição comuns a outras classes (o que gera costumes e representações também comuns). Esses aspectos caracterizam as classes sociais: modo de vida comum, interesses comuns, luta comum, derivada da posição na divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelo modo de produção dominante.

No entanto, as classes sociais são determinadas por tais relações e só podem agir e fazer valer os seus interesses de classe quando criam uma forma de associação e desta forma agem e lutam coletivamente. Este é o caso das classes dominantes que se desenvolveram na história. Elas, para fazer valer seus interesses de classe, constituíram a sua principal forma organizacional: O Estado. A gênese do Estado, por sua vez, significa ampliação da divisão social do trabalho e, por conseguinte, espaço para emergência de novas classes sociais. Porém, especialmente no caso das classes exploradas, há uma grande dificuldade para criar uma associação e por isso elas ficam, geralmente, na situação de uma classe em-si e não atingem a situação de uma classe para-si[7].

Contudo, aqui ainda estamos num nível genérico, ou seja, válido para todas as sociedades classistas. Desta forma conseguimos identificar um conjunto de classes sociais existentes. As classes sociais fundamentais que são constituídas no modo de produção dominante, e as classes sociais subsidiárias, que engloba todas as demais classes de uma sociedade concreta. Entre as classes sociais subsidiárias, podemos colocar as classes constituídas nos modos de produção subordinados, que podemos chamar de classes sociais proprietárias subordinadas (que giram em torno do modo de produção dominante), as classes sociais de transição, que são aquelas oriundas de modo de produção anteriores e ainda sobrevivem, por algum tempo, no modo de produção ascendente, as classes sociais marginais, que ficam nas margens da divisão social do trabalho, as classes sociais improdutivas, que são aquelas que existem na instância das formas sociais (“superestrutura” ou formas de regularização das relações sociais).

Assim, as classes fundamentais são constituídas no modo de produção dominante e as classes subordinadas nos modos de produção subordinados. As classes transitórias que são restos de modos de produção anteriores e são constituídas por eles. Além destas, existem as classes derivadas das relações de produção dominantes, as classes improdutivas que são constituídas pelas formas sociais e as classes marginais, que são marginalizadas por causa de sua expulsão das relações de produção e relações de reprodução de um modo de produção dominante e não estão ligados a outros modos de produção.

A existência e reprodução das classes sociais, o que significa a produção e reprodução da classe dominante, da exploração, torna necessário um conjunto de atividades e formas de trabalho não produtivo que permitem a reprodução das relações de produção. A burocracia estatal, o exército, a igreja, os partidos, etc., são locais de exercício de trabalho improdutivo e possuem o papel de reproduzir as relações de produção dominantes. Nesse sentido, as classes improdutivas são aquelas que exercem atividades ligadas à reprodução das relações de produção. Marx não aprofundou na análise dessas classes e deixou apontamentos sobre sua existência sem, no entanto, elencar quais e quantas seriam. Ao lado dessas classes improdutivas também se pode falar das classes marginais, que são classes daqueles que são marginalizados na divisão social do trabalho, como os plebeus na Roma antiga.

Assim, as classes existentes em nível mais geral são as classes dominantes, as classes exploradas, as classes subordinadas, as classes transitórias, as classes improdutivas e as classes marginais. Estas classes são formadas por indivíduos que possuem modos de vida e atividade comuns, de onde deriva determinados interesses comuns e oposição às demais classes, o que significa que elas se caracterizam por sua unidade interna e pela luta contra as outras classes, que é parte de sua unidade. Todas essas classes lutam entre si e participam do confronto das duas classes fundamentais, de uma forma ou de outra.

A luta de classes produz novos elementos comuns e reforçam a unificação de cada classe. O resultado das lutas de classes é a transformação social, ou seja, instituição de uma nova forma de sociedade em substituição à antiga. É por isso que a história das sociedades tem sido a história das lutas de classes. Marx atribui especial importância para o processo de unificação e associação de uma classe social. Ele explicitou isso com a ideia da passagem de classe em si a classe para si. A classe dominante se torna classe em si com o processo de luta contra a classe dominante anterior e se unifica através do Estado, que é utilizado para defender os seus interesses gerais. As classes exploradas possuem dificuldade de passar para classe para si e a passagem é realizada através da luta. Porém, a efetivação disso vai depender das lutas e pode ser que, em alguns casos, não ocorra. No caso do campesinato, por exemplo, Marx via dificuldades devido ao modo de produção se basear na pequena produção. No caso do proletariado, ele via como um processo tendencial derivado das lutas de classes e de sua posição nas relações de produção capitalistas.

Na história das sociedades humanas, o processo de luta de classes leva à transformação social. Nesse contexto, as classes em luta buscam ou conservar determinada sociedade e modo de produção dominante ou buscam transformá-lo, instituindo novo modo de produção dominante e nova sociedade. Toda classe que aspira ser classe dominante, apresenta seus interesses particulares como interesses universais, e, uma vez chegando ao poder, torna-se conservadora e busca, sob todos os meios, reproduzir as novas relações de produção dominantes, as relações de dominação e exploração. Esse processo só se encerra com o surgimento de uma sociedade que gera uma classe social que significa a abolição de todas as classes sociais, criando assim uma identidade entre interesse particular de classe e interesse universal da humanidade e isto só ocorre no capitalismo. Daí a importância fundamental da análise das classes sociais no capitalismo.

As Classes Sociais no Capitalismo

A abordagem anterior foi no sentido de mostrar a concepção geral das classes em Marx, o que remete para todas as sociedades de classes. Sem dúvida, Marx fez referências à divisão de classes em sociedades classistas pré-capitalistas, mas não produziu nenhuma análise estruturada e profunda sobre nenhuma dessas sociedades especificamente. Marx analisou mais amplamente as classes sociais no capitalismo, devido à possibilidade aberta da luta de classes nessa sociedade gerar uma sociedade sem classes. Assim, se torna fundamental analisar a concepção de classes sociais no capitalismo elaborada por Marx. Ele analisou o modo de produção capitalista de forma mais aprofundada e daí identificou diversas classes sociais e sua dinâmica de existência e luta. O que podemos fazer aqui é apenas uma síntese do imenso trabalho analítico de Marx, o que desenvolvemos com maior detalhe e profundidade em outra obra, já citada (VIANA, 2012).

Marx deixou incompleto o seu capítulo sobre as classes sociais em O Capital, apesar de que em outros capítulos já tenha apresentado vários elementos que são esclarecedores diante de sua concepção de classe social. Da mesma forma, em várias passagens, ele faz referências a diversas classes, embora seu foco, nessa obra, seja as duas classes sociais fundamentais, aquelas que constituem e são constituídas pelas relações de produção capitalistas: burguesia e proletariado. Isso é explicado pelo fato de que o fenômeno que Marx analisa em O Capital não é a sociedade capitalista como uma totalidade, mas apenas uma parte dela, o modo de produção capitalista. O modo de produção capitalista constitui as duas classes sociais fundamentais através da produção de mais-valor. No volume 01 de O Capital, Marx (1988) trata justamente da produção de mais-valor e depois desenvolve elementos desse processo em outros capítulos, tanto aspectos históricos quanto suas consequências, incluindo a existência das demais classes sociais.

As relações de produção capitalistas se caracterizam pela produção de mais-valor, ou seja, a produção especificamente capitalista de mercadorias. O proletariado aparece com a classe produtora de mais-valor e a burguesia como a classe apropriadora desse mais-valor. Trata-se de uma relação de exploração, uma relação de classes, e, por conseguinte, luta de classes. No entanto, ao contrário que não-leitores e mal-leitores de Marx pensam, ele não concebia apenas estas duas classes no capitalismo. A classe produtora de mais-valor, o proletariado, se confunde com outras classes sociais, especialmente as assalariadas. Alguns definem equivocadamente o proletariado pelo trabalho assalariado. No entanto, Marx apresenta uma distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, sendo que o proletariado seria composto pelos trabalhadores assalariados produtivos. O caráter produtivo do trabalho dos proletários se encontra justamente na produção de mais-valor[8]. Os comerciários, por exemplo, são constituídos nas relações de distribuição de mercadorias e não de produção de mais-valor, sendo, portanto, trabalhadores improdutivos.

O modo de produção capitalista gera, para se reproduzir, um conjunto de classes sociais que possuem determinada função na divisão social do trabalho. Essas classes envolvidas nas relações de reprodução do capitalismo são as classes sociais improdutivas. Esse é o caso da “burocracia”, tanto a estatal quanto a das empresas privadas[9]. Além da burocracia, Marx (1988) identificou o que denominou, em O Capital, a “classe dos serviçais” (mordomos, trabalhadores domésticos em geral). Assim, as classes envolvidas nas relações de distribuição capitalistas e nas formas sociais burguesas (“superestrutura”) constituem as classes sociais improdutivas, que são aquelas que não produzem mais-valor[10].

Além das classes sociais fundamentais e das improdutivas, existem as classes sociais transitórias, que existem apenas durante o processo de formação do capitalismo e subsistem por determinado tempo posterior. Esse é o caso da nobreza. Com o desenvolvimento capitalista, as classes sociais vinculadas aos modos de produção anteriores são abolidas completamente. No processo de formação do capitalismo também surgem determinados modos de produção subordinados a ele que são classes subordinadas ao capital. Esse é o caso dos camponeses e artesãos, que constituem modos de produção subordinados ao capitalismo. Como são classes proprietárias subordinadas ao capital, elas entram em confronto com este, mas, ao mesmo tempo, com o proletariado, por este representar a abolição da propriedade privada em geral. Outras classes sociais proprietárias também existem e se assemelham à classe burguesa, como latifundiários, rentistas, pequenos proprietários, etc.

Além dessas classes existe o “exército industrial de reserva”, ou seja, um conjunto de indivíduos que não conseguem vender sua força de trabalho como os proletários ou o faz temporariamente ou na forma de subemprego. Marx não foi preciso nesse aspecto e em algumas passagens denominou esse conjunto como lumpemproletariado, embora em outras passagens tenha usado tal termo para se referir apenas aos mais empobrecidos do exército industrial de reserva[11]. Consideramos mais adequado considerar o lumpemproletariado como o conjunto do exército industrial de reserva, ou seja, incluindo todos os desempregados, subempregados e marginalizados na divisão social do trabalho.

Desta forma podemos colocar que, na sociedade capitalista, existem as classes fundamentais (burguesia e proletariado), as classes sociais improdutivas (burocracia, subalternos, etc.), as classes transitórias (nobreza, clero, etc.) e as classes proprietárias não-capitalistas e semicapitalistas (campesinato, latifundiários, artesãos, pequenos proprietários, etc.), e a classe marginal (lumpemproletariado).

Esse conjunto de classes sociais só existe no interior da totalidade da sociedade capitalista e através da relação estabelecida entre elas. A concepção marxista de classes sociais nada tem a ver com as ideologias da estratificação social, principalmente as que distinguem as classes sociais por nível de renda. As classes sociais transitórias vão desaparecendo com o desenvolvimento capitalista, se integrando e metamorfoseando e se transformando em outras classes sociais. As classes não-capitalistas e semicapitalistas são subordinadas ao capital e ao aparato estatal. O modo de produção camponês, por exemplo, se subordina às relações de distribuição capitalistas, bem como ao Estado capitalista, submetida aos “métodos secundários de exploração capitalista”. As classes sociais improdutivas sobrevivem graças ao processo de repartição do mais-valor global no conjunto da sociedade. O Estado, por exemplo, drena parte do mais-valor global e o repassa para seus trabalhadores assalariados improdutivos (burocracia, subalternos, intelectualidade). Os rentistas também drenam parte do mais-valor global através da apropriação de mais-dinheiro (VIANA, 2016).
Assim, as classes sociais estão relacionadas pela divisão social do trabalho e sua função nas mesmas, bem como pelo processo de repartição de mais-valor realizada através das relações de distribuição capitalistas. Isso gera distintos modos de vida, interesses e luta entre as classes. Esse processo é complexo, pois as classes privilegiadas (burguesia, burocracia, intelectualidade, latifundiários) possuem uma proximidade e interesses comuns, apesar de suas disputas e conflitos internos, e as classes desprivilegiadas (proletariado, lumpemproletariado, campesinato, subalternos, etc.) também possuem proximidade e interesses comuns, mas também entram em confronto por razões secundárias e por causa da hegemonia burguesa.

Essa situação se torna ainda mais complexa se recordarmos que a divisão social do trabalho gera um conjunto de subdivisões e as classes sociais possuem divisões internas, que Marx denominou “frações de classes”. A burguesia, por exemplo, tem várias frações: industrial, agrícola, comercial, financeira, etc. O proletariado também: industrial, agrícola, da construção civil, etc. A burocracia, por sua vez, pode ser dividida em estatal, universitária, partidária, sindical, etc. Essas frações de classes compartilham semelhanças essenciais e diferenças existenciais, mantendo os interesses comuns de classe social.

Assim, todas as classes sociais no capitalismo entram em confronto, direto ou indireto. Elas, no entanto, tendem a girar em torno da luta entre as duas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. No entanto, essa luta de classes ocorre sob forma espontânea e sem maior consciência por parte dos indivíduos pertencentes às classes sociais. As classes sociais tendem a criar organizações e formas de consciência, mais ou menos desenvolvidas, que expressam sua perspectiva e seus interesses. Marx explicita o processo de passagem de classe em-si a classe para-si (MARX, 1989), ou, como preferimos, classes determinadas para classes autodeterminadas, através da associação (MARX e ENGELS, 1982; VIANA, 2012).

Porém, é necessário abrir um parêntesis para explicitar o que significa a passagem de classe em si a para si. Os termos são retirados de Hegel e recebem um tratamento, neste filósofo, como o desenvolvimento de uma potencialidade já contida no ser, tal como no exemplo da semente, que tem contida em si a planta. A passagem da potência ao ato é o que expressa a passagem da classe em si a para si. E o para-si das classes significa desenvolver sua potencialidade de expressar seus próprios interesses, ou seja, a mutação de classe determinada para classe autodeterminada. Isto é muito mais amplo do que a concepção kautskista-leninista que se tornou dominante e que remete apenas ao problema da consciência. Em todas as referências de Marx a esse processo, tratando das classes dominantes e do Estado, bem como tratando do campesinato ou do proletariado, ele nunca reduziu a autodeterminação apenas à instância da consciência[12]. Obviamente que a consciência é parte da autodeterminação, pois ninguém, indivíduo ou grupo, pode se autodeterminar sem ter consciência de seus interesses. Porém, nenhum indivíduo ou classe pode se autodeterminar através dos outros, isso não seria autodeterminação e sim dominação e reprodução do estágio da classe em si, determinada por outros. Para que isso fique claro, basta citarmos a passagem mais famosa de Marx sobre isso:

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma (MARX, 1989, p. 159).

Assim, a reunião, a unificação, através da associação, é o que expressa essa passagem de classe determinada para autodeterminada, que significa, simultaneamente, desenvolvimento da consciência e da organização de classe. No caso da classe operária, ela é uma classe determinada, produzida e reproduzida pela classe dominante, mas quando, através da luta, se une, se organiza, defende conscientemente seus interesses, torna-se classe autodeterminada, de acordo com o seu ser-de-classe, realizando sua potencialidade revolucionária.

A burguesia possui uma associação que representa os seus interesses: o Estado capitalista. Além do estado capitalista, ela cria outras organizações com o mesmo objetivo, formando o que denominamos bloco dominante. As classes auxiliares da burguesia também criam suas organizações e formas de consciência, mas com a ambiguidade de sua posição de classe (seus setores mais radicais dizem representar o proletariado e busca se autonomizar e conquistar o poder estatal burguês e seus setores mais moderados se aliam ao bloco dominante e não entram em confronto com o capital), reforçada por alguns setores das classes desprivilegiadas, formam o bloco progressista, semiburguês. Esse bloco quer substituir o bloco dominante, mas não tem força para tal, a não ser em raros casos históricos (como o caso do bolchevismo na Revolução Russa). O bloco dominante e o bloco progressista geralmente entram em conflito, devido sua oposição, especialmente na disputa pelo poder estatal[13].

Um terceiro bloco se constitui em antagonismo a estes dois. Trata-se do bloco revolucionário, que expressa os interesses de classe do proletariado, e aglutina geralmente setores das classes desprivilegiadas, da juventude (de várias classes), da intelectualidade. Esse bloco é geralmente marginal na sociedade capitalista. Ele só se fortalece quando realiza a fusão com o proletariado, o que ocorre em momentos revolucionários, que é quando este radicaliza, desenvolve sua consciência e formas de auto-organização (como os conselhos operários) e se unifica a partir dos seus interesses fundamentais de classe.

Os blocos sociais são as formas organizativas e conscientes das classes sociais, mas em momentos de estabilidade social, financeira, política, não são dominantes e nem sempre conseguem grande espaço nos conjunto das classes sociais. É nos momentos de crise que os interesses de classes se tornam mais claros e a radicalização da luta de classes tende a fortalecer os blocos sociais, aglutinando mais e com mais firmeza setores no seu interior. A fusão entre os blocos sociais e as classes sociais que representam tende a ocorrer apenas nos momentos revolucionários.


Considerações finais

O objetivo do presente texto foi resgatar a concepção marxista de classes sociais, tomando Marx como a principal referência. Sem dúvida, Marx não pode desenvolver e estruturar uma teoria das classes sociais, mas forneceu os elementos fundamentais para isso. Nesse sentido, é necessário avançar na estruturação de uma teoria marxista das classes sociais, bem como atualizá-la ao tratar do caso específico do capitalismo, pois suas mutações promoveram alteração na composição das classes e na dinâmica das lutas de classes. Algumas obras já foram produzidas tentando contribuir com o desenvolvimento de tal teoria e sua compreensão é ponto de partida para qualquer avanço posterior. Aqui focalizamos a concepção de Marx e em alguns momentos apontamos alguns elementos novos (intelectualidade como classe social, blocos sociais, etc.). Novas contribuições são necessárias para atualizar e desenvolver tal teoria, bem como resolver os problemas presentes na mesma e ainda não solucionados. Essa breve síntese apenas visa oferecer uma introdução aos que ainda não tiveram acesso a uma análise mais profunda da teoria marxista das classes sociais e nesse sentido cumpre com seu objetivo.

Referências

BRAGA, Lisandro. Classe em Farrapos. Acumulação Integral e Expansão do Lumpemproletariado. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013.

KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona: Ariel, 1983.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. Los Alquimistas de la Revolución. In: RUBEL, Maximilien (org.). Páginas Escogidas de Marx para una Ética Socialista. Vol. 2. Buenos Aires, Amorrurtu, 1974.

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Blocos Sociais e Luta de Classes. Revista Enfrentamento, ano 10, N. 17, jan/jun. 2015. Disponível em: http://enfrentamento.net/enf17.pdf Acessado em: 30/06/2015b.

VIANA, Nildo. Karl Korsch e a Concepção Materialista da História. São Paulo: Scortecci, 2014.

VIANA, Nildo. Marx e a Burocracia. Revista Plurais. Vol. 05, num. 02, 2015a.




[1] Trata-se do meu livro A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx (VIANA, 2012).
[2] A interpretação ideológica de Marx, segundo a qual para esse só existiriam classes no capitalismo, é refutada na obra mais ampla que dedicamos a esse tema (VIANA, 2012).
[3] É um princípio do materialismo histórico, desenvolvido por Marx em várias obras (MARX, 1989) e denominado por Korsch como “princípio da especificidade histórica” (KORSCH, 1983; VIANA, 2014), e esquecido pela maior parte dos pseudomarxistas.
[4] Muitos relacionam a discussão entre modo de produção dominante e modos de produção subordinados com a concepção pseudomarxista-estruturalista (Althusser e seus colaboradores), o que é um equívoco e só revela, mais uma vez, o tanto que Marx não é lido ou pouco lido, ou, ainda, mal lido. Ele expôs essa concepção em alguns momentos e faz parte de sua teoria. No entanto, os conceitos em Marx são reificados pelos pseudomarxistas e outros, que não entendem a concepção dialética do conceito, cuja origem está em Hegel, e assim colocam uma rigidez enorme nos conceitos (classes sociais, modo de produção, etc.) que não se encontra no autor que os elaborou e que só tem equívoco semelhante naqueles que diluem os conceitos de tanto “flexibilizá-los”, o que mostra o mesmo problema de origem: a incompreensão do vínculo entre conceito e realidade.
[5] As classes improdutivas remetem ao conceito de trabalho produtivo e improdutivo. O trabalho produtivo é aquele que se manifesta no modo de produção dominante como produtor de riquezas. Em outras palavras, é o trabalho que produz bens materiais no modo de produção que constitui e caracteriza determinada sociedade. O trabalho improdutivo é toda forma de trabalho realizado na “superestrutura”, nas formas de regularização das relações sociais. Os indivíduos ligados aos modos de produção subordinados não realizam nenhum nem outro, realizam trabalho que contribui para a produção de bens materiais e a reprodução geral da sociedade, mas é exterior ao processo de trabalho do modo de produção dominante.
[6] Os marginais são aqueles que estão nas margens da divisão social do trabalho, tal como os plebeus na Roma Antiga ou o lumpemproletariado, no capitalismo.
[7] Marx usa as expressões hegelianas “classe em si” e “classe para si”. Julgamos mais esclarecedor outra terminologia, também de origem hegeliana, de classe determinada e classe autodeterminada, pois assim fica mais claro o significado e mostra a inseparabilidade entre ambos. Ou seja, alguns pseudomarxistas quiseram transformar a distinção de classe em si e classe para si em coisas radicalmente distintas e separadas, seja sob a forma idealista (supervaloração da consciência em detrimento do ser), seja sob a forma teleológica (o “para si” seria o fim e a própria constituição da classe, ou seja, só se tornaria realmente uma classe quando assume essa situação, tal como a “consciência revolucionária”). Isso demonstra apenas desconhecimento das origens hegelianas de algumas expressões usadas por Marx e do caráter que ele atribuiu aos termos em questão. A classe operária, que é o grande foco dessa discussão, é uma classe determinada pelo capital, ou “em si”, mas só quando cria sua associação, sua forma de auto-organização coletiva que possui consciência de seus interesses fundamentais de classe, é que se torna autodeterminada, ou seja, para si. Ela só pode se tornar autodeterminada por ser determinada e sua autodeterminação não significa sua afirmação, mas sua negação. O proletariado como classe determinada pelo capital não é revolucionário, logo, “não é nada” (MARX, 1974). O proletariado só se torna revolucionário quando passa a ser classe autodeterminada, num processo de busca e concretização da superação do capital e de si mesmo, pois ele só existe na relação com este. Assim, a distinção entre classe determinada e autodeterminada significa a passagem da potência ao ato, a potencialidade revolucionária gera a ação revolucionária.
[8] Em Marx existe uma certa ambiguidade em torno da discussão sobre trabalho produtivo, pois era um problema que ainda estava resolvendo. Porém, isso ocorre levando em consideração vários escritos dele, inclusive manuscritos não publicados. Na única obra publicada em sua vida, o volume 01 de O Capital, a sua concepção, que é a acima apresentada, está mais clara, embora ainda assim contenha certas dificuldades analíticas.
[9] Para Marx, a burocracia é uma classe social e ele abordou a burocracia estatal e empresarial, que ele denominou como “gerentes” (VIANA, 2012; VIANA, 2015a). É a concepção leninista que, obviamente, como expressão ideológica da classe burocrática que fala em nome do proletariado, recusa o caráter de classe da burocracia (e da intelectualidade). A crítica ao caráter ideológico da concepção leninista mostra simultaneamente o seu caráter de classe e ideológico (VIANA, 2012).
[10] Após Marx, é possível identificar outras classes que se consolidaram posteriormente, como a intelectualidade (VIANA, 2012).
[11] Cf. Braga (2013), Viana (2012).
[12] Assim como outros reduzem apenas à instância da organização. São duas formas de reducionismo que são distantes da concepção marxista e do método dialético, pois esfacelam a totalidade arbitrariamente de acordo com suas ilusões, ideologias, interesses ou por incompreensão da realidade por estarem submetidos ao modo de pensar burguês.
[13] A respeito dos blocos sociais, cf. Viana (2015b).
________________________________________________________________
Publicado originalmente em:

A CONCEPÇÃO MARXISTA DAS CLASSES SOCIAIS

Nildo Viana

RESUMO


Um dos conceitos fundamentais da teoria marxista é o de classes sociais. Apesar disso, é um dos menos compreendidos e que recebeu menos contribuição e desenvolvimento depois de Marx. Isso gera uma dificuldade para a teoria marxista e abre espaço para deformações, incompreensões e simplificações. Geralmente, a solução encontrada é complementar a concepção de Marx com uma breve definição de Lênin e passa-se a tomar esta última como grande referência e assim nada se compreende do conceito de classes sociais em seu sentido original e autêntico. O presente artigo é apenas uma síntese de uma outra obra que analisou mais extensamente e profundamente o conceito de classes sociais em Marx, apresentando os aspectos fundamentais e sem fazer o processo de fundamentar na obra deste autor – o que exigiria toda uma discussão conceitual, análise do processo de formação dos conceitos, citações confirmadoras e esclarecimentos, que seria o espaço de um livro e não de um artigo. Assim, aqui não nos preocupamos em demonstrar que trata-se de uma interpretação correta de Marx, mas tão-somente apresentá-la, pois tal demonstração foi realizada em outro lugar[1].

[1] Trata-se do meu livro A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx (VIANA, 2012).

Leia Mais:

Marx e a Burocracia
Intelectuais Venais e Axiologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Acompanham este blog: