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sábado, 18 de abril de 2020

O SÉCULO DO EGO, DOCUMENTANDO A BARBÁRIE



O SÉCULO DO EGO, DOCUMENTANDO A BARBÁRIE

Nildo Viana

O Século do Ego, de Adam Curtis, documentário de 2002 (ficha técnica e link para assistir abaixo), é um importante documentário que apresenta as mutações culturais e comportamentais desde o início do século 19 até a década de 1980, analisando, principalmente, a manipulação realizada a partir do uso da psicanálise, marketing e propaganda, e seu uso pelos meios oligopolistas de comunicação, partidos políticos, políticos profissionais, governos e empresas capitalistas (“corporações”).

O documentário é uma série produzida pela BBC de Londres para TV dividida em quatro partes, que foram exibidos separadamente. O início aponta para a relação da psicanálise com a mercadotecnia (“marketing”) e política, indo desde Freud e seu sobrinho americano Edward Bernays até Anna Freud e seu significado proeminente na psicanálise mundial. A psicanálise aparece, nessa época, servindo ao processo de manipulação da população (“massas”), numa época que as tentativas de revoluções proletárias da década de 1910 e lutas operárias seguintes, até chegar à revolução espanhola de 1934-1939, bem como ascensão do nazifascismo e Segunda Guerra Mundial, trouxe traumas e uma preocupação fundamental espalhada pelos Estados Unidos: a democracia.

Porém, o que o documentário mostra é que a democracia tecnoburocrática é uma democracia integracionista. O seu objetivo fundamental é a integração (do proletariado e da população em geral, com foco no primeiro) e esse objetivo político foi perseguido por vários meios: democracia (burocratizada para impedir emergência de posições radicais, seja do reacionarismo – “extrema-direita” – seja do marxismo ou suas deformações “extremistas” (bolchevismo), em época de Guerra Fria; Consumismo (aumento, no capitalismo imperialista, do nível de renda, expansão do crédito, mercadotecnia incentivadora do consumo, etc.; renovação hegemônica com a hegemonia do paradigma reprodutivista (tendo como ideologias correspondentes o funcionalismo, estruturalismo, sistemismo, etc.); meios oligopolistas de comunicação (expansão do uso do rádio e da TV, cinema, etc.); Estado integracionista (ideologicamente chamado como “do Bem-Estar social”, com intervencionismo na economia e amplas políticas de assistência social), entre outros mecanismos (VIANA, 2009; VIANA, 2019). O documentário mostra o uso da psicanálise nesse processo (embora pareça a responsabilizar unilateralmente, abstraindo que ela correspondia ao novo paradigma hegemônico e que este teve várias fontes, tais como as ideologias acima citadas e a preocupação com o “desviante”, o “irracional”, etc.) e como ela possibilitou várias técnicas de manipulação.

Porém, o documentário vai além do regime de acumulação conjugado (capitalismo oligopolista transnacional) e adentra em sua crise e busca de alternativas e geração de elementos típicos do novo regime de acumulação integral. A juventude, que se consolidou como grupo social no regime de acumulação conjugado (VIANA, 2015) se torna um dos alvos fundamentais nesse momento histórico, tanto para controle e manipulação de comportamento quanto como mercado consumidor. E nesse contexto, a educação reprodutivista acaba se defrontando com o nicho de mercado jovem, que vai, especialmente nos anos 1960, e mais ainda em seu final, sendo identificado com a rebeldia, tendo em vista o caráter autocrática das instituições escolares e a resistência juvenil, que é apropriada pelo capital comunicacional para gerar mais uma fatia de consumo especializado dos jovens. As lutas operárias e estudantis do final dos anos 1960, que aparecem muito rapidamente no documentário (especialmente alguns momentos do movimento estudantil e, posteriormente, já no contexto dos anos 1970, elementos do movimento negro) reforça essa recusa do reprodutivismo.

O documentário mostra a emergência de algumas tendências comportamentais e culturais, relacionando-as com a psicanálise, especialmente Wilhelm Reich. O confronto entre Reich e Freud (embora focalize mais a expulsão de Reich da associação psicanalítica por Anna Freud) e o enlouquecimento do primeiro é descrito para mostrar uma psicanálise dissidente, que ao invés de estar preocupada com as “forças irracionais” e integração dos indivíduos na sociedade, se preocupa com a “liberação individual e política”, mostrando que a individual se desenvolve e a liberação política é gradualmente abandonada. Aqui, há novamente um reducionismo ao derivar as mutações comportamentais e culturais da psicanálise (ou melhor, de um derivado de uma dissidência que nunca foi hegemônica).

Apesar disso, o documentário mostra que a renovação hegemônica e o novo paradigma que emerge em substituição ao reprodutivismo, o subjetivista, atinge setores da psicanálise nos Estados Unidos. Psicanalistas reichianos ao invés de se preocuparem com a integração na sociedade, tal como antes, buscam a manifestação do indivíduo e sua individualidade, de suas emoções e sentimentos. Sem dúvida, isso refletia, por um lado, a luta pela libertação do movimento operário e estudantil do final dos anos 1960 e crise do paradigma reprodutivista, mas gerou uma nova forma de controle e manipulação, com a liberação do irracional, foco no pessoal, etc. A contrarrevolução cultural preventiva expressa no pós-estruturalismo e ideologias semelhantes, faz nascer o paradigma subjetivista, que vai se fortalecendo até se tornar hegemônico nos anos 1980, incentivo pelos governos neoliberais, organismos e fundações internacionais, capital comunicacional, etc. (VIANA, 2019). No contexto dos anos 1970, o paradigma reprodutivista está em crise e as alternativas principais são o marxismo (tanto o autêntico, sob a forma de marxismo autogestionário, quando sua deformação, que se radicaliza nesse momento, como o bolchevismo, maoísmo, trotskismo, etc.) e um conjunto de ideologias subjetivistas que emergem nesse período. O primeiro focalizando a luta de classes e o segundo o indivíduo, o sujeito, a subjetividade, os desejos, etc. Sem dúvida, nos anos 1980 o reprodutivismo e o marxismo são derrotados e marginalizados. O documentário mostra o avanço do subjetivismo no âmbito da psicanálise e depois sua apropriação consciente e intencional pelas empresas capitalistas, partidos e políticos profissionais, meios oligopolistas de comunicação. Mostra o vínculo entre o neoindividualismo e as mudanças comportamentais (“seja o que você quer ser”) e o neoliberalismo, e como isso acabou atingindo a esquerda (no sentido mais vasto do termo, tal como nos Estados Unidos, que abarca o liberalismo democrático – “progressista”, em sua versão neoliberal – o republicanismo e outras posições políticas amplas, tal como os trabalhistas na Inglaterra), que acaba reproduzindo o discurso (de origem subjetivista) e assim reforçando o enfraquecimento de suas próprias bases e fortalecendo o adversário.

O documentário tem como principais méritos apresentar o seguinte: a) a mutação comportamental e cultural e suas origens sociais e culturais, embora de forma limitada, com a passagem do regime de acumulação conjugado para o regime de acumulação integral; b) mostrar a passagem do paradigma reprodutivista para o paradigma subjetivista no seu impacto direto sobre o comportamento e cultura em geral; c) mostrar como a psicanálise (e não só ela, embora seja o foco do documentário, que é um dos seus pontos problemáticos) pode ser assimilada e utilizada em proveito dos interesses capitalistas, tanto empresariais quanto políticos; d) mostrar que a dominação capitalista pode usar os mais variados discursos e concepções, inclusive opostos (mas não antagônicos), como reprodutivismo ou subjetivismo; coletivismo ou individualismo; racionalismo ou irracionalismo; etc. para seus interesses empresariais e políticos, ou seja, que os opostos dentro da sociedade capitalista não são antagônicos e que por isso são assimiláveis; e) algumas das origens das mais fortes influências nos indivíduos, movimentos sociais, partidos políticos, na contemporaneidade e seu caráter histórico e transitório como foi o anterior (embora falte essa percepção histórica explicitamente).

Sem dúvida, o documentário também tem limites, tais como o peso excessivo atribuído à psicanálise e o reducionismo associado a isso, problemas interpretativos (de Freud e outros), incompreensão de que a esquerda é parte do processo e não foram “equívocos” e sim expressão dos seus interesses, a falta de percepção da totalidade, inclusive as mutações nas relações de trabalho (toyotismo), entre outros. Em que pese esses limites, o documentário oferece uma abordagem geral da mudança comportamental e cultural que ajuda a entender como chegamos aonde estamos, a força do subjetivismo e seus desdobramentos como a busca de “identidade”, grupal ou individual, entre outros problemas que ofuscam o real caráter da questão social e de que o problema e a solução está na luta de classes. E, nesse sentido, o documentário acaba sendo também produto da época, embora dissidente, mas sem romper totalmente com o que critica.

Em síntese, o documentário é rico por mostrar que o neoindividualismo, o hedonismo, o narcisismo, bem como seus derivados (que ganharão mais força posteriormente, a chamada “política de identidades”, por exemplo) são produtos sociais e históricos, são criações do capitalismo, que existem para reproduzi-lo e não para aboli-lo. O entendimento disso remete para a totalidade (o capitalismo) que dificilmente é percebido por causa da hegemonia do paradigma subjetivista, que efetivou uma “guerra contra a totalidade” (Lyotard) em suas expressões ideológicas.

De 2002 para cá, as alterações foram no interior da permanência, ou seja, mudanças de forma e manutenção do conteúdo. O vínculo entre subjetivismo, neoindividualismo e neoliberalismo é evidenciado. E a crise de um se relaciona com a crise do outro e esses dois processos tendem a se concretizar e, agora, com o agravamento provocado pela pandemia do coronavírus, se aproxima muito mais rápido. Diante da crise, as ideologias, modismos, comportamentos, tendem a ceder para a imposição da força pelo aparato estatal, especialmente numa sociedade que fragilizou, infantilizou, a maioria absoluta da população, e que agora terá que viver numa época de dificuldades, mas sem preparo para tal, incapazes de suportar as pressões da vida cotidiana estável e terão que suportar uma grave crise geral.

Seguindo a lógica do documentário, a própria classe dominante vai largar o discurso subjetivista e vai aderir ao autocratismo e vai retornar com sua preocupação com as “forças irracionais”. Para aqueles que querem uma nova sociedade, o desafio é compreender essa situação e apontar para a razão dialética (emancipadora) e a superação das antinomias burguesas (razão/sentimentos, por exemplo) e a luta dos trabalhadores em geral e do proletariado em particular no sentido de superar o capitalismo e constituir a sociedade autogerida.

Referências

VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.
VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

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Título: The Century of the Self (Original)
Ano produção: 2002
Dirição: Adam Curtis
Duração: 235 min.

Sinopse:


Documentário da BBC "The Century of the Self" dividido em quatro episódios. analisa o século desde os anos 20 com o surgimento da psicanálise (Freud), a sua utilização nos EUA para manipulação das massas e criação de uma sociedade de consumo até à actualidade, passando pela contraposição das teorias freudianas por filósofos e psicoterapeutas nos anos 60/70, caracterizando vários movimentos sociais e políticos e as técnicas utilizadas pelo capitalismo para controlar o indivíduo através do estudo da mente.






6 comentários:

  1. Bom dia professor. Aqui Paulo Souza, professor de Tanguá, RJ. Obrigado por disponibilizar o documentário no canal do Youtube. Assisti aos dois primeiros capítulos com minha esposa e estamos gostando muito. Questão: o doc. toca na questão da natureza humana e que esta seria egoísta, irracional, violenta, etc. Mais ou menos aos 35 minutos, no primeiro capítulo, o doc. evidencia que para Freud não há possibilidade de igualdade social radical e que a liberdade é um perigo. É verdadeiro que o pai da psicanálise pensava assim?
    Li um texto teu sobre naturalização/desnaturalização, o uso de preceitos psicanalíticos por empresas e estado seria um caso de, digamos, naturalização escamoteada que, porém, deu certo para os propósitos dos capitalistas e do estado?
    Outra coisa: quando que você virá ao RJ dar um curso sobre Marx e marxismo? Grande abraço.

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    1. Prezado Paulo Souza, agradeço seu comentário. Que bom que gostou do documentário. A interpretação de Freud no documentário é problemático, especialmente nesse trecho. O que Freud escreveu em o Mal-Estar na Civilização é que os seres humanos não são espontaneamente "amantes do trabalho", mas este é necessário para a sobrevivência da humanidade, e, sendo assim, eles devem ser constrangidos ao trabalho e a sexualidade deve ser reprimida (pois ela dificulta a efetivação do trabalho). Por conseguinte, um certo quantum de repressão (especialmente sexual) deve subsistir na sociedade e não tem como eliminá-la. Apenas isso que ele diz. Assim, a interpretação é forçada. Por exemplo, "forças irracionais" não é uma expressão de Freud e sim dos ideólogos da "sociedade de massas" (Kornhauser, Hoffer), dos comportamentalistas e funcionalistas americanos. Sem dúvida, Freud teve quatro fases distintas em seu pensamento, sendo a primeira pré-psicanalítica e as demais com pequenas alterações e a última fase, depois da Primeira Guerra Mundial, o fez ficar realmente mais pessimista e passou a postular a ideia de um "instinto de morte" (ou "pulsão", "impulso" para usar outros termos de intérpretes e tradutores de Freud), o que explicaria a guerra. A partir desse momento Freud naturalizou a "violência humana", se tornando parte de suas características. Mas, mesmo nesse momento, não é possível dizer que ele reduziu o ser humano a isso, pois tal instinto existia ao lado dos anteriores (instinto de sobrevivência e instinto sexual). Logo, eu diria que a interpretação de Freud é problemática e, no trecho que citou mais ainda. Embora o entrevistado acerte que, para Freud, que era contra o socialismo e politicamente conservador, a igualdade não seja possível. A respeito do uso da psicanálise por empresas e aparato estatal, podemos dizer que os seus ideólogos naturalizam (Bernays, por exemplo) e que agem a partir dessa concepção equivocada e por isso erram e, inclusive, perdem espaço num segundo momento, como verá na parte seguinte do documentário, e aí temos uma nova "naturalização", a do ser "desejante". Sobre ida ao Rio de Janeiro, fui aí há alguns anos, uma vez na capital e outra em Campus de Goytacazes dar palestras, mas não há, no atual momento, nenhuma previsão sobre uma nova ida até aí. Vamos ver a possibilidade e, acontecendo, divulgo nesse blog. Grato e abraços!

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    2. Entendido professor, obrigado pela resposta. Abraço.

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  2. Excelente texto crítico. Traz as questões fundamentais do documentário.

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  3. Excelente texto crítico. Toca em pontos fundamentais do documentário

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