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domingo, 5 de janeiro de 2020

SOCIALISMO E COMUNISMO

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SOCIALISMO E COMUNISMO

Por Nildo Viana*
Os termos “socialismo” e “comunismo” são usados frequentemente desde o século 19. O significado desses termos, no entanto, ainda não é claro, tanto pelas mutações semânticas que passou desde àquela época até hoje quanto pelas divergências política no interior do que se convencionou chamar de “esquerda” que trazem distintas concepções a respeito. Esses dois termos são usados, comumente, para se referir à correntes ou posições políticas ou regimes políticos ou sociais existentes. Por isso vamos realizar a discussão em dois itens separados: um dedicado às concepções políticas e outro dedicado aos regimes políticos.
A Concepção de Socialismo e Comunismo nas Tendências Políticas
O processo da Revolução Industrial e a luta do movimento operário nascente, bem como a existência de indivíduos de outras classes sociais preocupados com as péssimas condições de vida dos operários fez emergir um conjunto de propostas de reforma ou transformação social. Surgiram, nesse contexto, utopias, doutrinas, ideologias, que foram sendo batizadas ou sendo autodenominadas como “socialismo” ou “comunismo”. Em meados do século 19, o termo mais utilizado era “socialismo”. O chamado “socialismo utópico” e outras tendências, tais como aquelas que Marx elencou no Manifesto Comunista (MARX e ENGELS, 1988), como, por exemplo, “socialismo verdadeiro”, “socialismo feudal”, etc. constituíam diversas concepções políticas identificadas com este nome. O nome “comunismo” era pouco usual, tendo algumas referências no caso de Grachus Babeuf e alguns outros. É nesse contexto que Marx lança o seu Manifesto e busca se distinguir de todas as concepções chamadas “socialistas” e para demarcar tal diferença retoma o termo pouco usual que era “comunismo”. O comunismo, para Marx, expressava uma posição política, a dos comunistas, e simultaneamente um projeto social: a sociedade comunista.
No entanto, no final da vida, Marx começava a ser reconhecido e se tornar o grande teórico do movimento operário e a formação do Partido Social-Democrata na Alemanha, que foi uma fusão de supostos “marxistas” com lassallistas, houve a primeira mutação semântica. O nome do partido não era “comunista” e sim “social-democrata”, o que provocou a crítica de Marx e Engels (VIANA, 2016). Assim, surgia a chamada “social-democracia”, que, na época, também era chamada de “socialista”. A evolução cada vez mais moderada dos diversos partidos social-democratas que surgem na Europa, acaba gerando dissidências internas, e a Primeira Guerra Mundial gerou diversas correntes e grupos que foram denominados “socialistas radicais”. Com o passar do tempo, essas dissidências abandonaram tais partidos e constituíram novos partidos, os chamados “Partidos Comunistas”. Os diversos partidos comunistas que emergiram tinham em comum a crítica do reformismo e revisionismo da social-democracia e uma maior radicalidade. No entanto, não havia consenso no seu interior, e com a Revolução Russa e processo de burocratização e repressão nesse país, houve uma nova cisão, entre “comunistas” e “comunistas de esquerda” (GOMBIM, 1974). Lênin, o principal ideólogo da primeira tendência, chamará seus opositores de “esquerdistas”, uma “doença infantil do comunismo” (LÊNIN, 1986). A principal força política do comunismo de esquerda realizou uma ruptura radical com a tendência leninista (tida como “comunista ortodoxa” e também chamada “bolchevismo” e “marxismo-leninismo”) foi o chamado “comunismo de conselhos” (em oposição a “comunismo de partido”, que era a concepção “ortodoxa”), que retomava Marx e defendia a autoemancipação proletária através dos conselhos operários, formas de auto-organização dos trabalhadores (VIANA, 2015).
A bolchevização dos partidos comunistas e a Segunda Guerra Mundial promoveram novas mudanças. Os Partidos Social-Democratas ficaram ainda mais moderados e assumiram governos de diversos países na Europa e o nome social-democracia ficou fixado, muitas vezes tido como sinônimo de “socialismo”. Os partidos comunistas assumiram o poder estatal no Leste Europeu e diversos outros países e, na Europa Ocidental, geraram uma versão mais moderada que ficou conhecida como “eurocomunismo”. No entanto, existem setores da social-democracia que possuem um discurso mais radical e os partidos comunistas se subdividiram em diversas tendências (stalinismo, trotskismo, maoísmo, etc.), umas mais moderadas e outras mais radicais. Aqueles que eram chamados “esquerdistas” perderam espaço e se tornaram pequenos grupos, sendo que alguns mantinham o nome “comunismo”, mas outros já buscavam outras denominações para se diferenciar do bolchevismo (leninismo) e dos regimes denominados como “socialismo real”.
A rebelião estudantil de Maio de 1968 trouxe uma nova palavra de ordem: “autogestão” (ARVON, 1982). Este nome emergiu como opção ao termo “comunismo”. A ideia de autogestão generalizada em toda a sociedade, que retoma a concepção de sociedade comunista de Marx, acaba gerando um marxismo autogestionário que manterá a oposição tanto à social-democracia e sua via parlamentar e eleitoral, quando ao bolchevismo, com sua via insurrecional visando a tomada do poder estatal (GUILLERM e BOURDET, 1976).
Assim, na atualidade, a palavra socialismo é uma espécie de sinônimo de social-democracia, mas o seu sentido foi esvaziado, pois poucos nessa tendência propõem uma nova sociedade, mas apenas reformas (mais amplas ou menos amplas, dependendo do caso) no capitalismo. A palavra comunismo, por sua vez, foi monopolizada pelo bolchevismo em suas diversas vertentes e também teve seu sentido cada vez mais esvaziado, tanto pelo fato de que vários partidos comunistas deixaram de lado a proposta insurrecional de tomada do poder estatal quanto pelo distanciamento da proposta original de Marx. Em alguns casos, alguns partidos social-democratas moderados assumem o nome de “Partido Socialista” (tal como PSB[1] no Brasil), tal como alguns partidos leninistas (como o PSTU[2], no Brasil), provocando uma confusão terminológica. A diversidade de partidos intitulados comunistas também promove confusão, sendo que alguns mantêm o nome e certo discurso, mas sua política é reformista e sua atuação é social-democrata (como o PCdoB[3] no Brasil).
Em síntese, os socialistas, enquanto tendência política, são, na verdade, social-democratas que propõem reformas no capitalismo (os discursos geralmente apontam para “distribuição de renda”, “reforma agrária”, “igualdade de direitos”, “políticas sociais”, etc.) e os comunistas apontam para a defesa de uma suposta revolução, entendida como tomada do poder estatal, gerando sociedades no molde da antiga União Soviética ou então uma versão reformada e mais “democratizada” da mesma. As variantes nos dois casos geram confusões, mas, sinteticamente, essas são, em grandes linhas, as principais diferenças.
Sociedades “socialistas” e “comunistas”
No plano da análise de determinados países, se tornou comum denominar os países nos quais os partidos comunistas tomaram o poder como sendo “socialistas” ou “comunistas”, indistintamente. Como estes países se distanciavam do projeto de comunismo desenvolvido por Marx, se tornou comum usar a expressão “socialismo real”, distinguindo do “ideal”, que seria bem diferente. Uma outra denominação (e existiram diversas outras) para expressar o que estes países eram foi “capitalismo de Estado” (NEVES, 1977). A teoria do capitalismo de Estado foi desenvolvida por diversos pensadores, militantes e correntes políticas, inclusive dentro da própria Rússia. Os comunistas de conselhos foram aqueles que melhor desenvolveram esta teoria. Para essa corrente, representada por Pannekoek, Gorter, Rühle, Korsch, Mattick e outros, o bolchevismo gerou uma contrarrevolução burocrática, que mantinha a existência da exploração e exercia uma ditadura sobre o proletariado.
A versão dominante sobre estes países, no campo da esquerda, é a de Lênin. Segundo ele, a passagem do capitalismo para o comunismo é mediado por um regime de transição, marcado pela “ditadura do proletariado” e pela estatização dos meios de produção, e que se chamava “socialismo”. Esse período de transição, uma vez encerrado, faria surgir o comunismo (LÊNIN, 1988). Essa tese de Lênin, que foi produzida para justificar as práticas do Partido Bolchevique e o regime implantado, foi, posteriormente, atribuída a Marx. No entanto, para este, a revolução proletária gera o comunismo, não existindo nenhum “período” ou “sociedade” de transição. O que Marx colocou é que a revolução proletária é marcada pela organização da totalidade da classe operária (e não por um partido, como em Lênin) que exerce repressão sobre os elementos contrarrevolucionários, num curto período de tempo, não se constituindo como nenhuma “transição”. A vitória da revolução proletária faria emergir o comunismo, no qual a socialização (e não estatização) dos meios de produção ocorre via “livre associação dos produtores” ou “autogoverno dos produtores” (VIANA, 2016).
Desta forma, podemos colocar duas posições: a leninista, na qual o socialismo é uma sociedade de transição para num futuro, indefinido, se chegar ao comunismo, e a marxista, que é a de que não existe sociedade de transição. Os adeptos da primeira tese se aglutinam nos diversos partidos comunistas existentes, constituindo a corrente leninista ou bolchevista, e os adeptos da segunda tese, constituem grupos e tendências políticas opostas e consideram que nunca existiram países “socialistas” ou “comunistas”, no sentido marxista dessas palavras. Contemporaneamente, para não serem confundidos com os bolchevistas, essas tendências preferem usar outros termos para se referir à sociedade futura proposta por Marx, como “sistema de conselhos”, “autogestão”, “sociedade autogerida”, etc. Para os bolchevistas, o socialismo como sociedade de transição já existiu, como no caso da Rússia, Leste Europeu, China, Cuba, etc. Para os “esquerdistas”, esses países eram uma espécie de capitalismo reformado, um capitalismo estatal, e o que Marx denominou “sociedade comunista” apareceu embrionariamente em diversas experiências históricas (Comuna de Paris, Revolução Russa antes do bolchevismo tomar o poder estatal, Revolução Alemã, Revolução Espanhola, Revolução Polonesa, entre diversas outras), mas foram derrotadas e o bolchevismo e a social-democracia estiveram entre os responsáveis por tais derrotas (TRAGTENBERG, 1988).
Considerações Finais
O breve texto mostrou que os termos “socialismo” e “comunismo” não são claros e fáceis de compreender, pois a mudança histórica do significado de cada uma e as divergências nas tendências políticas, gerando usos distintos, complicam demasiadamente a questão. No entanto, apresentar uma definição fixa seria desconsiderar a complexidade da realidade e assim escamoteá-la.
As correntes chamadas “socialistas” se transformaram em “social-democratas” e estas se tornam cada vez mais moderadas como desenvolvimento histórico. As correntes autodenominadas “comunistas” são as bolchevistas em suas diversas tendências e divisões internas. As correntes que mantém o projeto de uma sociedade comunista na mesma radicalidade apresentada por Marx tiveram vários nomes e hoje podem ser denominadas “autogestionárias”. Há uma gradação que avança para uma maior radicalidade da primeira para a última.
No que se refere aos países que se autodeclararam “socialistas” ou “comunistas”, o seu regime é, no fundo, um capitalismo de Estado. Na versão leninista, seriam sociedades de transição chamadas “socialistas”. O que todas as concepções concordam é que sociedades comunistas ainda não existem, nem existiram. O que existiu até agora foi “socialismo”, segundo alguns, capitalismo de Estado, segundo outros. Apenas embriões, nas tentativas de revoluções proletárias, apareceram e foram derrotadas.
Isso traz a necessidade de uma nova terminologia, mais concreta e de acordo com a realidade. Os termos “socialismo” e “comunismo” se tornaram vazios pela diversidade de usos e interpretações. Não pretendemos apresentar essa nova terminologia aqui, por questão de espaço, mas apenas colocar a sua necessidade. É preciso ir além da autodenominação que muitas vezes deforma a percepção da realidade, seja por parte de indivíduos, partidos, sociedades e esse é o papel do intelectual comprometido com a verdade.

Referências

ARVON, Henry. La Autogestion. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
GOMBIM, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa: Dom Quixote, 1974.
GUILLERM, Alain e BOURDET, Yvon. Autogestão: Mudança Radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
LÊNIN, Wladimir. O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo. 6a. ed. São Paulo: Global, 1986.
LÊNIN, Wladimir. Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético.. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. 2a. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
NEVES, A. (Org.). A Natureza da URSS.. Porto: Afrontamento, 1977.
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. São Paulo: Moderna, 1988.
VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2016.
VIANA, Nildo., Notas Sobre História e Significado do Comunismo de Conselhos. Marxismo e Autogestão, 02(04) Jul./Dez. 2015.
Notas:
[1] Partido Socialista Brasileiro.
[2] Partido Socialista dos Trabalhadores – Unificado.
[3] Partido Comunista do Brasil.

*Possui Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (1992), Especialização em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (1995), Mestrado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1999) e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (2003) e pós-doutorado pela USP. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo Siva. Socialismo e Comunismo. Blog Café com Sociologia. 2016.  
https://cafecomsociologia.com/socialismo-e-comunismo 

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