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sábado, 23 de setembro de 2017

MOVIMENTOS SOCIAIS E MOVIMENTOS DE CLASSE: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

MOVIMENTOS SOCIAIS E MOVIMENTOS DE CLASSE:
SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Nildo Viana*

O fenômeno dos movimentos sociais encontra sérios obstáculos analíticos e isso prejudica a possibilidade de uma compreensão mais ampla do mesmo. Um dos problemas mais graves no processo analítico dos movimentos sociais é sua confusão com os movimentos de classes sociais (movimento operário, movimento camponês, etc.). Nesse sentido, é necessário superar tal confusão. A palavra confusão significa, exatamente, a fusão de coisas distintas, gerando um desentendimento ao misturar dois fenômenos diferentes.
A confusão entre movimentos sociais e movimentos de classe deve, portanto, ser superada. Essa superação remete a um problema real e a um problema metodológico. O problema real é a confusão entre dois fenômenos distintos e o problema metodológico é o processo analítico que permite tal confusão. Nesse sentido, é necessário esclarecer tal confusão, tanto no plano metodológico quanto teórico (real). Este é o objetivo do presente artigo.
Semelhanças e Diferenças: Questão Metodológica
Semelhança e diferença são duas categorias do pensamento que facilita o processo de compreensão da realidade. No entanto, essas categorias, no plano das representações cotidianas, assumem uma forma elementar. A sua forma desenvolvida só aparece depois de um longo processo histórico, no qual o saber noosférico (ou seja, com maior grau de complexidade) vai se desenvolvendo através das reflexões filosóficas e científicas, até chegar a sua forma mais desenvolvida e completa, no método dialético, ou seja, na totalidade que é o pensamento marxista[1].
No entanto, as categorias do pensamento não se desenvolvem de forma unilinear, pois elas estão no olho do furacão da luta cultural entre as classes sociais. Se assim fosse, as categorias do pensamento evoluiriam automaticamente para categorias da dialética (inclusive nem sequer precisaria denominá-las com tal referência a um método específico). A fusão das categorias do pensamento com as categorias da dialética tende a ocorrer na futura sociedade autogerida, na qual as lutas de classes e as divisões sociais derivadas e relacionadas foram abolidas e o saber pode ter um desenvolvimento livre dos entraves gerados pelas classes dominantes na história da humanidade e por tudo que é derivado das sociedades classistas.
A forma desenvolvida dessas duas categorias ainda não alcançou um desenvolvimento completo. As categorias de “semelhança” e “diferença” possuem sentido num processo comparativo e se manifestam quando existem relações de unidade ou oposição, mas não de antagonismo. O modo de pensar burguês, no entanto, confunde essas duas categorias, seja absolutizando uma delas, seja mesclando-as e tornando-as indefinidas ou, ainda, subsumindo uma na outra. Assim, é necessário comparar as duas formas de trabalhar com essas categorias. A forma dialética de trabalhar com essas categorias é através da abstração e a forma burguesa é através da abstratificação.
A abstratificação é a raiz da confusão entre semelhança e diferença. O seu procedimento é defender a existência de uma semelhança ou diferença absolutas, a existência de ambas sem maior distinção ou reduzir uma à outra. Trata-se de abstratificação por abandonar a categoria fundamental da totalidade. Entre um cachorro e um gato não existe semelhança absoluta. Sem dúvida, existem semelhanças: ambos possuem olhos, orelhas, quatro patas, etc., mas isso não abole as diferenças reais. Um late, o outro mia; um é mais leve e ágil, o outro é mais forte; entre inúmeras outras diferenças. Isso deixa claro que não há semelhança absoluta, pois as diferenças foram apontadas acima. Da mesma forma, não existe diferença absoluta e os exemplos anteriores já fundamentam tal afirmação. Também não podemos subsumir as diferenças nas semelhanças e afirmar que gatos e cachorros são iguais ou vice-versa. Outro equívoco seria dizer que tanto semelhanças quanto diferenças existem concretamente e por isso não se pode distinguir ambos[2].
A episteme burguesa, ou o modo de pensar burguês, cria diversas formas de observar as semelhanças e diferenças. Essas formas são limitadas por causa de suas antinomias e reducionismo. É por isso que a partir dessa episteme é possível só ver semelhanças ou só ver diferenças, ou então criar outras formas ideológicas de compreender a relação entre o que se compara usando diversas combinações dessas categorias.
A episteme marxista, por sua vez, usa um processo analítico bem distinto. O processo de abstração no método dialético aponta para a percepção do fenômeno em sua totalidade. A comparação entre dois fenômenos se estabelece levando em conta a totalidade de ambos e não aspectos isolados. Considerar, como na episteme burguesa, aspectos isolados seria um procedimento que permitiria ver apenas semelhança ou diferença, entre outros possíveis equívocos interpretativos. Através do método dialético é possível captar as diferenças e semelhanças existentes entre dois fenômenos sem apresentar uma concepção deformada dos mesmos. Consequentemente, ao não abandonar a percepção da essência dos fenômenos e sua totalidade, a concepção dialética permite a apreensão do caráter da semelhança e da diferença, ou seja, se se trata de algo essencial ou existencial. A semelhança essencial mostra que os dois fenômenos comparados são uma única e mesma coisa, sendo manifestações singulares da mesma. A diferença essencial mostra justamente o contrário. A semelhança existencial mostra que os dois fenômenos comparados possuem essências distintas e, portanto, não são manifestações do mesmo ser. A diferença existencial, por sua vez, mostra que os fenômenos comparados podem ser um mesmo ser (se houver semelhança essencial) ou então são radicalmente distintos (onde tanto a diferença quanto a semelhança são apenas existenciais).
Numa concepção dialética, é preciso entender que esse processo depende dos fenômenos que estão sendo comparados: se estes fenômenos só existem relacionalmente (um em relação ao outro, como, por exemplo, as classes sociais), se há relação direta, indireta ou remota. A questão da semelhança e diferença vai sofrer diversas alterações nos distintos casos apresentados acima.
Essas observações metodológicas introdutórias tem apenas o objetivo de trazer alguns elementos para uma melhor compreensão da discussão a seguir na comparação entre movimentos sociais e movimentos de classes sociais. No entanto, para isso se concretizar, precisaremos realizar um breve esclarecimento conceitual a respeito dos dois fenômenos em questão.


Breve Esclarecimento Conceitual
Os conceitos de “movimentos sociais” e “classes sociais” são deformados e transformados em construtos que não contribuem com a compreensão da realidade. No caso dos movimentos sociais, existem inúmeras definições arbitrárias (VIANA, 2016), cuja base é o empiricismo ou mesmo idiossincrasias, enquanto que no caso das classes sociais reina coisa semelhante. As ideologias da estratificação social abolem a relação entre as classes sociais (exploração e dominação) e em seu lugar coloca um sistema classificatório arbitrário (classes A, B, C, ou então “alta, média, baixa”, etc.) entre outras formas ideológicas de abordar as classes sociais (VIANA, 2012).
O conceito de movimentos sociais é o que expressa a essência desse fenômeno. Os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais que geram mobilizações geradas por uma insatisfação social com determinada situação social específica que também constituem senso de pertencimento e objetivos, o que pressupõe certo desenvolvimento da consciência e formas organizacionais (VIANA, 2016). O elemento fundamental é que se trata de movimento de grupos sociais.
Nesse sentido, é fundamental definir o que são grupos sociais. Os grupos sociais possuem diversas definições. Em nossa concepção, os grupos sociais são conjuntos de indivíduos que possuem determinados aspectos em comum que os integra de forma específica numa determinada sociedade e é isso que lhe fornece o caráter “social”.  Esses aspectos em comum são os mais variados, que é o que distingue um grupo social de outro, podendo ser a corporeidade, as crenças, situação social, etc. (VIANA, 2016)[3].
As classes sociais são um conjunto de indivíduos que possuem determinado modo de vida comum, interesses comuns e luta comum contra outras classes sociais, que são derivados da divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações de produção dominantes (VIANA, 2012)[4]. E por isso, em sociedades diferentes, classes sociais igualmente diferentes. Todas as classes sociais compartilham esses elementos constitutivos, mas sob formas distintas, possuindo uma semelhança essencial e diferenças existenciais. Tanto a classe burguesa quanto a proletária (bem como a burocrática) possuem estes elementos constitutivos, mas sob formas distintas, pois são modos de vida, interesses e lutas distintas, com posições antagônicas nas relações de produção e divisão social do trabalho.
Assim, os movimentos sociais são inseparáveis dos grupos sociais, mas não são a mesma coisa que estes. Um grupo social só gera um movimento social quando uma parte dele entra em “fusão”, ou seja, quando além de aspectos em comum, uma parte do mesmo gera mobilização, senso de pertencimento e objetivos (o que, por sua vez, gera organizações e determinada forma de consciência). O movimento social é, portanto, uma parte do grupo social que se torna efetivo, ganhando mais alguns aspectos em comum.
O que significaria “movimentos de classes sociais”? As classes sociais, como se observa em seu próprio conceito, que expressa sua realidade concreta, estão em movimento, quer queira ou não, quer tenha consciência ou não. No próprio conceito de classes sociais está explicitada a “luta comum contra outras classes”[5]. Nesse sentido, o movimento das classes sociais se manifesta na vida cotidiana. Sem dúvida, é possível realizar distinções na luta das classes sociais. Há a luta cotidiana, que é expressão da divisão social do trabalho, do processo de produção e distribuição dos bens[6], etc. Essa luta cotidiana pode se tornar extracotidiana, radicalizar, etc. Quando essa luta é coletiva, ela assume várias formas, o que varia de acordo com as classes sociais e as épocas em que isso ocorre.  O que importa destacar aqui é que as classes sociais se movimentam quer queiram ou não, quer tenha consciência ou não. Assim, as formas de luta das classes sociais expressam seu movimento.
Movimentos Sociais e Movimento de Classes
A primeira diferença é óbvia, trata-se de classes sociais e não grupos sociais. Essa diferença é apenas a primeira de uma série. No entanto, para que sejam fenômenos distintos não basta apontar a existência de diferenças. É necessário demonstrar que tal diferença é essencial e não meramente existencial. A diferença essencial mostra que se trata de fenômenos distintos, seres diferentes. A diferença existencial mostra apenas diferenças de forma e manifestação.
Os movimentos de grupos sociais são essencialmente diferentes de movimentos de classes sociais. A diferença essencial é compreendida na análise das classes e grupos e de seus respectivos movimentos. Os grupos sociais não são relacionais, ou seja, não é a relação entre eles que constituem e caracterizam os grupos. Eles coexistem e podem se relacionar, mas não é a relação que os cria. O grupo dos cinéfilos não existe graças a sua relação com o grupo dos ecologistas e nenhum dos dois existe devido sua relação com o grupo dos negros e dos pacifistas. Os grupos sociais corporais, aparentemente, só existiram em sua relação recíproca. Contudo, a determinação desse processo é orgânica e não social. Nas relações sociais concretas, o que ocorre é uma determinada forma de relação entre seres já existentes independentemente delas. Os indivíduos do sexo masculino não se tornam assim após se relacionar como indivíduos do sexo feminino. Da mesma forma, os indivíduos negros não se tornam assim após se relacionar com os indivíduos brancos. Sem dúvida, uma vez existindo tal relação, ela será marcada por significados, conflitos, aproximações e separações, etc., mas isso não é uma determinação orgânica e nem isso antecede a existência real dos grupos corporais.
A relação entre os grupos sociais não são antagônicas, ou seja, não são fundamentadas na exploração e dominação, como no caso das classes fundamentais. Mesmo no caso das demais classes sociais, subsiste a diferença na relação, pois ela é determinada diretamente pela divisão social do trabalho e distribuição de riqueza na sociedade e não indiretamente. A relação das classes sociais ocorre via divisão social do trabalho e a dos grupos sociais em outras formas de relações sociais. Essa é uma diferença essencial e constitui todas as demais diferenças, tais como interesses, formas de ação, etc.
Os interesses que formam os objetivos dos movimentos sociais são interesses grupais, mesmo quando se articulam com interesses gerais ou universais (VIANA, 2016b), enquanto que os interesses dos movimentos de classe são, evidentemente, interesses de classes. Desta forma, os movimentos sociais não possuem autonomia e capacidade de gerar a transformação social (interesse do proletariado e das demais classes desprivilegiadas e potencialidade do primeiro por sua determinação de classe), nem possuem força para garantir a reprodução ou reforma da sociedade (podem colaborar com este movimento, mas não efetivar o mesmo). Os movimentos sociais tendem a lutar pela transformação situacional (da situação do grupo social que constitui um movimento social específico) e somente as tendências revolucionárias no interior dos mesmos ou em épocas revolucionárias na quais essas se tornam hegemônicas, é que ocorre a luta pela transformação social.
As formas de ação também são distintas. Os movimentos das classes sociais geram formas de luta que são indissoluvelmente ligadas à sua existência e relação com as demais classes. Quando o movimento operário utiliza a greve como arma de luta, o faz por sua eficácia e por atingir diretamente a classe antagônica, ou seja, a classe capitalista. Os movimentos sociais não podem fazer greve. O máximo que podem fazer é ocupações, manifestações, boicotes, etc. Existem formas de ação que são semelhantes e que permite certa confusão, como panfletagem, manifestações, etc. No entanto, na semelhança reside a diferença, pois mesmo quando usam os mesmos meios de ação, o fazem com objetivos distintos, bem como muitas vezes direcionados para instituições ou adversários diferentes. Por fim, como já foi dito, as classes sociais estão em movimento o tempo todo, enquanto que os movimentos sociais precisam surgir e isso só se concretiza sob certas condições (VIANA, 2016a).
Movimento Operário e Movimentos Sociais
A semelhança atribuída aos movimentos sociais e movimento das classes sociais tem sua principal razão de ser a confusão com o movimento operário e o movimento camponês, mas especialmente o primeiro. Por isso uma comparação entre o movimento operário, especificamente, e os movimentos sociais é importante. A confusão entre movimento operário e movimentos sociais tem a ver com o processo histórico, debilidades teórico-metodológicas, força da ideologia, semelhanças existenciais (e não essenciais) reais.
O processo histórico promove uma aparente linha evolutiva entre o desenvolvimento do movimento operário e dos movimentos sociais. O movimento operário, como movimento de classe, surge com o próprio surgimento do proletariado. Quanto mais amadurecido é o modo de produção capitalista (o que significa aumento quantitativo do proletariado e consolidação das relações de produção capitalistas e dos conflitos e antagonismo entre as classes fundamentais), mais o movimento operário se torna presente com lutas cada vez mais fortes. É no início do século 19 que ocorre esse fortalecimento do movimento operário e atinge seu ápice em 1871, com a Comuna de Paris, encerrando uma época da luta de classes entre burguesia e proletariado[7] e que será retomada nos regimes de acumulação posteriores.
Os movimentos sociais vão surgindo paulatinamente após esse momento, sendo que sua consolidação ocorre no regime de acumulação conjugado (1945-1980). Nesse contexto histórico, o recuo do movimento operário devido às mutações do capitalismo convive com a emergência de novas ideologias reprodutivistas que pregam a “integração da classe operária no capitalismo”[8]. Pouco tempo depois emerge uma nova ideologia, a dos “novos movimentos sociais”[9], que considera que os movimentos sociais “tradicionais” (de classe) estariam sendo substituídos por movimentos sociais novos, focados em novas questões e reivindicações, substituindo o movimento operário como principal movimento social. O processo histórico promove uma certa confusão ao haver, efetivamente, no capitalismo imperialista, um recuo do movimento operário e um avanço paulatino dos movimentos sociais. Isso ocorre simultaneamente com o desenvolvimento de ideologias que sistematizam o mundo das aparências a partir da perspectiva burguesa e assim cristalizam uma determinada interpretação da realidade, que aparece como “verdadeira” e “única”. A força da ideologia se manifesta nesse processo de hegemonia e homogeneização de um determinado pressuposto ideologêmico[10], que é o da “novidade” de determinados movimentos sociais, reproduzido por muitos acriticamente sem sequer conhecer a base ideológica desta afirmação.
Assim, no reino das ideologias (e acompanhado por aqueles que se dizem marxistas e possuem determinadas debilidades teórico-metodológicas[11]), as semelhanças existenciais aparecem como se fossem essenciais e assim o movimento operário passa a ser considerado um movimento social como os demais. Claro está que nessa abordagem ideológica, reproduzida pelos intelectuais de esquerda, o movimento operário é apenas mais um movimento social (assim como Marx é apenas mais um sociólogo, etc.) e o antagonismo de classe desaparece na série de oposições existentes dentro da sociedade capitalista. Com o passar do tempo, cria-se uma tradição interpretativa (compartilhada por distintas ideologias e concepções) que gera a hegemonia do equívoco em considerar o movimento operário (e o camponês) como movimentos sociais.
A dinâmica da luta operária é distinta das formas de ação dos movimentos sociais. Além do proletariado lutar o tempo todo, pois não tem como não fazê-lo, ele tem um desenvolvimento nessa luta, cuja tendência é a passagem das lutas espontâneas para as lutas autônomas e dessas para as lutas autogestionárias (JENSEN, 2016). Os movimentos sociais não possuem tal tendência, pois não possuem uma relação antagônica com o capital que é oriunda de sua própria forma de existência, bem como não tem a reação do capital e uma luta em torno do mais-valor.  Como os movimentos sociais são geralmente e em sua maioria policlassistas (VIANA, 2016), bem como seus interesses e objetivos são distintos, então sua dinâmica de desenvolvimento é outra, muito mais integrada na sociedade capitalista e tendo divisões internas, avanços e recuos, processos contraditórios, etc. que são marcados pela hegemonia burguesa do momento (no caso, de um determinado regime de acumulação) reina quase que absoluta.
O movimento operário tende a radicalizar quando há um processo de desestabilização e, principalmente, crise de um regime de acumulação, gerando lutas autônomas e trazendo a possibilidade de lutas autogestionárias (JENSEN, 2016). Os movimentos sociais não seguem essa dinâmica. Os movimentos sociais conservadores e a maioria dos movimentos sociais reformistas seguem a tendência de apoio ao capital, inserção na luta como classe e não movimento, etc. Apenas as tendências revolucionárias (que podem se tornar hegemônicas, dependendo da situação concreta) dos movimentos sociais reformistas e os movimentos sociais populares é que possuem uma maior sincronicidade com as lutas operárias, mas com limites e ambiguidades na maioria dos casos[12]. Esses limites e ambiguidades são oriundos da hegemonia burguesa, da repressão, etc. No caso das tendências revolucionárias, os seus setores mais ambíguos tendem a demorar mais tempo para superar suas ambiguidades e alguns setores mais dogmáticos ou influenciados pela hegemonia burguesa tendem a encontrar dificuldades de passagem para uma posição autenticamente revolucionária. No caso dos movimentos sociais populares há uma tendência de radicalização e passagem para lutas autônomas, embora a passagem para as lutas autogestionárias seja mais difícil, pelas condições de classe (a sua composição é das classes sociais desprivilegiadas e algumas dessas e suas frações possuem maior dificuldade para aderir à hegemonia proletária).
A confusão nesse processo de luta traz uma nova questão. A concepção apologética dos movimentos sociais que, muitas vezes, concebem estes como sendo “revolucionários” ou “avançados”, o que gera uma percepção romantizada e idealizada dos mesmos por sua “semelhança” com o movimento operário. Não só desconsideram a existência dos movimentos sociais conservadores e tendências conservadoras nos movimentos sociais reformistas, mas também desconhecem os demais problemas dos movimentos sociais em geral. Não entendem os limites instransponíveis dos movimentos sociais reformistas e nem as ambiguidades de parte das tendências revolucionárias no seu interior. Os movimentos sociais só rompem com seus limites quando ultrapassam os interesses grupais e o próprio movimento, no sentido de não lutar mais por melhorias para o grupo social dentro do capitalismo e sim lutar pela abolição deste, que é o gerador do problema dos mesmos, e só fazem isso quando se aliam ao proletariado, superando a hegemonia burguesa, substituindo-a pela hegemonia proletária. A hegemonia proletária significa que a influência do bloco dominante e do bloco progressista perdeu espaço e foi substituída pela força do bloco revolucionário comandado pela luta operária[13]. Isso ocorreu em poucos casos históricos, como no Maio de 1968 em Paris e em setores do movimento negro nos Estados Unidos.
As formas de ação dos movimentos sociais também tendem a ser ineficazes no contexto da luta de classes. As manifestações, abaixo-assinados, ocupações, boicotes, etc., são formas de ação limitadas. Sem dúvida, elas podem surtir determinado efeito, sendo que o principal seria corroer a hegemonia burguesa e gerar uma unidade de ação anticapitalista. No entanto, esse avanço da luta tem diversos obstáculos (a começar pelas divisões internas, pois emerge em um movimento policlassista, bem como marcado por outras divisões e subdivisões, incluindo as concepções políticas e infiltração dos partidos políticos, entre outros). A grande vantagem de uma situação em que os movimentos sociais atuam mais fortemente é a experiência e avanço cultural de certos setores, o que contribui para fortalecer as lutas futuras. Dependendo de como ocorre, também pode contribuir para enfraquecer a hegemonia burguesa.
O movimento operário, bem como o bloco revolucionário como um todo, também lança mão destas e outras formas de luta. No entanto, não é a forma fundamental, pois são apenas formas de luta complementares às formas fundamentais. A forma fundamental de luta do movimento operário (e que também é utilizada por outros setores da sociedade em outro contexto e com outra eficácia) é a greve[14]. O bloco revolucionário, por sua vez, tem como forma fundamental a luta cultural. A luta operária fundamental se realiza, portanto, no local de trabalho, nas empresas capitalistas, enquanto que a luta fundamental do bloco revolucionário ocorre na sociedade civil, no plano cultural. Obviamente que a forma de luta fundamental não descarta as complementares e nem se limita às empresas ou cultura. Os objetivos, em ambos os casos, são a abolição da sociedade capitalista e a constituição de uma nova sociedade, autogerida. Essa é outra distinção importante e que torna as formas de ação bem distintas das mais comuns dos movimentos sociais. E mesmo quando uma mesma ação é realizada, ela ganha um significado diferente, não só pelos objetivos distintos, mas também pela forma como se concretiza.
Existem outras diferenças entre movimento operário e movimentos sociais, mas nos contentamos com destacar as principais. As semelhanças também existem. Tanto o movimento operário quanto os movimentos sociais utilizam, por exemplo, as manifestações, fazem reivindicações, etc. Isso ocorre, no entanto, sob formas distintas, com objetivos distintos. Da mesma forma, a ocupação pode ser usada tanto por um quanto por outro. No entanto, ocupar uma fábrica e impedir a produção de mais-valor (e, por conseguinte, aquisição de lucro) é bem distinto de ocupar uma escola e impedir a realização de aulas (e coisas derivadas e relacionadas). A panfletagem é usada tanto por certos movimentos sociais quanto pelo movimento operário. Mas o local, o conteúdo, etc., dos panfletos podem diferir radicalmente. Uma coisa é um panfleto que tenta unir uma classe social, denunciar a dominação e exploração de classe, apontar para a superação dessa sociedade; outra coisa é pregar igualdade entre dois grupos (raciais, sexuais, etc.) na relação entre eles abstraindo o pertencimento de classe e as demais relações sociais. Assim, a conclusão é a de que existem semelhanças e diferenças entre movimento operário e movimentos sociais. As semelhanças são existenciais e as diferenças essenciais, sendo dois fenômenos distintos. É o mesmo no caso de movimento de classes e movimentos sociais: uma diferença essencial, formando fenômenos distintos.
Considerações Finais
O objetivo do presente texto foi destacar as diferenças entre movimentos sociais e movimentos de classes. Essa diferenciação já foi apresentada antes (JENSEN, 2016; VIANA, 2016). Contudo, o objetivo aqui foi aprofundar um pouco essa diferenciação através de uma comparação fundada numa concepção dialética e mostrando concretamente a raiz das diferenças. Consideramos que atingimos nosso objetivo e assim abrimos espaço para novas discussões e questões a partir do que já foi refletido aqui.
Tendo em vista a problemática teórica dos movimentos sociais, é fundamental não apenas desenvolver o conceito de movimentos sociais, mas também distingui-lo de outros fenômenos e aprofundar suas características, formas, desenvolvimento. A distinção entre movimentos sociais e movimento de classes é apenas um desses elementos importantes para o desenvolvimento de uma teoria dos movimentos sociais e que merece outras reflexões e desenvolvimento.


Referências

ALONSO, Ângela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. Lua Nova, num. 76, 2009.

BON, Fréderic e BURNIER, Michel-Antoine. Classe Operária e Revolução. Lisboa: Edições 70, 1975.

BRAGA, Lisandro. A Teoria do Regime de Acumulação Integral. Revista Conflicto Social. Ano 06, num. 10, Jul./Dez. 2013.

GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais. 3ª edição, São Paulo: Edições Loyola, 2002.

GUNDER FRANK, André e FUENTES, Marta. Dez Teses sobre os Movimentos Sociais. Lua Nova, num. 17, 1989.

MARCUSE, Herbert. Ideias Sobre Uma Teoria Crítica da Sociedade. 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1988.

MONTAÑO, Carlos e DURIGUETTO, Maria Lúcia. Estado, Classe e Movimento Social. 2ª edição, São Paulo: Cortez, 2011.

ORIO, Mateus. O Desenvolvimento Capitalista na Sucessão de Regimes de Acumulação. Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014.

PANNEKOEK, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid: Zero, 1977.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. A Dinâmica das Renovações Hegemônicas. 2017.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Blocos Sociais e Luta de Classes. Espaço Livre, Vol. 10, n.º 10, jul./dez. 2015b.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015a.

VIANA, Nildo. Imaginário e Ideologia: As Ilusões nas Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo. Revista Espaço Livre. Vol. 8, num. 15, jan./jul. de 2013.

VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais Populares. In: VIANA, Nildo (org.). Movimentos Sociais: Questões Teóricas e Conceituais. Goiânia: Edições Redelp, 2016c.

VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Prismas, 2016a.

VIANA, Nildo. Os Objetivos dos Movimentos Sociais. Movimentos Sociais, 01(01), 2016b.





* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo.
[1] Sobre a linguagem noosférica (complexa), veja: Viana (2007; 2017).
[2] Aqui são apenas algumas breves considerações metodológicas que não poderemos desenvolver por questão de tempo e espaço. No entanto, planejamos uma obra posterior sobre dialética na qual trabalharemos as categorias da dialética e estes problemas serão abordados mais profundamente.
[3] Nesse sentido é possível realizar a distinção entre grupos sociais corporais (sexo, raça, etc.), grupos sociais culturais (causa, estilo de vida, etc.), grupos sociais situacionais (condição estudantil, condição de moradia, etc.) (VIANA, 2016).
[4] Sugerimos, para uma compreensão mais profunda dos conceitos acima apresentados, a leitura das obras na quais foram extraídos, pois possui toda uma teoria que fornece sua explicação e inserção na totalidade das relações sociais.
[5] Marx usa o termo “oposição”, mas isso foi efetivado numa obra (MARX e ENGELS, 1982) em que começava a esboçar alguns conceitos, elaborar outros e usar termos que posteriormente serão substituídos (como a noção de “formas de propriedade” que é substituída pelo conceito de modo de produção) e um dos conceitos fundamentais do materialismo histórico é justamente o de luta de classes, que ganha destaque a partir do Manifesto Comunista (MARX e ENGELS, 1988).
[6] No capitalismo, a luta se daria, fundamentalmente, no processo de repartição de mais-valor (VIANA, 2016b).
[7] Para compreender esse processo é necessário entender a dinâmica do desenvolvimento capitalista, marcado pela sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2015a; BRAGA, 2013; ORIO, 2014).
[8] Diversas ideologias apontaram para tal perspectiva, tanto da direita quanto da esquerda (MARCUSE, 1981; BON e BURNIER, 1975). A razão disso é a constituição do regime de acumulação conjugado (VIANA, 2009; VIANA, 2015a), que institui o fordismo, sistema de crédito e ascensão do poder aquisitivo do proletariado, bem como do consumo (justamente a época em que os ideólogos promoveram a ideia da “sociedade de consumo”) ao lado de uma renovação hegemônica marcada pela supremacia do paradigma reprodutivista (estruturalismo, funcionalismo, etc.).
[9] Uma síntese dessa concepção pode ser vista em Alonso (2009) e Gohn (2002).
[10] Um ideologema é um fragmento de ideologia que pode aparecer desconectado desta, como é o caso aqui abordado (VIANA, 2013).
[11] Esse é o caso daqueles que se pretendem marxistas, mas são, no fundo, leninistas (GUNDER FRANK e FUENTES, 1989; MONTAÑO e DURIGUETTO, 2011). Portanto, nem sempre o problema é apenas de debilidade teórico-metodológica, mas também por limites da consciência derivada de interesses, valores, etc. Concretamente, uns podem ser apenas pelos limites do leninismo; outros por insuficiência teórico-metodológica; além daqueles que padecem dos dois problemas simultaneamente.
[12] Para entender esse processo é interessante compreender as três variedades de movimentos sociais (conservadores, reformistas e revolucionários) e sua composição social e hegemonia interna (VIANA, 2016a) e os movimentos sociais populares (VIANA, 2016c).
[13] Os blocos sociais são as expressões políticas, culturais e organizacionais das classes sociais e não uma organização específica ou a classe social diretamente (VIANA, 2015b). O bloco revolucionário é expressão política, cultural e organizacional do proletariado, mas só ganha força efetiva quando este avança, embora seja também um propulsor desse avanço. Em momentos de estabilidade, o bloco revolucionário fica enfraquecido, permeado por ambiguidades em diversas organizações e concepções, etc. Essa situação se altera parcialmente quando se passa para um momento de desestabilização e, mais ainda, de crise, se reforçando quantitativamente e também no plano qualitativo. A emergência de uma forte luta operária autônoma ou autogestionária proporciona seu fortalecimento e assim o proletariado reforça o bloco revolucionário e vice-versa. Essa é uma tendência, que, como em todos os casos, possui suas contratendências. Esse processo depende de um conjunto de determinações, entre as quais, a força organizativa e cultural (especialmente teórica) do bloco revolucionário, no sentido de contribuir não somente com a explicação da realidade existente, mas também da luta cultural no sentido de contribuir com o desenvolvimento da consciência revolucionária e lançar as consígnias necessárias para o momento.
[14] Não poderemos desenvolver uma análise da greve aqui, mas algumas obras abordam e contribuem com uma percepção do significado do movimento grevista (VIANA, 2008; PANNEKOEK, 1977). O uso da greve pelo movimento operário é distinto de outros setores de trabalhadores. As greves dos trabalhadores improdutivos em instituições estatais possuem eficácia limitada, pois não interferem na produção de mais-valor e nem no lucro. Nas instituições privadas acabam prejudicando e afetando o lucro improdutivo, mas sua repressão e até a legislação permite uma ação mais repressiva dos capitalistas improdutivos.

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VIANA, Nildo. Movimentos Sociais e Movimentos de Classes: Semelhanças e Diferenças. Revista Espaço Livre, vol. 11, num. 22, 2016.
Disponível em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/509/516

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