Movimentos Sociais: Unidade e Diversidade
Nildo Viana
Resumo:
O presente artigo aborda a questão da unidade e
diversidade dos movimentos sociais. O objetivo foi apresentar a diferença entre
movimentos sociais em geral e movimentos sociais específicos. Para concretizar
esse objetivo, lançamos mão do método dialético e suas categorias analíticas. A
análise da unidade dos movimentos sociais remeteu para a reflexão sobre o seu conceito,
pois este é o elemento que permite entender a essência dos mesmos. O passo
seguinte foi mostrar que existe uma diversidade no interior dessa unidade e que
ela se manifesta através do movimento específico de cada grupo social em sua
relação com a totalidade da sociedade moderna. Esse processo analítico foi
complementado pela análise crítica de algumas definições e problemas nas
abordagens dos movimentos sociais em geral e específicos. A conclusão geral é a
de que é necessário um conceito de movimentos sociais que consiga dar conta da
unidade e diversidade desse fenômeno, tal como o que foi apresentado no artigo,
e que este momento precisa ser complementado pela análise da diversidade, o que
remente para o caso dos movimentos sociais específicos.
Palavras-chave: unidade, diversidade, movimentos
sociais, movimentos sociais específicos, dialética.
Abstract:
This article addresses the issue of the unity and
diversity of social movements. The objective was to present the difference
between social movements in general and specific social movements. To achieve
this goal, we have used the dialectical method and its analytical categories.
The analysis of the unity of social movements referred to the reflection on its
concept, because this is the element that allows to understand the essence of
them. The next step was to show that there is a diversity within this unity and
that it manifests itself through the specific movement of each social group in
its relation to the totality of modern society. This analytical process was
complemented by the critical analysis of some definitions and problems in the
approaches of the social movements in general and specific. The general
conclusion is that there is a need for a concept of social movements that can
account for the unity and diversity of this phenomenon, such as the one
presented in the article, and that this moment needs to be complemented by the
analysis of diversity, which The case of specific social movements.
Key words: unity, diversity, social movements, specific
social movements, dialectics.
A análise dos movimentos sociais vem se desenvolvendo há
algumas décadas. Ela acompanha a própria evolução dos movimentos sociais. Porém,
ainda há muitos aspectos dos movimentos sociais que não receberam maior atenção
e reflexão. Um destes elementos, que é nosso alvo de análise aqui, é sobre a
relação entre os movimentos sociais em geral e os movimentos sociais
específicos. Os movimentos sociais em geral remetem ao problema conceitual. O conceito
de movimentos sociais expressa o que há de universal (geral) em todos os casos
concretos, ou seja, o conjunto dos movimentos sociais específicos. Tratar dos movimentos
sociais específicos, por sua vez, remete a casos concretos, como o movimento
estudantil, negro, feminino, ecologista, etc. Esse é um ponto que merece
desdobramento analítico e é o nosso objetivo aqui.
Refletir sobre os movimentos sociais em geral significa
abordar o conceito de movimentos sociais. O que são os movimentos sociais? Essa
indagação, no plural, já aponta para a existência de diversos movimentos
sociais específicos. O conceito de movimentos sociais remete ao conjunto destas
expressões específicas. Por isso, é preciso que o conceito dê conta de
responder ao seguinte questionamento: o que é há de comum em todos os
movimentos sociais?
No entanto, não basta responder a esta questão. É preciso
acrescentar uma outra questão que é: o que torna os movimentos sociais um
fenômeno específico e diferenciado de outros fenômenos com os quais geralmente
é confundido (como classes sociais, partidos, manifestações, protestos, etc.).
Logo, um conceito de movimentos sociais só tem valor se der conta de responder
a estas duas indagações: o que há de comum e o que há de específico nos
movimentos sociais?
Para responder a estas indagações partiremos do método
dialético, tal como desenvolvido por Marx (1983; 1988) a partir da assimilação
da concepção hegeliana. O objetivo é mostrar a unidade na diversidade dos
movimentos sociais. Por isso vamos abordar, inicialmente, a unidade dos
movimentos sociais e, posteriormente, a sua diversidade.
A Unidade dos Movimentos Sociais
Antes de iniciar nossa discussão sobre a unidade dos
movimentos sociais, ou seja, o que todos eles possuem em comum, é preciso
esclarecer que algumas definições desse fenômeno são problemáticas. Os limites
das definições de movimentos sociais remetem à incapacidade de mostrar a
unidade ou a especificidade dos movimentos sociais. No interior dessas
concepções limitadas, é possível ver a seguinte definição de movimentos
sociais: “Um movimento social é um conjunto de opiniões e crenças em uma
população que manifesta preferência pela mudança em alguns elementos da
estrutura social e/ou na distribuição de recompensas em uma sociedade” (McCARTHY e ZALD, 2016).
Essa definição é tão ampla que abarca inúmeros fenômenos
sociais e assim não saberemos o que distingue um movimento social (ou os
movimentos sociais) de outros, tais como partidos, classes, manifestações, etc.
Em todos estes casos existem “estruturas de preferências”, bem como opiniões e
crenças, e quase todos apontam para mudança ou distribuição de benefícios
dentro da sociedade. Vejamos uma outra definição:
Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico,
construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas
sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social
na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados
sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As
ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma
identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta
identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é construída a
partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo
grupo (GOHN, 2000) .
A definição acima padece de inúmeras imprecisões (qual o
conceito de classe social utilizado? O que são “camadas sociais”? classes e
camadas são coisas distintas? O que são ações coletivas? O que significa
caráter sociopolítico? Estes e outros questionamentos poderiam ser feitos e
mostram que a definição acima não possui base teórica)[1].
Além das imprecisões, encontramos várias afirmações não fundamentadas: por qual
motivo se desenvolve “interesses em comum”? Independente das imprecisões e
falta de fundamentação, é preciso destacar a falta de base teórica e de
fundamentos para a definição apresentada. Não se trata de um conceito e sim de
uma mera definição, que, ao que tudo indica, se fundamenta em idiossincrasia da
pesquisadora e num ecletismo sem coerência (usa termos marxistas ou leninistas,
aliados com terminologia da chamada “teoria do processo político” e, ainda, da
chamada “teoria dos novos movimentos sociais”).
No entanto, o nosso propósito aqui não é criticar as
definições em si e sim colocar seus limites para estabelecer sua relação com a
problemática da unidade e diversidade. Essa definição, apesar de remeter a
vários aspectos, acaba gerando algo que pode ser atribuído a classes sociais,
movimentos de classe, partidos políticos, organizações, etc. A especificidade
dos movimentos sociais está ausente.
Voltemos, então, para a necessidade de elaboração de um
conceito de movimentos sociais. O que há de comum em todos os movimentos
sociais? Aqui precisamos esclarecer quais são os fenômenos sociais que
entendemos compor os movimentos sociais. O signo, a expressão verbal, já temos
(movimentos sociais), mas precisamos explicitar que aspecto da realidade ele
expressa. Os fenômenos sociais que entendemos que compõem os movimentos sociais
são os movimentos sociais específicos. É o caso do movimento estudantil,
movimento negro, movimento feminino, movimento ecológico, movimento pacifista,
movimento de luta pela moradia, movimento sanitário, movimento de bairros, etc.
Portanto, o conceito de movimentos sociais deve mostrar a unidade de todos
esses movimentos sociais, bem como sua distinção em relação a inúmeros outros
fenômenos sociais.
A unidade, no entanto, é sua essência. A essência, por sua
vez, é universal. Para a dialética materialista, a essência é a determinação
fundamental, aquilo que constitui o fenômeno e se manifesta em todos os casos
concretos, a não ser quando é impedido de se manifestar por determinações
externas. A semente contém, em si, uma árvore. Essa árvore vai se desenvolver
naturalmente (HEGEL, 1980) . Isso só não ocorre
se a semente for jogada no deserto ou no fogo, ou seja, se for destruída, pois
assim não realizará sua essência. Isso é comum a todas as sementes, a não ser
por determinação externa (como as sementes híbridas, alteradas geneticamente em
laboratório). Por conseguinte, dizer o que são os movimentos sociais é revelar
sua essência, aquilo que possuem em comum e fornece sua unidade e
especificidade.
Um conceito de movimentos sociais que se aproxima dessa
exigência metodológica é a de que eles são “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2016) . Todos os fenômenos
acima citados apontam para isso, mesmo no caso de grupos sociais que são
constituídos simultaneamente com o próprio movimento, como é o caso do
movimento ecológico ou do movimento pacifista. No entanto, esta definição ainda
é relativamente imprecisa e por isso os movimentos sociais podem ser melhor
compreendidos da seguinte forma:
Os movimentos sociais são mobilizações (ações coletivas ou
compartilhadas) de determinados grupos sociais derivadas de certas situações
sociais que geram insatisfação social, senso de pertencimento e determinados
objetivos. Os movimentos sociais podem gerar ramificações, tais como doutrinas,
ideologias, teorias, representações, organizações informais ou formais,
tendências, etc. Essas ramificações não se confundem como eles, são partes e
não o todo e que podem deixar de ser, como uma organização que se autonomiza e
passa a ter interesses próprios ou uma concepção de um autor que ganha um
desenvolvimento que rompe com o seu vínculo com o movimento social (VIANA,
2016a, p. 43) .
Acima temos não apenas uma definição (mera classificação ou
delimitação) e sim um conceito, que, por sua vez, remete a vários outros
conceitos, tais como grupos sociais, mobilização, situação social, senso de
pertencimento, mobilização, objetivos[2]. Esses
outros conceitos não são meros apêndices e sim aspectos da realidade dos
movimentos sociais que são seus elementos constitutivos e que os explicam. Os
grupos sociais não geram automaticamente movimentos sociais (JENSEN, 2016; VIANA, 2016a), para isso é preciso que
haja uma determinada situação social específica geradora insatisfação social e,
ainda, que a partir de ambos, se crie senso de pertencimento (ao grupo),
objetivos e mobilização.
A essência dos movimentos
sociais reside nesses elementos constitutivos e por isso é universal, está
presente em todos os movimentos sociais, formando a sua unidade. Todos os
movimentos sociais possuem estes elementos. Em caso contrário, não são movimentos
sociais ou então são ramificacões ou embriões dos mesmos. Um movimento social
que se torna uma grande organização burocrática se transformou em outra coisa.
Nesse caso, não é mais um movimento social. Uma organização específica, como a
Frente Negra Brasileira, Movimento Negro Unificado, Movimento Negro Socialista,
entre outros exemplos, são organizações do Movimento Negro e não um movimento
cada um. O grupo social composto pelos negros geram um movimento social que,
por sua vez, gera diversas organizações, concepções, tendências, etc. Nesse
caso, são ramificações do movimento negro.
O movimento feminino tem como
base o grupo social das mulheres, assim como o movimento ecológico o dos
ecologistas, o estudantil o dos estudantes, etc. Isso já é uma diferença, por
exemplo, com os movimentos de classes sociais, pois sua base são grupos e não
classes. Outro elemento que distingue os movimentos sociais de outros fenomenos
sociais reside nos seus objetivos. Os objetivos dos movimentos sociais são os
do grupo social de sua base, os interesses grupais. Desta forma, enquanto o
objetivo ligado organicamente ao grupo social existir em uma organização,
tendência, concepção, etc., então é parte dele, sendo uma ramificação do mesmo.
Geralmente, as organizações e demais ramificações possuem um duplo objetivo (VIANA,
2016b) ,
mas quando o objetivo do grupo social se torna meramente discursivo ou é
abandonado, aí já não se trata mais de ramificação de um movimento social. Esse
desligamento do movimento social ocorre frequentemente, com o processo de
mercantilização e burocratizacão crescente de setores dos movimentos sociais. No
movimento estudantil é comum, por exemplo, que existam ao lado dos objetivos
especificamente estudantis, algumas posições diante do governo, do
desenvolvimento nacional, da sociedade como um todo, gerando objetivos gerais,
como apoio ou recusa de governos, propostas de políticas nacionais, projetos de
revolução social, etc. Se uma organização, tendência, concepção do movimento
estudantil abandona os objetivos especificamente estudantis, então deixa de ser
parte dele, promovendo o desligamento do movimento estudantil.
Desta forma, todas as
organizações, tendências, concepções, etc., que não expressam os objetivos específicos
do grupo social de base de um movimento social não é parte dele. Isso também
vale para as que fazem isso apenas discursivamente, como meio de obter algo em
troca (partidos querendo votos dos grupos sociais, por exemplo). Se o objetivo
é um elemento definidor dos movimentos sociais, não é qualquer objetivo.
Trata-se do objetivo do grupo social de base dos mesmos. Como os movimentos
sociais não estão isolados na sociedade, mesmo as ramificações especifistas (TARDIEU, 2014) , de uma forma ou de
outra apontam para objetivos mais gerais relativos à sociedade (seja em relação
ao aparato estatal, legislação, sociedade civil, cultura, etc.). É o objetivo
grupal, expressão do interesse grupal.
Em síntese, a unidade dos
movimentos sociais, expressa no seu conceito, aponta para os seus elementos
constitutivos e isso se manifesta em todos eles. O conceito de movimentos
sociais explicita não apenas a unidade dos movimentos sociais, mas também sua
especificidade e sua forma de se relacionar com a totalidade da sociedade. Os
movimentos sociais existem a partir dos seus objetivos e estes expressam os
seus interesses (VIANA, 2016b) . No entanto, é
possível perguntar: quais interesses? Isso remete a qual movimento social se
trata, pois cada um tem um grupo social de base distinto com interesses
distintos. Num sentido mais essencial, o interesse grupal é a transformação
situacional do grupo (VIANA, 2016b) , rompendo com aquilo
que gera sua insatisfação. Os objetivos de um movimento social são determinados
pelo seu interesse grupal e este pode conter tanto interesses imediatos quanto
interesses fundamentais, entre outros processos complexos que não poderemos
desenvolver aqui[3].
A reflexão realizada até aqui serve para apresentarmos a unidade e
especificidade dos movimentos sociais e esses elementos são explicitados
através do seu conceito. No entanto, os movimentos sociais específicos não
foram explicados e por isso esse será o nosso próximo passo.
A
Diversidade de Movimentos Sociais
Até aqui tratamos da unidade dos movimentos sociais. Falta
abordar sua diversidade e esta remete às relações sociais reais (os movimentos
sociais são fenômenos reais). De acordo com a teoria da realidade de Marx, o
real é o concreto. O concreto, por sua vez, é compreendido como “a síntese de
muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 1983) .
O real é a unidade do diverso, o que significa que traz em si a unidade da
diversidade. O momento da diversidade expressa diversas singularidades que são
formas específicas de manifestar uma determinada universalidade. A essência é o
universal e a existência mostra as manifestações singulares, as
especificidades. A compreensão da essência em seu processo concreto de
existência é uma nova totalidade, mais ampla, formando uma unidade na
diversidade. Em termos hegelianos, que Marx utilizou em várias passagens, a
existência é o concreto com suas múltiplas determinações e a essência é a sua determinação
fundamental, que é constituinte do fenômeno. No concreto se reúne essência e
existência, mas ele é sempre uma categoria relativa, pois em relação a uma
outra realidade, pode ser essência[4].
Essas reflexões sobre algumas das categorias do pensamento
dialético ajudam a entender a questão da unidade e diversidade dos movimentos
sociais. A unidade dos movimentos sociais é uma totalidade inserida numa outra
totalidade mais ampla que é a sociedade. Essa unidade revela, também, a
essência do fenômeno chamado “movimentos sociais”, expressa através do seu
conceito. A diversidade, nosso tema no presente item, revela singularidades que
são manifestações de uma essência (movimento social) sob forma específica, singular.
A sua especificidade, por sua vez, reside na sua relação singular com a
totalidade. No caso, a relação singular de cada movimento social com a
sociedade moderna.
Isso é mais facilmente compreensível se recordarmos que os
movimentos sociais só surgem na sociedade moderna. Os movimentos sociais são
produtos da sociedade capitalista. É a sociedade moderna que cria os grupos
sociais ou então a situação que gera insatisfação[5] e
todos os elementos derivados que constituem um movimento social. A sociedade
moderna, além de criar diversas classes sociais, também gera diversos grupos
sociais, movimentos sociais, organizações, etc. As classes sociais, por
exemplo, são iguais no seu conceito, em sua essência e universalidade, mas são
distintas em suas manifestações singulares e isso não é um produto delas e sim
da sociedade e da divisão social do trabalho que ela cria sob determinada
forma, a partir das relações de produção dominantes. Burguesia e proletariado
são classes sociais da sociedade capitalista, mas são, ao mesmo tempo, classes antagônicas.
Aqui não existe apenas diversidade, mas também antagonismo. Isso é próprio da
especificidade das classes sociais que são relacionais, ao contrário dos grupos
sociais, que são diferentes uns dos outros mas não são constituídos
necessariamente na relação de uns com os outros.
A sociedade moderna gera um fenômeno específico que
denominamos movimentos sociais. Cada movimento social possui uma
especificidade, que é sua forma singular de existência e de sua relação com o
conjunto da sociedade. No entanto, isso nem sempre é perceptível quando não se
possui uma base teórico-metodológica de análise. Esse é um dos motivos pelos
quais os movimentos sociais são analisados separadamente ou em conjunto sob
forma abstratificada[6].
Essa é uma das fontes geradoras de diversas definições problemáticas de
movimentos sociais. Uma coisa é analisar o movimento social X ou Y, outra coisa
é analisar os movimentos sociais em geral. Infelizmente, quando se trata de
analisar os movimentos sociais em sua unidade, as abstrações metafísicas, as
definições empíricas ou idiossincráticas acabam predominando. O que
apresentamos no item anterior foi o conceito de movimentos sociais, revelando
sua unidade. Agora é o momento de tratar da especificidade dos movimentos
sociais específicos.
Existem diversos movimentos sociais. Uma lista que tentasse
ser exaustiva seria longa e provavelmente poderia deixar algum movimento de
fora. Os movimentos sociais mais abordados e reconhecidos socialmente são o
negro, o estudantil, o feminino e o ecológico. Tomaremos estes casos como base
para nossa análise a seguir. Esses quatro movimentos sociais possuem em comum,
o que revela sua unidade, os elementos constitutivos que estão englobados no
conceito de movimentos sociais. Todos eles possuem um grupo social de base,
pois os movimentos sociais são compostos por indivíduos oriundos desses grupos
que entram em “fusão”, ou seja, nem todos os indivíduos do referido grupo são
integrantes do movimento. O grupo social dos estudantes, o grupo social das
mulheres, o grupo social dos negros, o grupo social dos ecologistas[7],
são a base social destes movimentos e aquilo que lhe proporciona seus
objetivos, que são a manifestação dos seus interesses, e que geram senso de
pertencimento e mobilização. Isso só ocorre por causa de certas situações
sociais específicas que atingem tais grupos e da insatisfação social derivada
disso. Isso é comum a todos eles.
E o que os diferencia? Se existe uma diversidade de
movimentos sociais, então o que os torna diferentes? Sem dúvida, a diferença
nasce no grupo social de base de cada movimento social. As diferenças entre os
grupos sociais de base geram, por sua vez, diferenças na situação,
insatisfação, senso de pertencimento, objetivos, mobilização. As mulheres
formam um grupo social delimitado por sua corporeidade e por tudo que é
derivado disso, além da situação social específica derivada dos processos
sociais e históricos em relação com tal corporeidade. Os negros formam um grupo
social delimitado também pela corporeidade, apesar das diferenças, pois nesse
caso a diferenciação passa por gradações e isso gera uma maior dificuldade de
delimitação em alguns casos. Os estudantes formam um grupo social delimitado
pela condição estudantil, o que lhe coloca sua existência como dependente da instituição
escolar. Os ecologistas, por sua vez, formam um grupo delimitado por aqueles
que se unificam em torno de uma determinada concepção a respeito do problema
ambiental[8].
Desta forma, a diferença de grupo social significa diferença
de situação e, por conseguinte, de insatisfação. No entanto, no caso dos grupos
sociais cuja distinção reside na corporeidade, a sua situação social específica
é distinta em sociedades diferentes. A escravidão negra cria uma situação
diferente para os negros no novo mundo, bem como sua inserção na sociedade
capitalista pós-abolição. As relações raciais fundadas na exploração
(escravismo colonial) ou no racismo (sociedade capitalista) são distintas e
diferentes das que existem nas sociedades em que a população negra é quase que
a totalidade (e em certos momentos históricos se constituiu como totalidade).
Só existe motivo para existir um movimento negro quando existem relações
raciais e essas ocorrem sob forma que gera insatisfação social, sendo uma
situação social específica. Grupos sociais distintos possuem situações sociais
específicas, ou seja, distintas. Isso, por sua vez, gera distintos objetivos,
senso de pertencimento e mobilização. O grupo social das mulheres não tem como
objetivo combater a destruição ambiental, nem o racismo, nem a melhoria da
condição estudantil. Isso, no entanto, não impede que algumas mulheres coloquem
isso como objetivo, especialmente aquelas que se inserem nesses outros grupos
(mulheres ecologistas, mulheres negras, mulheres estudantes). No entanto, esse
não é um objetivo específico do grupo social das mulheres.
A situação dos estudantes é distinta da situação dos
ecologistas, negros e mulheres, embora alguns sejam pertencentes a estes outros
grupos ou se preocupem com sua situação e reivindicações. O mesmo vale para os
ecologistas e negros, pois existem ecologistas estudantes, negros e mulheres,
bem como pessoas negras que são ecologistas, estudantes e mulheres. O elemento
gerador do movimento não é qualquer insatisfação e sim aquela que é própria do
grupo e o que gera a sua mobilização.
O que interessa explicitar aqui é que um movimento social
específico tem sua especificidade oriunda de qual é o grupo social de base,
qual sua situação e insatisfação, e, por conseguinte, quais são seus objetivos,
senso de pertencimento e formas de mobilização. Mas isso só pode ser
compreendido através da relação específica de cada grupo social com a
totalidade da sociedade.
A relação específica entre o grupo social e a sociedade,
marcada por determinada situação que gera insatisfação[9], gera
um movimento social específico, que, por sua vez, possui objetivos específicos
e outras especificidades derivadas. Para compreender um movimento social
específico é fundamental entender essa relação específica com o conjunto da
sociedade. O movimento ecológico, por exemplo, só surge devido aos problemas
ambientais gerados pela sociedade capitalista. Sem tais problemas, não
existiria o grupo social dos ecologistas e nem o movimento ecológico. Na
sociedade feudal também havia problemas ambientais, mas não havia uma sociedade
civil organizada, meios tecnológicos de comunicação, etc., bem como o uso da
força e da repressão eram constantes e essas determinações mostram a
impossibilidade de existência de um movimento ecológico nessa sociedade. Essas
condições de possibilidade, por sua vez, não geram imediata e automaticamente
um movimento social. Isso só ocorre após a constituição de uma consciência a
respeito da questão ambiental que deixa de ser individual e se torna coletiva,
o que ocorre através de um senso de pertencimento grupal das pessoas
preocupadas com o meio ambiente. A situação social que gera a insatisfação e
grupo social não é suficiente para fazer emergir o movimento social, pois este
depende de uma fusão que faça com que os indivíduos atomizados (parte deles)
estabeleçam senso de pertencimento, objetivos, mobilização.
O caso do movimento ecológico é bem distinto do movimento
negro, feminino, estudantil. A razão de existência do movimento ecológico é
distinto da do movimento negro, bem como dos demais. Esses grupos sociais podem
até criar um entrelaçamento reivindicativo, mas possuem objetivos específicos,
dinâmicas, etc., bem distintos. A sua unificação só pode ocorrer quando se
obtém consciência de que a raiz de sua insatisfação se encontra na sociedade
como totalidade e nas relações sociais específicas que criam com cada grupo
social, o que remete ao objetivo geral além dos objetivos específicos[10].
Em síntese, os movimentos sociais específicos possuem em
comum os elementos constitutivos de um movimento social e como diferença a
especificidade destes elementos que são derivados de sua relação específica com
a totalidade da sociedade capitalista. Por isso é necessário o desenvolvimento
de pesquisas sobre cada movimento social específico.
Isso abre um amplo programa de pesquisa, pois se os
movimentos sociais em geral encontram problemas conceituais, isso é ainda mais
grave no caso dos movimentos sociais específicos. A maioria das pesquisas sobre
alguns movimentos sociais específicos nem sequer aponta uma definição, muito
menos um conceito. Isso, por sua vez, é dificultado pela falta de um conceito
de movimentos sociais e os mesmos problemas que geram tal falta nesse caso
atinge também as pesquisas sobre movimentos sociais específicos.
Assim, somente com o desenvolvimento de conceitos a respeito
dos movimentos sociais específicos é que poderemos avançar no sentido de não só
ter uma teoria dos movimentos sociais em geral, mas também dos movimentos
sociais específicos. E isso precisa ser realizado tendo em vista que os
movimentos sociais específicos possuem uma grande complexidade. Além do
conceito do movimento social específico, é necessário estabelecer quais são
suas relações com o conjunto da sociedade (Estado, cultura, sociedade civil,
partidos, etc.) e analisar suas diversas ramificações (organizações,
tendências, ideologias, concepções, etc.).
Isso quer dizer que um movimento social específico não é
homogêneo. Ele é marcado por divisões internas. O movimento negro, por exemplo,
não é um todo homogêneo e uma rápida olhada em sua história (nos Estados Unidos
ou no Brasil) ou em suas expressões contemporâneas, é suficiente para ver a
diversidade de tendências, organizações, concepções, etc. O mesmo vale e é
perceptível no caso do movimento das mulheres, ecologista e estudantil, para
nos limitarmos aos quatro casos que usamos como ilustração em nossa análise. Assim,
um movimento social específico é, ele mesmo, uma unidade na diversidade. O
conceito desse movimento expressa sua essência, sua unidade, mas sua
manifestação concreta, histórica, espacial, remete para uma diversidade no seu
interior.
Nesse sentido, num plano mais abstrato e geral, essa é a
diversidade na unidade dos movimentos sociais. A compreensão da necessidade de
aprofundamento da teoria geral dos movimentos sociais é fundamental, bem como
de teorias dos movimentos sociais específicos, pois um processo enriquece o
outro. Um desenvolvimento da reflexão aqui estabelecida remete para a
necessidade de análises de determinados movimentos sociais específicos, o que
não é nosso objetivo no presente momento.
Considerações finais
O nosso trajeto foi o de apresentar uma análise da unidade e
diversidade dos movimentos sociais. O objetivo foi estabelecer uma distinção necessária
e poucas vezes realizada entre movimentos sociais em geral e movimentos sociais
específicos[11].
A perspectiva aqui adotada foi embasada no método dialético, pois este nos
fornece ferramentas intelectuais que permitem resolver esse problema, ao tratar
da questão da unidade da diversidade e de suas categorias de análise da
realidade.
A partir do método dialético, buscamos resgatar a unidade
dos movimentos sociais em seu conceito, após análise crítica de certas
definições dos mesmos, e depois estabelecer a questão de sua diversidade. A
diversidade de movimentos sociais é um elemento fundamental. O que ocorre mais
frequentemente é o tratamento abstratificado dos movimentos sociais em geral,
por alguns, e a abordagem de movimentos sociais específicos isoladamente, por
outros. O percurso aqui realizado se justifica justamente pela tentativa de
superação dessas duas formas de trabalhar os movimentos sociais.
Por fim, a análise apontou para a necessidade de um conceito
de movimentos sociais que dê conta da unidade e da diversidade, bem como de
análises dos movimentos sociais específicos. Esse é apenas um ponto de partida
que merece aprofundamentos e desdobramentos. Essa é a tarefa posta para os
pesquisadores dos movimentos sociais.
Referências
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MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia
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MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, São Paulo:
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TARDIEU, Serge. Crítica ao Especifismo. Marxismo
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VIANA, Nildo. A Consciência da História - Ensaios
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Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 3ª
edição, Goiânia: Alternativa, 2007.
VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em
Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba:
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VIANA, Nildo. Os Objetivos dos Movimentos Sociais. Movimentos
Sociais, 01(01), 2016b.
[1] A
distinção entre “classes sociais” e “camadas sociais” tem sua origem na
tradição leninista e é distinta da concepção de Marx (VIANA, 2012) .
[2] Na
obra citada esses conceitos são apresentados, o que não poderemos reproduzir
aqui por questão de espaço.
[3]
Uma análise dos objetivos, interesses e reivindicações dos movimentos sociais é
fundamental e pode ser visto em Viana (2016b).
[4] É
preciso ter em vista a distinção entre categorias e conceitos. As categorias
são ferramentas intelectuais que nos ajudam a compreender a realidade, sendo
elemento constituinte do método, e os conceitos são expressões da realidade,
sendo, portanto, constituintes da teoria (VIANA,
2007a).
[5]
Alguns grupos sociais são constituídos pelo capitalismo, como os estudantes,
ecologistas, pacifistas, etc., outros existem antes dele, como o grupo social
das mulheres, dos negros, etc. Porém, como já foi dito anteriormente, não basta
a existência de um grupo social para que ele constitua um movimento social,
pois outras determinações são necessárias, sendo que algumas delas só se
manifestam na sociedade capitalista. A existência dos movimentos sociais
pressupõe uma sociedade civil organizada, meios de comunicação e outros
elementos que só se desenvolvem no capitalismo (VIANA, 2016a) .
[6]
Aqui usamos o termo “abstratificação” num sentido semelhante ao que Erich Fromm
(FROMM, 1976)
usou, mas com um caráter mais amplo, significando as formas de abstração
metafísica, distinta da abstração dialética realizada por Marx em sua análise
da realidade (VIANA, 2007b).
[7]
Aqui talvez fosse importante acrescentar os movimentos populares ou movimentos
sociais urbanos, mas esses termos se apresentam no plural, pois não se trata de
apenas um movimento e sim de um conjunto deles, pois existem em torno de
algumas questões comuns. Devido a essa característica específica desses casos e
também por nenhum movimento específico destes dois conjuntos ter o mesmo
destaque que os citados, então os deixaremos de lado.
[8] Os
grupos sociais de base dos movimentos sociais podem ser corporais,
situacionais, culturais (VIANA, 2016a) . No caso acima, trata-se de dois grupos
corporais, um situacional e outro cultural.
[9] Se
a insatisfação é justa ou injusta, falsa ou verdadeira, isso não vem ao caso
nesse momento. Os movimentos sociais conservadores, por exemplo, possuem uma
insatisfação que muitos considerariam injustas, mas nem por isso deixa de ser
insatisfação.
[11]
Karl Jensen foi um dos poucos que chamou atenção e desenvolveu alguma reflexão
sobre essa relação, ao distinguir a questão da generalidade e especificidade
dos movimentos sociais (JENSEN, 2016) .
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Movimentos Sociais: Unidade e Diversidade. Revista Café com Sociologia. Vol. 05, Num. 03, 2016.
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