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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Hegemonia e Escravidão


Hegemonia e Escravidão

Nildo Viana


Vivemos em uma época de “modas”. O capitalismo – com sua “produção em série” – cria sucessivas modas e, inclusive, modas ideológicas e acadêmicas. Os exemplos são muitos: o pós-moderno, o fim da história, a morte do socialismo e do marxismo, etc. O que resta do “marxismo” apresenta-se expresso na “moda gramsciana”. Hoje, realiza-se uma verdadeira revisão da historiografia brasileira para encaixar nela os conceitos gramscianos. Toda historiografia sobre a revolução burguesa no Brasil é sepultada devido a “necessidade” de utilizar o conceito gramsciano de “revolução-restauração”. É claro que, juntamente com isto, há um interesse acadêmico e a “vontade” de ser original, mesmo que para isso tenha que se deformar a realidade. Pretendemos, neste texto, refutar uma dessas artimanhas acadêmicas: aquela que busca utilizar o conceito de hegemonia para analisar a sociedade escravista colonial brasileira.

O conceito gramsciano de hegemonia pode ser sintetizado da seguinte forma: hegemonia é a direção moral e intelectual que a classe dominante exerce sobre as classes subalternas e que se realiza na sociedade civil. Gramsci criou este conceito para explicar as sociedades capitalistas da Europa ocidental. Este conceito se encontra entrelaçado com diversos outros, tais como sociedade civil, sociedade política, Estado integral, bloco histórico, guerra de posição, guerra de movimento, revolução-restauração etc. A aplicação deste termo à sociedade escravista brasileira apresenta dois equívocos básicos: a) retira um conceito do sistema conceitual no qual ele foi produzido e, sem re-elaborá-lo, aplica-o separadamente dos demais conceitos que lhe proporciona sentido (certamente ninguém defenderia a tese de se formar um “bloco histórico”, de se realizar uma “guerra de posição”, dos escravos conquistarem a “hegemonia” na “sociedade civil”, no contexto de uma sociedade escravista colonial); b) aplica um conceito elaborado para explicar relações existentes numa sociedade capitalista desenvolvida em uma outra sociedade com relações sociais totalmente diferentes. O próprio Gramsci reconhecia o caráter histórico e particular dos conceitos elaborados por ele quando colocou que o conceito (e a estratégia política) de “guerra de posição” era aplicável ao ocidente – devido à vitalidade da sociedade civil – enquanto que no oriente – devido à debilidade da sociedade civil – deveria se aplicar o conceito (e a estratégia política) de “guerra de movimento”. Em sociedades diferentes usa-se conceitos (e estratégias políticas) diferentes. Outro aspecto interessante é que os conceitos gramscianos são todos políticos e, no entanto, a sua utilização acadêmica retira-lhe o seu caráter político. Isto é comum no “marxismo” acadêmico que tem horror ao político e ao “ideológico” e busca academizar, tornar “científico” e neutro, despolitizar o marxismo, ou, em uma palavra, busca aburguesá-lo.

Portanto, o conceito de hegemonia é inaplicável ao modo de produção escravista colonial brasileiro. A classe dominante não exercia nenhuma “direção moral e intelectual” sobre a principal classe explorada, os escravos. Estes estavam submetidos ao trabalho obrigatório e mantidos sob vigilância permanente. A resistência escrava se manifestava não só na fuga e na formação de quilombos, mas até no nível do cotidiano e da sexualidade, tal como demonstra a prática de aborto das mulheres escravas e a interrupção do coito feita pelos escravos que tinha como objetivo evitar a escravidão do filho, evitando este último. A tese do “consentimento” dos escravos é apenas um recurso ideológico (no sentido negativo do termo, ou seja, entendendo-se por ideologia uma inversão da realidade) para se “reabilitar a escravidão”. Ao lermos estas teses temos a vontade de voltarmos no tempo e sermos escravos, afinal, como era bom ser escravo!! O historiador Jacob Gorender, no seu livro A Escravidão Reabilitada, coloca como principal centro produtor de tais teses o Departamento de História da Unicamp, este “foco mais ativo das novas tendências reacionárias” (existem exceções, evidentemente). Infelizmente, existem reacionários em todos os lugares, principalmente nas universidades brasileiras.

Texto publicado originalmente no Jornal Khronos, dos Centros Acadêmicos de Ciências Sociais, Filosofia e História/UFG, em Novembro de 1992.

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