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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos

A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos

Nildo Viana

A história das histórias em quadrinhos é marcada por uma periodização pouco questionada e que coloca o período de 1929-1939 (Gubern, 1979; Anselmo, 1975) como sendo a “época dos heróis”, da “aventura” ou da “explosão dos quadrinhos” – que para uns marca a década de 30 (Bibe-Luyten, 1987) enquanto que, para outros, dura até 1937 (Renard, 1981; Baron-Carvais, 1989) ou até 1949 (Marny, 1979). Na verdade, trata-se de um período das HQ que marca o surgimento de um novo gênero, a aventura e, ao mesmo tempo, um novo papel para elas. O novo papel das HQ se inicia em 1929 e manteve sua hegemonia até 1960 e, depois dos abalos desta década, torna a ser predominante a partir da década de 70 até a atualidade, nos primeiros anos do século 21. O gênero aventura surge em 1929 e é a primeira expressão deste novo papel, que, no entanto, passa a ser transmitido por outros gêneros e é por isso que o mundo dos heróis perde sua hegemonia em torno de 1938, quando a supremacia passa a ser da superaventura (Viana, 2002).

O gênero da aventura vem substituir as histórias em quadrinhos com desenhos caricaturais e histórias cômicas, infantis e/ou familiares que predominam até o final da década de 20. O gênero aventura marca uma mudança formal e de conteúdo. A mudança formal é caracterizada pela substituição dos desenhos caricaturais por desenhos realistas e a mudança de conteúdo, à qual nos deteremos mais adiante, substitui os temas familiares, infantis e cômicos pela tematização da aventura. Segundo Gubern,

“Neste período da adolescência de uma arte, os comics poderiam ser considerados em conjunto como produtos culturais cândidos e com um registro temático notavelmente limitado. Enquanto prolongações da caricatura e da anedota gráfica, não haviam ousado ainda abordar a épica aventureira, já implantada no cinema e que desfrutava de longa tradição na narrativa popular” (Gubern, 1979, p. 91).

O novo gênero traz um desenho realista que é necessário com a renovação temática ocorrida. A caricatura combina com a comicidade, bem como também se harmoniza com a simplicidade das histórias familiares e infantis e seus poucos personagens. Mas, no novo gênero, a comicidade é substituída pela seriedade e isto o torna incompatível com a caricatura. O crescimento do número de personagens, os ambientes em que se desenrolam as aventuras, os atributos físicos típicos dos heróis e vilões, entre outros elementos, promovem a necessidade de um desenho realista.

Por conseguinte, é fundamental compreender a renovação temática do gênero aventura, pois é isto que lhe caracteriza e provoca a renovação formal. Sendo assim, iremos, inicialmente, buscar compreender o gênero aventura e, posteriormente, o seu processo histórico de constituição.

O Gênero Aventura

O novo gênero de HQ pode ser resumido em duas palavras: aventura e herói. Ocorre uma transição, já aludida anteriormente, do ambiente da história, que se amplia e deixa de ser meramente familiar e cômica.

“Durante as primeiras décadas de existência, a história aos quadradinhos, como se hesitasse em dedicar-se a aspectos sérios, limitou-se a uma função cômica. Ainda próxima da caricatura, põe em cena personagens e animais caricaturais e fá-los evoluir em quadros estilizados. É o caso de Blondie e da Família Illico” (Marny, 1970, p. 122).

A HQ surge como tira de jornais e isto lhe provoca uma limitação, pois o espaço para o desenrolar dos quadrinhos é muito limitado. A histórias deveriam ser curtas. O surgimento do gênero aventura ocorre dentro dos mesmos limites, mas já anunciando a autonomização dos quadrinhos em relação aos jornais e revistas, abrindo caminho para os futuros álbuns e revistas em quadrinhos. A solução encontrada foi a seriação das histórias, isto é, a cada dia aparecia, no jornal, um trecho da história. Isto ocorre devido ao fato de que a aventura é uma narrativa seqüencial longa no qual o herói deve cumprir uma missão. O caráter seqüencial e longo da narrativa aventureira promove a necessidade de seriação e, posteriormente, de autonomização das HQ através do lançamento das revistas em quadrinhos. Os Comics Books surgem apenas em 1937, já na fase final da proeminência do gênero aventura e com a ascensão do gênero superaventura.

Portanto, o herói é uma figura fundamental no gênero aventura, pois é ele que deve cumprir a missão que fornece a dinâmica e sentido da história. A sociedade capitalista provoca uma valoração cada vez maior do indivíduo. Desde a economia política clássica de Adam Smith e David Ricardo, passando pela filosofia de Stirner, até chegar ao mundo fictício de Robinson Crusoé e ao mundo do romance, o individualismo é uma das idéias-força da ideologia dominante e das construções fictícias da classe dominante. Lucien Goldmann afirma que o romance se caracteriza pela transposição da vida cotidiana fundada numa sociedade individualista e mercantil para o mundo fictício (Goldmann, 1990). A aventura também realiza esta transposição do individualismo para o mundo da ficção e esta é uma de suas características fundamentais.

No entanto, no mundo dos quadrinhos antes do gênero aventura, a supremacia do indivíduo não era tão visível, apesar de algumas exceções, cujo motivo se encontra no público-alvo deste reino da fantasia: a criança. Sem dúvida, alguns adultos se interessavam pelas “bandas desenhadas” e a juventude era um grupo etário em formação que também era atraída por estas histórias, mas é somente com o gênero aventura que o indivíduo, na figura do herói, assume papel proeminente.

Isto se deve às condições históricas que engendraram o novo gênero, das quais trataremos mais adiante, mas um elemento fundamental para a emergência do herói como figura proeminente nas HQ foi a ampliação do público-alvo e, simultaneamente, o novo papel social das HQ. A crise de 1929 traz a necessidade de um indivíduo forte, resistente, um verdadeiro “herói”. O herói dos quadrinhos, pela sua própria existência, é o veículo desta mensagem:

“O mundo onde tem de combater é pois um campo fechado onde se batem o bem e o mal, a luz e as trevas, como no princípio dos tempos. O herói é o campeão do bem, o restaurador da ordem, por vezes até o ‘polícia’ do cosmos. Contra ele, bem podem desencadear-se as forças do mal e da treva; acaba por sair vencedor, visto que os deuses não podem permitir que o excesso triunfe, pois assim o cosmos arruinar-se-ia. Os deuses não podem aceitar nem a desordem nem a injustiça. Os homens também não. O que explica a veneração quase sagrada com que rodeamos o heróis: tem à sua volta como que uma auréola de divindade. Os homens têm necessidade interior de heróis” (Marny, 1970, p. 123).

Este trecho de Marny revela uma das características da aventura: o maniqueísmo, isto é, a oposição entre o bem e o mal. Esta característica está presente em todas as aventuras, sendo o seu motor. Esta raiz mitológica da aventura dos quadrinhos tem sua razão de ser pelos limites da consciência burguesa, que nunca pode revelar tudo, apenas apresenta o conflito mas não suas determinações sociais e a forma de se evitar isto é apelando para o maniqueísmo, a oposição entre o bem e o mal, e não a oposição entre grupos sociais e seus interesses.

Outra característica apontada por Marny, no entanto, se aplica apenas ao herói conservador, e, portanto não se aplica a todos os heróis dos quadrinhos. Mas o herói conservador é amplamente dominante no mundo das HQ. Esta característica é a relação indissolúvel estabelecida entre a ordem e a justiça, o que lhe proporciona o seu caráter conservador.

A terceira característica é a “divinização do herói”, que, ao contrário do que pensa Marny, não é uma “necessidade interior dos homens” (algo natural) e sim uma necessidade socialmente constituída, produzida por aqueles que são oprimidos e não conseguem imaginar que são os próprios agentes de sua libertação e por isso jogam suas esperanças nos heróis e como estes, na realidade, são praticamente inexistentes, então o herói dos quadrinhos aparece como o seu substituto imaginário.

O maniqueísmo e a indissolubilidade entre ordem e justiça são as características conservadoras da maioria dos heróis dos quadrinhos, o que pode ser contrabalanceado pela ressignificação que pode ser feita por muitos leitores. O maniqueísmo cumpre o papel de ofuscar as relações sociais que geram as ações humanas e as autonomizam, tornando-as produtos da maldade ou bondade inatas. Embora muitas histórias proporcionem uma visão das relações sociais que engendram as ações humanas, este aspecto se revela apenas um deslize de um roteirista que deve detalhar uma determinada aventura e assim cede à força da realidade. Muitas vezes o vilão ou criminoso aparece do nada, por pura ambição pelo poder ou pela riqueza (no caso dos super-heróis é diferente, pois a necessidade de explicar a origem dos superpoderes geralmente remete ao processo de surgimento do super-herói e do supervilão), o que revela, simultaneamente, a mentalidade burguesa que busca se realizar de forma contraditória com a moral burguesa[1].

A relação indissolúvel entre ordem e justiça complementa o maniqueísmo, pois parte do pressuposto de uma determinada harmonia e estabilidade (uma “ordem”) que, de repente, se vê ameaçada e isto significa um rompimento com a justiça. A sua origem é a maldade (uma ambição “natural”, por exemplo), independentemente se a ameaça é interna (os criminosos, no caso de Dick Tracy) ou externa (Ming, o imperador do planeta Mongo, no caso de Flash Gordon). E qual é o estatuto dessa maldade? É a busca de estabelecimento de uma ordem sem justiça, entendo por esta última a concepção burguesa de justiça, isto é, os direitos burgueses de propriedade, liberdade de ir e vir, etc.

No entanto, existem heróis que contestam esta relação indissolúvel entre ordem e justiça, tal como Zorro (espadachim) que luta contra os colonizadores espanhóis. Neste caso, a ordem está em contradição com a justiça e esta só pode ser estabelecida (ou restabelecida) com a mudança social (ou de quem detém o poder). Assim, a irrupção do “agente da desordem” não significa o aparecimento do vilão e sim do herói, que é tido, pelos representantes da ordem como um “criminoso”. No caso dos heróis conservadores, a ordem é justa e no caso dos heróis contestadores é injusta e por isso, no primeiro caso, a emergência da contestação é o crime e, no segundo, a justiça. Porém, os heróis contestadores nunca expressam uma contestação da ordem capitalista (isto só acontecerá nos anos 60, com o gênero marginal, mas que já não se pode considerar como fazendo parte do gênero aventura) e sim de sociedades pré-capitalistas, seja o despotismo feudal (Robin Hood) seja a colonização espanhola (Zorro, espadachim).

O gênero aventura se caracteriza pela aventura, uma narrativa seqüencial longa, realizada por um herói, um indivíduo com capacidades humanas extraordinárias (força física, atributos morais, etc.), que deve realizar uma missão: lutar pela justiça. Por isso Marny pode dizer que “o herói existe só para a (e pela) missão. Aborrece-se entre duas aventuras”, daí sua eterna disponibilidade, pois não depende dele nem recusar ou hesitar já que “a força superior que nele habita empurra-o fatalmente para frente” (Marny, 1970, p. 123).

A Origem dos Heróis

O ano é 1929. O país é os Estados Unidos, a maior fábrica de heróis dos quadrinhos do planeta. Tarzan é o modelo exemplar de heróis de HQ, assim como o super-homem é o modelo exemplar de super-herói. Antes de chegar aos quadrinhos, Tarzan já havia sido criado através do romance de Edgar Rice Burroughs em 1912. Já na década de 20 chegou pela primeira vez no cinema. Porém, o novo contexto histórico cria uma demanda imaginária pelos heróis por parte da população.

O processo de burocratização e mercantilização da produção das HQ já havia se iniciado em 1915 (Gubern, 1979). Este processo proporcionou uma maior profissionalização e especialização de desenhistas e roteiristas, bem como foi consolidado, cada vez mais, uma competição oligopolista no mundo das HQ com a emergência dos Syndicates, agências especializadas em fornecer matérias específicas e variadas, especialmente de entretenimento (Furlan, 1985). O desenvolvimento técnico e a influência da produção cinematográfica também contribuíram para a formação do novo gênero:

“O período que se abre em 1929 e termina com o início da Segunda Guerra Mundial constitui uma idade de ouro para o novo meio de expressão devido em parte à considerável ampliação temática produzida pela introdução da mitologia aventureira, que implicou uma notável ampliação da esfera dos seus leitores. Esta mutação processou-se debaixo da influência do naturalismo da imagem cinematográfica, que constituía então o espetáculo-rei das massas, e da do realismo próprio da ilustração dos magazines e da publicidade (cuidado com o pormenor, sombreado tridimensional, etc.). Uma nova geração de desenhistas, formados nas academias de arte e com prévia prática de ilustradores, conseguiram distanciar-se do estilo bufo e do grafismo caricaturesco a que permaneciam agarrados os comics, desligando-os da tradição da anedota gráfica em direção à da novela de aventuras, cujas dimensões e enredos obrigaram a seriar os episódios” (Gubern, 1979, p. 96).

Ao lado destas determinações, observamos a determinação fundamental do gênero aventura: a crise do regime de acumulação intensivo que culmina com a crise norte-americana de 1929. O regime de acumulação intensivo, instaurado como reação burguesa às lutas operárias que, na Europa, havia reduzido a jornada de trabalho e assustado a classe dominante com a experiência autogestionária da Comuna de Paris, vai implantar o taylorismo, o Estado liberal-democrático e o imperialismo, instaurando o capitalismo oligopolista. Este entra em crise com as novas lutas operárias, tal como as tentativas de revolução na Europa, a Revolução Russa, as crises financeiras, etc., e isto vai gerar o capitalismo de guerra, forma transitória que desemboca no capitalismo oligopolista transnacional, marcado por um novo regime de acumulação, fundado no fordismo, no Estado integracionista (de “bem estar social”) e no imperialismo deixa de privilegiar a exportação de capital-dinheiro para fortalecer a expansão transnacional (Viana, 2003).

Nos Estados Unidos, a crise de 1929 promoveu uma demanda imaginária pelo herói, do lado do público, e a necessidade de se destacar a proeminência dos norte-americanos (e também a de outros países, que também produziram seus heróis, como veremos adiante), devido ao acirramento da competição interimperialista e a ameaça de guerra. Assim, a aventura apresenta o “desejo de evasão” e de “heróis positivos” e coloca a necessidade de “novos modelos” para inspirar a ação humana (Bibe-Luyten, 1987, p. 26). A crise de 1929 produz a demanda imaginária pelo herói: “é como se os heróis envolvidos nas histórias compensassem as perturbações e a insegurança da triste realidade e todos resolvessem fugir para lugares desconhecidos” (Bibe-Luyten, 1987, p. 26).

A necessidade do herói, enquanto figura compensadora imaginária, vem acompanhada, ao lado da produção de HQ, de um tipo específico de herói: o colonizador. Isto corresponde à nova política externa norte-americana. A crise de 1929 contribuiu com a elaboração desta nova política. Os EUA a partir de Franklin Roosevelt lançam a política de “boa vizinhança”. A partir de 1920, no entanto, a presença norte-americana na América do Sul se tornou cada vez mais significativo e seu crescimento era proporcional à diminuição da presença inglesa (Schilling, 1984). Os Estados Unidos, no entanto, continua sua expansão comercial e financeira.

“A exportação de capitais subiu rapidamente e em 1929 os investimentos estrangeiros dos Estados Unidos chegaram a 14 700 milhões de dólares. Em relação a 1914, tinham quase quintuplicado. (...). A política exterior dos Estados Unidos foi de índole agressiva não só durante a Primeira Guerra Mundial, mas também depois. O imperialismo norte-americano continuou a dominar o continente americano” (Polianski & Shemiskine, 1973, p. 88).

Desta forma, os EUA passaram a se posicionar como os representantes da ordem mundial, possuindo um papel “civilizador”. O papel proeminente assumido pelo Estado capitalista neste período (keynesianismo) é a expressão de um salvador e ordenador de uma sociedade em crise (Dorfman & Jofre, 1978), que também reforça a idéia de que a ordem abalada deve ser restabelecida e, no mundo dos quadrinhos, isto cabe ao herói, o substituto do Estado, o responsável pela ordem e pela justiça. A aparência física do herói norte-americano, por si só, denuncia seu caráter axiológico:

“Em primeiro lugar, deve ter um corpo perfeito, uma musculatura impecável, tão mostrada quanto possível. E uma fisionomia aberta e simpática em que se reconhece o protótipo do americano – tal como sonha ser -, de nariz curto, maxilares quadrados (símbolo de decisão) e, por vezes, um vinco delicado no queixo. Isto corresponde de tal maneira à verdade que os criadores europeus o talharão pelo mesmo padrão. Em resumo, é do tipo ariano...” (Marny, 1970, p. 124).

Em 1929, aparece, nos EUA, Tarzan e Buck Rogers. Nos anos seguintes vão surgindo novos heróis: Príncipe Valente, Dick Tracy, Flash Gordon, Zorro (Cowboy), Mandrake, Fantasma, entre outros. Na Bélgica, George Hémy (Hergé) lança Tintin. Tarzan vai ser o modelo exemplar do herói dos quadrinhos e vai inspirar muitos outros, tal como Jim das Selvas (1933), o primeiro de uma série que contínua até os dias de hoje. Mas há um elemento em Tarzan que influencia a safra de heróis surgida no período auge do gênero aventura: a missão colonizadora. Tarzan, um nobre inglês, é o rei das selvas africanas, dos “macacos” e nativos, que se depara com civilizações antigas, exóticas, e promove a justiça e a ordem. Por detrás da máscara de “missão civilizadora”, o que temos é uma missão colonizadora.

O mesmo ocorre com Flash Gordon, que combate o Imperador Ming (de aparência asiática...), do planeta Mongo, que quer conquistar o planeta Terra. Ming representa o despotismo, o poder absoluto, e Flash Gordon a democracia, a liberdade e a justiça, ao estilo burguês e norte-americano. A aparência asiática de Ming aponta para uma divisão étnica que marca uma oposição clara, entre “mocinhos e bandidos”. Buck Rogers, antecessor de Flash Gordon, Jim das Selvas e Fantasma também exercem a mesma missão colonizadora. Jim das Selvas vive suas aventuras na Malásia e Mongólia, embora também fizesse expedições à América do Sul e Birmânia. O Fantasma é mais um nobre inglês que reina nas selvas africanas, desta vez de Bengala, e luta contra o crime e pela justiça. Buck Rogers, por sua vez, viaja ao futuro para manter a ordem e a justiça, antecedendo a ameaça que a civilização burguesa-ocidental e do que aconteceria com sua derrocada, o reino da desordem e injustiça que o herói deve combater para restabelecer a harmonia. Como se vê, a maioria dos heróis norte-americanos não atuam nos EUA. As exceções se encontram naqueles que atuam no passado (os heróis do velho oeste – “Cowboys”) ou que combatem os criminosos (os “heróis policiais”). Na Europa, surge Tintin (1929), um herói ainda a meio caminho do caricatural e do desenho realista, que viaja por inúmeros países nos diversos continentes lutando pela justiça e pela ordem. A sua primeira aventura (nunca reeditada...) foi Tintin no País dos Sovietes, uma crítica ao regime capitalista estatal soviético, considerado “socialista”...

Outros tipos de heróis surgem neste período, possuindo determinações específicas e em alguns casos mesclando estilos diferentes. O herói que combate a criminalidade é um bom exemplo. Nos EUA, a emergência do “crime organizado” e o crescimento da criminalidade a partir da crise de 1929, bem como o surgimento do FBI, promove o aparecimento de toda uma safra de heróis detetives, policiais e coisas do gênero, tal como Dick Tracy (1931); Agente X-9 (1934), Rip Kirby (1946), entre outros. As aventuras policiais marcam o nascimento de um subgênero no interior do gênero aventura, fazendo emergir a figura do “herói policial”, segundo expressão de Marny, sem ter o brilho que os demais possuem por suas limitações devido sua ligação com a figura real do policial, inclusive aparência física, que, segundo alguns, encaixaria muito bem nos vilões (Marny, 1970). Outros subgêneros, expressando outros tipos de heróis, como o herói das selvas (Tarzan, Jim das Selvas, Ka-Zar, Tantor), o herói cômico (Popeye, Lucky Luke), o herói fantástico (Mandrake, Tabu – O Feiticeiro da Floresta), o herói de ficção científica (Buck Rogers, Brick Bradford, Flash Gordon), o herói-cowboy (Red Ryder, Bronco Bill – ex-Bufallo Bill Jr., Lone Ranger – O Zorro Cowboy, como ficou conhecido no Brasil) entre outros, manifestam, sob formas diferentes, as características básicas do gênero aventura. O herói cômico era uma tentativa de juntar dois gêneros, no qual a comicidade e o desenho caricatural se unia com a narrativa seqüencial e longa na qual o herói buscava cumprir a sua missão justiceira. Tintin é um passo além do cômico, pois além de seu desenho ser menos caricatural, a comicidade é relegada a segundo plano.

Considerações Finais

A ligação do herói com os interesses dominantes de sua época é parcialmente questionada por alguns (Marny, 1970), embora sem nenhuma fundamentação consistente. E o desenvolvimento histórico das HQ constituem uma prova inequívoca de tal relação, embora não seja necessariamente intencional. As mudanças históricas promovem alterações no papel das HQ. Os heróis dos quadrinhos viverão esta situação, pois a missão colonizadora foi substituída pela missão da guerra, com a passagem para o capitalismo de guerra. O envolvimento exagerado dos heróis com a Segunda Guerra Mundial apenas revela o que em período anterior não era tão facilmente visível. Neste período, além do surgimento dos super-heróis, tais como o Super-Homem e Capitão América, vemos os heróis se envolverem diretamente com a guerra, e a relação oculta se torna explícita:

“Os quadrinhos, até antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, já estavam engajados numa posição política. O Príncipe Valente luta contra os hunos, que, na gíria inglesa, queria dizer germânicos”.

"Dick Tracy e X-9 se voltam contra sabotadores e até o Tarzan, na selva africana, luta contra os soldados coloniais nazistas" (Bibe-Luyten, 1987, p. 34).

Isto não ocorreu apenas com Tarzan, Dick Tracy, Príncipe Valente e X-9, pois podemos citar inúmeros outros exemplos, tais como os de Terry e Os Piratas e Flash Gordon:

“Quando o Japão invadiu a China, Terry e seus amigos se engajaram na luta para expulsar o invasor. Em 7 de dezembro de 1941, após Pearl Harbor, Terry ingressou na Força Aérea, e seu companheiro passou a ser Flip Corkin, calcado no herói verdadeiro, Coronel Philip Cochran. Uma página dominical de Terry era tão bem escrita e definia tão bem o espírito determinado de busca da vitória, que foi incluída nos Anais do Congresso, numa segunda-feira, dia 18 de outubro de 1943” (Moya, 1996, p. 90).

“Depois de vários anos de luta Flash [Gordon] consegue por fim ‘paralisar’ Ming, que o ameaçava com o seu desintegrador. É proclamada a república! Mas eis que Zarkov capta uma notícia verdadeiramente espantosa: a guerra está a arrasar a terra. Daqui em diante é ali que a liberdade está ameaçada e os três amigos regressam ao nosso planeta para beneficiarem as nações livres com as superarmas de Mongo” (Marny, 1970, p. 168-169).

Neste período, o invisível se torna visível, e o mundo dos heróis se torna arma a serviço da propaganda de guerra, “apegados a uma militarização massiva dos respectivos personagens e a um esquematismo empobrecedor” (Gubern, 1979, p. 110). Nesta época, “nenhum herói esteve isento do fervor político”. Até mesmo um herói proletário antifascista surge neste momento:

“Neste contexto novo na história deste meio de expressão, surgiu na imprensa norte-americana o primeiro herói desenhado de filiação comunista, o proletário Pinky Rankin (pinky é equivalente de ‘vermelho’), desenhado a partir de 1942 por Dick Floyd para o diário comunista Daily Worker, como exaltação da contribuição da esquerda para a grande cruzada antifascista” (Gubern, 1979, p. 111).

Também surgiram “heróis fascistas” (o herói se presta a qualquer tipo de trabalho...), tal como Dick Fulmine, na Itália. Novos heróis norte-americanos dedicados exclusivamente à guerra também apareceram: Comando Ianque (1940), Tio Sam (1941), Falcão Negro (1941), Capitão Comando (1943). Aliás, o nome “capitão”, derivado de uma posição na hierarquia militar, será uma constante e mais uma dezena de “capitães” irão surgir nesta época, culminando com o mais famoso, O Capitão América, um super-herói.

Alguns consideram que este foi um momento de “politização” ou de “utilização política dos quadrinhos” (Gubern, 1979; Bibe-Luyten, 1987), o que é um equívoco. Na verdade, este foi um momento no qual se tornou mais explícito o caráter político das HQ, cujo papel alterou com as próprias mudanças sociais e internacionais. A guerra produz o herói guerreiro assim como a crise, a expansão imperialista e a competição interimperialista produzem o herói colonizador. A radicalização, tal como ocorre em um momento de guerra, produz uma revelação mais explícita e direta dos valores e interesses por detrás dos heróis dos quadrinhos e da ficção em geral.

Referências Bibliográficas

Anselmo, Zilda A. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis, Vozes, 1975.

Baron-Carvais, Annie. La Historieta. México, Fondo de Cultura Económica, 1989.

Bibe-Luyten, Sônia. O Que é História em Quadrinhos. 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1987.

Dorfman, Ariel & Jofré, Manuel. Super-Homem e seus Amigos do Peito. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Furlan, Cleide. HQ e os “Syndicates” Norte-Americanos. In: Bibe-Luyten, S. (org.). Histórias em Quadrinhos. Leitura Crítica. 2ª edição, Edições Paulinas, 1985

Goldmann, Lucien. Sociologia do Romance. 3ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.

Gubern, Román. Literatura da Imagem. Rio de Janeiro, Salvat, 1979.

Marny, Jacques. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970.

Merton, R. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre Jou, 1970.

Moya, Álvaro. História da História em Quadrinhos. 2ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1996.

Polianski, F. & Shemiskine, I. História Económica dos Estados Unidos. Lisboa, Estampa, 1973.

Renard, Jean-Bruno. A Banda Desenhada. Lisboa, Presença, 1981.

Schilling, V. EUA X América Latina. As Etapas da Dominação. 2ª edição, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.

Viana, N. Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: Quinet, A. e outros. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.

Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
 
Notas:
 
[1] Esta concepção é semelhante a de Merton (1970), considera que existem indivíduos que aceitam os objetivos culturais definidos (ascensão social, por exemplo), mas não os meios aceitáveis para realizá-los (o trabalho, por exemplo), isto é, mudando a linguagem ideológica do autor por uma linguagem marxista, aceitam os valores dominantes, a mentalidade burguesa, mas não a moral burguesa que prega o trabalho e a honestidade como meios para realizá-los.

__________________
Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 35, abril/2004.

Repúblicado em:

VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.

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