O
CARÁTER REACIONÁRIO DA SUBSTITUIÇÃO DA LUTA DE CLASSES POR LUTA DE PARTIDOS
Nildo Viana
Em períodos eleitorais há a tendência de se supervalorar a
disputa eleitoral. Os candidatos e partidos, obviamente, tomam esse momento como
fundamental, especialmente no caso das eleições para cargos executivos, e mais
ainda no caso de eleições presidenciais. É interesses dos candidatos e partidos
que a população se envolva e acredite que o que está em jogo é o futuro do país
e seu próprio futuro. No entanto, isso é ilusório. As eleições apontam apenas
para a escolha da burocracia governamental (legislativa e executiva), que é uma
pequena parte da burocracia estatal e que não governa arbitrariamente, mas envolvidos
em todo um processo burocrático, através de um conjunto de alianças, bem como recebendo
influência e pressão de várias classes, organizações, etc. Independente de quem
assume o governo, deverá atender aos interesses do capital (a classe
capitalista como um todo e certos setores que conseguem ter maior poder de
pressão) e tem que tomar cuidado com a pressão da população, que pode ser maior
ou menor, dependendo do contexto.
No entanto, além dos candidatos e partidos, alguns intelectuais
reproduzem esse processo de supervaloração das lutas partidárias e alguns geram
ideologias, doutrinas, explicações, que apontam para a sistematização dessa consciência
ilusória. Isso gera correntes de opinião que acabam se fortalecendo com a
adesão e radicalização dos partidos em disputa, o que é mais forte no segundo
turno.
O bloco dominante (os setores mais organizados, conscientes
e ativos que expressam os interesses da classe dominante) recusa a luta de
classes e afirma a luta de ideologias. Assim, através de antinomias como direita/esquerda,
progresso/atraso, liberdade/igualdade, estado/mercado, tenta ofuscar a questão
fundamental das classes sociais e seus interesses antagônicos. O discurso
democrático aponta para a democracia representativa como o palco no qual se
desenrola a disputa pelo poder, o conflito de interesses, as propostas de
mudanças sociais, os planos de governo e projeto de desenvolvimento nacional. Isso
é mais discurso do que realidade, pois, na maioria dos casos, o que se disputa
é quem vai governar. Os interesses das classes trabalhadoras não aparecem, a
não ser nos discursos demagógicos e falsas promessas.
O bloco progressista, por sua vez, reproduz esse mesmo
discurso em suas tendências mais moderadas. Em suas tendências mais extremistas,
há uma substituição da luta de classes por luta de partidos. No início do
século 20, Trotsky já acusava Lênin de substituir a luta de classes por querelas
de partido. O bloco progressista tem na social-democracia uma de suas principais
forças e ela é composta pela burocracia partidária, setores da burocracia
sindical, setores da intelectualidade e tem como objetivo a conquista do
governo. Nesse momento, a burocracia partidária se torna, simultaneamente,
burocracia governamental. Daí o seu apego doentio ao poder, aos cargos, etc. e
seu desespero quando se trata de eleições para cargos executivos quando possui
alguma chance real. Se cria, nesse
contexto, um conjunto de valores derivados de determinados interesses que geram
interpretações da realidade que são muito distantes desta, bem como o discurso
eleitoral, de resto com os dos partidos conservadores, se torna cada vez mais
mentiroso, indo desde as promessas irrealizáveis até acusações falsas sobre os adversários,
entre outras coisas (incluindo a manipulação dos sentimentos, tal como o medo e
o ódio).
A luta de partidos é uma luta democrática, no sentido de que
é realizada no âmbito da democracia burguesa, o que significa que não pode
ultrapassar os limites da sociedade capitalista, nem sequer em suas propostas.
Da mesma forma, não pode ultrapassar os limites da democracia representativa,
que é uma forma burocrática de escolha da burocracia governamental. A luta de
partidos é regularizada pela legislação eleitoral e partidária, num processo
hierárquico no qual há uma instituição superior para definir os pontos litigiosos
(o TSE – Tribunal Superior Eleitoral). Claro que a luta de partidos ultrapassa
o momento eleitoral e a disputa eleitoral, mas cada vez mais os partidos se
tornam mais parecidos e as divergências são cada vez menos importantes.
A luta de partidos é uma luta pelo poder. Cada partido quer
tomar o poder, o que significa, no final das contas, assumir o governo. Isso
significa cargos e dinheiro. Esse é o objetivo fundamental dos partidos
políticos. Secundariamente, há a questão do tipo de política estatal que será
efetivada. No entanto, a burocracia governamental, independente de quem esteja
no governo, irá administrar o capitalismo para o capital, o que significa
garantir a sua reprodução. Isso pode ser feito de forma mais ou menos democrática,
dependendo do contexto social mais amplo e dos interesses e agentes no processo
histórico concreto.
A luta de partidos é interesses dos partidos, mas não do
proletariado ou das classes trabalhadoras. A maioria da população não é
contemplada nessas lutas, a não ser como destinatária do discurso eleitoral e
do jogo partidário que busca angariar seu apoio. A divisão por posição social
ou ideologia política ofusca e mascara os interesses de classes e frações de
classes existentes na disputa eleitoral, mas que sempre exclui as classes
trabalhadoras do processo eleitoral.
Ao tornar a luta de partidos o centro da luta política
assume-se uma posição reacionária[1]. Perde-se de vista a
totalidade e ofusca a luta de classes. A luta de partidos é apenas uma parte da
democracia representativa, que, por sua vez, é uma pequena parte do aparato
estatal em sua relação com a sociedade civil, que, por sua vez, é uma pequena
parte da sociedade em seu conjunto, com suas classes, modos de produção, instituições,
cultura, etc. A luta de dois partidos, por sua vez, é apenas parte das lutas
partidárias, pois existem diversos outros.
Isso é mais grave quando se isola os partidos políticos,
gerando um reducionismo e uma coisificação. Os partidos políticos expressam
classes ou frações de classes, além dos seus próprios interesses[2]. Nos partidos do bloco
dominante (conservadores) se expressa os interesses da classe dominante, ou
seja, da classe capitalista, seja dela em sua totalidade ou de frações ou outras
subdivisões e dependendo do contexto histórico, uma ou outra classe
(latifundiários, por exemplo). Mas cada partido também cria interesses próprios
(chegar ao poder), doutrinas, concepções, etc. Nos partidos do bloco
progressista se expressa os interesses de parte das classes auxiliares da
burguesia, a burocracia e a intelectualidade, que buscam se autonomizar e
defender seus próprios interesses. O proletariado e as demais classes
trabalhadoras (campesinato, subalternos, etc.) e o lumpemproletariado, estão
ausentes nas lutas partidárias, pois não possuem partidos que expressem os seus
interesses[3].
O que está em jogo na disputa eleitoral é a escolha da
burocracia governamental e que por mais que os partidos sejam diferentes (como
nas situações nas quais ao invés de duas alas do bloco dominante concorrer pela
conquista do governo, a divisão é entre bloco dominante e bloco progressista) e
poucas diferenças no processo político concreto. Na contemporaneidade, as
diferenças seria mais ou menos privatização/estatização, mais ou menos
políticas segmentares (para grupos sociais específicos), mais ou menos
políticas de assistência social, mais incentivo para o moralismo conservador ou
para o moralismo progressista, mais ou menos recursos financeiros para determinados
setores da sociedade, etc. Ou seja, é uma diferença quantitativa e não
qualitativa.
A substituição da luta de classes pela luta de partidos gera
um reducionismo e uma divisão da sociedade entre partidos, especialmente quando
há eleições em segundo turno ou forte polarização na disputa pelo poder. Cria-se
um reino mágico no qual um partido pode gerar uma mudança social independente do
processo social mais amplo. O discurso eleitoral, com seu otimismo e mentiras,
é sedutor, especialmente quando parte da população está desgastada
psiquicamente e necessitando de esperança. Os salvadores da pátria aparecem, as
promessas proliferam, tudo visando ganhar os votos necessários para vencer as
eleições.
No entanto, os partidos expressam interesses de classes e interesses
próprios e não os interesses da maioria da população. Qualquer partido que
ascenda ao poder vai buscar manter os seus interesses próprios (corrupção, reprodução
no poder, etc.) e vão servir fielmente à classe dominante, sob pena de perder o
que ganhou caso não o faça. O impeachment de Dilma Roussef mostra isso (sobre
isso, clique
aqui). Ao se iludir com as diferenças partidárias, se perde de vista os
interesses de classes que os movem e seu antagonismo com os interesses do
proletariado e demais classes trabalhadoras. Da mesma forma, fica
incompreensível a dinâmica da luta de classes e dos processos sociais, ficando
apenas a superficialidade dos discursos e dos indivíduos.
Um dos efeitos da luta de partidos, quando é apresentada
como a questão fundamental e mais importante, é a polarização destrutiva que
busca envolver as classes trabalhadoras no sentido de defender forças que não
expressam seus interesses. Esse processo gera o desgaste psíquico de
indivíduos, brigas, ansiedade, etc. A sociedade capitalista que normalmente já
é erguida sobre o sofrimento e desequilíbrio psíquico torna-se algo cada vez
mais insuportável e psiquicamente cada vez mais destruída.
A gênese desse processo é a falsa ideia reducionista segundo
a qual fora do partido ou das eleições não há salvação. A luta de partidos vira
uma cruzada semirreligiosa e fetichista contra os infiéis e as crenças
irracionais em indivíduos e partidos se torna mobilizadora, gerando ações,
conflitos e processos destrutivos. Assim, o totalitarismo tem suas sementes plantadas
não apenas por indivíduo A ou B, mas sim por diversos indivíduos e partidos,
que, devido sua ânsia de poder, geram um clima eleitoral doentio e desgastante.
A criação da adesão irracional a partidos e supostos líderes obliteram a percepção
da realidade, anula o senso crítico, e torna possível o desenvolvimento de
fanatismo e irracionalidade que podem gerar violência e canalização dos
sentimentos e descontentamento da população para oportunistas chegarem ao
poder.
A solução para isso é, no plano intelectual, a percepção de
que não é através da disputa eleitoral que se resolve os problemas sociais e
muito menos se gera a transformação social. A ideia de totalidade, a análise
mais profunda da sociedade e de sua divisão em classes sociais, entre outros processos
intelectuais, é um elemento fundamental para superar a percepção simplista e
dicotômica da realidade. No plano sentimental, é necessário saber que há um
processo de desumanização e que tomar partido entre duas forças políticas
desumanizadoras é fortalecer esse processo. Assim, é preciso, mesmo que sem
declarar para evitar desgaste psíquico, recusar os dois concorrentes e a
disputa eleitoral e as correntes de opinião formada por eles (a progressista e
a conservadora). No plano da ação, isso se traduz no voto nulo e na busca de
outras discussões, reflexões, que apontem para a necessidade de mais cultura,
mais leitura, mais organização para tratar das necessidades reais. Diante do barbarismo
político atual, ao invés de ficar nas redes sociais lendo coisas irracionais e
vendo agressividade, entre outros problemas, seria melhor ler um livro, desde
obras literárias de qualidade (um Kafka ou um Lima Barreto) a obras teóricas ou
políticas relevantes (tal como Marx).
As eleições vão passar e com ela, a luta de partidos vai
perder espaço, pois não estará na TV, nas redes sociais, e aí as pessoas
poderão se reencontrar de forma civilizada e reiniciar o processo de luta por
uma verdadeira transformação social, o que é impossível no âmbito do processo
eleitoral. Assim, a luta hoje é outra, não é eleitoral, é a luta de classes.
Essa não se realiza nos processos eleitorais e sim na vida cotidiana e por isso
busquemos refletir e preparar as lutas vindouras, pois são essas que podem
apontar para a constituição do novo, do radicalmente diferente, a abolição de
uma sociedade desumanizada e a instauração da autogestão social, uma sociedade
humanizada.
[1] No sentido mais amplo de contribuir
com a reação ao processo de transformação social e não no sentido de tendência política,
tal como apontamos em outro texto (clique
aqui).
[3] Isso se deve ao caráter
dos partidos políticos, organizações burocráticas e que, portanto, acaba expressando
ou a classe dominante, por seu poder financeiro e supremacia sobre a
burocracia, ou então essa quando se trata dos partidos do bloco progressista, mais
conhecidos como “partidos de esquerda”.
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