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domingo, 14 de outubro de 2018

O CARÁTER REACIONÁRIO DA SUBSTITUIÇÃO DA LUTA DE CLASSES POR LUTA DE PARTIDOS



O CARÁTER REACIONÁRIO DA SUBSTITUIÇÃO DA LUTA DE CLASSES POR LUTA DE PARTIDOS

Nildo Viana

Em períodos eleitorais há a tendência de se supervalorar a disputa eleitoral. Os candidatos e partidos, obviamente, tomam esse momento como fundamental, especialmente no caso das eleições para cargos executivos, e mais ainda no caso de eleições presidenciais. É interesses dos candidatos e partidos que a população se envolva e acredite que o que está em jogo é o futuro do país e seu próprio futuro. No entanto, isso é ilusório. As eleições apontam apenas para a escolha da burocracia governamental (legislativa e executiva), que é uma pequena parte da burocracia estatal e que não governa arbitrariamente, mas envolvidos em todo um processo burocrático, através de um conjunto de alianças, bem como recebendo influência e pressão de várias classes, organizações, etc. Independente de quem assume o governo, deverá atender aos interesses do capital (a classe capitalista como um todo e certos setores que conseguem ter maior poder de pressão) e tem que tomar cuidado com a pressão da população, que pode ser maior ou menor, dependendo do contexto.

No entanto, além dos candidatos e partidos, alguns intelectuais reproduzem esse processo de supervaloração das lutas partidárias e alguns geram ideologias, doutrinas, explicações, que apontam para a sistematização dessa consciência ilusória. Isso gera correntes de opinião que acabam se fortalecendo com a adesão e radicalização dos partidos em disputa, o que é mais forte no segundo turno.

O bloco dominante (os setores mais organizados, conscientes e ativos que expressam os interesses da classe dominante) recusa a luta de classes e afirma a luta de ideologias. Assim, através de antinomias como direita/esquerda, progresso/atraso, liberdade/igualdade, estado/mercado, tenta ofuscar a questão fundamental das classes sociais e seus interesses antagônicos. O discurso democrático aponta para a democracia representativa como o palco no qual se desenrola a disputa pelo poder, o conflito de interesses, as propostas de mudanças sociais, os planos de governo e projeto de desenvolvimento nacional. Isso é mais discurso do que realidade, pois, na maioria dos casos, o que se disputa é quem vai governar. Os interesses das classes trabalhadoras não aparecem, a não ser nos discursos demagógicos e falsas promessas.

O bloco progressista, por sua vez, reproduz esse mesmo discurso em suas tendências mais moderadas. Em suas tendências mais extremistas, há uma substituição da luta de classes por luta de partidos. No início do século 20, Trotsky já acusava Lênin de substituir a luta de classes por querelas de partido. O bloco progressista tem na social-democracia uma de suas principais forças e ela é composta pela burocracia partidária, setores da burocracia sindical, setores da intelectualidade e tem como objetivo a conquista do governo. Nesse momento, a burocracia partidária se torna, simultaneamente, burocracia governamental. Daí o seu apego doentio ao poder, aos cargos, etc. e seu desespero quando se trata de eleições para cargos executivos quando possui alguma chance real.  Se cria, nesse contexto, um conjunto de valores derivados de determinados interesses que geram interpretações da realidade que são muito distantes desta, bem como o discurso eleitoral, de resto com os dos partidos conservadores, se torna cada vez mais mentiroso, indo desde as promessas irrealizáveis até acusações falsas sobre os adversários, entre outras coisas (incluindo a manipulação dos sentimentos, tal como o medo e o ódio).

A luta de partidos é uma luta democrática, no sentido de que é realizada no âmbito da democracia burguesa, o que significa que não pode ultrapassar os limites da sociedade capitalista, nem sequer em suas propostas. Da mesma forma, não pode ultrapassar os limites da democracia representativa, que é uma forma burocrática de escolha da burocracia governamental. A luta de partidos é regularizada pela legislação eleitoral e partidária, num processo hierárquico no qual há uma instituição superior para definir os pontos litigiosos (o TSE – Tribunal Superior Eleitoral). Claro que a luta de partidos ultrapassa o momento eleitoral e a disputa eleitoral, mas cada vez mais os partidos se tornam mais parecidos e as divergências são cada vez menos importantes.

A luta de partidos é uma luta pelo poder. Cada partido quer tomar o poder, o que significa, no final das contas, assumir o governo. Isso significa cargos e dinheiro. Esse é o objetivo fundamental dos partidos políticos. Secundariamente, há a questão do tipo de política estatal que será efetivada. No entanto, a burocracia governamental, independente de quem esteja no governo, irá administrar o capitalismo para o capital, o que significa garantir a sua reprodução. Isso pode ser feito de forma mais ou menos democrática, dependendo do contexto social mais amplo e dos interesses e agentes no processo histórico concreto.

A luta de partidos é interesses dos partidos, mas não do proletariado ou das classes trabalhadoras. A maioria da população não é contemplada nessas lutas, a não ser como destinatária do discurso eleitoral e do jogo partidário que busca angariar seu apoio. A divisão por posição social ou ideologia política ofusca e mascara os interesses de classes e frações de classes existentes na disputa eleitoral, mas que sempre exclui as classes trabalhadoras do processo eleitoral.

Ao tornar a luta de partidos o centro da luta política assume-se uma posição reacionária[1]. Perde-se de vista a totalidade e ofusca a luta de classes. A luta de partidos é apenas uma parte da democracia representativa, que, por sua vez, é uma pequena parte do aparato estatal em sua relação com a sociedade civil, que, por sua vez, é uma pequena parte da sociedade em seu conjunto, com suas classes, modos de produção, instituições, cultura, etc. A luta de dois partidos, por sua vez, é apenas parte das lutas partidárias, pois existem diversos outros.

Isso é mais grave quando se isola os partidos políticos, gerando um reducionismo e uma coisificação. Os partidos políticos expressam classes ou frações de classes, além dos seus próprios interesses[2]. Nos partidos do bloco dominante (conservadores) se expressa os interesses da classe dominante, ou seja, da classe capitalista, seja dela em sua totalidade ou de frações ou outras subdivisões e dependendo do contexto histórico, uma ou outra classe (latifundiários, por exemplo). Mas cada partido também cria interesses próprios (chegar ao poder), doutrinas, concepções, etc. Nos partidos do bloco progressista se expressa os interesses de parte das classes auxiliares da burguesia, a burocracia e a intelectualidade, que buscam se autonomizar e defender seus próprios interesses. O proletariado e as demais classes trabalhadoras (campesinato, subalternos, etc.) e o lumpemproletariado, estão ausentes nas lutas partidárias, pois não possuem partidos que expressem os seus interesses[3].

O que está em jogo na disputa eleitoral é a escolha da burocracia governamental e que por mais que os partidos sejam diferentes (como nas situações nas quais ao invés de duas alas do bloco dominante concorrer pela conquista do governo, a divisão é entre bloco dominante e bloco progressista) e poucas diferenças no processo político concreto. Na contemporaneidade, as diferenças seria mais ou menos privatização/estatização, mais ou menos políticas segmentares (para grupos sociais específicos), mais ou menos políticas de assistência social, mais incentivo para o moralismo conservador ou para o moralismo progressista, mais ou menos recursos financeiros para determinados setores da sociedade, etc. Ou seja, é uma diferença quantitativa e não qualitativa.

A substituição da luta de classes pela luta de partidos gera um reducionismo e uma divisão da sociedade entre partidos, especialmente quando há eleições em segundo turno ou forte polarização na disputa pelo poder. Cria-se um reino mágico no qual um partido pode gerar uma mudança social independente do processo social mais amplo. O discurso eleitoral, com seu otimismo e mentiras, é sedutor, especialmente quando parte da população está desgastada psiquicamente e necessitando de esperança. Os salvadores da pátria aparecem, as promessas proliferam, tudo visando ganhar os votos necessários para vencer as eleições.

No entanto, os partidos expressam interesses de classes e interesses próprios e não os interesses da maioria da população. Qualquer partido que ascenda ao poder vai buscar manter os seus interesses próprios (corrupção, reprodução no poder, etc.) e vão servir fielmente à classe dominante, sob pena de perder o que ganhou caso não o faça. O impeachment de Dilma Roussef mostra isso (sobre isso, clique aqui). Ao se iludir com as diferenças partidárias, se perde de vista os interesses de classes que os movem e seu antagonismo com os interesses do proletariado e demais classes trabalhadoras. Da mesma forma, fica incompreensível a dinâmica da luta de classes e dos processos sociais, ficando apenas a superficialidade dos discursos e dos indivíduos.

Um dos efeitos da luta de partidos, quando é apresentada como a questão fundamental e mais importante, é a polarização destrutiva que busca envolver as classes trabalhadoras no sentido de defender forças que não expressam seus interesses. Esse processo gera o desgaste psíquico de indivíduos, brigas, ansiedade, etc. A sociedade capitalista que normalmente já é erguida sobre o sofrimento e desequilíbrio psíquico torna-se algo cada vez mais insuportável e psiquicamente cada vez mais destruída.

A gênese desse processo é a falsa ideia reducionista segundo a qual fora do partido ou das eleições não há salvação. A luta de partidos vira uma cruzada semirreligiosa e fetichista contra os infiéis e as crenças irracionais em indivíduos e partidos se torna mobilizadora, gerando ações, conflitos e processos destrutivos. Assim, o totalitarismo tem suas sementes plantadas não apenas por indivíduo A ou B, mas sim por diversos indivíduos e partidos, que, devido sua ânsia de poder, geram um clima eleitoral doentio e desgastante. A criação da adesão irracional a partidos e supostos líderes obliteram a percepção da realidade, anula o senso crítico, e torna possível o desenvolvimento de fanatismo e irracionalidade que podem gerar violência e canalização dos sentimentos e descontentamento da população para oportunistas chegarem ao poder.

A solução para isso é, no plano intelectual, a percepção de que não é através da disputa eleitoral que se resolve os problemas sociais e muito menos se gera a transformação social. A ideia de totalidade, a análise mais profunda da sociedade e de sua divisão em classes sociais, entre outros processos intelectuais, é um elemento fundamental para superar a percepção simplista e dicotômica da realidade. No plano sentimental, é necessário saber que há um processo de desumanização e que tomar partido entre duas forças políticas desumanizadoras é fortalecer esse processo. Assim, é preciso, mesmo que sem declarar para evitar desgaste psíquico, recusar os dois concorrentes e a disputa eleitoral e as correntes de opinião formada por eles (a progressista e a conservadora). No plano da ação, isso se traduz no voto nulo e na busca de outras discussões, reflexões, que apontem para a necessidade de mais cultura, mais leitura, mais organização para tratar das necessidades reais. Diante do barbarismo político atual, ao invés de ficar nas redes sociais lendo coisas irracionais e vendo agressividade, entre outros problemas, seria melhor ler um livro, desde obras literárias de qualidade (um Kafka ou um Lima Barreto) a obras teóricas ou políticas relevantes (tal como Marx).

As eleições vão passar e com ela, a luta de partidos vai perder espaço, pois não estará na TV, nas redes sociais, e aí as pessoas poderão se reencontrar de forma civilizada e reiniciar o processo de luta por uma verdadeira transformação social, o que é impossível no âmbito do processo eleitoral. Assim, a luta hoje é outra, não é eleitoral, é a luta de classes. Essa não se realiza nos processos eleitorais e sim na vida cotidiana e por isso busquemos refletir e preparar as lutas vindouras, pois são essas que podem apontar para a constituição do novo, do radicalmente diferente, a abolição de uma sociedade desumanizada e a instauração da autogestão social, uma sociedade humanizada.





[1] No sentido mais amplo de contribuir com a reação ao processo de transformação social e não no sentido de tendência política, tal como apontamos em outro texto (clique aqui).
[2] Sobre partidos, consulte O que São Partidos Políticos? clicando aqui.
[3] Isso se deve ao caráter dos partidos políticos, organizações burocráticas e que, portanto, acaba expressando ou a classe dominante, por seu poder financeiro e supremacia sobre a burocracia, ou então essa quando se trata dos partidos do bloco progressista, mais conhecidos como “partidos de esquerda”.

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