MARX E A LUTA CULTURAL
Nildo Viana*
Marx não utilizou o termo “luta cultural” e poucas vezes
usou o termo “cultura”. Apesar disso é possível perceber em sua obra elementos
importantes que permitem pensar em luta cultural, tanto através de suas
análises da práxis revolucionária quanto de sua prática teórica concreta que
expressa uma luta cultural. Nesse sentido, vamos apresentar uma breve análise
do que podemos extrair da obra de Marx que pode ser entendido como luta
cultural ou reflexão sobre a mesma.
Marx e a reflexão sobre a luta cultural
A falsa interpretação de Marx como “economicista” é um
obstáculo para entender seu pensamento e concepção política. Isso, mais especificamente,
oblitera a sua posição diante da questão da consciência e do seu papel na luta
de classes. Sem dúvida, para Marx, o social é o elemento determinante no plano
real e, por conseguinte, no plano metodológico, no qual se enfatiza o peso das
relações sociais concretas ao invés das representações sobre elas. “Não é a consciência dos homens que determina
o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”
(MARX, 1983, p. 25). Ou, segundo ele, “Assim
como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se
poderá julgar uma tal época de
transformação pela mesma consciência de si [...]”(MARX, 1983, p. 25).
Esse pressuposto metodológico é apenas expressão do processo
histórico real. No entanto, existe o mundo das representações, da cultura, que
é um momento do real e interfere no mesmo[1].
Explicar a consciência pelo social não significa pensar que ela não existe ou
que não interfira no processo real e histórico. Segundo o próprio Marx: “A arma
da crítica não pode, evidentemente, substituir a crítica das armas, a força
material deve ser derrotado pela força material; mas também a teoria se
converte em força material tão logo se apodera das massas” (MARX, 2008, p.
103).
Aqui temos um elemento da luta cultural (a produção e
divulgação da teoria para as classes desprivilegiadas) e uma proposição que
mostra a necessidade da luta cultural. O papel da cultura, das ideias,
representações, no processo da luta de classes é apresentado por Marx em
diversas ocasiões. O que interessa colocar aqui é a divisão que ele realiza no
processo de autoeducação do proletariado, por um lado, e na luta cultural
realizada pelos revolucionários, por outro. Segundo ele:
Em geral, as colisões da velha sociedade favorecem de diversas maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta contínua: no início contra a aristocracia; depois, contra as partes da própria burguesia cujos interesses entram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar seu auxílio e a arrastá-lo assim para o movimento político. A burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si mesma (MARX e ENGELS, 1988, p. 75).
Essa autoeducação, como colocam algumas traduções, do
proletariado é beneficiada pela luta de classes e pelo reforço que indivíduos
de outras classes oferecem ao se associar à luta proletária[2].
Isso ocorre através da crítica, da teoria e de “elementos de cultura” que esses
indivíduos, geralmente intelectuais, podem oferecer ao proletariado. A crítica
não é algo autossuficiente, ela tem uma finalidade externa a ela mesma. Marx explicitou
o papel da crítica da seguinte forma: “a crítica arrancou as flores imaginárias
que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer
fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor
viva” (MARX, 1978, p. 106). A crítica tem o papel de contribuir para superar as
ilusões e permitir a ação transformadora, a luta revolucionária.
A teoria, por sua vez, é fundamental, pois ela é precondição
para a crítica. “a exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a
exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 1978, p.
106) e isso significa a necessidade de explicar essa “condição que necessita de
ilusões”. O papel da teoria é “averiguar a verdade daquilo que nos circunda” e
desmascarar as ilusões e “tornar a opressão real ainda mais opressiva,
acrescentando àquela a consciência da opressão”, ela deve ser radical, isto é,
ir à “raiz dos problemas”. E ela só pode ser realizar se for expressão de
necessidades radicais. A teoria deve ser expressão de tais necessidades
radicais, que se materializa no proletariado, pois ele é uma classe social na
qual se manifesta a possibilidade de emancipação humana. Ao discutir a
possibilidade de tal emancipação, Marx diz que ela reside
Na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as consequências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Essa dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado (MARX, 1978, p. 125).
Nesse sentido, a teoria deve ser expressão do proletariado e
o objetivo dela é realizar a transformação radical do conjunto das relações
sociais, da totalidade. A teoria encontra no proletariado suas armas materiais
e o proletariado encontra na teoria suas armas intelectuais. Assim, “como a
mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular”
ocorrerá a emancipação humana. A teoria é o cérebro dessa emancipação e o
proletariado o seu coração. A teoria só pode ser abolida com a extinção do proletariado
e este só poderá ser extinto realizando a teoria[3].
Nesse sentido, há uma inseparabilidade entre teoria e proletariado. O
proletariado é condição de possibilidade da teoria e é graças a ele que emerge
os indivíduos reais e concretos que a produzem, os representantes teóricos do
proletariado[4].
O objetivo da teoria é a transformação radical da realidade
e o limite da filosofia é não ter essa finalidade, pois o que importa não é
apenas interpretar a realidade e sim transformá-la. Mas como a teoria faz isso?
Superando as ilusões, ou seja, expressando a realidade tal como ela é e
mostrando que ela é produtora de fantasias e diversas formas de ilusões. Assim,
a crítica supera as ilusões e a teoria mostra sua base real, o fundamento
material tanto das ilusões quanto da emancipação humana, cuja potencialidade se
encontra no proletariado. Os teóricos do proletariado tem a missão, portanto,
de criticar as ilusões, expressar a realidade social e levar isso até a classe
operária. Esse é um processo concreto que ocorre na luta de classes, pois “um fenómeno inevitável, fundado no curso
do desenvolvimento, que pessoas das classes até aqui dominantes se juntem ao
proletariado que luta e lhe tragam elementos de cultura” (MARX, 2014).
Obviamente que devem ser elementos de cultura reais, e não criações
fantasiosas, preconceitos burgueses, ecletismo utilizando ideias trazidas das
universidades, etc.
Essas são as
reflexões de Marx sobre o que denominamos luta cultural, no caso proletariado.
Ele também aborda a luta cultural da burguesia, cujo processo é o oposto. A
luta cultural burguesa é realizada através da produção de ideologias (MARX e
ENGELS, 1991), ou seja, sistemas de pensamento ilusórios, realizada pelos
ideólogos, sendo que alguns são produtores ativos de ideologias e outros, a
maioria, são apenas reprodutores passivos das mesmas. Esse sistema de
pensamento ilusório serve para legitimar, justificar e naturalizar as relações
sociais da sociedade capitalista. Esse é o caso de filósofos, cientistas e outros.
Marx focaliza em diversas obras o papel desses ideólogos e suas ideologias.
Assim, se a teoria visa à transformação radical das relações sociais, a
ideologia visa sua conservação. As ideologias, ao serem reproduzidas pelos
ideólogos passivos, atingem a população e assim, ao serem aceitas, amortecem as
lutas de classes, provocando adesão à sociedade capitalista. Quando estes
ideólogos se dizem aliados do proletariado, ao invés de elementos de cultura, o
que levam são preconceitos e concepções ecléticas que nada contribuem com a
luta operária. Se a teoria supera as ilusões, mostra suas bases reais e
expressa como a sociedade cria tal necessidade de criações ilusórias,
criticando tanto as representações e ideologias quanto a realidade que as
geram, a ideologia, por sua vez, produz e reforça as ilusões. A teoria está
vinculada e expressa os interesses de classe do proletariado, enquanto que as
ideologias são expressões dos interesses de classe da burguesia ou de outras
classes conservadoras.
A
Luta Cultural de Marx
Além do que ele
disse sobre o que denominamos luta cultural, Marx a efetivou concretamente.
Nesse sentido, é um complemento para entender sua posição diante dessa questão
sua prática concreta. A luta cultural de Marx pode ser vista através de sua
crítica das ilusões, especialmente das ideologias; sua produção teórica,
extremamente ampla; o processo de levar “elementos de cultura” para o
proletariado. Realizaremos uma breve exposição sobre estes três aspectos para
demonstrar a efetivação de luta cultural por parte de Marx.
A obra de Marx é
essencialmente crítica. Em seus primeiros escritos, aborda a questão da crítica
da religião e posteriormente a crítica da filosofia alemã e, posteriormente, a
crítica das ideologias científicas e pseudossocialistas. A sua análise da
religião aponta para mostrar que ela é um produto terreno e que sua autoilusão
de ser expressão do além apenas esconde suas origens no aquém. Ele mostra as
origens sociais da religião, bem como explica que é da miséria real que surge a
necessidade da ilusão religiosa. Mas logo ele passa da crítica da religião para
a crítica das ideologias. Em obras como A
Ideologia Alemã, A Sagrada Família, entre outras, ele se dedica à crítica
da filosofia alemã com seu caráter ideológico. No entanto, ele acaba passando
para a crítica de outras ideologias, tal como a dos economistas ingleses e
socialistas franceses. As suas críticas a Malthus e os “economistas vulgares”,
bem como aos ecléticos e mesmo aos clássicos (Adam Smith e David Ricardo) se
manifesta em O Capital, Grundrisse, Teorias da Mais-Valia, etc. Da mesma
forma, ele realiza a crítica do socialismo francês e do pseudossocialismo em
geral, tal como se vê no Manifesto
Comunista, A Miséria da Filosofia, entre outras obras. Em vários momentos
ele avança na crítica de outras concepções, e em cartas e outros lugares, até de
aspectos das ciências naturais, como no caso de Darwin (VIANA, 2009).
A teoria
produzida por Marx é extremamente ampla e é inseparável de sua crítica. O
primeiro elemento de sua produção teórica é sua teoria da alienação e da
história. A teoria da alienação apresentada nos Manuscritos de Paris (também chamados “econômico-filosóficos” ou
“de 1844") é o momento de constituição das bases concretas do seu
humanismo e do comunismo. O trabalho alienado é o fundamento da revolução
proletária, a desumanização é apresentada como a chave para emancipação humana,
pois esta é negação daquela. A teoria da história é apresentada em A Ideologia Alemã, embora em diversas
obras ele volte a essa questão, tal como na Contribuição
à Crítica da Economia Política, entre outras. Através da elaboração dos
conceitos de modo de produção, classes sociais, lutas de classes, entre outros,
ele busca expressar o movimento histórico, fundado, a partir de certo momento
histórico devido ao desenvolvimento das forças produtivas, na luta de classes.
Ele desenvolve também uma teoria do capitalismo, que pode ser vista em diversas
obras, embora de forma mais estruturada em O
Capital. Nessa obra ele explica o segredo da exploração capitalista e sua
essência, a produção de mais-valor, bem como suas consequências e
desdobramentos, como a acumulação de capital e processo tendencial de sua
superação. Da mesma forma e indissoluvelmente ligado a isso, apresenta uma
teoria da revolução proletária, não só analisando o proletariado como classe
social como também avançando no sentido de analisar suas lutas, sua
potencialidade revolucionária, suas experiências, suas tendências. Ainda esboça
elementos, baseando-se nas experiências históricas e no vislumbre racional
proporcionado pela teoria (VIANA, 2014), da sociedade comunista, tal como em A Guerra Civil na França e Crítica ao
Programa de Gotha, principalmente.
Os elementos de cultura que é parte da práxis dos teóricos
do proletariado e Marx realizou isso também. O que muitos não sabem é que os
livretos Salário, Preço e Lucro e Trabalho Assalariado e Capital, são a
expressão escrita de palestras que Marx ministrou para operários. Ele sempre
buscou levar a teoria para o movimento operário, tanto através da produção em
si e sua publicação como livros, mas também através de documentos, cartas, conversas,
palestras, incluindo as circulares na AIT – Associação Internacional dos
Trabalhadores. Dois momentos especiais se destacam nesse processo, que é a
redação do Manifesto Comunista e de
sua análise da Comuna de Paris, contida em A
Guerra Civil na França. No Manifesto
Comunista, ele sintetiza elementos de sua teoria da história, de suas
análises do capitalismo e da luta de classes nessa sociedade, bem como critica
os pseudossocialismos e apresenta o papel dos comunistas e elementos
programáticos para a luta revolucionária. Em A
Guerra Civil na França, apresenta uma análise da Comuna de Paris, de seus
obstáculos e problemas e de sua importância histórica para o movimento operário
revolucionário, obra divulgada para o proletariado e que poderia servir de
inspiração para novas lutas. Aliás, O
Capital, era para ter sido produzido em fascículos, pois a intenção de Marx
é que ele fosse lido por proletários.
Nesse sentido, as ações concretas de Marx mostram uma
intensa luta cultural, aliada com um trabalho organizativo e outras ações, no
sentido de fortalecer a luta proletária e a formação da associação da classe na
luta contra a burguesia e constituição da “livre associação dos produtores”, o
comunismo.
De Marx a Nós: A Luta Cultural Hoje
Estamos em outra época, sendo que a essência do capitalismo -
produção do mais-valor e acumulação de capital – continua a mesma, mas sua
forma mudou. Houve um amplo desenvolvimento tecnológico, a geopolítica mundial
foi alterada, a mercantilização e burocratização das relações sociais se
intensificaram, o Estado assume nova forma, entre diversas outras questões.
Marx produziu sua obra durante o regime de acumulação extensivo e passagem para
o intensivo. Nesse sentido, os regimes de acumulação posteriores (conjugado e
integral) não foram vividos e analisados por ele, a não ser em seus elementos
tendenciais. A luta operária de sua época ocorria num contexto determinado e
hoje as condições são bem diferentes. Os partidos e sindicatos supostamente
“operários” são aparelhos burocráticos que nada tem a ver com o movimento
revolucionário do proletariado, sendo mais um obstáculo. Da mesma forma, os
meios oligopolistas de comunicação ganharam um espaço muito maior e, no regime
de acumulação integral, a internet e redes sociais ganham espaço.
O capitalismo encontra cada vez mais dificuldades em se
reproduzir. Isso faz parte de sua história, mas quanto mais se desenvolve e
demonstra capacidade de superar as crises e sobreviver, mais encontra
dificuldades mais amplas e profundas. As experiências revolucionárias depois da
Comuna de Paris trouxeram questões inexistentes no tempo de Marx, tal como a
ameaça da contrarrevolução burocrática. Após o regime de acumulação intensivo,
uma imensa classe burocrática emerge e sua parte mais radicalizada, presente em
partidos e sindicatos menores, se torna ávida pelo poder e para isso se diz
“representante do proletariado”. Isso gera mais um obstáculo para a luta
proletária: além de combater o capital e seu aparelho, o estado capitalista,
tem também que se livrar de suas falsas “vanguardas” e daqueles que dizem estar
do seu lado.
Essas e outras mudanças complexifica as lutas de classes,
principalmente com a emergência de novas ideologias e supostas concepções
críticas que no fundo apenas cria uma divisão e isolamento de setores da
sociedade ao invés de levar a uma unificação que seria o fortalecimento da luta
pela transformação social. Essas lutas isoladas de grupos isolados, permeados
por ideologias como a do “gênero”, “libertação animal”, entre outras, acabam
sendo reforço da hegemonia burguesa nos movimentos sociais e lutas cotidianas,
dificultando uma ascensão das lutas proletárias e revolucionárias.
A luta cultural assume, portanto, novas tarefas. Por um
lado, é preciso combater o enfraquecimento interno do marxismo (autêntico e não
suas deformações burocráticas expressas no leninismo e socialdemocracia), no
sentido de buscar se aliar com ideologias burguesas para não perder espaço.
Apesar da preocupação de não perder espaços e criar divergências desnecessárias
ser legítima, pois é preciso unir forças e muitos estão aderindo a ideologias e
concepções equivocadas por falta de aprofundamento teórico, informações, etc.,
isso é uma faca de dois gumes, pois reforça o que tem que ser combatido.
O enfraquecimento interno é aquele no qual os próprios
defensores de uma concepção se rendem a ideias dos adversários, se submetem aos
modismos, introjetam outras concepções graças à vitimização de grupos, ou seja,
é um processo de origem externa que gera um enfraquecimento interno, seja por
pressão social, seja por falta de formação teórica e senso crítico mais
desenvolvido. Às vezes isso se revela no temor de entrar em embate e isso ser
impopular. No entanto, um revolucionário é, a não ser na época da revolução,
impopular por natureza.
No entanto, essa é apenas uma das novas questões
contemporâneas que atingem a luta cultural hoje. As tarefas são muito mais
numerosas. É preciso levar “elementos de cultura” para o proletariado e demais
setores da sociedade potencialmente revolucionários, e isto através de livros,
revistas, jornais, panfletos, conversas, uso de meios de comunicação, internet,
etc. No entanto, para que sejam realmente “elementos de cultura” é necessário
não apenas “informações” ou palavras de ordem, mas que tenha um caráter
formativo, fornecendo ferramentas intelectuais para interpretar e atuar nas
lutas de classes.
Da mesma forma, para poder prosseguir na luta cultural e
colaborar com a autoformação intelectual da população e dos militantes, é
necessário a produção teórica e crítica das ideologias e representações
cotidianas ilusórias. A produção teórica deve ser incentivada e realizada, no
sentido de colaborar com a compreensão das relações sociais concretas, do
capitalismo, de seus mecanismos de reprodução, das contradições existentes,
tendências e potencialidades. Essa é a base para a crítica das ideologias, que
não só exercem o papel de influenciar indivíduos e intelectuais, inclusive com
potencial contestador, como, através destes e sob outras formas, os movimentos
sociais e lutas sociais. Por isso a crítica das diversas ideologias, sob
variadas formas e graus de desenvolvimento, deve ser realizada. Por outro lado,
a crítica do imaginário, das representações cotidianas ilusórias produzidas
pela própria população, é outro elemento necessário, pois ele é outro
obstáculo, inclusive para o avanço da autoeducação do proletariado. É preciso
avançar no sentido de difundir representações cotidianas verdadeiras e sua
passagem para formas mais amplas e desenvolvidas de pensamento.
Da mesma forma, a luta contra os valores dominantes e
mentalidade burguesa é outro elemento que deve ocorrer, apesar dos obstáculos
mais fortes nesse caso. A crítica da axiologia, dos valores dominantes em suas
diversas configurações, é um elemento que deve ser um dos focos da luta
cultural. Por outro lado, o reconhecimento e discussão sobre axionomia, os
valores autênticos, é necessário, ser cair no humanismo abstrato, entendendo
que parte deles podem ser materializados hoje, mas parte não, e por isso é
preciso de uma ética libertária e domínio teórico[5]. A
relação entre teoria e ética libertária é fundamental para não cair no
sentimentalismo, moralismo e/ou humanismo abstrato. A materialização da
axionomia no conjunto das relações sociais pressupõe a superação da sociedade
capitalista e isso se faz através da luta de classes e por isso apenas
parcialmente ele se concretiza hoje. Os carrascos não podem ser tratados com
solidariedade, apesar deste ser um valor autêntico, pois a recíproca não é
verdadeira.
Assim, os elementos apontados por Marx continuam válidos e
precisam ser aprofundados. Obviamente que um ou outro indivíduo pode focalizar
em formas de luta cultural específica, apesar do ideal ser atuar em todos. No
entanto, se uma pessoa colabora fazendo poesias, ou seja, realizando a luta
cultural via produção artística, desde que na perspectiva do proletariado,
então é algo a apoiar. Incentivar a ir além disso é algo possível e desejável,
mas isso depende da singularidade psíquica do indivíduo, sua história de vida,
condições sociais, etc., e por isso o que deve ser exigido é que o conteúdo de
sua produção artística seja revolucionário, pois se não for não contribui com a
luta.
Da mesma forma que Marx, em certo momento, foi para a
biblioteca de Londres e disse que assim contribuiria melhor com a luta de
classes, é preciso reconhecer as necessidades, limites, contextos, que cercam
os indivíduos e que a liberdade na luta é fundamental pela luta pela liberdade,
desde que o objetivo final esteja presente, que haja coerência entre a produção
cultural e luta pela autogestão social. A ida de Marx para a biblioteca de
Londres estava intimamente relacionada com a produção de sua obra O Capital, uma das mais importantes
produções teóricas já feitas e de fundamental importância para a luta
proletária.
Para o caso de formas mais organizadas e coletivas de luta,
é necessário refletir criticamente e elaborar programas de ação voltados para a
luta cultural. Assim, processos de produção e publicação teóricas, mecanismos
de elaboração e divulgação de críticas, constituição de processos de divulgação
e propaganda revolucionária, bem como articulação disso tudo com atuação nos
movimentos sociais, nos movimentos grevistas, lutas de classes em geral.
Em síntese, a luta cultural é um dos principais elementos da
práxis revolucionária. E ela não está separada de todos os processos de luta
existentes na sociedade. O que os praticistas não percebem é que toda luta tem
um elemento cultural envolvido. Num movimento grevista, as reivindicações e as
ações são permeadas por concepções, representações, etc., no sentido de que as
necessidades, informações, posições, são produtos de interpretações e
reflexões. O mesmo vale para manifestações e protestos, trabalhos em bairros,
etc. Nenhuma ação humana é desvinculada de consciência e esta é uma das
determinações desse processo. Um operário com mentalidade burguesa pode ser
favorável à greve para aumentar o seu salário, mas será contra ela quando
houver perigo de demissão. A sua posição está intimamente ligada às suas
concepções, valores, etc. Da mesma forma, no mesmo movimento, um operário
revolucionário pode defender a greve, mas faltar-lhe argumentos, informações,
etc., por não ter elementos de cultura suficientes para entrar no embate
cultural estabelecido. Um terceiro operário pode ser em certo momento contra a
greve, porque seu partido oferece essa diretriz e argumentos para tal, talvez
por motivos eleitorais ou de alianças políticas ou mesmo vínculo com sindicato
e/ou governo. Tal operário, pode, ao mesmo tempo, ser honesto e fazer isso por
acreditar nos seus camaradas de partido e faltar-lhe informações e elementos de
cultura para entender as reais motivações por trás da posição do seu partido.
Um militante que se limita a ir e apoiar, sem criticar, sem
levar elementos de cultura, informações, ferramentas intelectuais, no fundo
colabora muito pouco ou, em certos casos, acaba reforçando a hegemonia burguesa
no mesmo. Ele, tal como o último exemplo de operário, pode também ser honesto e
acreditar que isso é o que todos devem fazer, mas acaba contribuindo para que
as forças conservadoras, mesmo as disfarçadas de reformistas ou até “revolucionárias”,
acabem tendo supremacia no processo de luta.
Assim, a luta cultural é um elemento fundamental da luta de
classes, tanto na articulação imediata com as lutas operárias e sociais em
geral quanto indireta, no mundo da cultura. E o esclarecimento de sua
importância e de seu papel estratégico na luta pela transformação radical do
conjunto das relações sociais, abolindo o capitalismo e instaurando a
autogestão social, é parte dessa mesma luta cultural, bem como sua divulgação
significa levar elementos de cultura para a população em geral e para o
proletariado em particular. Em síntese, a luta cultural perpassa toda a
sociedade e a consciência de sua necessidade é um de seus momentos. Isso
significa, no fundo, dar prosseguimento ao que Marx e outros realizaram, mas de
forma mais refletida e consciente, no sentido de estar devidamente pensada e
inserida numa estratégia revolucionária.
Referências
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 1991.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Petrópolis: Vozes, 1988.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1989.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo,
Martins Fontes, 1983.
MARX,
Karl. Escritos de Juventud sobre el
Derecho. Barcelona:
Anthropos, 2008.
MARX, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito
de Hegel. In: A Questão Judaica.
São Paulo: Moraes, 1978.
MARX, Karl. O Manifesto dos Três de Zurique. Revista
Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. 2014.
VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. Ano
8, nº 95, abril de 2009.
VIANA, Nildo. Karl Marx – A Crítica Desapiedada do
Existente. Florianópolis: Bookess, 2014.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás.
[1]
Korsch (1977) já havia colocando, em sua luta cultural contra o pseudomarxismo,
que as ideias fazem parte da realidade e por isso interferem e é também uma de
suas determinações.
[2]
Segundo Marx, “frações inteiras da classe dominante são lançadas no
proletariado”, “também elas fornecem ao proletariado uma massa de elementos de
educação”. Nos períodos mais decisivos da luta de classes, “uma pequena parte
da classe dominante se desliga dela e se junta à classe revolucionária”,
“especialmente uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram alcançar uma
compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto” (MARX e ENGELS,
1988, p. 75). Hoje diríamos, uma parte da classe intelectual. De qualquer forma,
o que Marx chama aqui de “elementos de educação”, é o que posteriormente ele
chamará de “elementos de cultura”, tal como veremos adiante.
[3]
Marx realiza essa discussão no contexto das lutas culturais na Alemanha e por
isso aborda a emancipação dos alemães, que é parcial, devendo ser emancipação
humana, e, nesse contexto, sua linguagem ainda não é a do materialismo
histórico-dialético, tal como desenvolverá posteriormente, por isso ele usa,
por exemplo, as palavras “filosofia” e “teoria” indistintamente. Em obras
posteriores, na qual irá efetivar a crítica da filosofia, então abandonará o
uso desse termo como sendo expressão de sua posição.
[4] Segundo
Marx, cada classe social produz seus representantes intelectuais e literários,
que são aqueles que expressam intelectualmente seus interesses de classe.
“assim como os economistas são os representantes científicos da classe
burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária”
(MARX, 1989, p. 118).
[5] Os
valores autênticos podem, inclusive, ser integrados em discursos axiológicos e
ideológicos. Basta ver o uso de Durkheim do termo “solidariedade”, um valor
autêntico, num contexto discursivo ideológico e axiológico, no qual integra e
desfigura seu real significado.
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