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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

MARX E A BUROCRACIA


MARX E A BUROCRACIA
Marx and Bureaucreacy


Nildo Viana

Resumo:
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre a burocracia no pensamento de Karl Marx, objetivando entender a sua concepção no interior do conjunto do seu pensamento. Os procedimentos foram resgatar os textos de Marx nos quais ele faz referências diretas à burocracia e inseri-las no conjunto do seu pensamento, ou seja, no contexto do materialismo histórico e teoria do capitalismo. É neste contexto que a burocracia ganha significado no pensamento de Marx e torna-se compreensível sua abordagem da mesma. Nesse sentido, percebe-se que para Marx, a burocracia é uma classe social e ele identifica sua existência no aparato estatal e nas empresas capitalistas, sendo que já vislumbra sua existência também na sociedade civil.

Palavras-chave: Burocracia, classe social, Estado, Capital, Marx, Capitalismo.

Abstract:
This article focuses on the bureaucracy in the thought of Karl Marx, in order to understand its design within the range of his thought. Procedures texts of Marx in which he makes direct references to bureaucracy and insert them in all their thinking, ie, in the context of historical materialism and theory of capitalism were rescuing. It is in this context that the bureaucracy becomes meaningful in Marx's thought, and it is understandable their approach to it. In this sense, it is noticed that for Marx, bureaucracy is a class and it identifies its existence in the state apparatus and the capitalist enterprises, and also foreshadowing its existence in civil society.

Keywords: Bureaucracy, social class, State Capital, Marx, Capitalism.

Karl Marx escreveu diversos textos nos quais faz referências à burocracia, embora não tenha deixado nenhuma obra sistemática sobre este tema. Desde os seus escritos de juventude, ele abordou o problema da burocracia e voltou a ele ao analisar a empresa capitalista e o Estado burguês. O presente artigo visa reconstituir sua análise da burocracia no contexto de sua produção intelectual geral, ou seja, remetendo tanto ao método dialético e materialismo histórico, quanto à sua teoria do capitalismo, pois é no interior desse conjunto é que é possível entender sua concepção de burocracia. Isto quer dizer que não realizaremos uma análise cronológica de seus textos sobre esse tema, como geralmente se faz em relação a diversos outros casos, e sim buscaremos articular sua análise da burocracia no interior de seu universo conceitual e explicativo da história e do capitalismo.

Burocracia e História

Marx abordou a burocracia em diversos textos, sem deixar uma teoria articulada sobre ela. No entanto, além de suas análises sobre a burocracia no capitalismo, geralmente se atribui a ele uma discussão sobre esse fenômeno em outras sociedades, pré-capitalistas. É o caso, por exemplo, da suposta burocracia no modo de produção asiático. Contudo, uma leitura atenta dos textos de Marx referentes a este modo de produção deixa claro que ele não usa o termo burocracia nesse contexto (MARX, apud. GODELIER, 1966). Para entender o significado de um conceito no interior de uma teoria, ou seja, no bojo de um universo conceitual, é necessário ver seu uso efetivo e as diversas manifestações de seu significado, para saber, neste último caso, se é possível o mesmo significado se manifestar sob termos distintos. Essa análise semântica é muito pouco realizada e isso provoca diversas confusões. Marx não utiliza o termo burocracia para se referir às sociedades pré-capitalistas e por isso é necessário entender que em sua abordagem ela é um fenômeno da sociedade moderna, embora tivesse antecedentes semelhantes em sociedades passadas. Segundo os procedimentos do materialismo histórico, é necessário perceber a especificidade histórica (KORSCH, 1983) de cada sociedade e assim buscar compreender os fenômenos particulares no interior de uma totalidade (VIANA, 2007).
Para reconstituirmos a concepção de burocracia em Marx, iremos, em primeiro lugar, observar sua primeira análise do fenômeno, pois possui elementos esclarecedores que serão retomados sob outra forma e ampliados no contexto de uma maior precisão da especificidade histórica do capitalismo e, portanto, abrem caminho para sua elaboração teórica sobre o fenômeno burocrático.
A discussão de Marx sobre a burocracia se inicia com sua crítica da filosofia do direito de Hegel. Para Hegel, o Estado é a realização do “espírito absoluto” e por isso a burocracia é composta pelos “funcionários do universal”. Marx cita Hegel para depois refutá-lo: “Na classe média, a que pertencem os funcionários, reside a consciência do Estado e a mais eminente cultura. É por isso que ela constitui o fundamento de honestidade e inteligência do Estado” (HEGEL, apud. MARX, 1976, p. 68). Segundo Hegel, “o Estado tem o maior interesse a formação desta classe média” (apud. MARX, 1976). Marx afirma que para Hegel, “o poder governativo não será mais que a administração”, que "ele desenvolve sob o nome de burocracia” (MARX, 1976, p. 69). As “corporações” da sociedade civil representam esferas privadas. Acima de tais esferas, existem, segundo Hegel, representantes do poder governativo, que são os funcionários executivos e as autoridades constituídas em conselhos, cujo papel é salvaguardar os interesses gerais do Estado e da legalidade, e convergem para o monarca.
Essa concepção hegeliana aponta para a compreensão de que a burocracia é parte da classe média, uma classe geral, que representa os interesses universais em contraposição aos interesses particulares existentes nas classes privadas da sociedade civil. A burocracia, em Hegel, é perpassada por positividade, os funcionários são representantes do universal, os indivíduos precisam provar sua idoneidade para poder executar as tarefas do Estado, se submeter ao sistema de exames e sua função pública constitui um dever e por este motivo necessitam ser pagos. Marx acrescenta mais um aspecto da burocracia segundo Hegel:

a garantia contra os abusos da burocracia repousa, em parte, na hierarquia e na responsabilidade dos funcionários, e em parte nos direitos das comunidades, das corporações; a sua humanidade tem que ver com a 'formação moral e intelectual direta' e com a 'grandeza do Estado'. Os funcionários constituem a 'parte principal' da classe média' (MARX, 1976, p. 69-70).

A classe média, seria, na concepção hegeliana, a classe da cultura. Logo, os vínculos com o espírito absoluto e a realização da ética no Estado segundo a filosofia hegeliana, com a burocracia ficam explicitados. Marx acrescenta que Hegel apenas descreve empiricamente a burocracia e acrescenta que tal descrição remete, em parte, ao que ela realmente é e, em parte, a como ela diz ser. Ou seja, Hegel revela aspectos do que a burocracia realmente é e ao mesmo tempo a confunde com sua autoimagem ilusória, ou como diz Marx, sua “identidade imaginária”. Ele também não apresenta nenhum conteúdo da burocracia, mas apenas “algumas determinações genéricas da sua organização formal”. Obviamente, ela é, segundo Marx, o “formalismo do Estado” da sociedade civil. É neste contexto que ele começa a apresentar sua concepção de burocracia. Ela é a consciência, vontade e poder do Estado enquanto corporação. Nesse contexto é necessário compreender o que é corporação e sua relação com a burocracia. A corporação, tal como apontada por Hegel, é uma instância da sociedade civil, da vida privada. As corporações são organizações da sociedade civil. Segundo Marx, “A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado” (MARX, 1976, p. 70); “o mesmo espírito que cria a corporação na sociedade civil cria a burocracia no Estado”. Assim, Marx parte da distinção hegeliana de sociedade civil e Estado para mostrar como surgem corporações na sociedade civil que são seu equivalente da burocracia no Estado e como essa é uma espécie de corporação no Estado. Por isso a burocracia é uma corporação, particular e fechada, no Estado. “A burocracia é portanto obrigada a proteger a generalidade imaginária do interesse particular a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse geral, ou seja, o seu próprio espírito”.

Mas a burocracia deseja a corporação como um poder imaginário. É certo que cada corporação também possui esse desejo, para defender seu interesse particular contra a burocracia; mas deseja uma burocracia que lute contra outra corporação, contra outro interesse particular. A burocracia, corporação completa, triunfa sobre a corporação, burocracia incompleta (MARX, 1976, p. 71-72).

A corporação é uma tentativa da sociedade civil visando se tornar Estado. A burocracia é o formalismo do Estado e isso constitui o seu poder real, transformando o formalismo em seu conteúdo real.

Dado que a burocracia, de acordo com a sua essência, é o 'estado enquanto formalismo', também o é de acordo com a sua finalidade. A verdadeira finalidade do Estado surge portanto à burocracia como uma finalidade contra o Estado. O espírito da burocracia é o 'espírito formal do Estado'; logo, transforma em imperativo categórico o 'espírito formal do Estado' ou a falta de espírito real do Estado. Aos seus próprios olhos a burocracia é a finalidade última do Estado. Dado que a burocracia assume como conteúdo os seus objetivos 'formais', entra sistematicamente em conflito com os objetivos 'reais'. É assim obrigada a dar o formal como conteúdo e conteúdo como formal. Os objetivos do Estado transformam-se em objetivos da burocracia e os objetivos da burocracia em objetivos do Estado. A burocracia é um círculo ao qual nada pode escapar. Esta hierarquia é uma hierarquia do saber. A cabeça remete para os círculos inferiores a preocupação de compreender os detalhes, e os inferiores julgam que a cabeça pode compreender o geral. Assim se enganam mutuamente (MARX, 1976, p. 72-73).

Marx discorda de Hegel ao se iludir com a autoimagem da burocracia. Esse processo significa ficar em um nível ilusório, imaginário. A burocracia é o corpo de funcionários, o conjunto daqueles que exercem cargos de direção na estrutura estatal e o burocrata é o indivíduo, que vai criando seus interesses próprios dentro dessa estrutura:

A burocracia constitui o Estado imaginário, paralelo ao Estado real, é o espiritualismo do estado. Tudo tem, portanto, dois significados, um real e outro burocrático (o mesmo acontece com a vontade). Mas o ser real é tratado de acordo com o seu ser burocrático, irreal, espiritual. A burocracia 'possui' o ser do Estado; o ser espiritual da sociedade é sua propriedade privada. O espírito geral da burocracia é o segredo, o mistério, guardado no seu seio pela hierarquia e no exterior pelo seu caráter de corporação fechada. O espírito do Estado, se for conhecido por todos, assim como a opinião pública, surgem à burocracia como uma traição ao seu mistério. A autoridade é consequentemente o princípio de sua sabedoria e a idolatria da autoridade constitui o seu sentimento. Mas no seio da burocracia o espiritualismo transforma-se em materialismo sórdido, no materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma atividade formal rígida, de princípios e ideias e tradições rígidas. Para um burocrata tomado individualmente a finalidade do estado transforma-se na sua finalidade privada sob a forma de luta pelos postos mais elevados; é necessário abrir caminho. Começa por considerar a vida real como uma vida material, dado que o espírito desta vida tem na burocracia a sua existência para si, a sua existência peculiar. A burocracia deve portanto tornar a vida tão material quanto for possível. Em segundo lugar, e para esse burocrata, ela é uma vida material na medida em que se transformou em objeto da atividade burocrática; de fato, o seu espírito próprio escapa-lhe, a sua finalidade situa-se fora de si, a sua existência transforma-se na existência do bureau. O Estado já existe apenas sob a forma de espíritos burocráticos diferentes e rígidos, que mantêm entre si um vínculo de subordinação e de obediência passiva. A ciência real parece vazia, assim como a vida real parece morta; de fato, estas ciências e vida imaginárias apresentam-se como o ser. Portanto, a burocracia é obrigada a comportar-se jesuiticamente perante o Estado, quer este jesuitismo seja consciente ou inconsciente. Mas, quando o seu opositor é o saber, é também necessário que chegou à consciência e se transforme em jesuitismo intencional (MARX, 1976, p. 73-74).

Marx, no início, se refere à burocracia em geral e depois especifica o burocrata individual, ou seja, a burocracia é o corpo de funcionários e o burocrata é o indivíduo que faz parte desse corpo. Essa burocracia, esse conjunto de funcionários, se organiza sob a forma de hierarquia, formando uma “corporação fechada”, guardada pelo segredo e mistério ao mundo externo e que transforma a sua finalidade em finalidade do Estado, promovendo para si um processo de saber burocrático geral convivendo com diversos “espíritos burocráticos diferentes e rígidos”, vinculados pela subordinação e obediência passiva. Essas características da burocracia são as formas de relações sociais dos burocratas entre si e com o exterior.
Um último elemento, e mais importante, é que Marx define a burocracia como classe social. Ao contrário da concepção leninista e de todas as derivadas, que querem distinguir entre classes sociais e camadas (HARNECKER e URIBE, 1980; ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986)[1], o que é uma deformação do pensamento de Marx (VIANA, 2014), a posição de Marx sobre a burocracia, e outros setores, é de que se caracteriza como classe social. No interior da discussão hegeliana sobre classes privadas e classe geral (a burocracia, os “funcionários do universal”), Marx avança ao colocar a origem histórica da classe burocrática:

ao ocorrer um determinado progresso histórico, as classes políticas transformaram-se em classes sociais, e de tal modo que os diferentes membros do povo – assim como os cristãos são iguais no céu do mundo político e desiguais na existência terrestre da sociedade. A transformação propriamente dita das classes políticas em classes sociais realizou-se no seio da monarquia absoluta. A burocracia fazia valer a ideia da unidade contra os diferentes estados existentes no Estado. Mas paralelamente a essa burocracia do poder governativo absoluto, a distinção social das classes permanecia, no entanto, como uma distinção política no interior e paralela à burocracia do poder governativo absoluto. Foi a Revolução Francesa que consumou a transformação das classes políticas em classes sociais ou, por outras palavras, que transformou as diferentes classes da sociedade civil em simples diferenças sociais, diferenças na vida privada, sem importância na vida política” (MARX, 1976, p. 123).

A burocracia é uma classe na qual sua posição civil e política coincidem: “a classe propriamente dita em que coincidem a posição política e a posição civil é a dos membros do poder governativo” (MARX, 1976, p. 124). Assim, Marx concorda com Hegel com o fato da burocracia ser uma classe social, a classe “geral” ou “universal”, utilizando expressões hegelianas. Contudo, ele discorda de Hegel ao afirmar que o caráter “universal” da burocracia é ilusório, é mera expressão de sua identidade imaginária. Além de denunciar a identidade ilusória da burocracia, Marx também coloca que ela cria seus próprios interesses, e transforma seus interesses particulares em interesses do Estado e disso deriva todas as demais características da burocracia acima elencados.
Em síntese, a abordagem de Marx sobre a burocracia nessa obra é exemplar no sentido de colocar o processo de gênese histórica da burocracia, do seu caráter de classe e de que é não uma forma de administração, embora também o seja, e sim indivíduos reais, que compartilham o mesmo modo de vida, interesses e oposição a outras classes, submetida à divisão social do trabalho na sociedade capitalista. Em obras posteriores ele aprofundará a relação entre burocracia e sociedade capitalista, tal como mostraremos adiante.
Nesse texto, Marx já anuncia o seu conceito de classes sociais, que desenvolverá especialmente em A Ideologia Alemã. Segundo Marx, “A classe, de um modo geral, significa que a diferença, a separação, constituem a existência do indivíduo. A sua maneira de viver, trabalhar, etc., em lugar de fazer dele um membro, uma função da sociedade, forma uma exceção à sociedade e constitui privilégio seu” (MARX, 1976, p. 125). Essa diferença não é individual, pois se estabelece “como comunidade, classe, corporação, além de não suprimir a sua natureza exclusiva constitui-se até como sua expressão” (MARX, 1976, p. 126). Logo, o que futuramente será definido como modo de vida, aparece aqui como “maneira de viver e trabalhar”, e os indivíduos que pertencem a uma mesma classe social possuem isso em comum. Marx também aborda a contradição essencial, irreconciliável e a oposição na sociedade civil, ou seja, entre as classes sociais, e ainda discute, posteriormente, a questão dos interesses particulares, sendo este conjunto estabelecido pela divisão das classes na sociedade civil, ou seja, pela divisão social do trabalho, como irá colocar em suas obras posteriores. Assim, há nessa obra alguns elementos que mais tarde serão unificados e trabalhados no sentido de constituir o seu conceito de classe social.
De qualquer forma, o que é evidente é que a burocracia é apresentada como classe social, mesmo que ainda não esteja estruturado em sua forma final como conceito. E nas obras posteriores isso irá reaparecer. A burocracia estatal é uma classe, mas também há uma burocracia incompleta na sociedade civil. Esta, com o desenvolvimento histórico, tende a aumentar quantitativamente. O que Marx observa é a existência, num primeiro momento, da burocracia estatal e de elementos semelhantes na sociedade civil.
Contudo, não se deve pensar que em Marx a burocracia é algo metafísico, uma “entidade” ou ser abstrato pairando acima das relações sociais ou da história. A sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel tem justamente o objetivo de romper com a metafísica hegeliana e colocar na terra o que o filósofo alemão colocou no céu. Por isso é importante entender que, para Marx, a burocracia é um corpo de funcionários que constitui uma hierarquia e organização formal, que cria interesses próprios, transformando seus interesses em interesses do Estado. A especificação de quais são esses interesses próprios não é apresentada por Marx nesta obra, pois ele apenas apresenta os interesses individuais dos burocratas, a luta por cargos e por estar no cume da hierarquia. Nessa obra, a burocracia é fundamentalmente estatal. Mas uma leitura atenta observa que ele se refere à “burocracia incompleta” representada pelas corporações.
Daí vem a dúvida sobre o que significa “corporações”. No texto de Hegel, comentado por Marx, as corporações são expressões da sociedade civil, das classes sociais. A classe agrícola tem sua unidade na vida familiar e a classe universal (burocracia) no Estado, enquanto que, a classe industrial realiza a mediação entre ambas e está voltada para a particularidade e “por isso a corporação lhe é própria” (HEGEL, 1990, p. 220). Hegel afirma que a natureza do trabalho no interior da sociedade civil remete à particularidade e o divide em vários ramos. Por isso o membro da sociedade civil se torna membro da corporação e não ultrapassa os limites comuns dos “negócios e interesses privados da indústria” (HEGEL, 1990, p. 220).

Esta função confere à corporação o direito de gerir os seus interesses sob a vigilância dos poderes públicos, admitir membros em virtude da qualidade objetiva da opinião e probidade que têm e no número determinado pela situação geral e encarregar-se de proteger os seus membros, por um lado, contra os acidentes particulares, por outro lado, na formação das aptidões para fazerem parte dela. Numa palavra, a corporação é para eles uma segunda família, missão que é indefinida para a sociedade civil em geral, mais afastada como esta está dos indivíduos e das suas particulares exigências (HEGEL, 1990, p. 221).

As corporações, ao lado da família, são os principais elementos da sociedade civil. Elas possuem um caráter ligado à atividade profissional e ao que Hegel denomina “classe industrial”, que, no fundo, é a divisão entre a vida rural e a vida urbana, sendo nesta que ocorreria o processo de formação das classes sociais modernas e das formas de organização típicas delas, tais como as associações, clubes, etc. e por isso possuem membros, proteção aos mesmos e outras características de uma organização (mais tarde isso seria muito mais desenvolvido com os sindicatos, associações profissionais e patronais, etc.). É essas corporações que Marx chamaria de “burocracia incompleta”, antecedendo o futuro, no qual se formaria uma “sociedade civil organizada” e “burocrática”. Esse ponto de partida de Marx será desenvolvido posteriormente em outras obras, tal como demonstraremos a seguir.
Burocracia, modo de produção capitalista e Estado burguês

A burocracia, portanto, é um fenômeno da sociedade moderna segundo Marx. Resta, então, saber por qual motivo ela emerge no capitalismo. Marx, num primeiro momento, irá analisar a burocracia estatal e somente depois irá avançar no sentido de perceber a existência de uma burocracia civil. Vamos, no entanto, começar por sua análise da gênese da burocracia na sociedade moderna. Já colocamos que um de seus primeiros textos a relação entre burocracia e monarquia absolutista e sua consolidação após a Revolução Francesa. Mas não há, nessa obra, nenhuma explicação de sua razão de ser. Em outros textos, Marx avança nesse processo explicativo:

à medida que os progressos da moderna indústria desenvolviam, ampliavam e aprofundavam o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizada para a escravização social, de máquina do despotismo de classe (MARX, 2011, p. 14).

Em outro trecho, Marx retoma a mesma afirmação já presente em Crítica à Filosofia do Direito de Hegel:

O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura – órgãos forjados segundo o plano de uma sistemática e hierárquica divisão do trabalho – tem origem nos dias da monarquia absoluta, ao serviço da classe burguesa nascente como arma poderosa nas duas lutas contra o feudalismo. Contudo, o seu desenvolvimento permanecia obstruído por toda a espécie de entulhos medievais, direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais e de guilda e constituições provinciais. A escova gigantesca da Revolução Francesa do século dezoito levou todas estas relíquias de tempos idos, limpando assim, simultaneamente, o terreno social dos seus últimos embaraços para a superestrutura do edifício do Estado moderno erguido sob o primeiro Império, ele próprio fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeudal conta a França moderna (MARX, 2011, p. 14).

Por conseguinte, o desenvolvimento da burocracia estatal está intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo. A gênese da burocracia estatal se encontra no modo de produção capitalista e seu desenvolvimento. Ele gera uma divisão “hierárquica” e “sistemática” do trabalho e forma uma ampla burocracia no aparato estatal. Contudo, a relação entre modo de produção capitalista e burocracia não se limita ao processo de constituição da máquina burocrática estatal a partir da ampliação da divisão social do trabalho derivada das relações de produção capitalistas e das lutas de classes que são sua essência. No próprio processo de produção capitalista emerge pessoas com funções análogas à da burocracia estatal. A divisão social do trabalho geral e na manufatura (forma inicial da produção capitalista) possuem semelhanças, apesar de suas diferenças, e que uma tem influência sobre a outra, pois “na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho se condicionam reciprocamente” (MARX, 1988, p. 207).
Sem dúvida, Marx não usa a palavra “burocracia” para qualificar o que ele chama de “gerentes”, entre outros nomes. Ele usa a terminologia utilizada no próprio local de trabalho.

“se portanto a direção capitalista é, pelo seu conteúdo, dúplice, em virtude da duplicidade do próprio processo de produção que dirige, o qual por um lado é processo social de trabalho para a elaboração de um produto, por outro, processo de valorização do capital, ela é quanto à forma despótica. Com o desenvolvimento da cooperação em maior escala, esse despotismo desenvolve suas formas peculiares. Como o capitalista, de início, é libertado do trabalho manual, tão logo seu capital tenha atingido aquela grandeza mínima, com a qual a produção verdadeiramente capitalista apenas começa, assim ele transfere agora a função de supervisão direta e contínua dos trabalhadores individual ou de grupos de trabalhadores a uma espécie particular de assalariados. Do mesmo modo que um exército precisa de oficiais superiores militares, uma massa de trabalhadores, que cooperam sob o comando do mesmo capital, necessita de oficiais superiores industriais (dirigentes, managers) e suboficiais (capatazes, foremen, overlookers, contre-maîtres) durante que o processo de trabalho comandam em nome do capital. O trabalho de superintendência se cristaliza em sua função exclusiva. Comparando o modo de produção de camponeses independentes ou de artífices autônomos com a economia das plantações, baseada na escravatura, o economista político considera esse trabalho de superintendência como um dos fax frais de production [falsos custos de produção – NV]. Ao considerar o modo de produção que deriva da natureza do processo de trabalho coletivo e, com a mesma função na medida em que é condicionada pelo caráter capitalista e, por isso, antagônico, desse processo. O capitalista não é capitalista porque ele é dirigente industrial, ele torna-se comandante industrial porque ele é capitalista. O comando supremo na indústria torna-se atributo do capital como no tempo feudal o comando supremo na guerra e no tribunal era atributo da propriedade fundiária” (MARX, 1988, p. 250-251).

Aqui Marx não usou o termo burocracia e por isso pode parecer uma extrapolação, apesar de alguns autores entenderem que se trata de um fenômeno burocrático e uma manifestação da classe burocrática no processo de produção capitalista[2]. Nesse mesmo capítulo ele aborda a questão da divisão social do trabalho e na sociedade e como se pode ver no Dezoito Brumário, quando ele afirma que a burocracia estatal apresenta na sociedade a mesma divisão do trabalho existente na fábrica.
Os gerentes e outros setores dentro da fábrica ou de qualquer outra empresa ou instituição, exerce a mesma função de direção e uma parte realiza um processo de mediação entre sociedade civil e Estado. Contudo, Marx não abordou de forma mais ampla diversos aspectos destas relações, tão-somente esclarece a existência de “burocracias incompletas” na sociedade civil e posteriormente, observa a existência de uma nova classe social de trabalhadores assalariados improdutivos no processo de produção capitalista[3], chamados como gerentes e outros nomes, ao qual não denomina como burocratas. No entanto, reconhece neles características que atribuiu à burocracia estatal: “como simples soldados da indústria, são postos sob a vigilância de uma completa hierarquia de suboficiais e oficiais” (MARX e ENGELS, 1988, p. 73).
Nesse trecho se observa o papel de vigilância e hierarquia, função da burocracia estatal reproduzida no processo de produção capitalista. Nesse sentido, podemos concluir que se trata da burocracia da sociedade civil. Claro que em Marx não há uma definição clara a este respeito, tendo em vista que o não uso da palavra não é apenas uma questão terminológica, pois seria possível se pensar, devido à divisão social do trabalho, que a burocracia estatal (que seria, nesse caso, a única burocracia) seria uma classe e os gerentes e outros funcionários das empresas capitalistas com funções dirigentes fosse outra classe. Contudo, na divisão social do trabalho tudo aponta para uma função semelhante em instâncias diferentes da sociedade e que, portanto, poderia significar mais uma divisão no interior de uma classe social, tal como existem as frações da burguesia (industrial, comercial, agrária, etc.) e do proletariado (fabril, da construção civil, agrícola, etc.).
A sua discussão inicial sobre “corporações” e “burocracia incompleta” aponta para essa concepção, ou seja, que na sociedade civil e nas empresas capitalistas há a emergência de uma burocracia diferenciada, mas possuindo o mesmo caráter burocrático. Além disso, a burocracia estatal aparece como “corpo de funcionários”, com determinadas características, que aparecem na descrição que Marx realiza em algumas passagens de O Capital, bem como em outros lugares, como é o caso da citação anterior do Manifesto Comunista. O uso da expressão “funcionários” em algumas passagens de O Capital, ao lado de “gerentes” e outras expressões, também revela uma similitude entre os funcionários estatais e os das empresas capitalistas privadas. Outro elemento semelhante é o fato de que tanto uns quanto os outros estão a serviço do capital. Esse é um elemento fundamental que retomaremos agora ao discutir a abordagem da burocracia no Estado capitalista.
A respeito da burocracia no Estado capitalista, as passagens mais significativas encontram-se em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Guerra Civil na França e no Dezoito Brumário. O que ele afirmou na primeira destas obras, em 1843, ele retoma nas duas outras obras.

“Esse poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão, além de mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao mesmo da monarquia absoluta, com o declínio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilégios senhoriais dos senhores de terras e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos do poder do Estado, os dignitários feudais em funcionários pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos feudais em conflito entre si, o plano regular de um poder estatal suja tarefa está dividida e centralizada como em uma fábrica. A primeira Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes – locais, territoriais, urbanos e provinciais – a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara essa máquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de julho nada mais fizera do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho  dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado” (MARX, 1986, p. 114).

Marx retoma aqui a questão da origem da burocracia estatal e sua consolidação após a Revolução Francesa, bem como sua expansão com o crescimento da divisão social do trabalho no interior da sociedade capitalista. O processo histórico irá promover um crescimento cada vez maios da máquina burocrática estatal. Ela é uma manifestação de uma excrescência parasitária da sociedade civil e, no capitalismo, gera uma classe social parasitária, a burocracia, e essa está a serviço do capital[4]. Nesse contexto, é necessário entender que a burocracia (estatal) é parte das classes assalariadas improdutivas. Em seu texto sobre O Governo da Índia, Marx mostra como no caso de uma sociedade marcada pela exploração colonial, o governo local e outros aparatos da sociedade colonizadora (Junta de Controle, Tribunal Administrativo) estão sob o controle de uma outra burocracia:

“O verdadeiro Tribunal Administrativo e o verdadeiro Governo Interno da Índia, etc., é a burocracia permanente e irresponsável, ‘as criaturas das secretarias e as criaturas dos favores’, residentes em Leadenhall Street. Dominando um imenso império, temos, portanto, uma corporação, não formada, como em Veneza, por eminentes patrícios, mas por velhos e obstinados funcionários e outros que tais” (MARX, 1978a, p. 80).

O caso indiano apenas revela que a burocracia pode se dividir em diversos grupos e um desses possui o poder efetivo, ou seja, a direção efetiva dos negócios. Isso é comum na burocracia, com sua hierarquia, mas, nesse caso, há algo mais: há uma suposta hierarquia oficial e uma outra hierarquia, oculta. E, no fundo, é o aparato estatal central (da sociedade inglesa) que define qual burocracia comanda efetivamente (a Índia) e é o capital que determina as decisões estabelecidas, bem como o jogo de interesses das classes sociais privilegiadas (burguesia, burocracia, etc.)[5]. É por isso que Marx afirmará que “não é de admirar, portanto, que não exista nenhum governo que tanto tenha escrito e tão pouco tenha feito, como o Governo da Índia” (MARX, 1978a, p. 80). Os funcionários de Leadenhall Street, um setor da burocracia, transformaram “os administradores e a Junta em seus dependentes” (MARX, 1978a, p. 81) e o governo da Índia em “uma imensa máquina de escrever”, com suas 45 mil páginas de despachos a serviço do capital. A burocracia forma uma “corporação”, tal como Marx coloca no trecho citado, ou seja, como um “corpo” de funcionários com interesse próprios.
Contudo, o fundamental da contribuição de Marx é a percepção que, oriunda do modo de produção capitalista, a burocracia estatal emerge com o absolutismo e se consolida após a Revolução Francesa e, nesse processo, é não só produto do capital e serve a ele, mas também é reprodutor e incentivador do mesmo. O chamado sistema colonial, bem como o incentivo às manufaturas e depois para a grande indústria mostra o papel da burocracia estatal no processo de expansão capitalista.
Resta saber qual é interesse dessa classe social. Marx já havia colocado, como vimos anteriormente, que o interesse do burocrata individual é a luta por cargos, ascender na hierarquia. O interesse da burocracia como classe social é a sua reprodução[6] e sua autonomização, inclusive ao ponto de desejar superar a classe capitalista e implantar sua própria dominação[7], o que é mais visível na burocracia estatal.

A Presciência da Burocracia Civil
Se Marx percebeu e analisou a burocracia estatal de forma mais aprofundada e analisou a burocracia empresarial, nas fábricas capitalistas, de forma menos aprofundada, resta refletir sobre suas considerações sobre outras manifestações da burocracia civil. Contudo, antes de realizar tais reflexões é fundamental não esquecer que ele escreve num determinado contexto histórico e neste a burocracia civil está em status nacendi. A burocracia estatal já estava relativamente desenvolvida, contando com meio milhão de pessoas no caso francês, o que não passou despercebido por Marx, embora o seu crescimento quantitativo e sua importância social e política aumentasse no período histórico posterior ao vivido por ele. A burocracia empresarial já era vislumbrada nas fábricas e nas sociedades por ações, apesar de seu caráter ainda incipiente, principalmente em algumas fábricas, bem como as “sociedades anônimas” e o capital acionário ainda estivesse num estágio ainda rudimentar.
A sociedade civil, no entanto, é outra fonte de formação da burocracia. Na época de Marx, isso ainda era pouco visível. A burocracia na sociedade civil vai se expandir com o próprio desenvolvimento capitalista, que amplia a divisão social do trabalho, cria novas necessidades, novas organizações na sociedade. As instituições estatais vão produzir novas frações da burocracia, mas na época de Marx isso ainda era muito incipiente. As escolas ainda tinham forte influência da Igreja, tal como ele cita no caso da Comuna de Paris, o caso dos padres e sua relação com o ensino ainda presente e que os comunardos destruíram. As universidades, no sentido mais preciso e atual da palavra, surgem no século 19, e Marx não teve tempo de perceber (e nem teve relação mais profunda com ela) para ver que era fonte de mais burocracia. Contudo, ele teve a presciência[8] do crescimento e diversificação da burocracia estatal ao colocar que a monarquia legitimista na França acrescentou maior divisão do trabalho que acompanhava o mesmo crescimento da divisão do trabalho no interior da sociedade capitalista, tal como citado anteriormente, criando novos grupos de interesses e “novo material para administração do Estado”. Essa percepção de maior divisão social do trabalho é uma presciência do crescimento da burocracia civil. Esta presciência se manifestará com mais clareza no caso dos setores da burocracia civil gerados a partir do próprio desenvolvimento do movimento operário e que Marx pôde perceber justamente por estar próximo desse fenômeno.
Esse é o caso, por exemplo, da burocracia dos sindicatos e partidos nascentes. A luta dos trabalhadores contra a democracia censitária e pela participação proletária nas lutas políticas e por seus interesses imediatos (salários, condições de trabalho, etc.) acabam gerando formas de organização que mais tarde seriam os sindicatos e partidos políticos. Num primeiro momento, Marx fornece grande importância aos sindicatos e apoia a formação do Partido Socialdemocrata Alemão, que emergem após a segunda metade do século 19. Os sindicatos aparecem como formas de organização do proletariado e, portanto, elementos fundamentais na luta dessa classe e os partidos políticos, especialmente os próximos ao proletariado, aparecem como instrumentos de apoio dessa luta. Com o passar do tempo, no entanto, Marx vai mudar sua posição diante de sindicatos e partidos, no sentido de perceber seu processo de burocratização e seu distanciamento dos interesses de classe do proletariado. Na época histórica em que Marx escreveu sobre partidos e sindicatos, no entanto, o seu processo de burocratização estava, no caso dos últimos, se iniciando e não era tão visível assim, pois além do grau de burocratização ser infinitamente menor que assumiu posteriormente, o discurso (e, em menor grau, a prática) tinha, inclusive devido a isso, muito mais radicalidade e posição combativa do que hoje.
Em relação aos sindicatos logo Marx apresenta os seus limites. Eles não são organizações revolucionárias do proletariado, mas tão somente formas do proletariado lutar por seus interesses imediatos, especialmente negociar com o capital o preço da força de trabalho, ou seja, os salários. Embora tivessem um papel “educativo” por ser um instrumento de luta e por isso incentivar esta, não ultrapassavam os limites da sociedade burguesa e a exigência de melhores salariais é limitada, pois o que se deve realizar é a abolição do trabalho assalariado (MARX, 1980). É por isso que Marx previa a superação dos sindicatos por formas de organização mais amplas do proletariado. Com o passar do tempo, no entanto, o papel dos sindicatos na luta do proletariado vai ficando mais claro para Marx e por isso ele começa a vislumbrar seu caráter burocrático. Em carta a Schweitzer, em 1968, ele afirma:

Creio possuir tanta experiência sindical quanto qualquer um de meus contemporâneos; julgo por isso que o projeto dos estatutos está errado, a começar pelos princípios. Sem entrar aqui em detalhes, direi somente que esse tipo de organização, com toda a comodidade que oferece às sociedades secretas e à união dos sectários, contradiz a própria essência das trade-unions. Mas mesmo supondo que há possibilidade para essa organização, devo declarar que a 'toute bonement' considero-a francamente impossível, indesejável, sobretudo para a Alemanha. Aqui onde o trabalhador sofre desde o nascimento um adestramento burocrático, e tem fé nos superiores, o mais importante é que aprenda a caminhar sem o auxílio de ninguém (Apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40).

Marx acrescenta, na mesma carta, que tal plano é impraticável também sob outros aspectos, entre os quais a existência de poderes independentes de distintas origens na organização, tal como o comitê eleito por profissões, o Presidente (“uma figura completamente inútil, eleita por sufrágio universal”) e um Congresso eleito por localidades. Isso seria, segundo Marx, fonte de conflitos “por qualquer coisa” e conclui: “e é esta a organização que se destina às ações rápidas” (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40). E encerra suas observações mostrando o vínculo entre a mercantilização (“questões monetárias”) e burocracia (“poder ditatorial”):

Lassalle cometeu um erro profundo ao querer imitar 'ao eleito pelo sufrágio universal' (da constituição francesa de 1852). E isto para as trade-unions! Estas vêm-se obrigadas a se ocupar principalmente de questões monetárias; por isso, não tardaríeis em verificar que, nestas questões, se resume todo o poder ditatorial (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40).

Em 1878, em carta a Liebknecht, Marx observa a corrupção dos sindicatos através de sua direção:

Devido ao período de corrupção iniciado a partir de 1848, a classe proletária inglesa foi-se desmoralizando cada vez mais, e chegou por fim ao estado de simples apêndice do grande partido liberal, isto é, do partido de seus próprios opressores capitalistas. Sua direção passou inteiramente às mãos dos chefes venais das trade-unions e dos agitadores profissionais (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 61).

Aqui há uma presciência da burocracia sindical, ligado ao processo de corrupção e seu papel de servir de apêndice do capital. Engels também já havia colocado a questão da “aristocracia operária” (LOSOVSKI, 1989). No entanto, isso não é uma consciência clara do fenômeno da burocracia sindical e sim uma presciência e por isso o problema parece ser determinados dirigentes (embora se aponte a origem de classe dos mesmos e seu papel de “chefes”) e não a direção em si e por isso ele pôde afirmar em carta a Kugelmann: “os operários industriais têm que se livrar, antes de mais nada, de seus dirigentes atuais” (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 62).
Assim, os sindicatos eram considerados organizações do proletariado que possuíam a limitação de não ultrapassar as relações de produção capitalistas e ficar no nível dos interesses imediatos e, posteriormente, mostravam ser dominadas por “chefes venais” e direção ditatorial. Esse processo de burocratização era relacionado, corretamente, com o processo de subordinação da direção sindical ao capital, mas sem perceber claramente que é um processo derivado das relações sociais capitalistas e, portanto, que não se trata de “corrupção de indivíduos” e sim das organizações sindicais em sua própria lógica de existência a partir de certo estágio do desenvolvimento capitalista. A posição de Engels[9], que relaciona a “aristocracia operária” com o imperialismo inglês tende a desviar dessa percepção, embora existam relações entre esses processos, mas um não é mera consequência do outro, mesmo porque o processo de burocratização dos sindicatos acabou ocorrendo em todos os países, inclusive os submetidos ao imperialismo. O caráter incipiente da burocratização sindical é um dos elementos para a não percepção da burocracia sindical num primeiro momento e a mutação dos sindicatos abriu espaço para a sua presciência, que, no entanto, devido ao processo que era ainda muito distante do que ocorreria posteriormente, não se constituiu como uma consciência clara do fenômeno.
Uma outra manifestação da burocracia civil que Marx teve presciência foi o partido político. A crítica de Marx, nesse caso, teve dois obstáculos fundamentais para ser percebido. Um deles é o significado que ele forneceu ao termo “partido” em contraposição ao uso comum do termo, principalmente com a emergência dos partidos políticos modernos, que surgem com a instauração da democracia partidária (VIANA, 2003). O outro obstáculo foi a apropriação do pensamento de Marx por Lênin e sua “bolchevização”, que se tornou sua interpretação dominante, tornando óbvio o que nem sequer se manifestava em sua obra, uma concepção de partido político formal e burocrático. Contudo, para demonstrar a presciência de Marx sobre a burocracia partidária, apresentaremos alguns trechos de suas obras em que isso se manifesta.
O primeiro elemento pode ser visto no próprio Manifesto Comunista, no qual, na parte dedicada para criticar o socialismo e comunismo críticos-utópicos, Marx contextualiza seu período de nascimento, num momento em que o proletariado está em formação e, por conseguinte, emerge as seitas que querem substituir a atividade autônoma e espontânea do proletariado, bem como sua própria auto-organização, em planos e projetos inventados por eles. Se no período do socialismo utópico isto era relativamente progressista, no momento posterior, quando o proletariado já começa sua própria luta e ação espontânea, tais seitas se tornam reacionárias. “Embora os fundadores daqueles sistemas fossem sob muitos aspectos revolucionários, seus discípulos formam sempre seitas reacionárias” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97); “pouco a pouco caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores acima descritos […], deles se distinguindo apenas por um pedantismo mais sistemático e por uma fé fanática e supersticiosa na eficácia milagrosa de sua ciência social” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97).
Aqui Marx apresenta um processo de evolução histórica daqueles que, não sendo proletários, querem se aliar ao proletariado: do socialismo utópico ao socialismo conservador. Essa percepção, no entanto, já aponta para algo mais: a percepção da formação de “seitas reacionárias”, embriões de futuros partidos políticos, e já antecipa sua justificativa ideológica: ser portador de uma ciência social, o que legitima e justifica a direção do proletariado pelo partido. A fé fanática e supersticiosa na ciência social revela que a chave para entender a burocracia partidária posterior, tal como se observa em Lassalle, Kautsky, Lênin. A ironia de Marx aponta para a concepção de controle e recusa do movimento espontâneo e independente do proletariado: “por isso, opõem-se encarniçadamente a todo movimento político dos operários, pois ele apenas poderia provir de uma cega falta de fé no novo evangelho” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97).
Sem dúvida, aqui a percepção da existência de uma burocracia partidária ainda não se desenvolveu. Dois anos depois essa presciência avança ao tratar dos “conspiradores profissionais”. Estes, por serem “profissionais”, já mostram um processo de especialização e submissão à divisão social do trabalho. Eles são “alquimistas da revolução”, segundo os quais “a única condição para a revolução é que seu complô esteja organizado de maneira suficiente” (MARX, 1974, p. 76). “Ocupados em imaginar esses projetos, só pensam em derrubar de modo imediato o governo existente, enquanto guardam o mais profundo desprezo pela educação propriamente teórica dos operários, destinada a esclarecê-los sobre seus interesses de classe” (MARX, 1974, p. 76). Tais “conspiradores profissionais”, quando unidos e armados, se familiarizam com seus “prefeitos e oficiais”, formando um “corpo bastante turbulento”.
Porém, tal presciência se aprofunda com a formação dos partidos políticos propriamente ditos. A Crítica ao Programa de Gotha é uma recusa do programa do partido alemão e mostra as divergências entre as concepções marxista e lassalista (MARX, 2012). Contudo, além desse processo de divergências intelectuais, há algo mais e o próprio Marx esclareceu alguns destes pontos:

há quase quarenta anos, colocamos em primeiro plano a luta de classes como força motriz direta da história e, em particular, a luta de classes entre burguesia e proletariado como a mais poderosa alavanca da revolução social. Portanto, é-nos impossível caminhar junto com pessoas que tendam a suprimir do movimento esta luta de classes. Quando fundamos a Internacional lançamos em termos claros seu grito de guerra: ‘a emancipação da classe operária será obra da própria classe operária’. Não podemos evidentemente caminhar com pessoas que declaram aos quatro cantos que os operários são muito pouco instruídos para poder emancipar a si mesmos, e que eles devem ser libertados pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do partido toma uma atitude que corresponda às ideias destes senhores, se essa orientação é burguesa e não proletária, não nos restará mais nada para fazer, por mais lamentável que seja, do que debater abertamente e romper a solidariedade da qual demos prova até agora, na qualidade de representantes do partido alemão no exterior (MARX, 1978b, p. 30).

A posição de Marx é contra a concepção lassalista, mas, ao mesmo tempo, é uma oposição de fundo, pois a perspectiva de Marx é a autoemancipação do proletariado, tal como se vê na passagem acima citada e por isso é contrária à ideia de que os proletários devam ser libertados “pelas cúpulas”. Em Carta a Sorge, Marx afirma a existência de um espírito malsão nos chefes do partido e conclui:

O compromisso com os lassalianos conduziu a um igual compromisso com outras facções similares, particularmente (veja Most) com Dühring e seus 'administradores' e também com todo um bando de estudantes semiamadurecidos e doutores ultrassabios que querem dar ao socialismo uma forma 'ideal superior', ou seja, substituir sua base materialista (que exige um sério e objetivo estudo quando se quer operar sobre ela) por uma mitologia moderna com suas deusas da Justiça, da Liberdade, da Igualdade e da 'Fraternidade' (MARX, 1978b, p. 27).

Mas, voltando à Carta anterior, escrita quatro anos antes da morte de Marx, ele afirma que é um processo evolutivo normal que pessoas que tenham pertencido “à classe dirigente” e posteriormente se ligam ao proletariado forneçam elementos de educação. Contudo, Marx afirma que é necessário que forneçam “verdadeiros elementos de instrução” e não é isso que ocorre, pois o que fazem é “conciliar as ideias socialistas mal e mal assimiladas com os diferentes pontos de vista teóricos que esses senhores trouxeram da Universidade ou de outras partes” (MARX, 1978b, p. 29), são “criadores de ciências próprias” que logo buscam “ensinar” aos demais, e o partido pode perfeitamente passar sem estes elementos, “cujo primeiro princípio é ensinar aquilo que não aprenderam”. Uma outra exigência é que, quando pessoas provenientes de outras classes se aliam ao movimento operário, “não tragam consigo nenhum resquício de preconceitos burgueses ou pequeno-burgueses, mas que assimilem sinceramente a concepção proletária” (MARX, 1978b, p. 29). Essas pessoas, no entanto, “são impregnadas de ideias burguesas e pequeno-burguesas”. É um direito deles formar um partido pequeno-burguês, mas não estar num partido operário, onde eles são um “elemento estranho”.

Se existem razões para tolerá-los, e impedir que tenham qualquer influência na direção do partido e ter sempre em vista que a ruptura com essa gente é apenas uma questão de tempo. Esse momento parece, aliás, ter chegado. Não compreendemos como o partido ainda pode tolerar os autores deste artigo […]. Mas se essas pessoas chegam a tomar nas mãos a direção do partido, este será castrado e privado para sempre de seu ímpeto revolucionário (MARX, 1978b, p. 30).

A posição diante dos partidos vai se tornando cada vez mais crítica, sem, no entanto, criar uma concepção clara do problema da burocracia partidária, apenas uma presciência desse processo. No caso dos sindicatos, o seu papel limitado no processo de luta de classes e sua burocratização já são percebidos e no caso dos partidos esta percepção é menos visível. As razões disso remetem ao caso que os sindicatos ingleses, referência fundamental de Marx, já estavam num processo mais avançado de burocratização, pois se manifestava no país capitalista mais avançado da época, enquanto que os partidos políticos surgiam um pouco depois e sua referência fundamental era o Partido Socialdemocrata Alemão, em seu processo de nascimento e, portanto, com um grau de burocratização ainda pequeno. Outro elemento é que no que se refere aos sindicatos, havia uma separação cada vez maior entre suas concepções e a teoria revolucionária de Marx, enquanto que no caso do partido alemão havia influência do marxismo, principalmente na ala dos aliados de Marx e Engels que realizaram a fusão com os lassalistas (e que eram mais distantes de ambos do que eles pensavam e com o passar do tempo, os lassalistas foram substituídos pelos “marxistas”, que, no entanto, realizaram os temores de Marx sobre a posição dos chefes provenientes de outras classes sociais). Sem dúvida, o caráter ainda incipiente dessa burocracia civil nascente foi um dos motivos para tal, bem como, devido a isso, sua pouca importância política.
É por isso também que a classe burocrática também não foi percebida pelos pretensos seguidores de Marx, a não ser com raras exceções. As críticas ao Partido Socialdemocrata, por exemplo, eram direcionadas geralmente aos líderes por serem burgueses e pequeno-burgueses e isso vale até para os mais radicais e que depois romperam com a socialdemocracia e com o bolchevismo, como Rosa Luxemburgo (LUXEMBURGO, 1986; VIANA, 2013), Anton Pannekoek (2011) e outros. A grande importância política da burocracia partidária foi essencialmente o reformismo e por isso foi confundido com concepções burguesas e pequeno-burguesas. Até o sociólogo Robert Michels, em sua obra clássica sobre os partidos políticos, que tematizou a “lei férrea da oligarquia” e analisou a burocracia partidária, ainda caia em confusão ao colocar que os partidos socialistas criam “camadas pequeno-burguesas” (MICHELS, 1982) ao invés de nomear corretamente: classe burocrática ou uma fração específica dessa classe, a partidária.

A Abolição da Burocracia

A posição antiburocrática de Marx desemboca na tese da necessidade de abolição da burocracia. Essa posição está explicitada no conjunto da sua obra, desde as primeiras, tal como Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, até as suas últimas obras. Nessa primeira obra Marx aponta para o fim da burocracia:

A supressão da burocracia só é possível quando o interesse geral se transforma realmente em interesse particular e não, como afirma Hegel, simplesmente no pensamento, na abstração, onde tal só poderia acontecer quando o interesse particular se transformasse em interesse geral (MARX, 1976, p. 74).

A supressão da burocracia é aqui apresentada de forma abstrata, mas é reapresentada de forma mais concreta em Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, na qual esboça o materialismo histórico e desenvolve, pela primeira vez, sua teoria da luta de classes. Nesta obra afirma que toda classe social que aspira se tornar classe dominante deve apresentar seus interesses particulares como sendo os interesses gerais da sociedade, interesses universais. No entanto, uma vez conquistado o poder, tal classe manifesta seus verdadeiros interesses, particulares, a instauração de uma nova forma de dominação. Na sociedade burguesa, contudo, emerge uma classe social na qual interesses particulares e interesses universais são idênticos, e, portanto, a sua revolução significa a emancipação humana em geral. Esta classe social é o proletariado que ao se emancipar, liberta toda a humanidade, já que seu objetivo não é instituir uma nova forma de dominação e sim abolir as classes sociais em geral, inclusive a si mesma enquanto classe (MARX, 1968). Esta concepção estará presente em outras obras e sempre ele aponta para a criação de uma associação operária, livre associação de produtores ou autogoverno dos produtores (BERGER, 1977), como forma de superação do Estado e sua burocracia[10].
Em obras posteriores, como no Dezoito Brumário, A Guerra Civil na França, entre outras, retoma a ideia da abolição da burocracia estatal. Na primeira obra citada, ele afirma: que na “luta contra a revolução, a república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas, os recursos e centralização do poder governamental. Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina ao invés de destroçá-la” (MARX, 1986, p. 114). Já no célebre texto A Guerra Civil na França, sobre a revolução inacabada da Comuna de Paris, ele afirma que “Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o antigo governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos produtores" (MARX, 2011, p. 13).
Assim, a posição antiburocrática de Marx aponta para a abolição da burocracia estatal. No entanto, a ideia de “livre associação dos produtores” é basilar em seu pensamento, o que significa, evidentemente, a abolição da burocracia empresarial, mesmo porque esta existe para servir ao capital e com o processo de revolução proletária, esta deixa de existir. No que se refere aos sindicatos, Marx previa sua superação pela associação política revolucionária do proletariado, o que, em outros textos, chama de “proletariado organizado em partido político”, ou seja, como classe autônoma e independente das demais classes sociais. A sua concepção é a de que ao invés de lutar por melhores salários e diminuição da jornada de trabalho, a classe operária já começa a perceber que o necessário é abolir o salariato e se tal consciência se desenvolver no proletariado, os sindicatos “não gozarão muito tempo do privilégio de serem as únicas organizações da classe operária. Ao lado ou acima dos sindicatos de cada ramo da indústria surgirá uma união geral, uma organização política da classe operária em conjunto” (MARX, 1980, p. 43). Essa ideia da ação do proletariado como classe, ou em “conjunto”, a sua totalidade, perpassa toda a concepção de Marx sobre abolição da burocracia, seja estatal ou qualquer outra. É por isso que ele também afirma, ao criticar os “alquimistas da revolução” que a lição que a corrupção destes deixou ao proletariado é que “não basta uma parte do proletariado”, pois “só o proletariado em seu conjunto pode levar a cabo” a revolução moderna (MARX, 1974, p. 77).
Nesse sentido, a ideia do proletariado auto-organizado, como classe independente e autônoma (o que às vezes Marx expressa como “organizado em partido político”, ou como “classe”), através de sua “união geral”, de sua “associação”, é que se pode abolir o capitalismo e a máquina estatal burocrática. E isso vale para as demais manifestações burocráticas da sociedade civil.
Considerações Finais
O presente texto fez o percurso de mostrar a análise marxista da burocracia numa época de pouco desenvolvimento dessa classe. Marx conseguiu perceber e apontar a existência da classe burocrática, mas não conseguiu prever todas suas manifestações futuras e nem conseguiu identificar suas primeiras formas de existência na sociedade civil de forma clara e consequente, inclusive devido seu caráter incipiente.
A obra de Marx foi produzida durante a fase do capitalismo liberal, comandado pelo regime de acumulação extensivo[11], período que antecede a verdadeira burocratização na instância da sociedade civil, criando a “sociedade civil organizada”. A formação da burocracia na sociedade civil ocorria de forma incipiente, constituindo a “fase A”, segundo periodização de Lapassade (1989). A consolidação da burocracia na sociedade civil, através de partidos e sindicatos, entre outras organizações, ocorre durante a chamada “fase B” (LAPASSADE, 1989). Esse processo ocorre no capitalismo oligopolista, comandado pelo regime de acumulação intensivo, período em que Marx viveu parcialmente. É durante esse regime de acumulação que expressa uma nova fase do capitalismo é que ocorre o processo de consolidação da burocracia, ou a “fase B”, segundo Lapassade (1989).
A concepção de Marx sobre a burocracia aponta para a formação de uma nova classe social da sociedade capitalista, cuja primeira e fundamental manifestação é a burocracia estatal. A burocracia empresarial é percebida também e uma presciência de outras formas de manifestação da burocracia na sociedade civil ocorre, principalmente no caso de partidos e sindicatos. A burocracia, como classe, tem o interesse em se perpetuar e reproduzir, e, em alguns momentos históricos, busca implantar seu próprio domínio. Entre suas características formais está a disputa por cargos, o segredo, a hierarquia, etc.
A burocracia é uma classe auxiliar da burguesia, pois é esta que, no fundo, detém o poder real, a palavra final, além de estar a serviço desta. Enquanto classe social da sociedade capitalista, a burocracia é uma classe de trabalhadores assalariados improdutivos. A sua renda vem do Estado ou do capital. A partir da teoria marxista da produção de mais-valor, que ocorre no processo de produção capitalista, e seu processo de realização no mercado, o que promove a repartição do mais-valor global, temos as raízes da renda das classes sociais improdutivas, tal como a burocracia. Os seus rendimentos são oriundos do mais-valor produzido pelo proletariado, ou seja, do processo de exploração capitalista. A realização do mais-valor no mercado e, por conseguinte, a repartição do mais-valor global promove a sustentação das classes improdutivas (VIANA, 2014).
A burocracia é produto da ampliação da divisão social do trabalho e se amplia com o desenvolvimento desta. Ao ser uma classe que serve ao capital, obviamente que não tem a simpatia de Marx, que a considera uma “excrescência parasitária”. As diversas críticas de Marx deixam claro sua oposição à burocracia. A sua defesa da abolição da burocracia deixa isso mais que evidente. Desta forma, a posição de Marx diante da burocracia nada tem a ver com as interpretações dominantes do seu pensamento. A conclusão final só pode ser, após uma leitura rigorosa do pensamento de Marx, a de que ele é essencialmente antiburocrático.

Referências

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[1] Até mesmo não leninistas acabam reproduzindo essa concepção equivocada ao submeter-se à interpretação dominante do pensamento de Marx: “Se bem que a burocracia seja dotada de uma autonomia capaz de tornar a sua acusação politicamente relevante, pelo menos em certos momentos, ela nunca é considerada como classe social propriamente dita, e ainda menos como classe social dominante” (LOPES, 1973, p. 5).
[2]             Para citar apenas um exemplo: “Marx insiste no Tomo III de 'O Capital' sobre a aparição dos diretores, burocratas, fiscais, na grande indústria, é o caso de perguntar se todos esses grupos não podem unificar-se e se, mesmo sob a ditadura do proletariado, essa classe virtual não poderia tornar-se parcial ou totalmente independente?” (GURVITCH, 1960, p. 115).
[3]             “Todo o trabalhador produtivo é um assalariado mas nem todo assalariado é um trabalhador produtivo” (MARX, 1982, p. 111).
[4]             A crítica de João Bernardo a Marx, nesse quesito (assim como em outros, mas isso será discutido em outra oportunidade), é totalmente equivocada. A suposta “não-concepção” dos gestores em O Capital é destituída de sentido, a começar pelo isolamento de uma obra, que focaliza o modo de produção capitalista e não a sociedade capitalista como um todo, o que incluiria o Estado, que ficou incompleta, já que só o primeiro volume foi publicado em vida por Marx. João Bernardo afirma que “procurarei definir se Marx faz ou não corresponder ao Estado uma camada social própria” (BERNARDO, 1977, p. 41) e ao isolar O Capital, desconsiderar seu caráter incompleto (inclusive esquecer ou desconhecer que Marx pretendia escrever um capítulo sobre o Estado e que não o pode fazê-lo devido esta incompletude da obra), mostra apenas que o seu compromisso com a verdade é passível de questionamento.
[5]             “Ora, é evidente que o espírito do Tribunal Administrativo tem que penetrar toda a Administração Indiana Superior, treinada, como é, nas escolas de Addiscombe e Haileybury, e nomeada, como é, pelo seu patrocínio. Não é menos evidente que este Tribunal Administrativo, que tem que distribuir, ano após ano, nomeações no valor de cerca de £400 000 entre as classes superiores da Grã-Bretanha, encontrará pouca ou nenhuma oposição por parte da opinião pública dirigida por essas mesmas classes” (MARX, 1978a, p. 78).
[6]             “A oligarquia envolve a Índia em guerras, de forma a arranjar emprego para os seus filhos mais novos; a plutocracia confia-a ao maior licitador; e a burocracia subordinada paralisa a sua administração e perpetua os seus abusos, como condição vital para se perpetuar a si própria” (MARX, 1978a, p. 83).
[7]             “Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a Restauração, sob Luís Felipe, sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio” (MARX, 1986, p. 114).
[8]             Presciência aqui é um desenvolvimento da ideia de “preconcepção”, que seria uma intuição ou uma manifestação ainda não claramente consciente de uma percepção da realidade. Ao invés de usar o termo “inconsciente”, que poderia provocar confusão com o uso psicanalítico dessa palavra, preferimos o termo presciência. Em síntese, presciência é uma consciência parcial e intuitiva que precede uma consciência clara do fenômeno, o que pode ocorrer com um pensador antes dele mesmo avançar no desenvolvimento de sua consciência ou antecipar de forma rudimentar o que outros desenvolverão. A presciência pode ser mais ou menos elaborada, mais ou menos desenvolvida, dependendo do caso. Pode ser também uma consciência não-teórica que abre espaço para o desenvolvimento de uma teoria, sua forma mais clara e desenvolvida, pois já consciente, apesar de sob uma forma ainda rudimentar, ou envolvido em preceitos ideológicos ou outras formas de consciência imaginária ou, ainda, muito preso ao imediato e particular.
[9]             Não custa recordar aqui, que, ao contrário da maioria dos escritos sobre Marx, principalmente na antiga União Soviética e para determinadas concepções políticas (incluindo a obra aqui citada de Losovski), que confunde Marx com Engels e interpreta o primeiro a partir do que diz o segundo, partimos da concepção de que embora houvesse pontos em comum entre ambos os autores, também existiam diversas diferenças e que nenhuma interpretação do primeiro pode ser feita apelando para escritos do segundo, a não ser quando fica explicitado e fundamentado que há concordância entre ambos. As divergências entre Marx e Engels já foram tematizadas por diversos autores (MONDOLFO, 1956; LABRIOLA, 1979).
[10] Há uma interpretação dominante sobre a obra O Manifesto Comunista, segundo a qual Marx faria uma defesa do estatismo e, segundo alguns, até mesmo do burocratismo. A fonte de tal interpretação dominante é Lênin, que transforma até mesmo o texto de Marx sobre a Comuna de Paris em obra que defende a necessidade da burocracia (LÊNIN, 1987). Contudo, apesar de certa ambiguidade e imprecisões, principalmente em relação à questão do Estado, não há nenhum estatismo nessa obra, muito menos se entender no sentido da defesa de um processo no qual se mantenha a burocracia estatal, pois Marx sempre defende a perspectiva da luta de classes e do proletariado, como classe social, como o concretizador da revolução e não grupos ou partidos.
[11] Existem diversas teorias que trabalham com a tese dos regimes de acumulação, mas apenas utilizamos a que consideramos mais adequada (VIANA, 2009; VIANA, 2003; BRAGA, 2013).
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