A RECEITA NEOLIBERAL DO GOVERNO TEMER
Nildo Viana
Os tempos neoliberais começaram, no Brasil, com o governo
Collor e se mantém até hoje. Tentam maquiar, mudar o nome (inclusive inventaram
um suposto “neodesenvolvimentismo”), usar enfeites e disfarces, mas sempre são
as políticas adequadas para a reprodução do regime de acumulação integral,
garantidor do prosseguimento do capitalismo. O atual governo continua com as
políticas neoliberais do governo anterior, o que não é novidade. Mas, apesar
de não ser novidade, é preciso entender a receita e suas consequências,
incluindo seus efeitos colaterais.
O governo Dilma prestava solidariedade ao capital e oferecia
fraternidade aos trabalhadores. A solidariedade era o disfarce de lucros
indisfarçáveis e a fraternidade era as migalhas que caíam da mesa dos
capitalistas travestidas de assistencialismos, completada pela prevaricação e pela
cooptação de movimentos sociais, uma “fraternidade seletiva” que permitia a autoajuda interburocrática.
Os governos petistas geraram o reino da burocracia e por
isso imaginaram que tinha a propriedade enquanto tinham, na verdade, apenas a
posse. O “Estado sou eu”, gritou o Rei Lula e depois a Rainha Dilma. A
burocracia governamental, que se achava “real”, contagiou a burocracia estatutária
com o vírus da autonomização[1]. As
luvas de pelica apareceram em cena, bem como os bastidores da luta interburocrática
entre os eleitos, escolhidos não pela vontade divina e sim pela eleição
presidencial, e os merecedores, aqueles que mereceram sua posse por ter passado
pelo “batismo burocrático do saber” (MARX, 1979) . O duelo burocrático
pela propriedade do reino, sendo que o reino não é e nem tem propriedade, logo
foi substituído pelos gráficos da acumulação de capital. A briga dos locatários
foi interrompida pelo locador.
O governo Dilma se viu, então, diante da triste (para ele,
ou, para agradar os moralistas progressistas, para elx ou el@, afinal as
palavras não têm sexo, apesar de também serem vítimas de violência) realidade ao
descobrir que não tinha a propriedade e sim a posse e que seria, assim,
desalojada. A caminhada do Palácio do Planalto para o Palácio da Alvorada
poderia ter sido uma “pedalada”, mas para evitar a “mídia golpista” aplicou
esse golpe na mídia, e o despejo definitivo só foi adiado, pois nem o locador,
nem os eleitores, nem os irmãos inimigos (os burocratas permanentes, que só são
desalojados quando se aposentam ou morrem), querem sua presença. A presença da
rainha foi dispensada, quando a maioria percebeu que não existia reino algum e
assim a ilusão real apareceu como real ilusão.
No tempo das vacas gordas, o governo Dilma era solidário e
fraterno. As classes privilegiadas e as classes desprivilegiadas suportavam o
coxão mole e o coxão duro, respectivamente. A lógica disso era: enquanto houver
churrasco na mesa, por mais medíocre que seja a vida, há paz entre as classes e
sossego para o governo.
No tempo das vacas magras, capitalistas e trabalhadores
querem “virar a mesa”. Vacas magras significa menor quantidade e qualidade de
carne, assim como crises significam menor qualidade de vida e quantidade de
dinheiro. O gerente do restaurante já não serve um bom churrasco e o atendimento
se tornou muito lento. Os capitalistas, em suas mesas VIP, reclamam da lentidão
do rodízio e comentam enquanto esperam: “essa espelunca não está nos servindo
direito”. Os trabalhadores, por sua vez, reclamam da lentidão comparando-a com
a do governo: “está demorando mais do que a troca de ministros”. Esses estavam
mais descontentes, pois o seu rodízio não era só lento, mas ao invés de coxão
mole começou a aparecer só pão de alho e provolone. Na mesa do tablado superior,
que antecediam as mesas VIP, palco para artistas, cientistas e demais
intelectuais e seus amigos burocratas, que ficavam geralmente nos bastidores,
“mexendo com seus pauzinhos”, o provolone era apenas recheio de contrafilé.
Eles estavam tão perto dos VIPs que nem aceitavam mais capa de filé.
A gerente do restaurante, que gostava de inovar e anunciava
que serviria lula ao povo, foi surpreendida, em 2013, com a revolta do ônibus.
Ela, como se sentia da realeza, reagiu como a Rainha Maria Antonieta: “se não
tem coxão duro, então comam pão de alho” e “se não tem ônibus, vão de carroça!”.
A rainha era tão engraçada que às vezes era confundida com o bobo da corte. O bobo
da corte era tão sem graça que nunca foi confundido com a rainha. A diferença entre
reis e palhaços é que uns são pagos para serem engraçados e outros são engraçados
gratuitamente. A rainha declarava publicamente seu amor à mandioca e ao milho,
que não eram símbolos fálicos nem atos falhos, mas expressão da fina flor da
intelectualidade brasileira metamorfoseada em burocracia governamental. No
reino dos intelectuais, desde o príncipe-sociólogo até a rainha-economista,
nunca se viu tão pouca inteligência! Se o saber é poder, os intelectuais no
governo são déspotas ignorantes sem saber. Duplamente sem saber! O prefeito de
São Paulo que o diga! Se soubesse, ele diria! Pensar é diferente de governar,
mas quando o pensamento é confuso, o governo é obtuso.
Quando os clientes viram a mesa em uma churrascaria ou
restaurante, o gerente é demitido. Nesse dia descobre que gerenciar não é o
mesmo que ser proprietário. A burocracia civil quando se torna burocracia
governamental, quer ser vitalícia, e a burocracia estatutária, que é vitalícia,
não quer se misturar com a burocracia civil, pois sabe que sua posse tem
estabilidade e por isso sua fidelidade é com quem realmente toma as decisões.
Não servem aos tintureiros que pintam as celas para embelezar a fealdade ou
transportam os presos e sim aos titereiros, que manipulam e comandam indiretamente.
É melhor trocar o gerente e reabrir o restaurante sob nova direção do que falir
por falta de alguma direção. Afinal, quem não quer ser realmente fraterno com
os trabalhadores, mas quer ser escolhido por eles, não tem seu apoio. Da mesma
forma, quem quer ser solidário com os capitalistas mas não quer fazer o serviço
rápido e completo, não poderá ser seu empregado.
Assim, um novo governo assumiu. Os de cima e os de baixo
gostaram, só uma parte dos que ficam no meio é que acharam que foi um “golpe”. Aí
apareceu o golpe da ladainha, que era a ladainha do golpe. Nesse caso, não
houve golpe. A ladainha ficou só entre os iniciados em ladainhas vazias. Os de
baixo estão pouco se lixando para as tramoias palacianas, seja do palácio que
funciona ou do que reclama, e os de cima querem gerentes que realmente
gerenciam e saibam de quem são as prioridades. As prioridades não podem ser as
eleições, as escolhas, e por isso o foco não deve ser nos que escolhem. As
prioridades devem ser para os que mandam, no final das contas. Quem manda são
aqueles que pagam as contas, mesmo que com o dinheiro dos trabalhadores. Não
interessa quem roubou, interessa é quem pagou. Se quem roubou e pagou são a
mesma pessoa, tanto faz, o roubado será novamente roubado e o ladrão vai
novamente roubar e pagar. Quem paga sempre tem razão.
Os capitalistas roubam, mas pagam; os trabalhadores são
roubados; os burocratas gerenciam e os intelectuais enfeitam e por isso ficam
com parte do roubo para eles. A isso se chama divisão social do trabalho, uma
lei férrea que os intelectuais progressistas, na ânsia do sucesso e ficar na
moda, recusam. Mas pelo menos eles estão “fazendo o seu trabalho”, isto é,
embelezando o que é feio. Da mesma forma, a burocracia governamental que recusa
essa lei tem sua queda tão garantida quanto a do intelectual pós-estruturalista
que pula do vigésimo andar por achar que a lei da gravitação universal é apenas
um discurso mentiroso da “cultura ocidental”. Quando ele se espatifa no chão, a
sua morte é apenas um acidente cultural, assim como quando caem determinados
governos, pois é apenas um crime doloso da cultura “machista” e “golpista”.
O novo gerente, Michel Temer, não tem o que temer. Afinal,
ele não saiu da ralé como o rei anterior, nem é rainha das gafes, como sua
antecessora. É um “nobre”, vindo direto das classes privilegiadas e com o
requinte intelectual destas. Mas um gerente precisa saber gerenciar, mais do
que ter “berço”. Ele precisa de uma equipe competente. E o que se esperava era ele cercado de
intelectuais requintados e o que ocorreu foi ficar cercado por ideólogos e
burocratas requentados! Nesse caso, houve
a negação da negação hegeliana: o real não é racional! O valor do real é
superior ao valor do ideal, seja nos bancos ou nos governos brasileiros. O real
é a síntese maior da brasilidade. Cruzeiros e cruzados foram superados pela
força do real. Retornemos ao mundo real. O Governo Temer tem uma receita,
recordando a genialidade da “bruxa petista”[2]. O
seu partido (PMDB) já tinha apresentado o manual da gerência e por isso o novo
governo tem uma receita. O remédio é amargo. No entanto, ele é mais amargo para
uns que para outros, assim como somos todos iguais, embora “uns mais iguais que
os outros”.
O governo anterior, no tempo das vacas gordas, com
manutenção de um determinado ritmo de acumulação de capital, o famigerado
“crescimento econômico”, conseguiu se manter. No tempo das vacas magras, época
de desaceleração do ritmo de acumulação de capital, ele não fez o que tinha que
fazer, pois os seus intelectuais não liam Marx e sim Kalecki e os neoliberais.
Se tivessem lido Marx, saberiam que a acumulação de capital gera empregos, renda,
etc. e por isso não é interesse apenas do
capital. É também interesse dos trabalhadores. No caso destes últimos, é um
interesse imediato e, simultaneamente, contraditório. É imediato por precisar da
continuidade da acumulação acelerada para não gerar crises, desemprego,
inflação, etc. É contraditório, pois a acumulação só existe através de sua
exploração e sua opção é aceitar e apoiar a reprodução ampliada do capital cada
vez mais intensa ou recusar e lutar contra o capitalismo.
Contudo, o modo de produção capitalista gera crises cíclicas
e os regimes de acumulação possuem ciclos e por isso há épocas de vacas gordas
e vacas magras. Se tivessem lido Marx, saberiam que a unidade na diversidade de
interesses em momentos de crise se torna lutas diversas sem nenhuma unidade. É
por isso que os governos progressistas só sobrevivem até começar as crises ou
quando são jogados no poder para controlar os trabalhadores e evitar que a
crise gere uma revolução. A história prova isto e se as pessoas aprendessem
mais com as lições da história se iludiriam menos com o seu futuro histórico. Quando
os negócios vão mal, os proprietários mudam os gerentes.
A imagem do novo governo é boa (tem “berço”, “discurso”, etc.),
mas não se reflete no espelho, tal como a de Drácula dançando no salão. O
espelho é a percepção dos trabalhadores, que não enxergam nada de novo ou de
bom. O governo Temer compensa sua falta de imagem no espelho com a aparência de
um “doce vampiro” saído de música de Rita Lee. Ele vem sugar até a última gota
de sangue dos trabalhadores. Ele é o médico-vampiro responsável pela receita
neoliberal. Ele, como bom médico, vem para “curar” a crise. Mas ele, como bom
vampiro, ao invés da tradicional mordida liberal, prefere a moderna transfusão
de sangue neoliberal. A medicina neoliberal e vampiresca faz jorrar mais
rapidamente o dinheiro do bolso dos trabalhadores para o cofre dos
capitalistas.
O novo gerente vai encontrar a oposição e competição, cada
vez mais fracas, da gerencia anterior e seus apoiadores, mas também vai
encontrar uma oposição cada vez mais fortes dos doadores involuntários de
sangue: os trabalhadores. Pelo menos no início do governo enfrenta também parte
da burocracia estatutária (poder judiciário e polícia federal) entusiasmados
com sua autonomização e com o sucesso televisivo e pode demorar para “cair a
ficha” de que o alvo já foi atingido e agora é hora de “normalidade”. Quando se
concretizar o impeachment definitivo
e a burocracia estatutária entender que é estável e vitalícia mas não é
inatingível e que os proprietários já estão ficando descontentes com essa
balbúrdia jurídica e repressiva, o vampiro sairá do seu caixão e finalmente
poderá fazer o que tem que fazer. Se ele não fizer, outro fará, só que
demoraria mais tempo. A acumulação de capital e a classe capitalista não têm
tempo e paciência para esperar. Não
interessa quem terá que comprar ou ameaçar, o que interessa é que se faça o que
tem que ser feito.
Quem não está satisfeito ou deve se resignar ou deve
apresentar uma real alternativa. A alternativa progressista já faliu, pois mostrou
sua incapacidade no governo. Vários mandatos e vários desmandos. Os tintureiros
queriam ser titereiros e terminaram triturados. O governo Dilma mostrou-se incapaz,
por sua incompetência e também por ser populista (ou seja, eleitoreiro e querer
grudar no poder e se transformar em burocracia vitalícia) já mostrou que não
interessa nem para a classe dominante nem para as classes desprivilegiadas. O neoliberalismo
não precisa mais do neopopulismo. A era do neoliberalismo neopopulista petista
já passou e não é alternativa. O seu fim chegou.
O novo governo tem a receita certa para a classe dominante,
só precisa remover os dois obstáculos temporários e enfrentar o grande
obstáculo: as lutas dos trabalhadores. De nada adianta defender uma ponte sem
futuro. No meio da ponte há uma pedra, que pode ser removida. No final da ponte
há o futuro. E aí poderemos ver o que acontecerá: a vitória do capital, o
sanguessuga dos trabalhadores, ou a transformação social, o fim dos vampiros,
gerentes, burocratas, capitalistas e outras bestas geradas por uma sociedade
bestificada.
Referências
MARX, K., 1979. Crítica da Filosofia do Direito
de Hegel. Lisboa: Estampa.
VIANA, N.,
2015. Burocracia: Forma Organizacional e Classe Social. Marxismo e
Autogestão, 2(3).
[2]
Para conhecer a receita da bruxa petista: http://votonuloautogestionario.blogspot.com.br/2014/10/as-lutas-sociais-no-brasil-atual.html
e essa não deve ser confundida com “vassoura-de-bruxa” petista que foi do norte
para a Bahia, segundo a “respeitada” Revista Veja.
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