O CAPITALISMO ESTÁ EM CRISE?
Nildo Viana
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia; Autor de diversos livros,
entre os quais, O Capitalismo na Era da Acumulação Integral.
O capitalismo está em crise? Essa é uma velha questão, pois
desde que alguns intérpretes do pensamento de Karl Marx pensaram no processo
social revolucionário e no desenvolvimento do capitalismo, sempre anunciaram a
crise do capitalismo. Isso só é comparável em repetição com a chamada “crise do
marxismo” (VIANA, 2008). No entanto, para entender se há mesmo uma crise do
capitalismo, é necessário esclarecer o significado do termo crise e uma análise
do capitalismo contemporâneo para ver se é possível tal entendimento. É o que
faremos a seguir.
O termo crise já foi discutido e definido por diversas
concepções. Os gramscianos reproduzem a ideia de Gramsci, segundo a qual a
crise ocorre quando o velho está em decadência e o novo ainda não pode surgir.
Uma concepção extremamente abstrata e que nada acrescenta para a compreensão do
termo. A crise é um processo no qual um ser encontra dificuldades crescentes para realizar sua reprodução (VIANA,
2008), ou, mais exatamente, quando ocorre um momento em que se manifesta uma
dificuldade radical para sua reprodução ou existência. Nesse sentido, a
categoria crise remete ao momento em que se torna possível o fim de algo,
quando sua reprodução é ameaçada e se for levada até ao fim, significa sua
superação. Crise é uma categoria do pensamento e por isso não é exatamente um
conceito (VIANA, 2007), pois é uma ferramenta intelectual para pensar a
realidade, embora não exista em si mesma. Por isso, a crise é sempre de alguma
coisa. No caso do presente artigo, nos
interessa a ideia de crise do capitalismo. Por isso é importante entender
também o que é o capitalismo.
O capitalismo é um termo que pode expressar o modo de
produção capitalista ou a sociedade capitalista. No primeiro caso, o termo
remete ao modo de produção dominante na sociedade moderna, caracterizado pela
produção de mais-valor, a forma de exploração específica dessa sociedade. No
segundo caso, significa a sociedade na qual o modo de produção dominante é o
capitalista, ou seja, o todo da sociedade moderna engendrado por esse modo de
produção. Quando se aborda a crise do capitalismo se pensa geralmente nesses
dois elementos, mas geralmente uma crise da sociedade moderna em conjunto, o
que pressupõe a crise do modo de produção capitalista. O que significaria uma
crise do capitalismo? Significaria que a sociedade capitalista passaria por um
momento no qual sua existência estaria ameaçada, havendo o
risco/possibilidade/tendência de sua superação.
A partir destes esclarecimentos podemos perguntar: o
capitalismo está em crise? A pseudoesquerda partidária sempre lança a ideia de
que o capitalismo está em crise. No entanto, o capitalismo é uma sociedade
marcada por lutas de classes e diversas contradições derivadas, que possui como
elemento fundamental a existência de inúmeros problemas sociais (fome,
desemprego, disputas políticas, etc.). Uma crise do capitalismo significaria,
no fundo, que as relações de produção capitalistas, que são o elemento definidor
e fundamental do modo de produção capitalista, estariam com sua existência
ameaçada. Ora, como a existência do modo de produção capitalista poderia ser
ameaçada? Como tal modo de produção se caracteriza pela produção de mais-valor
e esta é a relação estabelecida entre proletariado e burguesia, então temos que
entender que uma crise dele significaria que tal relação estaria ameaçada, o
que, por sua vez, ameaçaria a existência da sociedade capitalista como um todo.
E como uma relação social, que é a existente na produção de mais-valor entre
proletariado e burguesia, pode ser ameaçada? Ora, quando uma das duas classes
que estão envolvidas nessa relação ameaça romper com ela. Ou seja, uma crise do
modo de produção capitalista e, logo, da sociedade capitalista, só pode ocorrer
se o proletariado ameaçar romper com tal relação.
Logo, não há nenhum motivo para se pensar em uma crise do
capitalismo na atualidade. O proletariado, apesar de algumas greves, ações e
manifestações em determinados países e situações, não está questionando as
relações de produção capitalistas na atualidade. Isso ocorreu no caso
argentino, no período de 1999-2002, durante a Revolução Russa de 1917, durante
a Comuna de Paris, a Guerra Civil Espanhola, entre diversas outras experiências
históricas. Nesse caso, uma crise do capitalismo só ocorre quando o
proletariado passa de classe determinada pelo capital para classe
autodeterminada (VIANA, 2012), ou seja, quando ao invés de reproduzir o
capitalismo através de lutas cotidianas e reivindicativas, como salários e
melhores condições de trabalho, passa a questionar a relação-capital, ou seja,
as relações de produção capitalistas.
Obviamente que existem outras crises no capitalismo.
Contudo, é preciso distinguir “crise do capitalismo” de “crise no capitalismo”.
As crises no capitalismo ocorrem cotidianamente. As crises no capitalismo não
são crises do modo de produção capitalista ou do conjunto da sociedade
capitalista, mas de partes no seu interior. Esse é o caso da crise financeira
de 2008, que foi uma crise localizada no âmbito do aparato financeiro. Da mesma
forma, há crises de governos, de legitimidade, entre diversas outras
possibilidades de crises no capitalismo.
Essas crises no capitalismo podem, e em alguns casos tendem,
a gerar uma crise do capitalismo. A crise do regime de acumulação conjugado
(também chamado “fordista” ou “intensivo-extensivo”) quase se tornou uma crise
do capitalismo, principalmente no caso francês, bem como, em menor grau, na
Itália, Alemanha e outros países e conviveu com outras crises em outros países.
A ascensão das lutas operárias e estudantis num quadro de queda da taxa de
lucro provocou esse processo.
No capitalismo contemporâneo, comandado pelo regime de
acumulação integral, as relações sociais são modificadas no sentido de aumentar
a pobreza, desemprego, precarização do trabalho, problemas sociais em geral,
bem como violência, criminalidade, e, ainda, protestos, revoltas, lutas sociais
mais radicalizadas. É nesse contexto que explodem diversas crises no
capitalismo que tendem a se tornar uma crise do regime de acumulação integral.
Essa, por sua vez, tende a possibilitar a crise do capitalismo. Uma crise do
regime de acumulação integral, e todo regime de acumulação tem um período de
nascimento, desenvolvimento e declínio, devido à própria dinâmica da acumulação
capitalista, vinculada à tendência declinante da taxa de lucro, e aumento das
lutas operárias e de outras classes e grupos no interior do capitalismo, tende
a se tornar uma crise do capitalismo. Nesses momentos, o proletariado tende a
ser constrangido a ir além das reinvindicações cotidianas e promover lutas mais
radicalizadas e em muitos casos questionar as relações de produção
capitalistas. É nesse momento que pode surgir uma crise do capitalismo. Para
tanto, as crises no capitalismo, tal como a crise financeira de 2008 e suas
consequências, que aceleraram as dificuldades de reprodução do regime de
acumulação integral, já entrando em sua fase de declínio, e outras crises, como
a crise de legitimidade da democracia burguesa no Brasil, aumentam a
possibilidade e tendência de se transformar em crise do capitalismo.
Contudo, isso ainda não ocorreu. Mas é uma tendência, não só
nos países capitalistas em que o regime de acumulação integral está com
dificuldades crescentes, especialmente os que tiveram que adotar políticas de
austeridade, como em casos mais específicos marcados por outras crises,
incluindo o caso da sociedade brasileira, apesar das diferenças e força de cada
caso.
Em síntese, a resposta à questão apresentado no título deste
artigo, é a de que não há, atualmente uma crise do capitalismo. Existem crises
no capitalismo e a tendência, cada vez mais forte, para que se instaure uma
crise do regime de acumulação integral, que, por sua vez, abre perspectivas
para uma crise do capitalismo, o que significaria o ressurgimento de um forte
movimento operário revolucionário que colocaria a autogestão social como algo a
ser pensado e que ficaria na ordem do dia. Dessa forma, é necessário superar a
mania da pseudoesquerda de anunciar eternamente a crise do capitalismo, bem como
estar atento para as tendências e possibilidades de desenvolvimento da
sociedade capitalista, inclusive sua dinâmica de acumulação e potencial
transformador existente nas classes exploradas e grupos oprimidos.
No fundo, é preciso entender que as lutas atuais são
determinações das lutas futuras e por isso o que acontecerá depende não de algo
metafísico ou natural e sim das relações sociais presentes (tal como a dinâmica
da acumulação capitalista) e das lutas sociais travadas nesse contexto,
reforçando uma ou outra tendência. Quanto mais os trabalhadores se organizam
hoje, realizam greves, manifestações, mais reforçam a tendência da emancipação
humana, pois não só faz avançar as lutas sociais, a passagem de classe
determinada pelo capital para classe autodeterminada, como também cria novas
dificuldades de reprodução do capitalismo, pois traz novos obstáculos para a
ampliação da exploração, da extração de mais-valor, o que atinge, novamente, a
acumulação capitalista e o regime de acumulação integral.
Assim, não vivemos uma crise do capitalismo e sim convivemos
com diversas crises no capitalismo, e essa pode gerar aquela. E nesse contexto,
nossas ações no presente vão reforçar uma ou outra coisa, bem como a resolução
da crise, que poderá ser um novo regime de acumulação que aumentaria mais ainda
a exploração e pioraria as condições de vida, ou o fascismo e a guerra, que
seriam resultados indesejáveis, ou a autogestão social, a emancipação humana.
REFERÊNCIAS
VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios Sobre o
Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx.
Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral.
São Paulo: Ideias e Letras, 2009.
VIANA, Nildo. O Fim do Marxismo e outros ensaios. São
Paulo: Giz Editorial, 2008.
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